Carta 90: Sobre o papel da Filosofia no Progresso do Homem

Na intrigante carta 90, Sêneca aborda as origens da humanidade e o papel da filosofia no progresso humano. Vemos que, em sua visão, a humanidade regrediu ao valorizar o luxo e conforto corporal deixando para trás o desenvolvimento espiritual intelectual.

Expõe suas divergências com o filósofo Posidônio e defende o princípio estoico viver de acordo com a natureza, onde explica detalhadamente o significado deste conceito e afirmando que nos primórdios da humanidade isso era praticado:

Sêneca diz:

  • os homens deixam de possuir todas as coisas da natureza no momento em que desejam coisas particulares para si próprios. (XC,3)
  • Qualquer dádiva que a natureza produzia, os homens obtinham tanto prazer em revelá-la a outro como em tê-la descoberto. Não era possível para nenhum homem superar a outro ou ficar atrás dele; tudo o que havia, era dividido entre os amigos sem discussão. O mais forte ainda não havia começado a colocar as mãos sobre os mais fracos; ainda não havia o avarento, escondendo o que estava diante dele, afastando seu vizinho das necessidades da vida; cada um se importava tanto com o próximo quanto com sigo mesmo. (XC, 40)

Estaria Sêneca defendendo o socialismo?

Sêneca está sugerindo que o capitalismo é maligno e que todos deveriam adotar o socialismo? Eu diria “não“. Sêneca reconheceu que esta idílica “Era de Ouro” existiu até que a ganância tomou conta. Ele afirma que porque a ganância entrou na civilização com tanta força, nunca poderemos voltar a como as coisas eram.

Em teoria, a maioria dos sistemas econômicos parecem ser grandes “soluções” para os problemas da sociedade – mas o problema é que a ganância humana acaba corrompendo qualquer um desses sistemas, de modo que eles nunca se revelam tão bons na prática como no papel. Sêneca parece até mesmo dizer que é uma causa perdida tentar voltar a esse modo de vida original:

“… por mais que a vida dos homens daquela época fosse excelente e sem censura, eles não eram homens sábios; pois esse título está reservado para a maior conquista. … Pois a natureza não concede virtude; é uma arte tornar-se bom.” (XC, 44)

O luxo não está realmente ajudando muito nosso mundo físico, mas parece estar prejudicando nossas mentes e nosso senso de moral mais do que imaginamos.

(Imagem: Os romanos em sua decadência por Thomas Couture)


XC. Sobre o papel da Filosofia no Progresso do Homem

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Quem pode duvidar, meu querido Lucílio, que a vida é a dádiva dos deuses imortais, mas que viver bem é a dádiva da filosofia? Daí a ideia de que nossa dívida com a filosofia é maior do que a nossa dívida com os deuses, na medida em que uma boa vida é mais benéfica do que a mera vida, não fosse a própria filosofia é uma benção que os deuses nos deram. Eles não deram seu conhecimento a ninguém, mas a faculdade de adquiri-lo foi dada a todos.

2. Pois, se tivessem feito a filosofia também um bem geral, e se nós tivéssemos o conhecimento desde nosso nascimento, a sabedoria perderia seu melhor atributo: não ser um dos presentes da Fortuna. Pois, a característica preciosa e nobre da sabedoria é que ela não tenta nos encontrar, que cada um precisa se endividar por ela, e que não a buscamos nas mãos dos outros. O que haveria de digno na filosofia, se ela fosse uma coisa que viesse por doação?

3. Sua única tarefa é descobrir a verdade sobre coisas divinas e coisas humanas. Do seu lado, a religião nunca se afasta, nem o dever, nem a justiça, nem toda a companhia de virtudes que se apegam em comunhão. A filosofia nos ensinou a adorar o que é divino, a amar o que é humano; ela nos disse que com os deuses há autoridade e entre os homens, a camaradagem. Esta camaradagem permaneceu intocada por um longo tempo, até que a avareza rasgou a comunidade e se tornou a causa da pobreza, mesmo no caso daqueles que ela mesma havia enriquecido. Pois os homens deixam de possuir todas as coisas da natureza no momento em que desejam coisas particulares para si próprios.

4. Mas os primeiros humanos e aqueles que surgiram deles, ainda intactos, seguiram a natureza, tendo um homem como seu líder e sua lei, confiando-se ao controle de alguém melhor do que eles. Pois a natureza tem o hábito de sujeitar os mais fracos ao mais forte. Mesmo entre os animais brutos, aqueles que são maiores ou mais ferozes dominam. Não é um touro fraco que lidera o rebanho; é aquele que venceu os outros machos por seu poder e músculos. No caso dos elefantes, o mais alto é o primeiro; entre os homens, o melhor é considerado o superior. É por isso que é pela mente que um governante é designado; e por essa razão a maior felicidade recai sobre aqueles povos entre os quais um homem não pode ser o mais poderoso, a menos que seja o melhor. Pois este homem pode cumprir com segurança o que ele quer, já que pensa que não pode fazer nada exceto o que deva fazer.

5. Por conseguinte, naquela idade que é considerada como a idade de ouro, Posidônio sustenta que o governo estava sob a jurisdição do sábio. Eles mantiveram suas mãos sob controle e protegiam o mais fraco do mais forte. Eles deram conselhos, tanto para fazer quanto para não fazer; eles mostraram o que era útil e o que era inútil. Sua previdência, que a seus súditos nada faltasse; sua bravura afastou os perigos; sua bondade enriqueceu e adornou seus súditos. Pois o governo deles era um serviço, não um exercício de realeza. Nenhum governante pôs à prova seu poder contra aqueles a quem devia o início de seu poder; e ninguém tinha a inclinação, ou a desculpa, para fazer o mal, já que o governante governava bem e o súdito obedecia bem, e o rei não poderia proferir nenhuma ameaça maior contra um súdito desobediente do que seu banimento do reino.

6. Mas, uma vez que o vício foi introduzido e os reinados se transformaram em tiranias, surgiu a necessidade de leis e essas mesmas leis foram, por sua vez, moldadas pelos sábios. Sólon[1], que estabeleceu Atenas em bases firmes por leis justas, foi um dos sete homens[2] reconhecidos por sua sabedoria. Se Licurgo[3] vivesse no mesmo período, um oitavo teria sido adicionado a esse sagrado número sete. As leis de Zaleuco[4] e Carondas são louvadas; não estava no fórum ou nos escritórios de conselheiros qualificados, mas no silencioso e santo retiro de Pitágoras, que esses dois homens aprenderam os princípios de justiça que deveriam estabelecer na Sicília (que na época era próspera) e ao longo de toda Itália grega.

7. Até este ponto, concordo com Posidônio; mas que essa filosofia descobriu as artes úteis à vida em sua ronda diária eu me recuso a admitir. Também não atribuo a ela uma glória de artesão. Posidônio diz: “Quando os homens estavam espalhados pela terra, protegidos pelas cavernas ou pelo abrigo escavado em um penhasco ou pelo tronco de uma árvore oca, foi a filosofia que os ensinou a construir casas”. Mas eu, por minha parte, não considero que essa filosofia concebeu essas habitações astutamente inventadas que se levantam a andar sobre andar, onde as multidões da cidade se apinham, não mais do que tenha inventado as conservas de peixe, que são preparadas com o propósito de poupar a gula dos homens de ter que correr o risco de tempestades, e para que, por mais que o mar esteja furioso, o luxo possa ter seus portos seguros para engordar raças extravagantes de peixe.

8. O que! Foi filosofia que ensinou o uso de chaves e fechaduras? Não, o que foi, exceto dar uma dica para a avareza? Foi a filosofia que construiu todos esses edifícios altos, tão perigosos para as pessoas que habitam neles? Não seria suficiente para o homem proporcionar-se um teto de qualquer possibilidade de cobertura e inventar para si algum retiro natural sem a ajuda da arte e sem problemas? Acredite, essa era uma época feliz, antes dos dias dos arquitetos, antes dos dias dos construtores!

9. Todo esse tipo de coisa nasceu quando o luxo nasceu – essa questão de cortar madeira e criar uma viga com mão inflexível enquanto a serra passa pela linha marcada.

O homem primitivo com cunhas dividiu sua madeira branda.Nam primi cuneis scindebant fissile lignum.[5]

Porque eles não estavam preparando um telhado para um futuro salão de banquete; nem para tal uso, eles carregavam os pinheiros ou os abetos ao longo das ruas trêmulas com uma longa fileira de carroças – apenas para pendurar sobre eles tetos com painéis pesados de ouro.

10. Os mastros bifurcados erguidos em ambas as extremidades apoiam suas casas. Com ramos fechados e com folhas amontoadas e inclinadas, eles conseguiam uma drenagem para as chuvas mais pesadas. Sob essas moradias, moravam, mas moravam em paz. Um telhado de palha cobria um homem livre; sob o mármore e o ouro habita a escravidão.

11. Em outro ponto também eu discordo de Posidônio, quando ele sustenta que ferramentas mecânicas são a invenção dos homens sábios. Pois nessa base, pode-se sustentar que esses eram sábios que ensinavam as artes:

de colocação de armadilhas para caça e galhos de arapuca para os pássaros, e encerrando de matilhas os vales.Tunc laqueis captare feras et fallere visco Inventum et magnos canibus circumdare saltus.[6]

Foi a engenhosidade do homem, não sua sabedoria, que descobriu todos esses dispositivos.

12. E eu também me distancio dele quando diz que homens sábios descobriram nossas minas de ferro e cobre, “quando a terra, queimada por incêndios florestais, derreteu as veias de minério que se encontravam perto da superfície e provocavam o jorro do metal.” Não, o tipo de homem que descobre essas coisas é o tipo de homem que está ocupado com elas.

13. Também não considero essa questão tão sutil quanto Posidônio pensa, ou seja, se o martelo ou a tenaz foi a primeira a entrar em uso. Ambos foram inventados por algum homem cuja mente era ágil e afiada, mas não grande ou elevada; e o mesmo vale para qualquer outra descoberta que só pode ser feita por meio de um corpo curvado e de uma mente cujo olhar está no chão. O homem sábio era simples em sua maneira de viver. E porque não? Mesmo em nossos tempos, ele prefere ser o mais desimpedido possível.

14. Como, pergunto, você pode admirar tanto Diógenes[7] quanto Dédalo[8]? Qual desses dois parece ser um homem sábio – aquele que inventou a serra, ou aquele que, ao ver um menino beber água do oco de sua mão, imediatamente tirou o copo da carteira e quebrou-o, repreendendo-se com estas palavras: “Louco que eu sou, ter transportado bagagem supérflua todo esse tempo!” E então enrolou-se em seu barril e deitou-se para dormir?

15. Nestes nossos tempos, qual homem, lhe pergunto, julga o mais sábio – aquele que inventa um processo para pulverizar perfumes de açafrão a uma altura tremenda por tubos escondidos, que preenche ou esvazia canais por uma súbita onda de águas, quem constrói tão habilmente uma sala de jantar com um teto de painéis móveis que apresenta um padrão após o outro, o telhado mudando tão frequentemente quanto os pratos, ou aquele que prova aos outros, bem como a si mesmo, que a natureza colocou sobre nós nenhuma lei severa e difícil quando ela nos diz que podemos viver sem o cortador de mármore e o engenheiro, que podemos nos vestir sem o uso de tecidos de seda, que podemos ter tudo o que é indispensável para o nosso uso, desde que nós apenas estejamos contentes com o que a Terra colocou em sua superfície? Se a humanidade estivesse disposta a ouvir esse sábio, ela saberia que o cozinheiro é tão supérfluo quanto o soldado.

16. Aqueles eram sábios, ou pelo menos como os sábios, que descobriram que o cuidado do corpo um problema fácil de resolver. As coisas indispensáveis não exigem esforços elaborados para a aquisição; são apenas os luxos que exigem trabalho. Siga a natureza, e você não precisará de artesãos qualificados. A natureza não queria que fôssemos “especialistas”. Pois para tudo o que coagiu contra nós, ela nos equipou. “Mas o frio não pode ser suportado pelo corpo nu”. O que então? Não há peles de feras selvagens e outros animais, que podem nos proteger bem o suficiente, e mais do que o suficiente, do frio? Muitas tribos não cobrem seus corpos com a casca de árvores? Não são as penas de pássaros costuradas para servir roupas? Mesmo hoje, não existe uma grande porção da tribo Cítia em peles de raposas e camundongos, macia ao toque e impermeável aos ventos?

17. “Por tudo isso, os homens devem ter uma proteção mais espessa do que a pele, para evitar o calor do sol no verão”. O que então? A antiguidade não produziu muitos refúgios que, criados pela erosão pelo tempo ou por qualquer outra ocorrência, abriu em cavernas? O que então? Os antigos não pegaram galhos e os teceram à mão em tapetes de vime, esfregando-os com lama comum e, em seguida, com restolho e outras gramas selvagens construíram um telhado, e assim passavam seus invernos seguros, as chuvas escoadas por meio de espigões inclinados? O que então? Os povos que estão à beira do golfo de Sirte não habitam em casas escavadas e, de fato, todas as tribos que, por causa do brilho feroz do sol, não possuem proteção suficiente para evitar o calor, exceto o próprio solo ressequido?

18. A natureza não foi tão hostil ao homem que, quando deu a todos os outros animais um papel fácil na vida, tornou impossível para ele sozinho viver sem todos esses artifícios. Nada disso foi imposto por ela; nenhum deles deve ser buscado com dificuldade para que nossas vidas pudessem ser prolongadas. Todas as coisas estão prontas para nós no nosso nascimento; somos nós que tornamos tudo difícil para nós mesmos, através do nosso desdém pelo que é fácil. Casas, abrigo, conforto material, comida e tudo o que agora se tornou a fonte de grandes problemas, estavam prontos, livres de tudo e alcançáveis por pequeno esforço. Pois o limite em todos os lugares corresponde à necessidade; somos nós que fizemos todas essas coisas valiosas, nós que as fizemos admiráveis, nós que as fizemos ser procuradas por dispositivos extensivos e múltiplos.

19. A natureza é suficiente para o que exige. O luxo virou as costas para a natureza; cada dia ele se expande, em todas as épocas ele vem acumulando força e por sua sagacidade promovendo os vícios. No início, o luxo começou a cobiçar o que a natureza considerava supérfluo, então, o que era contrário à natureza; E, finalmente, fez da alma um fiador ao corpo, e pediu que fosse uma escrava total das luxúrias do corpo. Todas essas astúcias pelas quais a cidade é patrulhada – ou devo dizer mantida em tumulto – estão envolvidas no negócio do corpo; há tempo todas as coisas eram oferecidas ao corpo tanto quanto a um escravo, mas agora elas são preparadas para o corpo como para um soberano. Consequentemente, daí vieram as oficinas das tecelãs e dos carpinteiros; daí o saboroso cheiro dos cozinheiros profissionais; daí a despreocupação daqueles que ensinam danças sensuais e cantos lascivos e afetados. Pois essa moderação que a natureza prescreve, que limita nossos desejos por recursos restritos a nossas necessidades, abandonou o campo; agora chegou a isso – querer apenas o que é suficiente é um sinal de grosseria e de absoluta pobreza.

20. É difícil de acreditar, meu querido Lucílio, com que facilidade o encanto da eloquência cativa, mesmo grandes homens, para longe da verdade. Tomemos, por exemplo, Posidônio – que, na minha opinião, é do time daqueles que mais contribuíram para a filosofia – quando deseja descrever a arte de tecer. Ele diz como, primeiro, alguns fios são torcidos e alguns tirados da suave e frouxa massa de lã; Em seguida, como a urdidura[9] vertical mantém os fios esticados por meio de pesos pendurados; Então, como a linha inserida da estrutura, que suaviza a textura dura da teia que a segura de cada lado, é forçada pelo batente para fazer uma união compacta com a urdidura. Ele sustenta que mesmo a arte do tecelão foi descoberta por homens sábios, esquecendo que a arte mais complicada que ele descreveu foi inventada nos últimos dias – a arte em que

A trama é presa a moldura; distante agora O pente separa a urdidura. Entre as fibras é atirada a textura pelas lançadeiras carregadas; Os dentes bem entalhados do pente largo, em seguida conduzem.Tela iugo vincta est, stamen secernit harundo, Inseritur medium radiis subtemen acutis, Quod lato paviunt insecti pectine dentes.[10]

Suponhamos ter tido a oportunidade de ver o tear do nosso próprio dia, o que produz as vestes que não esconderão nada, a roupa que proporciona – não vou dizer nenhuma proteção ao corpo, mas nem mesmo a modéstia!

21. Posidônio passa para o fazendeiro. Com menos eloquência, ele descreve o solo que é revolvido e cruzado novamente pelo arado, para que a terra, assim afrouxada, possa permitir um desenvolvimento mais livre das raízes; então a semente é espalhada, e as ervas daninhas arrancam à mão, para que nenhum crescimento casual ou planta selvagem desenvolva e estrague a cultura. Este ofício também, ele declara, é a criação do sábio – como se os cultivadores do solo não estivessem neste momento, descobrindo inúmeros novos métodos para aumentar a fertilidade do solo!

22. Além disso, não limitando sua atenção a essas artes, ele até degrada o homem sábio enviando-o para o moinho. Pois ele nos diz como o sábio, ao imitar os processos da natureza, começou a fazer pão. “O grão”, diz ele, “uma vez que é levado na boca, é esmagado pelos dentes íngremes, que se encontram em um encontro hostil, e qualquer que seja o grão que deslize na língua volta para os mesmos dentes. Então é misturado em uma massa, para que possa mais facilmente passar pela garganta escorregadia. Quando isso chega ao estômago, é digerido pelo calor uniforme do estômago, então, e só então, é assimilado pelo corpo”.

23. Seguindo esse padrão, ele continua, “alguém colocou duas pedras ásperas, uma sobre a outra, imitando os dentes, um dos quais está parado e aguarda o movimento do outro conjunto. Então, ao esfregar a pedra uma contra a outra, o grão é esmagado e trazido de volta uma e outra vez, até por fricção frequentemente é reduzido a pó. Então este homem polvilhou o repasto com água, e com a manipulação contínua subjugou a massa e moldou o pão. Esta lâmina foi, no início, cozida por cinzas quentes ou por um vaso de barro em brasa; mais tarde, fornos foram gradualmente descobertos e os outros dispositivos cujo calor presta obediência à vontade do sábio”. Posidônio chegou muito perto de declarar que mesmo o ofício do sapateiro era a descoberta do homem sábio.

24. A razão, de fato, inventou todas essas coisas, mas não era razão correta. Foi o homem, mas não o sábio, que as descobriu; Assim como eles inventaram navios, nos quais atravessamos rios e mares – navios equipados com velas com a finalidade de pegar a força dos ventos, navios com lemes adicionados na popa para girar o curso do navio em uma direção ou outra. O modelo seguido foi o peixe, que se dirige por sua cauda, e por seu menor movimento desse ou daquele lado desvia seu curso rapidamente.

25. “Mas”, diz Posidônio, “o homem sábio realmente descobriu todas essas coisas, mas elas eram muito insignificantes para que ele próprio lidasse, e ele as confiou a seus mais desprezíveis assistentes”. Não foi assim; estas invenções iniciais não foram pensadas por nenhuma outra classe de homens senão aqueles que as têm sob comando hoje. Sabemos que certos dispositivos surgiram apenas em nossa própria memória – como o uso de janelas que admitem a luz através de telhas transparentes e, como os banhos instalados em estufas, com canos em suas paredes para difundir o calor que mantém a uma temperatura uniforme seus mais baixos, bem como seus mais altos espaços. Por que preciso mencionar o mármore com o qual nossos templos e nossas casas particulares são resplandecentes? Ou as massas arredondadas e polidas de pedra pelo qual erguemos colunatas e edifícios espaçosos o suficiente para multidões? Ou nossos sinais para palavras inteiras[11], que nos permite anotar um discurso, por mais rapidamente pronunciado, combinando a velocidade da língua com a velocidade da mão? Todo esse tipo de coisa foi planejado pela mais vil categoria de escravos.

26. O lugar da sabedoria é mais alto; ela não treina as mãos, mas é a amante das nossas mentes. Você saberia o que a sabedoria trouxe à luz, o que ela realizou? Não são as poses graciosas do corpo, nem as variadas notas produzidas por corneta e flauta, por qual a respiração é recebida e, à medida que vaza ou passa, é transformada em voz. Não é sabedoria que inventa armas, erguer muralhas ou instrumentos úteis à guerra; a voz dela é para a paz, e ela convoca toda a humanidade para a concórdia.

27. Não é ela, eu mantenho, quem é a artesã de nossos instrumentos indispensáveis ao uso diário. Por que você atribui a ela coisas insignificantes? Você vê nela a especialista em artesanato da vida. As outras artes, é verdade, a sabedoria tem sob seu controle; pois aquele a quem vida serve é servido também pelas coisas que equipam a vida. Mas o curso da sabedoria é para o estado de felicidade; de lá ela nos guia, e abre o caminho para nós.

28. Ela nos mostra quais coisas são do mal e o que é aparentemente mau; ela tira nossas mentes de ilusão vã. Ela nos confere uma grandeza que é substancial, mas ela reprime a grandeza que é orgulhosa, e que é vistosa, mas cheia de vazio; e ela não nos permite ignorar a diferença entre o que é ótimo e o que é nada, senão inchado; além disso, ela nos entrega o conhecimento de toda a natureza e de sua própria natureza. Ela nos revela o que são os deuses e de que qualidade eles são; quais são os deuses inferiores, as divindades domésticas e os espíritos protetores; quais são as almas que foram dotadas de vida duradoura e foram admitidas na segunda classe de divindades, onde é a sua morada e quais são suas atividades, poderes e vontade. Tais são os ritos de iniciação da sabedoria, por meio dos quais é destrancado, não um santuário de aldeia, mas o vasto templo de todos os deuses – o próprio universo, cujas aparições verdadeiras e aspectos verdadeiros ela oferece ao olhar de nossas mentes, já que nossa visão não alcança um tão grandioso espetáculo!

29. Então ela volta ao começo das coisas, à razão eterna que foi transmitida ao todo, e à força que é inerente a todas as sementes das coisas, dando-lhes o poder de modelar cada coisa de acordo com seu tipo. Então a sabedoria começa a indagar sobre a alma, de onde ela vem, onde ela habita, quanto tempo ela permanece, quantas divisões ela tem. Finalmente, ela volta sua atenção do corpóreo para o incorpóreo, e examina de perto a verdade e as marcas pelas quais a verdade é conhecida, investigando o seguinte, como aquilo que é ambíguo pode ser distinguido da verdade, seja na vida ou na linguagem; pois ambos são elementos do falso misturado com o verdadeiro.

30. É minha opinião que o homem sábio não se retirou, como Posidônio pensa, das artes que estávamos discutindo, mas que ele nunca as tomou. Pois ele teria julgado que nada vale a pena descobrir que não julgasse valer a pena sempre usar. Ele não aceitaria hoje coisas que devessem ser descartadas amanhã.

31. “Mas Anacársis[12]“, diz Posidônio, “inventou a roda do oleiro, cujo turbilhão dá forma aos vasos”. Então, como a roda do oleiro é mencionada por Homero, as pessoas preferem acreditar que os versos de Homero são falsos e não a história de Posidônio! Mas eu sustento que Anacársis não foi o criador desta roda; e mesmo que ele fosse, embora fosse um homem sábio quando o inventou, ainda assim ele não inventou isso como “homem sábio” – assim como há muitas coisas que os homens sábios fazem como homens e não como homens sábios. Suponhamos, por exemplo, que um homem sábio seja muito rápido nos pés; ele superará todos os corredores da competição em virtude de ser ligeiro, não em virtude de sua sabedoria. Gostaria de mostrar a Posidônio um soprador de vidro que, por sua respiração, molda o copo em múltiplas formas que mal poderiam ser feitas pela mão mais hábil. Mais que isso, essas descobertas foram feitas desde que nós os homens deixamos de descobrir a sabedoria.

32. Mas Posidônio novamente observa. “Dizem que Demócrito descobriu o arco de abóboda[13], cujo efeito foi que a linha curva de pedras, que gradualmente se inclinam uma para a outra, é unida pela pedra angular”. Estou disposto a pronunciar esta declaração falsa. Pois deveria haver, antes de Demócrito, pontes e portais em que a curvatura não começou até o topo.

33. Parece ter fugido de sua memória que este mesmo Demócrito descobriu como o marfim poderia ser amolecido por fervura, como um calhau poderia ser transformado em esmeralda, – o mesmo processo usado até hoje para colorir pedras que são submissas a este tratamento! Pode ter sido um homem sábio que descobriu todas essas coisas, mas não as descobriu por ser sábio; pois ele fez muitas coisas que vemos feitas tão bem, ou mesmo com mais habilidade e destreza, por homens totalmente deficientes de sabedoria.

34. Você pergunta o que, então, o sábio descobriu e o que ele trouxe à luz? Antes de tudo, a verdade a respeito da natureza; e a natureza ele não seguiu como fazem os outros animais, com os olhos muito entorpecidos para perceber o divino nela. Em segundo lugar, existe a lei da vida e a vida que ele fez para se adequar aos princípios universais; e ele nos ensinou, não apenas a conhecer os deuses, mas a segui-los e a receber as dádivas do acaso exatamente como se fossem comandos divinos. Ele nos proibiu de prestar atenção a opiniões falsas e ponderou o valor de cada coisa por um verdadeiro padrão de avaliação. Ele condenou os prazeres com os quais o remorso se mistura e elogiou os bens que sempre satisfazem; E ele explicitou a verdade que é mais feliz aquele que não precisa de felicidade, e que é mais poderoso aquele que tem poder sobre si mesmo.

35. Não falo dessa filosofia que coloca o cidadão fora de sua comunidade e os deuses fora do universo, e que aceita haver virtude no prazer[14], mas sim daquela filosofia que não dá valor a nada, exceto o que é honorável, uma que não pode ser persuadida pelos presentes, tanto do homem como da fortuna, uma cujo valor é que não pode ser comprada por qualquer valor[15]. Que esta filosofia tenha existido em uma época tão bruta, quando as artes e ofícios ainda eram desconhecidos e quando as coisas úteis só podiam ser aprendidas pela prática – isso eu me recuso a acreditar.

36. Em seguida, veio o período favorecido pela fortuna, quando as recompensas da natureza se abriram a todos, para o uso indiscriminado dos homens, antes que a avareza e o luxo quebrassem os laços que mantinham os mortais juntos, e eles, abandonando sua existência comunal, se separaram e se tornaram saqueadores. Os homens da segunda era não eram homens sábios, mesmo que fizessem o que os homens sábios deveriam fazer.

37. Na verdade, não há outra condição da raça humana que alguém considere mais altamente; e se Deus ordenasse a um homem para criar criaturas terrestres e conferir instituições aos povos, esse homem não aprovaria nenhum outro sistema que fosse distinto daquele dos homens dessa época, quando

Nenhum lavrador cultivou o solo, nem estava certo repartir ou delimitar a propriedade. Os homens compartilharam seus ganhos, e a Terra entregava mais livremente Suas riquezas para os filhos que não as procuravam.Nulli subigebant arva coloni, Ne signare quidem aut partiri limite campum Fas erat; in medium quaerebant, ipsaque tellus Omnia liberius nullo poscente ferebat.[16]

38. Que raça de homens foi mais bem-aventurada do que aquela raça? Eles gozavam de toda a natureza em parceria. A natureza era uma mãe para eles, agora a tutora, assim como antes era a mãe, de todos; e este seu presente consistia na posse garantida de cada homem dos recursos comuns. Por que eu não poderia chamar essa raça a mais rica entre os mortais, já que não conseguiria encontrar uma pessoa pobre entre eles? Mas a avareza invadiu uma situação tão felizmente organizada, e, por sua ânsia por tirar algo e transformá-lo em seu próprio uso privado, fez de tudo a propriedade dos outros e reduziu riquezas ilimitadas a uma carestia desmedida. Foi a avareza que introduziu a pobreza e, por desejar muito, perdeu tudo.

39. E, por isso, embora ela tente compensar a perda, embora ela adicione uma propriedade a outra, expulsando um vizinho tanto comprando-o ou prejudicando-o, embora ela estenda suas mansões ao tamanho das províncias e defina propriedade como significando uma extensa viagem através da própria propriedade, – apesar de todos esses esforços dela, nenhuma ampliação de nossas fronteiras nos trará de volta à condição de onde partimos.

40. O próprio solo era mais produtivo quando se não dividido e produzia mais do que o suficiente para os povos que se abstinham de despojar uns aos outros. Qualquer dádiva que a natureza produzia, os homens obtinham tanto prazer em revelá-la a outro como em tê-la descoberto. Não era possível para nenhum homem superar a outro ou ficar atrás dele; tudo o que havia, era dividido entre os amigos sem discussão. O mais forte ainda não havia começado a colocar as mãos sobre os mais fracos; ainda não havia o avarento, escondendo o que estava diante dele, afastando seu vizinho das necessidades da vida; cada um se importava tanto com o próximo quanto com sigo mesmo.

41. A armadura não era usada e a mão, não manchada pelo sangue humano, direcionava todo seu ódio contra animais selvagens. Os homens daquele dia, que haviam encontrado em uma proteção densa do bosque contra o sol, e a segurança contra o rigor do inverno ou da chuva em seus pobres esconderijos, passavam suas vidas sob os ramos das árvores e passavam noites tranquilas sem um suspiro. O luxo nos irrita em nossas vestes púrpuras, e nos afasta de nossas camas com as mais afiadas aguilhoadas; mas quão suave era o sono que a terra dura concedia aos homens daquele dia! Quando não há mais que possamos fazer, devemos possuir muito; mas antes nós possuíamos o mundo inteiro!

42. Nenhuma preocupação constante ou tetos luxuosos pendiam sobre eles, mas quando se deitavam debaixo do céu aberto, as estrelas deslizavam silenciosamente acima deles, e o firmamento, o nobre desfile noturno, marchava rapidamente, conduzindo sua poderosa tarefa em silêncio. Pois eles tinham, ao dia, assim como a noite, as visões desta morada mais gloriosa, livre e aberta. Era sua alegria observar as constelações enquanto se afundavam do meio do céu e outras, novamente, quando se levantavam de suas casas escondidas.

43. O que mais, além da alegria, poderia ser vagar entre as maravilhas que pontilhavam os céus em toda parte? Mas você, da época atual, estremece a cada som que sua casa faz, e enquanto se senta entre seus afrescos, o menor chiado o faz encolher de terror. Eles não tinham casas tão grandes quanto cidades. O ar, brisas soprando livremente através dos espaços abertos, a sombra flutuante do penhasco ou da árvore, água cristalinas e córregos não estragadas pelo trabalho do homem, seja por tubulações ou por qualquer confinamento, mas correndo à vontade, e prados lindos sem o uso da arte, – em meio a essas cenas estavam suas casas rudes, adornadas com mão rústica. Tal moradia estava em conformidade com a natureza; nesse lugar havia alegria de viver, sem temer a própria residência nem por sua segurança. Hoje, no entanto, nossas casas constituem uma grande parte do nosso medo.

44. Mas, por mais que a vida dos homens daquela época fosse excelente e sem censura, eles não eram homens sábios; pois esse título está reservado para a maior conquista. Ainda assim, eu não negaria que eles eram homens de espírito elevado e – eu posso usar a frase – recente entregue pelos deuses. Pois não há dúvida de que o mundo produziu uma descendência melhor antes de ser esgotado. No entanto, nem todos foram dotados de faculdades mentais de maior perfeição, embora em todos os casos seus poderes inatos fossem mais vigorosos do que os nossos e mais adequados para o trabalho. Pois a natureza não concede virtude; é uma arte tornar-se bom.

45. Eles, pelo menos, não procuraram na mais baixa escória da terra por ouro, nem ainda por prata ou pedras transparentes; e eles ainda eram misericordiosos mesmo com os animais brutos – tão longe era essa época do costume de matar o homem pelo homem, não com raiva ou com medo, mas apenas para fazer um show[17]! Ainda não tinham roupas bordadas nem teciam um pano de ouro; o ouro ainda não era minerado.

46. Qual é, então, a conclusão do assunto? Foi devido sua ignorância das coisas que os homens daqueles dias eram inocentes; e faz uma grande diferença se queremos pecar ou se não temos conhecimento para pecar. A justiça era desconhecida, a prudência desconhecida, desconhecidos também eram o autocontrole e a bravura; mas sua vida rude possuía certas qualidades parecidas com todas essas virtudes. A virtude não é concedida a uma alma, a menos que essa alma tenha sido treinada e ensinada, e pela prática incessante, trazida à perfeição. Para a obtenção desta benção, mas não na posse dela, nós nascemos; e mesmo no melhor dos homens, antes da iniciação filosófica, se pode haver matéria-prima para a virtude, não existe ainda a virtude.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sólon (grego Σόλων, translit. Sólōn; (Atenas, 638 a.C. – 558 a.C.) foi um estadista, legislador e poeta grego antigo. Foi considerado pelos gregos como um dos sete sábios da Grécia antiga e, como poeta, compôs elegias morais-filosóficas. Em 594 a.C., iniciou uma reforma das estruturas social, política e econômica da pólis ateniense.

[2] No texto atribuído a Caio Higino, os sete sábios são: Pítaco de Mitilene, Periandro de Corinto, Tales de Mileto, Sólon de Atenas, Quílon de Esparta, Cleóbulo de Lindos e Bias de Priene. Plutarco lista os sete sábios como Tales, Bias, Pítaco, Sólon, Quílon, Cleóbulo e Anacarses. Platão, no diálogo intitulado Protágoras, expõe a seguinte lista: Tales, Pítacos, Bias, Sólon, Cleóbulo, Mison e Quílon.

[3] Licurgo foi um lendário legislador da pólis de Esparta. Nada se sabe seguramente sobre a existência deste personagem. Heródoto fala dele em meados do século V a.C., mas a vida do legislador deve ter decorrido no século VIII a.C., mas a sua memória seria correntemente mencionada na Esparta do século V, pois os seus habitantes nessa época sentiam a necessidade de atribuir a organização estatal que os regia a um ser humano, e não ao acaso. A organização estatal atribuída a Licurgo se compunha de rígido regime de formação possuía um caráter de obrigação social e imposição estatal, com o objetivo primordial de treinar cidadãos masculinos à vida militar espartana.

[4] Zaleuco de Locros (Locros, Século VII a.C.), foi um legislador do Período Arcaico da Magna Grécia. Zaleuco, sendo o primeiro legislador conhecido, promulgou c.644 a.C. um código de leis, usualmente designado por Código de Zaleuco.

[5] Trecho de Geórgicas, v. I, 144 de Virgílio.

[6] Trecho de Geórgicas, v. I, 139-140 de Virgílio.

[7] Diógenes de Sinope, também conhecido como Diógenes, o Cínico, foi um filósofo da Grécia Antiga.

[8] Dédalo, na mitologia grega, é um personagem natural de Atenas e descendente de Erecteu. Notável arquiteto e inventor, cuja obra mais famosa é o labirinto que construiu para o rei Minos, de Creta, aprisionar o Minotauro.

[9] Conjunto de fios de mesmo comprimento reunidos paralelamente no tear por entre os quais se faz a trama.

[10] Trecho de Metamorfoses, de Ovídio..

[11] Suetônio nos diz que um certo Ênio, um gramático da era de Augusto, foi o primeiro a desenvolver a estenografia em uma base científica, e que Tiro, o escravo liberto de Cícero, inventou o processo. Ele também menciona Sêneca como a autoridade mais científica e enciclopédica no assunto.

[12] Anacársis foi um filósofo cita que viajou de sua terra natal na costa norte do Mar Negro até Atenas no início do século VI a.C. e causou grande impressão como um “bárbaro” franco, sincero, aparentemente um precursor dos cínicos, embora nenhum de seus trabalhos tenha sobrevivido.

[13] A abóbada é uma construção em forma de arco com a qual se cobrem espaços compreendidos entre muros, pilares ou colunas. Compõe-se de peças lavradas em pedra especialmente para este fim, denominadas aduelas, ou de tijolos apoiados sobre uma estrutura provisória de madeira, o cimbre. Embora de uso generalizado no Império Romano, a construção de abóbadas constituiu o principal problema arquitetônico da Idade Média europeia. O desafio de construí-las foi um dos fatores que impulsionaram a evolução da arquitetura ocidental.

[14] Referência ao Epicurismo

[15] Em oposição, Sêneca apresenta síntese das posições estoicas.

[16] Trecho de Geórgicas, v. I, de Virgílio.

[17] Referência aos jogos de gladiadores.

Carta 89: Sobre as Partes da Filosofia

Esta carta é uma das mais voltadas para o debate teórico da filosofia, em contraste com a maioria das cartas que têm cunho mais prático. Sêneca inicia fazendo uma diferenciação entre sabedoria e filosofia:

A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou.” (LXXXIX, 4) Ou, de forma mais condensada: “A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.“(LXXXIX, 6).

A carta cita e comenta posições de Epicuro, Cícero, da escola peripatética e cirenaica sobre as partes da filosofia, chegando ao defendido pelos estoicos, que os principais ramos são ética, física e lógica: A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. (LXXXIX, 9).

Imagem: Mosaico Academia de Platão na vila de Siminius Stephanus em Pompeia.


LXXXIX. Sobre as Partes da Filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. É um fato útil que deseje saber, o que é essencial para aquele que busca a sabedoria – mais precisamente, as partes da filosofia e a divisão de seu todo em membros separados. Pois, ao estudar as partes, podemos ser trazidos com mais facilidade a entender o todo. Só desejo que a filosofia possa estar diante de nossos olhos em toda a sua plenitude, assim como toda a extensão do firmamento se mostra para que o possamos contemplar! Seria uma visão muito parecida com a do firmamento. Pois, certamente, a filosofia arrebataria todos os mortais pelo amor por ela; devemos abandonar todas aquelas coisas que, na nossa ignorância do que é excelente, acreditamos ser excelentes. No entanto, como isso não nos é dado graciosamente, devemos ver a filosofia exatamente como os homens contemplam os segredos do firmamento.

2. A mente do sábio, com certeza, abraça toda a estrutura da filosofia, examinando-a com um olhar não menos rápido do que nossos olhos mortais examinam os céus; nós, no entanto, que devemos atravessar a escuridão, nós, cuja visão falha mesmo para o que está próximo, podemos ser apresentados com maior facilidade a cada objeto em separado, apesar de ainda não sermos capazes de compreender o universo. Portanto, cumpro suas exigências e dividirei a filosofia em partes, mas não em migalhas. Pois é útil que a filosofia seja dividida, mas não cortada em pedaços mínimos. Assim como é difícil compreender o que é demasiadamente grande, também é difícil compreender o que é demasiadamente pequeno.

3. As pessoas são divididas em tribos, o exército em centúrias[1]. Tudo o que cresceu a um tamanho maior é mais facilmente identificado se for dividido em partes; mas as partes, como observei, não devem ser incontáveis em número e em tamanho diminuto. Pois a análise excessiva é defeituosa exatamente da mesma forma que nenhuma análise; o que quer que você corte tão bem que se torne pó é tão bom quanto misturado em uma massa novamente.

4. Em primeiro lugar, portanto, se você aprovar, vou traçar a distinção entre sabedoria e filosofia. A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou. E é claro por que a filosofia[2] é assim chamada. Pois reconhece por seu próprio nome o objeto de seu amor.

5. Certas pessoas definem a sabedoria como o conhecimento das coisas divinas e das coisas humanas[3]. Outros ainda dizem: “A sabedoria é saber coisas divinas e coisas humanas, e suas causas também[4]”. Esta frase adicionada parece-me supérflua, uma vez que as causas das coisas divinas e as coisas humanas fazem parte do sistema divino. A filosofia também foi definida de várias maneiras; alguns a chamaram de “o estudo da virtude”, outros se referiram a ela como “um estudo sobre o modo de modificar a mente”, e alguns a chamaram de “busca da razão justa”.

6. Uma coisa está praticamente resolvida, que há alguma diferença entre filosofia e sabedoria. Também não é possível que o que é procurado e o que procura sejam idênticos. Como há uma grande diferença entre a avareza e a riqueza, sendo uma sujeito do desejo e a outra seu objeto, assim também entre filosofia e sabedoria. Pois uma é um resultado e uma recompensa da outra. A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.

7. A sabedoria é aquilo que os gregos chamam de σοφία[5]. Os romanos também costumavam usar essa palavra, sophia, no sentido em que eles agora usam a “filosofia” também. Isso é provado pelas nossas antigas peças de teatro de toga[6], bem como pelo epitáfio que está esculpido no túmulo de Dosseno: “Detenha-se, estranho, e leia de Dosseno a sofia”.[7]

8. Certos de nossa escola, embora a filosofia significasse para eles “o estudo da virtude”, e embora a virtude fosse o objeto buscado e a filosofia o buscador, sustentavam, no entanto, que as duas não podem ser separadas. Pois a filosofia não pode existir sem virtude, nem virtude sem filosofia. A filosofia é o estudo da virtude, por meio, no entanto, da própria virtude; mas a virtude não pode existir sem o estudo de si mesma, nem o estudo da virtude existe sem a própria virtude. Pois não é como tentar atingir um alvo em um longo ponto, onde o atirador e o objeto a ser atingido estão em diferentes lugares. Nem, como estradas que conduzem a uma cidade, nem são as abordagens da virtude situadas fora da própria virtude; o caminho pelo qual se alcança a virtude é por meio da própria virtude; a filosofia e a virtude se mantêm juntas.

9. Os maiores autores e o maior número de autores, sustentaram que existem três divisões de filosofia – moral, natural e lógica[8]. A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. Mas também houve aqueles que dividiram a filosofia, por um lado, em menos divisões, por outro lado, em mais.

10. Certos da escola peripatética adicionaram uma quarta divisão, “filosofia política”, porque aplica-se a uma esfera especial de atividade e está interessada em um assunto diferente. Alguns acrescentaram um departamento para o qual eles usam o termo grego “οικονομία” (economia), a ciência de gerenciar o próprio patrimônio. Ainda outros fizeram um título distinto para os vários tipos de vida. Não há nenhuma dessas subdivisões, no entanto, que não sejam encontradas sob o ramo “moral” da filosofia.

11. Os epicuristas sustentavam que a filosofia era dupla: natural e moral; eles acabaram com o ramo lógico. Então, quando foram compelidos pelos próprios fatos a distinguir entre ideias equívocas e a expor falácias escondidas sob a capa da verdade, eles também introduziram um título para o qual eles dão o nome “forense e reguladora[9]”, que é meramente “lógica” sob outro nome, embora considerem que esta seção é suplementar ao departamento de filosofia “natural”.

12. A Escola Cirenaica[10] aboliu o departamento natural e lógico, e estava contente com o lado moral sozinho; e, no entanto, esses filósofos também incluem sob outro título o que eles rejeitaram. Pois dividem a filosofia moral em cinco partes: (1) O que evitar e o que procurar, (2) As paixões, (3) Ações, (4) Causas, (5) Prova. Agora, as causas das coisas realmente pertencem à divisão “natural”, as provas a “lógica”.

13. Aristo de Quios[11] observou que o natural e a lógica não eram apenas supérfluos, mas também eram contraditórios. Ele até mesmo limitou a “moral”, que era tudo o que lhe restava; pois aboliu esse título que abraçou o conselho, sustentando que era o negócio do pedagogo e não do filósofo – como se o homem sábio fosse outra coisa senão o pedagogo da raça humana!

14. Uma vez que, portanto, a filosofia é tripla, primeiro comecemos a definir o lado moral. Foi acordado que esse deveria ser dividido em três partes. Primeiro, temos a parte reflexiva, que atribui a cada coisa sua função particular e pesa o valor de cada uma; é o mais alto em termos de utilidade. Pois o que é tão indispensável como dar a tudo seu valor adequado? O segundo tem que ver com impulso, o terceiro com ações. Pois o primeiro dever é determinar separadamente o que vale a pena; o segundo, conceber em relação a eles um impulso regulado e ordenado; o terceiro, fazer seu impulso e suas ações se harmonizar, de modo que sob todas essas condições você possa ser consistente consigo mesmo.

15. Se algum dos três estiver com defeito, há confusão no resto também. Pois que benefício há em ter todas as coisas avaliadas, cada uma em suas relações adequadas, se você ultrapassar seus impulsos? Qual o benefício que existe ao ter controlado seus impulsos e em ter seus desejos sob seu próprio controle, se, quando você chegar à ação, você desconhece os horários e as épocas adequadas, e se você não sabe quando, onde e como cada ação deve ser realizada? Uma coisa é entender os méritos e os valores dos fatos, outra coisa conhecer o momento preciso para a ação, e ainda outra refrear os impulsos e prosseguir, em vez de se precipitar, para o que está para ser feito. Por isso, a vida está em harmonia com ela mesma somente quando a ação não abandona o impulso, e quando o impulso para um objeto surge em cada caso do valor do objeto, sendo lânguido ou mais ansioso, conforme o caso, de acordo com os objetos que o despertam valem a pena procurar.

16. O lado natural da filosofia é duplo: corporal e não corporal. Cada um é dividido em seus próprios graus de importância, por assim dizer. O tópico sobre os corpos aborda, primeiro, com estas duas classes: o criativo e o criado; e as coisas criadas são os elementos. Agora, esse mesmo tópico dos elementos, de acordo com alguns escritores, é integral; com outros, é dividido em matéria, a causa que move todas as coisas e os elementos.

17. Resta para mim dividir a filosofia lógica em suas partes. Toda a fala é contínua ou dividida entre questionador e respondedor. Foi definido que a primeira deveria ser chamada de ῥητορικὴ (retórica), e a última διαλεκτική (dialética). A retórica trata de palavras, significados e arranjos. A dialética é dividida em duas partes: palavras e seus significados, isto é, nas coisas que são ditas, e as palavras em que são ditas. Então vem uma subdivisão de cada uma – e é de grande extensão. Portanto, eu vou parar neste ponto, e

Percorrer o clímax;Summa sequar fastigia rerum;[12]

Pois, se eu tivesse vontade de dar as subdivisões, minha carta se tornaria o manual de um debatedor!

18. Não estou tentando desencorajá-lo, excelente Lucílio, de ler sobre este assunto, desde que você esteja pronto para praticar tudo o que ler. É sua conduta que você deve manter em controle; você deve despertar o que está dormente em você, tencionar rapidamente o que se tornou relaxado, conquistar o que é obstinado, acossar seus apetites e os apetites da humanidade, tanto quanto você pode; e para aqueles que dizem: “Por quanto tempo essa conversa sem fim continuará?” Responda com as palavras:

19. “Eu é quem deveria estar perguntando: Por quanto tempo esses pecados sem fim continuarão?Você realmente deseja que meus remédios parem antes de seu vício? Mas devo falar mais de meus remédios, e apenas porque você oferece objeções, eu continuarei falando. A medicina começa a fazer o bem no momento em que um toque faz com que o corpo doente arda com dor. Devo pronunciar palavras que ajudarão os homens até mesmo contra a vontade deles. Às vezes, você deve permitir que outras palavras além de elogios atinjam seus ouvidos e se, como indivíduo, você não estiver disposto a ouvir a verdade, ouça coletivamente.

20. Quão longe você estenderá os limites de suas propriedades? Uma fazenda que mantenha uma nação é muito limitada para um único senhor. Até que ponto você avançará seus campos arados – você que não está contente em confinar a medida de suas fazendas mesmo dentro da amplitude das províncias? Você tem rios nobres que atravessam seus terrenos privados; você tem rios poderosos – fronteiras de nações poderosas – sob seu domínio do início ao fim. Isso também é muito pequeno para você, a menos que também envolva mares inteiros com seus estados, a menos que seu administrador mantenha influência do outro lado do mar Adriático, da Jônia e do mar Egeu, a menos que as ilhas, casas de chefes famosos, sejam contadas por você como o mais insignificante dos bens! Espalhe-os tão amplamente quanto você quiser, se puder ter como “fazenda” o que uma vez foi chamado de império; faça seu o que quiser, desde que seja mais do que o do seu vizinho!

21. E agora por uma palavra contigo, cujo luxo se espalha tão amplamente quanto a ganância daqueles a quem acabei de referir. Para você, eu digo: “Este costume continuará até que não haja lago sobre o qual os pináculos de suas casas de campo não atinjam? Até que não haja um rio cujas margens não sejam limitadas por suas estruturas senhoriais? Onde águas quentes possam surgir, onde as margens se curvem em uma baía, você estará pronto para estabelecer fundações e, não contente com nenhuma terra que não tenha sido trabalhada pela engenharia, você irá trazer o mar dentro de seus limites. De cada lado, deixará suas casas brilharem ao sol, agora colocadas em picos nas montanhas, onde elas procuram uma visão extensa sobre o mar e a terra, agora levantadas da planície até o alto das montanhas, construirá suas múltiplas estruturas, suas imensas pilhas, vocês são, no entanto, apenas indivíduos e insignificantes com isso! O que você ganha em ter várias camas? Você dorme em uma. Nenhum lugar é seu, onde você não esteja”.

22. “Em seguida, eu passo para você, você cuja boca insaciável e sem fundo explora, por um lado, os mares, do outro, a terra, com um enorme trabalho, caçando sua presa, agora com anzol, agora com armadilha, agora com redes de vários tipos, nenhum animal tem paz, exceto quando você está empanturrado dele. E quão pequena é uma parte desses banquetes, preparado para você por tantas mãos, que você prova com seu paladar fatigado de prazer! Quão pequena parte de toda essa carne de caça, cuja captura esteve repleta de perigo, o paladar doente e cheio de melindre chega ao estômago? Quão pequena porção de todos os peixes, importados de longe, escorrega para aquela insaciável garganta? Pobres desgraçados, vocês não sabem que seus apetites são maiores que suas barrigas?

23. Fale assim com outros homens, desde que você enquanto falar também escute; escreva assim, desde que, enquanto escreve, lê, lembrando que tudo o que você ouve ou lê, deve ser aplicado para conduzir e para aliviar a fúria da paixão. Estude, não para adicionar nada ao seu conhecimento, mas para melhorar seu conhecimento.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Centúria era uma unidade de infantaria do exército romano, que continha oitenta legionários, correspondendo a dez contubérnios (a unidade mínima do exército romano, constituída de oito a dez soldados).

[2] Pitágoras foi, segundo Diógenes de Laércio, o primeiro a utilizar a palavra «filosofia», que é decomposta em duas: filo (amizade) e sofia (saber); o filósofo é, portanto, o amigo ou o amante do saber – esta é a significação com que a palavra aparece também em Sócrates e Platão.

[3] “Θείων τε καὶ ἀνθρωπίνων ἐπιστήμη”, citado por Plutarco, De Plac. Phil. 874 E.

[4] Cicero, De Officiis, “Sobre os Deveres”, II,ii, 5.

[5]sofia” equivalente em grego (Σοφία)

[6] Fabula togata, comédia “de toga”, distingue-se da comédia de imitação grega, “fabula palliata” apenas na atuação, o local e os personagens são romanos, ao contrário do que sucede com a palliata, em que se conservam os nomes gregos e a acão ocorre em locais vários do mundo grego.

[7] Hospes resiste et sophian Dossenni lege.

[8] Também traduzido como ética, física e lógica.

[9] Sêneca usa o termo latino “de iudicio” traduzindo o adjetivo grego δικανικός, “aquilo que tem a ver com os tribunais”, e por “de regula” a palavra κανονικός, “aquilo que tem a ver com regras”, aqui as regras da lógica. Os Epicuristas usavam para a lógica κανονική, em contraste com Aristóteles e seus sucessores, que usaram λογική. No latim, racionalis é uma tradução deste último.

[10] Aristipo de Cirene foi o fundador da Escola Cirenaica de filosofia, assim denominada devido à cidade de Cirene na qual foi fundada, floresceu entre 400 a.C. e 300 a.C., e tinha como a sua característica distintiva principal o hedonismo, ou a doutrina de que o prazer é o bem supremo. Como os cínicos se desenvolveram para os estoicos, assim os cirenaicos se desenvolveram para os Epicuristas.

[11] Aríston ou Aristo de Quios foi um filósofo estoico e discípulo de Zenão de Cítio. Esboçou um sistema de filosofia estoica que esteve, em muitos aspectos, mais próximo da anterior filosofia cínica. Rejeitou o lado lógico e físico da filosofia aprovada por Zenão e enfatizou a ética.

[12] Eneida, I, 342,  de Virgílio.

O que os brasileiros poderiam aprender com os estoicos romanos

O Ensaio abaixo borda os principais filósofos estoicos e suas lições para enfrentar a adversidade, escrito sob a ótica da crise recente.

Todos têm de jogar o jogo da vida. Você não pode simplesmente andar por aí dizendo: “Não dou a mínima para a riqueza, a saúde ou se eu for mandado para a prisão ou não”. Epicteto levou tempo para explicar melhor o que quis dizer. Ele diz que todos devem jogar o jogo da vida — que os melhores o jogam com “habilidade, estilo, presteza e graça”. Mas, como a maioria dos jogos, você o joga com uma bola. Seu time intensamente se esforça para fazê-la atravessar a linha de fundo. Mas, depois do jogo, o que se faz com a bola? Ninguém se importa. Não vale a pena se importar com ela. A competição, o jogo, foi a coisa propriamente dita. A bola foi “usada” para tornar o jogo possível, mas em si mesma não tem valor algum que justifique que se lute por ela. Uma vez terminado o jogo, a bola é uma questão indiferente.

(James B. Stockdale)

O espírito do artigo é: “O mundo pode ser cruel, mas nada nos força a ser cruéis com ele. Assim como nada nos obriga a idealizá-lo. A obra da filosofia é simples e discreta.”

Artigo excelente de Donato S. Ferrara.

O que os brasileiros poderiam aprender com os estoicos romanos

Resenha: Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres por Diógenes Laércio

Livro - Diogenesv

Li o livro sobre os estoicos de Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres por Diógenes Laércio em tradução publicada pela Montecristo Editora.

Trata-se de uma compilação da vida e as ideias dos mais importantes pensadores gregos. É principalmente uma história da vida dos filósofos, tendo a filosofia defendida por estes apenas como parte acessória do texto.

Começa com a vida de Zenão, o fundador do estoicismo, narrando como ele veio a ter contato com a filosofia, como estudou com os cínicos e depois criou sua própria linha de pensamento. Outro grande mérito da obra é a narrativa viva da atmosfera do mundo antigo, via numerosos detalhes anedóticos das vidas dos mestres:

A um rapaz que falava tolices suas palavras foram: “A razão de termos duas orelhas e somente uma boca é que devemos ouvir mais e falar menos.” (VII, 23)

Apolônio de Tiro conta  a seguinte anedota: quando Crates o puxou pelo manto para afastá-lo de Estilpo, Zenão disse: “Os filósofos dispõem de um meio excelente, Crates: atacar os outros pelos ouvidos. Persuada-me, então, e leve-me contigo; mas, se me levar à força, meu corpo estará contigo, porém a alma permanecerá com Estilpo.” (VII, 24)

Após a biografia de Zenão, vem o componente principal do livro, a Exposição da filosofia estoica por Diógenes Laércio. Esta sem dúvida constitui a fonte principal para o conhecimento do estoicismo grego, e é importante para o estudo do ceticismo e das ramificações da filosofia socrática bem como do epicurismo. Os parágrafos 39 a 159 são o cerne da obra e merecem leitura atenta. Alguns trechos:

  • Os estoicos dividem a filosofia em três partes: física, ética e lógica. (…) comparam a filosofia a um ser vivo, onde os ossos e os fibras correspondem à lógica, as partes carnosas à ética e a alma à física. Ou então comparam a um ovo: casca à lógica, a parte seguinte (a clara) à ética, e a parte central (a gema) à física. (VII, 39-40);
  • Afirmam que é extremamente útil o estudo da teoria dos silogismos. Ela ensina o método demonstrativo, que contribui consideravelmente para a formação correta dos juízos, para sua disposição e para sua memorização, e ensina ainda a adquirir com bastante segurança conhecimentos científicos. (VII, 45);
  • Por isso Zenão foi o primeiro, em sua obra Da Natureza do Homem, a definir o fim supremo como viver de acordo com a natureza, ou seja, viver segundo a excelência, porque a excelência é o fim para o qual a natureza nos guia. (VII, 87);
  • Segundo os estoicos, a alma se compõe de oito partes: os cinco sentidos, o órgão vocal, a faculdade de pensar (que é a própria mente) e a faculdade geradora. Do falso resulta a perversão do pensamento, e dessa perversão resultam muitas paixões causadoras de instabilidade. (VII, 110);

Após o resumo do estoicismo, Laércio passa para a biografia dos discípulos e sucessores de Zenão, indicando os pontos sobre os quais estes estoicos se diferenciaram do mestre. Os filósofos descritos são Aríston, Hérilos, Dionísio, Cleantes, Esfero e Crísipo.  Infelizmente parte da obra foi perdida e o texto termina abruptamente durante o relato da vida de Crísipo, sabe-se que continuava com outros 13 filósofos.

Alguns trechos são pouco interessantes, e têm linguagem estranha. De toda forma é uma excelente leitura para quem quer conhecer os primórdios do estoicismo.

Disponível nas lojas:  Amazon, Kobo, Apple e GooglePlay.

Carta 75: Sobre as Doenças da Alma

Na carta 75, Sêneca foca na questão do progresso moral usando ricas metáforas com a medicina. O estudante de filosofia é um doente, e seu professor um médico. Inicia explicando seu estilo de escrita, dizendo que o importante é o conteúdo e não quão rebuscado é o texto e alertando que mais importante do que o que falamos é o que fazemos:

“…devo contentar-me em lhe transmitir meus sentimentos sem os ter embelezado nem reduzido sua dignidade… digamos o que sentimos, e sintamos o que dizemos; que a fala se harmonize com a vida.” (LXXV, 2-4)

Toda a carta segue com analogias, comparando o filósofo com o médico. O estudante de filosofia é um doente, que precisa de tratamento duro, não de divertimento:

“Um doente não chama um médico por que é eloquente; mas se acontecer que o médico que pode curá-lo também discorra elegantemente sobre o tratamento a ser seguido, o paciente vai levá-lo em bom crédito.” (LXXV, 6)

O cerne da carta é a classificação dos aprendizes em três classes, de acordo com a evolução atingida. Conclui o texto definindo o que é liberdade:

Significa não temer nem homens nem deuses; significa não desejar a maldade ou o excesso; significa possuir poder supremo sobre si mesmo e é um bem inestimável ser mestre de si mesmo

(Imagem: Erasístrato descobre a causa da doença de Antíoco, por Jacques-Louis David


LXXV. Sobre as Doenças da Alma

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

1. Você tem se queixado de que minhas cartas são escritas de forma descuidada. Agora, quem fala cuidadosamente, a menos que também deseje falar de forma afetada? Prefiro que minhas cartas sejam exatamente o que seria a minha conversa, se você e eu estivéssemos sentados na companhia um do outro ou caminhando juntos, espontâneos e tranquilos; pois minhas cartas não têm nada de tenso ou artificial nelas.

2. Se fosse possível, eu preferiria mostrar, em vez de falar, meus sentimentos. Mesmo que eu estivesse discutindo um ponto, eu não deveria bater meu pé, nem atirar os braços, ou levantar a voz; mas devo deixar esse tipo de coisa ao orador, e devo contentar-me em lhe transmitir meus sentimentos sem os ter embelezado nem reduzido sua dignidade.

3. Eu gostaria de convencê-lo inteiramente deste fato, – que eu sinto o que quer que eu digo, que eu não o sinto apenas, mas sou ligado profundamente a ele. Um é o tipo de beijo que um homem dá a sua amante e outro que ele dá a seus filhos; ainda no abraço do pai, sagrado e refreado como é, a abundância de afeto é revelada. Contudo, prefiro que nossa conversa sobre assuntos tão importantes não seja escassa e seca; pois mesmo a filosofia não renuncia à companhia da inteligência. Não se deve, no entanto, dar muita atenção às meras palavras.

4. Seja este o cerne da minha ideia: digamos o que sentimos, e sintamos o que dizemos; que a fala se harmonize com a vida. Esse homem cumpriu sua promessa, pois é a mesma pessoa, tanto ao vê-lo como ao ouvi-lo.

5. Nós não deixaremos de ver que tipo de homem é e quão grande é, se somente for um e sempre o mesmo. Nossas palavras devem ter como objetivo não agradar, mas ajudar. Se, no entanto, você pode alcançar a eloquência sem grande esforço, e se você é naturalmente dotado ou pode ganhar eloquência a um custo baixo, aproveite ao máximo e aplique este dom a usos mais nobres. Mas que seja de tal natureza que exiba fatos mais do que a si mesmo. Esta e as outras artes são inteiramente interessadas em inteligência; mas o nosso negócio aqui é a alma.

6. Um doente não chama um médico por que é eloquente; mas se acontecer que o médico que pode curá-lo também discorra elegantemente sobre o tratamento a ser seguido, o paciente vai levá-lo em bom crédito. Por tudo isso, não encontrará motivo para se congratular por ter descoberto um médico eloquente. Não é diferente de um piloto hábil que também é bonito.

7. Por que você faz cócegas em meus ouvidos? Por que você me diverte? Há outros negócios à mão; eu estou aqui para ser cauterizado, operado ou colocado em uma dieta. É por isso que você foi convocado para me tratar! Você é obrigado a curar uma doença que é crônica e grave, – que afeta o bem-estar geral. Você tem um negócio tão sério na mão como um médico tem durante uma praga. Você está preocupado com as palavras? Regozije neste instante se conseguir lidar com as coisas. Quando você aprenderá tudo o que há para aprender? Quando você plantará em sua mente o que aprendeu, que não pode escapar? Quando você deverá colocar tudo em prática? Pois não basta apenas enviar essas coisas à memória, como outras coisas; elas devem ser praticamente testadas. Não é feliz quem só as conhece, mas sim aquele que as faz.

8. Você responde: “Não há graus de felicidade abaixo de seu homem feliz”? Existe uma descida pura imediatamente abaixo da sabedoria?” Eu acho que não. Pois, embora aquele que progride ainda é contado junto aos tolos, mas está separado deles por um longo intervalo. Entre as próprias pessoas que estão progredindo há também grandes espaços. Elas caem em três classes, como certos filósofos acreditam.

9. Primeiramente vêm aqueles que ainda não alcançaram a sabedoria, mas já ganharam um lugar próximo. No entanto, mesmo o que não está longe está ainda lá fora. Estes, se você me perguntar, são homens que já deixaram de lado todas as paixões e vícios, que aprenderam quais coisas devem ser abraçadas; mas sua certeza ainda não foi testada. Eles ainda não puseram em prática o seu bem, mas de agora em diante eles não podem escorregar de volta para as falhas das quais escaparam. Eles já chegaram a um ponto do qual não há retrocesso, mas eles ainda não estão cientes do fato; como eu me lembro de ter escrito em outra carta, “Eles são ignorantes de seu conhecimento.[1]” Agora lhes foi concedido gozar do seu bem, mas ainda não ter certeza disso.

10. Alguns definem esta classe, de que tenho falado, – uma classe de homens que estão progredindo, – como tendo escapado das doenças da mente, mas ainda não das paixões, e como ainda em pé sobre terreno escorregadio; porque ninguém está além dos perigos do mal, exceto aquele que se livrou inteiramente dele. Mas ninguém se desvencilhou, exceto o homem que adotou a sabedoria em seu lugar.

11. Muitas vezes, já expliquei a diferença entre as doenças da mente e suas paixões. E vou lembrá-lo mais uma vez: as doenças são endurecidas e vícios crônicos, como a ganância e ambição; eles envolvem a mente em um aperto muito próximo, e começam a ser seus males permanentes. Para dar uma definição breve: por “doença” queremos dizer uma perversão persistente do julgamento, de modo que as coisas que são levemente desejáveis são consideradas altamente desejáveis. Ou, se você preferir, podemos defini-la assim: ser muito zeloso em lutar por coisas que são apenas ligeiramente desejáveis ou não desejáveis de todo, ou valorizar as coisas que devem ser valorizadas apenas ligeiramente.

12. “Paixões” são impulsos indesejáveis do espírito, repentinas e veementes; elas vêm tão frequentemente, e tão pouca atenção tem sido dada a elas, que causam um estado de doença; assim como um catarro, quando há apenas um caso e o catarro ainda não se tornou habitual, produz apenas tosse, mas, quando se torna regular e crônico provoca a tuberculose. Portanto, podemos dizer que aqueles que fizeram o maior progresso estão além do alcance das “doenças”; mas eles ainda sentem as “paixões”, mesmo quando muito perto da perfeição.

13. A segunda classe é composta por aqueles que deixaram de lado os maiores males da mente e suas paixões, mas ainda não estão em posse garantida de imunidade. Pois eles ainda podem escorregar para trás em seu estado anterior.

14. A terceira classe está fora do alcance de muitos dos vícios e particularmente dos grandes vícios, mas não fora do alcance de todos. Eles escaparam à avareza, por exemplo, mas ainda sentem raiva; eles não são mais perturbados pela luxúria, mas ainda estão perturbados pela ambição; eles não têm mais desejo, mas eles ainda têm medo. E apenas porque temem, embora sejam fortes o suficiente para resistir a certas coisas, há certas coisas às quais eles cedem; desprezam a morte, mas estão aterrorizados pela dor.

15. Vamos refletir um momento sobre este tema. Estaremos bem conosco se formos admitidos nesta primeira classe. A segunda categoria é obtida por grande sorte em relação aos nossos dons naturais e pela elevada e incessante aplicação ao estudo. Mas nem mesmo o terceiro tipo deve ser desprezado. Pense no exército de males que vê sobre você; eis como não há crime que não seja exemplificado, até que ponto a maldade avança todos os dias e quão prevalentes são os pecados em casa e na comunidade. Você verá, portanto, que estamos em vantagem considerável, se não estamos contados entre os mais baixos.

16. “Mas quanto a mim”, você diz: “Espero que esteja apto a subir para um grau mais elevado do que isso!” Eu deveria orar, em vez de prometer, que possamos alcançar isto; nós fomos prevenidos. Nós corremos para a virtude enquanto obstruídos por vícios. Tenho vergonha de dizê-lo; mas adoramos o que é honroso somente na medida em que temos tempo livre. Mas que recompensa rica nos espera se apenas afastarmos os assuntos que nos obstruem e os males que se agarram a nós com total tenacidade!

17. Então nem o desejo nem o medo nos derrubarão. Não perturbados pelos medos, intocados pelos prazeres, não teremos medo nem da morte nem dos deuses; saberemos que a morte não é um mal e que os deuses não são poderes do mal. O que prejudica não tem poder maior do que aquele que recebe dano, e as coisas que são totalmente boas não têm poder algum em causar dano. Lá esperam-nos, se alguma vez escaparmos dessas escórias baixas para aquela altura sublime e elevada, paz de espírito e, quando todo o erro for expulso, a liberdade perfeita. Você pergunta o que é essa liberdade? Significa não temer nem homens nem deuses; significa não desejar a maldade ou o excesso; significa possuir poder supremo sobre si mesmo e é um bem inestimável ser mestre de si mesmo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Carta LXXI – 4.

Carta 73: Sobre Filósofos e Reis

A carta 73 é especialmente interessante por causa de suas sugestões autobiográficas e sua relação com os próprios esforços de Sêneca para se livrar da vida na corte e buscar o tempo livre de um sábio.

Vemos no início que ele cita o “homem que saiu do senado, da ordem dos advogados e de todos os assuntos do estado, para se aposentar em assuntos mais nobres” uma clara auto referência, visto que o próprio Sêneca renunciou a seu posto no Senado no ano 62, como relata Tácito.

A Carta é uma  defesa da função do estado e do apreço que os filósofos têm, ou deveriam ter, ao estado.   É claro que o estado atualmente é muito maior e mais inchado que no tempo de Sêneca, então qualquer analogia ou comparação deve ser feita cautelosamente.

Sêneca diz que graças aos governantes o sábio pode, em segurança, dedicar-se a filosofia.  Diz que o filósofo sabe valorizar os bens públicos:

“A tola ganância dos mortais faz uma distinção entre posse e propriedade, e acredita que não tem propriedade em nada em que o público em geral tem uma parte. Mas nosso filósofo não considera nada mais verdadeiro que o que ele compartilha em parceria com toda a humanidade”. (LXXIII,7)

Conclui a carta em tom mais religioso que normalmente o faz, e retorna com a afirmação que a única diferença entre o sábio e os deuses é a imortalidade dos últimos (atenção, sábio para Sêneca é um ideal a ser buscado):

“um deus não tem nenhuma vantagem sobre um homem sábio em termos de felicidade, embora tenha uma vantagem em anos. Essa virtude não é maior porque dura mais.”(LXXIII,13)

“Nenhuma mente que não tenha Deus é boa. Sementes divinas estão espalhadas por todos os nossos corpos mortais; se um bom lavrador as recebe, elas brotam na semelhança da sua fonte e em paridade com aquele de onde vieram.” (LXXIII,16)

(imagem Estátua representando Tácito no exterior do edifício do Parlamento Austríaco)


LXXIII. Sobre Filósofos e Reis

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Parece-me errôneo acreditar que aqueles que se dedicaram à filosofia são insolentes e rebeldes, escarnecedores de magistrados ou reis ou daqueles que controlam a administração dos assuntos públicos. Pois, pelo contrário, nenhuma classe de homem é tão popular com o filósofo como o governante é; e com razão, porque os governantes não concedem a nenhum homem um privilégio maior do que sobre aqueles que têm permissão para desfrutar da paz e do ócio.
  2. Portanto, aqueles que se beneficiam grandemente, no que se refere ao seu propósito de viver corretamente, pela segurança do Estado[1], devem ter como pai o autor deste bem; muito mais, pelo menos, do que aquelas pessoas inquietas que estão sempre à vista do público, que devem muito ao governante, mas também esperam muito dele e nunca são tão generosamente agraciados de favores que seus anseios, que crescem por serem atendidos, estão completamente satisfeitos. E ainda aquele cujos pensamentos nos benefícios vindouros os faz esquecer os benefícios já recebidos; e não há mal maior na cobiça do que na ingratidão.
  3. Além disso, nenhum homem na vida pública pensa nos muitos que ele superou; ele pensa antes naqueles por quem é superado. E esses homens acham menos agradável ver muitos atrás deles do que irritante ver alguém à frente deles. Esse é o problema com toda espécie de ambição; não olha para trás. Não é só a ambição que é inconstante, mas também todo tipo de desejo, porque sempre começa onde deveria terminar.
  4. Mas aquele outro homem, reto e puro, que saiu do senado[2], da ordem dos advogados e de todos os assuntos do estado, para se aposentar em assuntos mais nobres, aprecia aqueles que lhe permitiram fazer isso em segurança; ele é a única pessoa que retorna espontaneamente graças a eles, a única pessoa que lhes deve uma grande dívida sem o seu conhecimento. Assim como um homem honra e reverencia seus professores, por cuja ajuda ele encontrou a libertação de seus primeiros desvios, assim o sábio homenageia esses homens, também, sob cuja tutela ele pode colocar suas boas teorias em prática.
  5. Mas você responde: “Outros homens também são protegidos pelo poder pessoal de um rei.” Perfeitamente verdadeiro. Mas, assim como, de um número de pessoas que se beneficiaram do mesmo período de tempo calmo, um homem considera que sua dívida com Netuno é maior se sua carga durante essa viagem foi mais extensa e valiosa, e assim como a promessa é paga com mais vontade pelo mercador do que pelo passageiro, e assim como, entre os próprios mercadores, são dadas graças mais cordiais pelo mercador de especiarias, tecidos tingidos e objetos que valem seu peso em ouro, do que por aquele que atua com mercadorias baratas que não seriam nada além de lastro para seu navio; da mesma forma, os benefícios desta paz, que se estende a todos, são mais profundamente apreciados por aqueles que fazem bom uso dela.
  6. Porque para muitos dos nossos cidadãos togados a paz traz mais problemas do que a guerra. Ou esses, você acredita, devem tanto quanto nós pela paz que desfrutam, que a gastam em embriaguez, em luxúria ou em outros vícios que valeria a pena até mesmo uma guerra para interromper? Não, a menos que você pense que o homem sábio é tão injusto a ponto de acreditar que, como indivíduo, ele não deve nada em troca das vantagens que ele desfruta com todos os outros. Tenho uma grande dívida com o sol e com a lua; e, no entanto, eles não se levantam para mim apenas. Estou pessoalmente em dívida com as estações do ano e com o Deus que as controla, embora em nenhum caso elas tenham sido separadas para meu benefício exclusivo.
  7. A tola ganância dos mortais faz uma distinção entre posse e propriedade, e acredita que não tem propriedade em nada em que o público em geral tem uma parte. Mas nosso filósofo não considera nada mais verdadeiro que o que ele compartilha em parceria com toda a humanidade. Pois essas coisas não seriam propriedade comum, como de fato são, a menos que cada indivíduo tivesse sua quota; mesmo um interesse comum baseado na menor parte faz um sócio.
  8. Novamente, os bens grandes e verdadeiros não são divididos de tal maneira que cada um tenha apenas um ligeiro interesse; eles pertencem em sua totalidade a cada indivíduo. Em uma distribuição de grãos, os homens recebem apenas o montante que foi prometido a cada pessoa; o banquete e a carne, ou tudo o mais que um homem pode levar consigo, são divididos em partes[3]. Estes bens, contudo, são indivisíveis, isto é, paz e liberdade, e pertencem inteiramente a todos os homens, tanto quanto pertencem a cada indivíduo.
  9. Portanto, o filósofo pensa na pessoa que lhe permite usar e gozar dessas coisas, da pessoa que o isenta quando a necessidade extrema do estado envolve as armas, o dever de sentinela, a defesa das muralhas e as múltiplas exigências da guerra; e ele dá graças ao timoneiro de seu estado. Isto é o que a filosofia ensina acima de tudo, honrosamente para confessar a dívida dos benefícios recebidos e honrosamente para pagá-los; por vezes, no entanto, o próprio reconhecimento constitui um pagamento.
  10. Nosso filósofo, portanto, reconhece que tem uma grande dívida para com o governante que torna possível, por sua gestão e previsão, que ele desfrute de rico tempo livre, controle seu próprio tempo, e de uma tranquilidade não interrompida por empregos públicos.
    Meliboee, deus nobis haec otia fecit :Namque erit ille mihi semper deus.[4]
  11. E se esse mesmo ócio que nosso poeta deve grandemente ao seu autor, embora sua maior benção seja esta:
    Ille meas errare boves, ut cernis, et ipsumLudere quae vellem calamo permisit agresti.[5]Quão altamente devemos valorizar este ócio do filósofo, que é gasto entre os deuses, e nos faz deuses?
  12. Sim, é isso que quero dizer, Lucílio; e eu convido você para o céu por um atalho. Séxtio[6] costumava dizer que Júpiter não tinha mais poder do que o homem bom. É claro que Júpiter tem mais dons que pode oferecer à humanidade; mas quando você está escolhendo entre dois homens bons, o mais rico não é necessariamente o melhor, não mais do que, no caso de dois timoneiros da mesma habilidade em controlar o leme, você o chamaria de melhor aquele cujo navio é maior e mais imponente?
  13. A esse respeito é Júpiter superior ao nosso bom homem? Sua bondade dura mais; mas o homem sábio não estabelece um valor inferior sobre si mesmo, apenas porque suas virtudes são limitadas por um período mais breve. Ou tome dois sábios; aquele que morreu em uma idade maior não é mais feliz do que aquele cuja virtude se limitou a menos anos: da mesma forma, um deus não tem nenhuma vantagem sobre um homem sábio em termos de felicidade, embora tenha uma vantagem em anos. Essa virtude não é maior porque dura mais.
  14. Júpiter possui todas as coisas, mas ele certamente lançou a posse delas para os outros; o único uso delas que pertence a ele é este: ele é a causa de seu uso por todos os homens. O homem sábio examina e despreza todas as posses dos outros com a mesma tranquilidade com que Júpiter, e se considera com maior estima porque, enquanto Júpiter não pode usá-las, ele, o sábio, não deseja fazê-lo.
  15. Acreditemos portanto em Séxtio, quando nos mostra o caminho da beleza perfeita e clama: “Este é o caminho para as estrelas”, e é assim que se observa a frugalidade, a contenção e a coragem! Os deuses não são desdenhosos ou invejosos; eles abrem a porta para você; eles dão uma mão enquanto você escala.
  16. Você se maravilha que o homem vá aos deuses? Deus vem aos homens; ele se aproxima – ele vem para dentro dos homens. Nenhuma mente que não tenha Deus é boa. Sementes divinas estão espalhadas por todos os nossos corpos mortais; se um bom lavrador as recebe, elas brotam na semelhança da sua fonte e em paridade com aquele de onde vieram. Se, no entanto, o lavrador for mal, como um solo estéril ou pantanoso, ele mata as sementes e faz com que o joio cresça em vez de trigo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Sêneca refere-se à estabilidade política e econômica bem como a segurança pública trazida pelo Estado.

[2] A saída do Senado, foi o que Sêneca fez a partir de 62, para o que achou por bem ter uma longa conversa com Nero a fim de lhe dar conta da sua resolução; veja a narração do caso em Tácito, Ann., XIV, 52-56.

[3] Durante certos festivais, a carne cozida ou crua era distribuída entre as pessoas.

[4] “Ó Melibez! Um deus que este ócio me deu, Pois ele será meu deus eternamente.”
Trecho de As Éclogas de Virgílio. Virgílio deve uma dívida ao Imperador, e considera-o como um “deus” por causa da doação da felicidade terrena; Quão grande é a dívida do filósofo, que tem a oportunidade de estudar coisas celestiais!

[5]Como tu podes ver, Ele me deixou transformar o meu gado em alimento, E jogar o que a fantasia agradou no junco rústico;”
Trecho de As Éclogas de Virgílio.

[6] Quinto Sextio o Velho (em latim: Quinti Sextii Patris – c. 70 a.C.) foi um filósofo cujas ideias combinavam o pitagorismo com o estoicismo.


MontecristoEditora lançou a versão FÍSICA das cartas de Sêneca.

Carta 72: Sobre os negócios como inimigo da filosofia

Na carta 72 Sêneca diz que, ao invés do usualmente feito,  devemos priorizar o estudo da filosofia, deixando os negócios em segundo plano, ou melhor ainda, abandonado completamente.

Segundo ele, a preocupação com negócios é sinal de uma sabedoria imperfeita, sinal de preocupação com bens materiais externos:

“São aqueles que ainda estão aquém da perfeição cuja felicidade pode ser quebrada; a alegria de um homem sábio, por outro lado, é um tecido entrelaçado, quebrada por nenhum acontecimento casual e ou mudança de sorte; em todos os momentos e em todos os lugares ele está em paz. Pois a sua alegria não depende de nada externo e não busca nenhuma bênção do homem ou da fortuna. Sua felicidade é algo dentro de si mesmo.” (LXXII, 4)

Precisamos ter em mente que Sêneca estava falando da alta classe romana, pessoas de muitas posses que não precisavam “cuidar dos negócios” para manterem um alto padrão material de vida. Ele próprio, sempre atarefado e comprometido com negócios (como afirma no início da carta) ainda está se esforçando para atingir a sabedoria.

O importante é saber se contentar com o suficiente e lembrar que “a fortuna não nos dá nada que possamos realmente possuir.” Ao final da carta cita uma analogia de seu professor de estoicismo, Átalo:

“Você alguma vez já viu um cachorro que pula com mandíbulas abertas em pedaços de pão ou carne que seu mestre atira a ele? Seja o que for que pegar, imediatamente engolirá tudo e sempre abre suas mandíbulas na esperança de algo mais, assim é com nós mesmos, ficamos expectantes, e tudo o que a Fortuna nos lança, abocanhamos imediatamente sem nenhum prazer real, e logo ficamos atentos e frenéticos por algo mais a arrebatar”. (LXXII, 8)

Sêneca diz que não é assim com o sábio; ele está satisfeito. Mesmo que lhe seja oferecido algo, ele simplesmente o aceita e o deixa de lado.

Imagem: Detalhe de David de Michelangelo.


LXXII. Sobre os negócios como inimigo da filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. O assunto sobre o qual você me pergunta já estava claro em minha mente, e não exigiu nenhum pensamento, tão completamente eu o tinha dominado. Mas não testei a minha memória por algum tempo, e, portanto, não o tinha de prontidão. Sinto que sofri o destino de um livro cujas páginas estão presas por desuso; minha mente precisa ser desenrolada, e tudo o que foi armazenado lá deve ser examinado de vez em quando, para que possa estar pronto para uso quando a ocasião exigir. Vamos, portanto, colocar este assunto para o presente; pois exige muito trabalho e muito cuidado. Assim que eu puder esperar permanecer por algum tempo no mesmo lugar, eu então tomarei sua pergunta à mão.
  2. Pois há certos assuntos sobre os quais você pode escrever, mesmo quando viaja em uma biga, e há também assuntos que precisam de uma cadeira de estudo, calma e reclusão. No entanto, eu deveria concluir algo mesmo em dias como estes, – dias que são totalmente empregados, e de fato de manhã até à noite. Pois nunca há um momento em que novas ocupações não surjam; nós as semeamos, e por esta razão várias germinam. Então, continuamos adiando nossos próprios casos, dizendo: “Assim que eu terminar com isso, eu estabelecerei um trabalho árduo”, ou: “Se eu conseguir colocar este assunto problemático em ordem, deverei dedicar-me ao estudo.”
  3. Mas o estudo da filosofia não deve ser adiado até que você tenha tempo livre; tudo o mais deve ser negligenciado para que possamos atender à filosofia, pois não há tempo suficiente para isso, mesmo que nossas vidas sejam prolongadas desde a infância até os limites extremos do tempo alocado ao homem. Faz pouca diferença se você abandona completamente a filosofia ou a estuda intermitentemente; porque ela não permanece como estava quando você a deixou, mas, porque sua continuidade foi quebrada, ela volta para a posição em que estava no início, como coisas que se despedaçam quando são tensionadas. Devemos resistir aos assuntos que ocupam nosso tempo; eles não devem ser desembaraçados, mas sim colocados fora do caminho. Na verdade, não há tempo que seja inadequado para estudos úteis; e ainda assim muitos homens falham em estudar em meio às circunstâncias que tornam necessário o estudo.
  4. Ele diz: “Algo acontecerá para me atrasar.” Não, não no caso do homem cujo espírito, não importa qual seja o seu negócio, está feliz e alerta. São aqueles que ainda estão aquém da perfeição cuja felicidade pode ser quebrada; a alegria de um homem sábio, por outro lado, é um tecido entrelaçado, quebrada por nenhum acontecimento casual e ou mudança de sorte; em todos os momentos e em todos os lugares ele está em paz. Pois a sua alegria não depende de nada externo e não busca nenhuma bênção do homem ou da fortuna. Sua felicidade é algo dentro de si mesmo; ele se afastaria de sua própria alma se ela tivesse vindo de fora; contudo ela nasce dentro.
  5. Às vezes, um acontecimento externo lembra sua mortalidade, mas é um golpe leve, e apenas roça a superfície de sua pele. Alguns problemas, repito, podem tocá-lo como um sopro de vento, mas esse Bem Supremo dele é inabalável. Isto é o que quero dizer: há desvantagens externas, como espinhas e furúnculos que irrompem sobre um corpo que é normalmente forte e sadio; mas não há uma doença profunda.
  6. A diferença, digamos, entre um homem de sabedoria perfeita e outro que está progredindo em sabedoria é a mesma diferença entre um homem saudável e um que está convalescente de uma doença grave e prolongada, para quem a “saúde” significa apenas um ataque mais leve de sua doença. Se este não toma cuidado, há uma recaída imediata e um retorno ao mesmo velho problema; mas o homem sábio não pode escorregar para trás, ou escorregar em qualquer doença. Pois a saúde do corpo é uma questão temporária que o médico não pode garantir, mesmo que tenha restaurado; e, muitas vezes, é retirado de sua cama para visitar o mesmo paciente que o convocou antes. A mente, entretanto, uma vez curada, é curada para sempre.
  7. Vou dizer-lhe o que quero dizer com saúde: se a mente está contente com seu próprio eu; se tiver confiança em si mesmo; se compreender que todas as coisas pelas quais os homens oram, todos os benefícios que são concedidos e pedidos, não são importantes em relação a uma vida de felicidade; Pois qualquer coisa que pode ser acrescida é imperfeita; qualquer coisa que possa sofrer perda não é duradoura; mas deixe o homem cuja felicidade é duradoura regozijar-se no que é verdadeiramente seu[1]. Agora tudo o que a multidão se embasbaca, mais tarde decai e escoa. A fortuna não nos dá nada que possamos realmente possuir. Mas mesmo esses presentes da Fortuna nos satisfazem quando a razão os tem temperado e misturado a nosso gosto; pois é a razão que nos torna aceitáveis até mesmo bens externos que são desagradáveis usar se os absorvemos com avidez.
  8. Átalo costumava empregar a seguinte analogia: “Você alguma vez já viu um cachorro que pula com mandíbulas abertas em pedaços de pão ou carne que seu mestre atira a ele? Seja o que for que pegar, imediatamente engolirá tudo e sempre abre suas mandíbulas na esperança de algo mais, assim é com nós mesmos, ficamos expectantes, e tudo o que a Fortuna nos lança, abocanhamos imediatamente sem nenhum prazer real, e logo ficamos atentos e frenéticos por algo mais a arrebatar”. Mas não é assim com o sábio; ele está satisfeito. Mesmo que lhe seja oferecido algo, ele simplesmente o aceita descuidadamente e o deixa de lado.
  9. A felicidade que ele desfruta é supremamente grande, é duradoura, é sua própria. Suponha que um homem tenha boas intenções e faça progressos, mas ainda esteja longe das alturas; o resultado é uma série de altos e baixos; ele agora é elevado ao céu, agora trazido à terra. Para aqueles que não têm experiência e treinamento, não há limite para o curso de decadência; tal cair no Caos de Epicuro[2], – vazio e ilimitado.
  10. Há ainda uma terceira classe de homens, aqueles que brincam com sabedoria, eles ainda não a tocaram, mas a têm a vista, e a têm, por assim dizer, a uma distância razoável. Eles não são precipitados, tampouco derrapam; eles não estão em terra firme, mas já estão no porto.
  11. Portanto, considerando a grande diferença entre as alturas e as profundezas, e vendo que mesmo aqueles no meio são perseguidos por um fluxo e refluxo peculiar ao seu estado e perseguido também por um enorme risco de retornar aos seus degenerados costumes, não devemos nos entregar a assuntos que ocupam nosso tempo. Eles devem ser excluídos; se uma vez ganharem entrada, eles trarão outros ainda para tomar seus lugares. Vamos resistir a eles em seus estágios iniciais. É melhor que eles nunca comecem do que tenham que ser eliminados.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Nossas vidas são meramente emprestadas para nós; A natureza retém o dominium. Compare também a figura frequente por Sêneca de que a vida é como uma pousada, em contraste com uma casa sobre a qual se é proprietário.

[2] O vazio (oco), ou espaço infinito, em contraste com os átomos que formam novos mundos em sucessão contínua.

Livro: Meditações de Marco Aurélio

Meditações foi escrito em grego Grego Koiné, intitulado Τὰ εἰς ἑαυτόν, literalmente “coisas para eu próprio”, é uma série de 12 livros em que Marco Aurélio registra suas notas pessoais sobre o estoicismo como fonte de sua própria orientação e auto-aperfeiçoamento. Marco Aurélio enfrentava desafios, conspirações e obstáculos durante o dia, e à noite ele se colocava em profunda reflexão e escrevia suas notas pessoais antes de dormir.

É improvável que o imperador tenha pretendido que os escritos fossem publicados e a obra não tem título oficial, “Meditações” é um dos vários títulos comumente atribuídos à coleção. Esses escritos assumem a forma de citações de tamanho variável, de uma frase a parágrafos longos.

O estilo de escrita que permeia o texto é simplificado, direto e refletindo a perspectiva estoica de Marco no próprio texto. Marco, no texto, não se enxerga como pertencente à realeza, mas como um homem entre outros homens, o que permite ao leitor relacionar-se com sua sabedoria.

Um tema central das meditações é a importância de analisar o julgamento de si mesmo e dos outros em uma perspectiva cósmica. A aceitação da morte e o debate sobre a existência ou não de Deus permeia todo o livro.

Suas ideias estoicas envolvem evitar a indulgência sensorial, uma habilidade que segundo ele libertará o homem das dores e prazeres do mundo material. Ele afirma que a única maneira que um homem pode ser prejudicado por outros é permitir que sua reação o domine, tudo é opinião. Racionalidade e lucidez permitem que se viva em harmonia com o universo. Marco Aurélio frequentemente expressa uma atitude do que hoje poderíamos chamar de agnóstica, implicando ou mesmo afirmando diretamente que não importa se alguém acredita na providência divina (para os estoicos Deus é a própria natureza) ou em apenas átomos e caos (visão epicureana, ateísta).

As ideias e princípios recorrentes expressadas por por Marco Aurélio são aquelas que ele acreditava importante para si mesmo como homem e como imperador. É provavelmente o clássico estoico mais lido de todos.

As lições, percepções e perspectivas contidas neste notável trabalho são tão relevantes hoje quanto eram há dois milênios atrás.

Trechos:

“a morte, e a vida, a honra e a desonra, a dor e o prazer, todas essas coisas acontecem igualmente aos homens bons e maus, sendo coisas que não nos tornam nem melhores nem piores. Portanto, não são nem boas nem más.” (II,11)

“Retire a sua opinião, e então é tirada a reclamação: ‘Fui prejudicado’. Tira a queixa: ‘Fui ferido’, e o dano é tirado.” (IV,7)

“Não faça como se você fosse viver dez mil anos. A morte paira sobre você. Enquanto vive, enquanto está em seu poder, seja bom.” (IV,17)

“Tudo é efêmero, tanto quem se lembra como o que é lembrado”. (IV,35)

“É uma coisa ridícula para um homem não fugir da sua própria maldade, que é realmente possível, mas tentar fugir da maldade de outros homens, que é impossível.” (VII, 71)

“Se um homem está equivocado, instrua-o gentilmente e mostre-lhe seu erro. Mas se não for capaz, culpe-se a si mesmo, ou não culpe nem a si mesmo.” (X,4)

“Não fale mais sobre como o homem bom deve ser, mas seja um bom homem”(X,16)

“Se não é certo, não o faça: se não é verdade, não o diga”(XII,17)

Livro disponível na lojas:

GooglePlay,  Amazon,  Kobo e  Apple

Carta 67: Sobre a doença e a resistência ao sofrimento

Na carta 67 Sêneca aborda um mal entendido comum em relação ao estoicismo.  A Filosofia não requer ou exige sofrimento ou qualquer dificuldade,  mas apenas diz que estas são situações corriqueiras que devem ser suportadas com tranquilidade,  já que não deveria ser surpresa para ninguém:

“Nem estou tão louco quanto a desejar a doença; mas se eu tiver que sofrer uma doença, desejo que eu não faça nada que mostre falta de contenção, e nada que seja covarde. A conclusão é, não que as dificuldades sejam desejáveis, mas que a virtude é desejável, pois nos permite pacientemente suportar dificuldades.” (LXVII, 4)

Cita os exemplos de conduta estoica como Catão, Rutílio e Régulo que foram testados pela adversidade e souberam suporta-la com sabedoria. Conclui dizendo que uma vida sem sobressaltos e ataques da Fortuna é uma vida insossa:

Se você não tem nada para despertá-lo e levá-lo à ação, nada que irá testar sua resolução por ameaças e hostilidades; se você se reclina em conforto inabalável, não é tranquilidade; é apenas uma calma rasa. “(LXVII,14)

Imagem:  Pintura de Salvator Rosa (1615-1673), A Morte de Régulo. A tortura infligida a Régulo, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos.


LXVII. Sobre a doença e a resistência ao sofrimento

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Se eu posso começar com uma observação comum, a primavera está se revelando gradualmente; mas embora seja preparação para o verão, quando se esperaria clima quente, está bastante frio, e ainda não se pode ter certeza disso. Pois ela desliza frequentemente para trás para o tempo do inverno. Você deseja saber o quão incerto ainda é? Eu ainda não estou seguro para um banho que pode ser absolutamente frio; mesmo neste momento eu tremo de frio. Você pode dizer que esta não é maneira de mostrar tolerância, quer ao calor ou ao frio; muito verdadeiro, querido Lucílio, mas na minha idade, raramente alguém fica satisfeito com o frio natural. Eu mal posso deixar de ter frio no meio do verão. Assim, eu passo a maior parte do tempo embrulhado;
  2. E agradeço a velhice por me manter preso à minha cama. Por que não devo agradecer à velhice por isso? Aquilo o que eu não deveria querer fazer, não tenho a capacidade de fazer. A maioria das minhas conversas é com livros. Sempre que suas cartas chegam, imagino que estou com você, e tenho a sensação de que estou prestes a falar a minha resposta, em vez de escrevê-la. Portanto, vamos juntos investigar a natureza de seu problema, como se estivéssemos conversando um com o outro.
  3. Você me pergunta se todo bem é desejável. Você diz: “Se é bom ser corajoso sob a tortura, ir à tortura com um coração forte, suportar a doença com resignação; segue-se que essas coisas são desejáveis. Mas não vejo que nenhuma delas valha a pena ser desejada. De qualquer forma, eu ainda não conheço ninguém que tenha feito uma promessa por ter sido cortado em pedaços pela vara, ou retorcido pela gota, ou feito mais alto pela roda de tortura.
  4. Meu caro Lucílio, você deve distinguir entre estes casos; então você compreenderá que há algo neles que é desejável. Eu prefiro estar livre da tortura; mas se chegar o momento em que deva ser suportada, desejo que eu possa conduzir-me com bravura, honra e coragem. É claro que eu prefiro que a guerra não ocorra; mas se a guerra ocorrer, desejo que eu possa suportar nobremente as feridas, a fome e tudo o que a exigência da guerra traz. Nem estou tão louco quanto a desejar a doença; mas se eu tiver que sofrer uma doença, desejo que eu não faça nada que mostre falta de contenção, e nada que seja covarde. A conclusão é, não que as dificuldades sejam desejáveis, mas que a virtude é desejável, pois nos permite pacientemente suportar dificuldades.
  5. Alguns de nossa escola pensam que, de todas essas qualidades, não é desejável uma resistência intrépida, embora não seja desprezada, porque devemos procurar pela oração unicamente o bem que é puro, pacífico e fora do caminho dos problemas. Pessoalmente, eu não concordo com eles. E porque? Primeiro, porque é impossível que qualquer coisa seja boa sem ser também desejável. Porque, novamente, se a virtude é desejável, e se nada que é bom carece de virtude, então tudo o que é bom é desejável. E, finalmente, porque uma resistência corajosa mesmo sob tortura é desejável.
  6. Neste ponto, eu lhe pergunto: a bravura não é desejável? No entanto, a bravura despreza e desafia o perigo. A parte mais bela e admirável da bravura é que ela não se acovarda da tortura, avança para encontrar ferimentos, e às vezes nem evita a lança, mas recebe-a com o peito aberto. Se a bravura é desejável, também é a resistência paciente da tortura; pois isso é uma parte da bravura. Apenas filtre essas coisas, como sugeri; então não haverá nada que possa confundir você. Pois não é a mera resistência à tortura, mas a corajosa resistência, que é desejável. Eu, portanto, desejo a resistência “corajosa”; e isso é virtude.
  7. “Mas,” você diz, “quem desejou tal coisa para si mesmo?” Algumas orações são abertas e sinceras, quando os pedidos são oferecidos especificamente; outras orações são expressas indiretamente, quando incluem muitos pedidos sob um título. Por exemplo, desejo uma vida de honra. Agora, uma vida de honra inclui vários tipos de conduta; pode incluir o barril em que Régulo[1] estava confinado, ou a ferida de Catão que foi rasgada por sua própria mão, ou o exílio de Rutílio, ou a xícara de veneno que removeu Sócrates da prisão para o céu. Consequentemente, ao orar por uma vida de honra, ore também por aquelas coisas sem as quais, em algumas ocasiões, a vida não pode ser honrada.
  8. Oh três vezes e quatro vezes mais
    Quem debaixo das altas muralhas de Tróia
    Conheceu a morte feliz diante dos olhos dos pais![2]
    O que importa se você oferece esta oração para algum indivíduo, ou admite que era desejável no passado?
  9. Décio sacrificou-se pelo Estado; ele esporou seu cavalo e correu para o meio do inimigo, buscando a morte. O segundo Décio, rivalizando com o valor de seu pai, reproduzindo as palavras que se haviam tornado sagradas e familiares, se atirou ao ponto de luta mais pesada, ansioso apenas por que seu sacrifício pudesse trazer um presságio de sucesso, e considerando uma morte nobre como uma coisa a ser desejada. Você duvida, então, se é melhor morrer glorioso e realizar alguma ação de valor?
  10. Quando alguém suporta tortura bravamente, está usando todas as virtudes. A resistência talvez seja a única virtude que está a vista e mais manifesta, mas a bravura está lá também, e resistência e resignação e paciência são seus ramos. Lá, também, há planejamento; pois sem planejamento nenhum projeto pode ser empreendido; é o planejamento que aconselha alguém a suportar tão bravamente como possível as coisas que não pode evitar. Há também firmeza, que não pode ser deslocada de sua posição, que a ferramenta que nenhuma força pode fazer abandonar o seu propósito. Existe toda a inseparável companhia das virtudes; cada ato honrado é a obra de uma só virtude, mas está de acordo com o julgamento de todo o concílio. E o que é aprovado por todas as virtudes, embora pareça ser obra de um só, é desejável.
  11. O quê? Você acha que essas coisas só são desejáveis as quais vêm a nós em meio a prazer e facilidade, e que nós adornamos nossas portas em acolhimento? Há certos bens cujas características são proibitivas. Há certas orações que são oferecidas por uma multidão, não de homens que se alegram, mas de homens que se curvam reverentemente e adoram.
  12. Não foi assim que Régulo orou para que chegasse a Cartago? Vestir-se com a coragem de um herói, e afastar-se das opiniões do homem comum. Forme uma concepção apropriada da imagem da virtude, uma coisa que excede a beleza e a grandeza; esta imagem não deve ser adorada por nós com incenso ou guirlandas, mas com suor e sangue.
  13. Eis que Marcos Catão, deitado sobre o peito santificado, suas mãos sem mancha, e despedaçando as feridas que não foram suficientemente profundas para matá-lo! Que, por favor, deveria dizer a ele: “Espero que tudo seja como você quiser”, e “Estou triste”, ou “Boa fortuna em sua empreitada”?
  14. A este respeito, penso no nosso amigo Demétrio, que chama de existência fácil, não perturbada pelos ataques da Fortuna, um “Mar Morto”. Se você não tem nada para despertá-lo e levá-lo à ação, nada que irá testar sua resolução por suas ameaças e hostilidades; se você se reclina em conforto inabalável, não é tranquilidade; é apenas uma calma rasa.
  15. O estoico Átalo costumava dizer: “Eu prefiro que a Fortuna me mantenha em seu acampamento em vez de no luxo, se sou torturado, mas suporto corajosamente, tudo está bem, se morrer, mas morrer corajosamente, também está bem.” Ouça Epicuro; ele irá dizer-lhe que isso é realmente agradável. Jamais aplicarei uma palavra afeminada a um ato tão honroso e austero. Se eu for para a fogueira, devo ir invicto.
  16. Por que não consideraria isto desejável – não porque o fogo me queime, mas porque não me vença? Nada é mais excelente ou mais belo do que a virtude; tudo o que fazemos em obediência às suas ordens é bom e desejável.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246 a.C.; em latimMarcus Atilius Regulus). Conta a tradição que os cartagineses teriam enviado o ilustre prisioneiro a Roma para que ele convencesse seus concidadãos a cederem à paz. O combinado era que, se ele não conseguisse fazê-lo, deveria retornar a Cartago para ser executado. Régulo, ao invés de defender a paz, revelou aos romanos as condições político-econômicas dos inimigos exortando-os a tentarem um último esforço, pois Cartago não conseguiria resistir à pressão da guerra e seria derrotada. Ao término de seu discurso, honrando a sua palavra, retornou para Cartago e foi torturado e executado. Aparentemente, a tortura infligida a Régulo, que teve as pálpebras cortadas e, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos.

[2] Trecho de Eneida de Virgílio:

O terque quaterque beati,
Quis ante ora patrura Troiae sub moenibus altis
Contigit oppetere!

Carta 64: Sobre a tarefa do Filósofo

Na carta 64 Sêneca fala sobre o papel do filosofo, que segundo ele é nos dar força e inspiração.

Diz que devemos estudar as obras clássicas e desenvolve-las, assim como um chefe de família faz com a herança que recebeu:

“devemos desempenhar o papel de um cuidadoso chefe de família; devemos aumentar o que herdamos. Esta herança passará de mim para os meus descendentes maior do que antes. ” (LXIV, 7)

(imagem, Diogenes procurando um homem honesto por Johann Heinrich Wilhelm Tischbein)


LXIV. Sobre a tarefa do Filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Ontem você estava conosco. Você pode reclamar se eu disse “ontem” meramente. É por isso que acrescentei “conosco”. Pois, no que me diz respeito, você está sempre comigo. Certos amigos haviam aparecido, em cuja conta um fogo um pouco mais brilhante foi colocado, não o tipo que geralmente explode das chaminés da cozinha dos ricos e assusta o espectador, mas a chama moderada que significa que os convidados chegaram.
  2. A nossa conversa decorreu em vários temas, como é natural em um jantar; não perseguiu nenhuma corrente de pensamento até o final, mas saltou de um tópico para outro. Então, lemos para nós um livro de Quinto Séxtio, o Ancião. Ele é um grande homem, se tem alguma confiança na minha opinião, e um estoico real, embora ele mesmo o negue.
  3. Oh Deuses, que força e espírito se encontra nele! Este não é o caso de todos os filósofos; há alguns homens de nome ilustre cujos escritos são sem vigor. Eles estabelecem regras, eles argumentam, e eles discutem; eles não inspiram espírito simplesmente porque eles não têm espírito. Mas quando você ler Séxtio você dirá: “Ele está vivo, ele é forte, ele é livre, ele é mais do que um homem, ele me enche de uma confiança poderosa antes de eu fechar seu livro”.
  4. Eu vou admitir a você o estado de espírito em que estou quando leio suas obras: quero desafiar todos os perigos; quero gritar: “Por que me faz esperar, Fortuna, entre no rol, eis que estou pronto para ti!” Suponho que o espírito de um homem que procura onde pode fazer prova de si mesmo onde ele pode mostrar o seu valor:
    E se inquietando ao meio dos rebanhos não-guerreiros, ele reza
    Algum javali listado pode cruzar seu caminho, ou então
    Um leão fulvo que espreita abaixo das colinas.[1]
  5. Quero algo para suplantar, algo em que posso testar minha resistência. Pois esta é outra qualidade notável que Séxtio possui: ele lhe mostrará a grandeza da vida feliz e mesmo assim não o fará desesperar-se por alcançá-la; você vai entender que está alto, mas que é acessível para aquele que tem a vontade de buscá-la.
  6. E a própria virtude terá o mesmo efeito sobre você, de fazê-la admirá-la e ainda assim esperar alcançá-la. Em meu próprio caso, de qualquer modo, a própria contemplação da sabedoria toma muito do meu tempo; olho para ela com perplexidade, assim como às vezes olho para o próprio firmamento, que muitas vezes vejo como se eu o visse pela primeira vez.
  7. Por isso adoro as descobertas da sabedoria e seus descobridores; pois receber, por assim dizer, a herança de muitos predecessores é uma delícia. Foi para mim que eles guardaram este tesouro; era para mim que eles trabalhavam. Mas devemos desempenhar o papel de um cuidadoso chefe de família; devemos aumentar o que herdamos. Esta herança passará de mim para os meus descendentes maior do que antes. Muito ainda resta por fazer, e muito permanecerá por ser feito, e aquele que nascerá a mil séculos não será impedido de acrescentar algo mais.
  8. Mas mesmo que os velhos mestres tenham descoberto tudo, uma coisa será sempre nova, a aplicação e o estudo científico e classificação das descobertas feitas por outros. Suponha que prescrições foram transmitidas para nós para a cura dos olhos; não há necessidade de minha busca por outras, além dessa; mas por tudo isso, essas prescrições devem ser adaptadas à doença particular e ao estágio particular da doença. Use esta prescrição para aliviar a granulação das pálpebras, esta para reduzir o inchaço das pálpebras, aquela para evitar dor súbita ou uma onda de lágrimas, esta outra para aguçar a visão. Em seguida, combine estas várias prescrições, preste atenção no momento certo de sua aplicação, e forneça o tratamento adequado em cada caso. As curas para o espírito também foram descobertas pelos antigos; Mas é nossa tarefa descobrir o método e o tempo de tratamento.
  9. Nossos predecessores trabalharam muito melhor, mas não resolveram o problema. Eles merecem respeito, todavia, e deveriam ser adorados com um ritual divino. Por que não deveria ter estátuas de grandes homens para incendiar meu entusiasmo, e comemorar seus aniversários? Por que não devo cumprimentá-los sempre com respeito e honra? A reverência que devo a meus próprios professores devo em medida semelhante aos professores da raça humana, a fonte de onde os começos de tais grandes bênçãos fluíram.
  10. Se eu me encontrar com um cônsul ou um pretor, eu lhe pagarei toda a honra que o seu cargo de honra é acostumado a receber: Vou desmontar, me descobrir e ceder o caminho. O que, então? Devo consentir na minha alma com menos do que as mais altas marcas de respeito a Marcus Catão, o Ancião e o Jovem, Lelis o Sábio, Sócrates e Platão, Zenão e Cleantes? Eu os adoro em verdade, e sempre me ergo para honrar nomes tão nobres.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Trecho de Eneida de Virgílio.

Spumantemque dari pecora inter inertia votis
Optat aprum aut fulvum descendere monte leonem.