Carta 105: Sobre enfrentar o mundo com confiança e a paz de espírito

Na carta 105 Sêneca lista as causas de insegurança e como evitá-las. Segundo ele, as coisas que levam os homens a se atacarem são inveja, o ódio, o medo e o desprezo. Ele então aprofunda cada uma das causas, mas faz um alerta, pois “algumas pessoas se sentem ofendidas sem terem tido razões para tal”.

O conselho final é para a paz mental é nunca fazer o mal:

O mais importante para a paz mental é nunca fazer o mal. … Quem teme o castigo, acaba por recebê-lo e quem merece castigo, está sempre à espera dele. Onde há uma consciência culpada, algo pode trazer segurança, mas nada pode trazer tranquilidade; pois um homem imagina que, mesmo que ele não esteja preso, ele pode ser apanhado em breve. … Um malfeitor às vezes tem a sorte de escapar, mas nunca a certeza disso. (CV, 7-8)

(Imagem: Giovani Battista Pittoni, Crasso saqueia o templo de Jerusalém)


CV. Sobre enfrentar o mundo com confiança e a paz de espírito

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Devo dizer-lhe certas coisas às quais deve prestar atenção para viver com mais segurança, sem sobressaltos. No entanto escute meus preceitos como se eu estivesse aconselhando você a manter sua saúde em seu território em Ardea. Reflita sobre as coisas que levam o homem a destruir o homem: você descobrirá que elas são a esperança, a inveja, o ódio, o medo e o desprezo.

2. Agora, de tudo isso, o desprezo é o menos nocivo, tanto assim que muitos haviam se escondido atrás dele como uma espécie de cura. Quando um homem lhe despreza, ele o fere, com certeza, mas ele prossegue; e ninguém persistentemente ou com propósito determinado machuca uma pessoa que despreza. Mesmo na batalha, os soldados prostrados são negligenciados: os homens lutam com aqueles que se mantêm firmes.

3. E você pode evitar as esperanças invejosas dos ímpios, desde que você não tenha nada que possa agitar os maus desejos dos outros e enquanto não possuir nada de notável. Pois as pessoas anseiam mesmo coisas pequenas, se estas capturarem a atenção ou forem de ocorrência rara. Você escapará da inveja se você não se expuser à visão pública, se você não se vangloriar de suas posses, se você entender como desfrutar das coisas de forma privada. O ódio ocorre ao entrar em conflito com outros e isso pode ser evitado ao nunca provocar ninguém; ou então, às vezes, não é motivado por nada e o senso comum irá mantê-lo a salvo dele. No entanto, essa espécie de ódio tem sido perigosa para muitos; algumas pessoas foram odiadas sem terem tido razões para inimizade pessoal.

4. Quanto a não ser temido, uma Fortuna moderada e uma disposição fácil garantirão isso; os homens devem saber que você é o tipo de pessoa que pode ser ofendida sem perigo e sua reconciliação deve ser fácil e segura. Além disso, é tão problemático ser temido em casa como no exterior; é tão ruim ser temido por um escravo quanto por um homem livre. Pois cada um tem força o suficiente para causar algum dano. Além disso, aquele que é temido teme também. Ninguém conseguiu despertar o terror e viver em paz.

5. O desprezo continua a ser discutido. Aquele que fez dessa qualidade um complemento de sua própria personalidade, que é desprezado porque deseja ser desprezado e não porque deve ser desprezado, tem a medida do desprezo sob seu controle. Qualquer inconveniente a este respeito pode ser dissipado por ocupações honrosas e por amizades com homens que tenham influência com uma pessoa influente; com estes homens, lhe será útil ter contato, mas não se enredar, para que a proteção não custe mais do que o próprio risco.

6. Nada, no entanto, irá ajudá-lo tanto quanto manter-se quieto – falando muito pouco com os outros, e tanto quanto queira consigo mesmo. Pois há uma espécie de encanto sobre a conversa, algo muito sutil e persuasivo que, como a embriaguez ou o amor, extrai segredos de nós. Ninguém mantém segredo do que ouve. Ninguém dirá a outro apenas o quanto ouviu. E aquele que conta histórias também contará nomes. Todo mundo tem alguém a quem confia tudo o que lhe foi confiado. Embora controle sua própria tagarelice e se contente com um ouvinte, irá trazer sobre ele uma multidão, se o que recentemente era um segredo, se tornar uma conversa comum.

7. O mais importante para a paz mental é nunca fazer o mal. Aqueles que não têm autocontrole conduzem vidas perturbadas e tumultuadas, seus crimes são equilibrados por seus medos e eles nunca estão tranquilos. Pois eles tremem após a ação e ficam envergonhados; suas consciências não permitem que eles se ocupem de outros assuntos e continuamente requerem atenção, numa ansiedade constante. Quem teme o castigo, acaba por recebê-lo e quem merece castigo, está sempre à espera dele.

8. Onde há uma consciência culpada, algo pode trazer segurança, mas nada pode trazer tranquilidade; pois um homem imagina que, mesmo que ele não esteja preso, ele pode ser apanhado em breve. Seu sono é perturbado quando ele fala sobre o crime de outro homem, ele reflete sobre o dele, que nunca lhe parece estar suficientemente escurecido nem suficientemente escondido da visão. Um malfeitor às vezes tem a sorte de escapar, mas nunca a certeza disso.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Carta 104: Sobre o cuidado com a saúde e a paz mental

O Estoico retorna de férias e abre o ano com uma excelente carta, muito apropriada para essa época de pandemia, e pior ainda, polarização ideológica.

A carta apresenta uma visão do casamento do Seneca. Sua esposa Paulina se mostra preocupada com a saúde de Sêneca, que então decide se cuidar para tirar preocupação da esposa.

Uma faceta que sobressai desta carta é a reciprocidade entre Sêneca e Paulina – porque ela se preocupa com o bem-estar dele, ele se vê mais preocupado consigo mesmo como resultado. Este é um reforço cíclico do carinho; o carinho gera mais carinho. A relação conjugal cria um tipo de intimidade e proximidade que permite o desenvolvimento de um cuidado real. O princípio subjacente aqui é que é tarefa de um sábio lembrar que não vive apenas para si mesmo, mas também para os outros – daí o desprezo de Sêneca por aqueles que optam pelo suicídio sem levar em conta o impacto sobre aqueles que os cercam.

Aquele que não valoriza sua esposa ou seu amigo o suficiente para demorar mais na vida, aquele que obstinadamente persiste em morrer, é um sibarita. A alma também deve impor esse comando sobre si sempre que as necessidades dos parentes exigirem; deve deter-se e fazer a vontade daqueles próximos e queridos, não só quando ela deseja, mas mesmo quando começa a morrer.” (CIV, 3)

Após a interessante passagem sobre seu casamento, Sêneca explica porque viajar ou mudar para outro lugar não é solução para os problemas pois “o homem que sempre está selecionando sítios e buscando tranquilidade, encontrará sempre algo para perturbar sua alma em todos os lugares”. O motivo da perturbação é o próprio homem já que “Viaja o tempo todo em sua própria companhia!

A solução é enfrentar sem medo nossos problemas:

Nossa falta de confiança não é o resultado da dificuldade. A dificuldade vem da nossa falta de confiança. Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que as coisas são difíceis.” (CIV, 26)

Conclui a carta com exemplos de personalidades estoicas, em especial Marco Catão. Hoje a polarização ideológica sugere que precisamos escolher um lado, entre duas péssimas opções. Isso é falso. Catão passou por isso, e não escolheu César nem Pompeu:

Quando César estava de um lado com dez legiões emboscadas em seu controle, auxiliado por tantas nações estrangeiras; e quando Pompeu estava do outro, satisfeito de ficar sozinho contra todas as pessoas e quando os cidadãos estavam inclinados para César ou Pompeu, Catão sozinho estabeleceu um partido definitivo para a república. ..- E este é o voto que ele lança a respeito de ambos: “Se César vencer, eu mato-me, se Pompeu vencer, eu vou para o exílio”. O que temeria quem, seja na derrota ou na vitória, tivesse atribuído a si próprio um destino que poderia ter sido atribuído a ele por seus inimigos em sua maior raiva?” (CIV, 31-33)

Sempre existe mais do que duas opções, cuidado com as falsas dicotomias.

(imagem: O Casamento Romano por Emilio Vasarri)


CIV. Sobre o cuidado com a saúde e a paz mental

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu fugi para minha casa em Nomento, por que propósito, você acha? Para escapar da cidade? Não; para livrar-me de uma febre que seguramente estava a caminho do meu sistema. Já se apoderava de mim. Meu médico continuou insistindo que, quando a circulação está irregular, perturbando o equilíbrio natural, a doença está a caminho. Eu, portanto, ordenei que minha carruagem fosse preparada de imediato e insisti em partir, apesar dos esforços de minha esposa Paulina para me impedir; pois me lembrei das palavras do meu estimado Gálio,[1] quando ele começou a desenvolver uma febre em Acaia e pegou o navio imediatamente, insistindo que a doença não era do corpo, mas do lugar.

2. Foi o que observei para minha querida Paulina, que sempre pede para que cuide de minha saúde. Eu sei que seu próprio sopro de vida vai e vem com o meu e eu estou começando, em minha solicitude por ela, a ser solícito comigo. E, embora a velhice tenha me deixado corajoso para suportar muitas coisas, gradualmente estou perdendo essa benção que a idade avançada confere. Pois vem à minha mente que neste velho homem há também um jovem e a juventude precisa de ternura. Portanto, como não posso prevalecer sobre ela para que me ame com mais coragem, ela prevalece sobre mim para me estimular a ser mais cuidadoso.

3. Pois é preciso se entregar a emoções genuínas; às vezes, mesmo apesar de fortes razões, o sopro da vida deve ser chamado de volta e mantido em nossos próprios lábios, mesmo ao preço de grande sofrimento, por causa daqueles que consideramos queridos; porque o homem de bem não deve viver tanto quanto queira, mas o tanto quanto deve. Aquele que não valoriza sua esposa ou seu amigo o suficiente para demorar mais na vida, aquele que obstinadamente persiste em morrer, é um sibarita.[2] A alma também deve impor esse comando sobre si sempre que as necessidades dos parentes exigirem; deve deter-se e fazer a vontade daqueles próximos e queridos, não só quando ela deseja, mas mesmo quando começa a morrer.

4. Dá prova de um grande coração ao voltar à vida por causa dos outros. E homens nobres muitas vezes fizeram isso. Mas esse procedimento também, acredito, indica o maior tipo de bondade: que, embora a maior vantagem da velhice seja a oportunidade de ser mais negligente em relação à autopreservação e a usar a vida de forma mais aventurada, deve-se cuidar da velhice com ainda maior cuidado se alguém entender que essa ação é agradável, útil ou desejável aos olhos de uma pessoa amada.

5. Isso também não é uma fonte de alegria mesquinha ou lucro; pois o que é mais encantador do que ser tão valorizado pela esposa que a própria existência se torna mais valiosa para si mesmo por esse motivo? Daí minha querida Paulina é capaz de me tornar responsável, não só por seus medos, mas também pelo meus.

6. Então você tem curiosidade em saber o resultado desta prescrição de viagem? Assim que escapei da atmosfera opressiva da cidade e daquele horrível odor de cozinhas que, quando em uso, derramam uma ruína de vapor e fuligem pestilentos, percebi imediatamente que minha saúde estava se reparando. E quão mais forte você acha que me senti quando cheguei às minhas vinhas! Sendo, por assim dizer, deixado sair para pastar, eu regularmente andei até minhas refeições! Então eu sou o meu “eu antigo” novamente, não sentindo agora nenhum langor no meu sistema ou qualquer letargia em meu cérebro. Estou começando a trabalhar com toda minha energia.

7. Mas o mero lugar ajuda pouco neste propósito, a menos que a mente seja totalmente mestre de si mesma, e possa, a seu gosto, encontrar retiro mesmo em meio a negócios. O homem, no entanto, que sempre está selecionando sítios e buscando tranquilidade, encontrará sempre algo para perturbar sua alma em todos os lugares. Sócrates respondeu, quando uma certa pessoa se queixou de não ter recebido nenhum benefício de suas viagens: “Isso serve bem a você!  Viajou o tempo todo em sua própria companhia![3]

8. Oh que bênção seria para alguns homens se afastarem de si mesmos! Como são, eles causam a sim próprios aborrecimento, preocupação, desmoralização e medo! Que lucro há em cruzar o mar e em ir de uma cidade para outra? Se você quer escapar de seus problemas, não precisa de outro lugar, mas de outra personalidade. Talvez você tenha chegado a Atenas, ou talvez a Rodes; escolha qualquer país que você goste, qual a importância de seu caráter? Que importância têm os costumes dessa nova cidade se você leva os seus próprios para lá?

9. Suponha que você acredite que a riqueza seja um bem: a pobreza então irá angustiá-lo e, o que é mais lamentável, será uma pobreza imaginária. Pois você pode ser rico e no entanto, porque seu vizinho é mais rico, você se considerará pobre na mesma quantidade em que você fica atrás do seu vizinho. Você pode considerar sua posição social como boa; você ficará irritado com a nomeação de outra pessoa ao consulado; você ficará com ciúmes sempre que ler um nome várias vezes nos registros do estado. Sua ambição será tão frenética que se considerará o último na corrida se houver alguém na sua frente.

10. Ou você pode considerar a morte como o pior dos males, embora não haja nenhum mal lá, exceto o que precede a chegada da morte – o medo. Você ficará assustado, não só pelo real, mas por perigos imaginados e será lançado para sempre ao mar da ilusão. Que benefício será então

ter passado por tantas cidades,
Argos em seu vôo pelo meio do inimigo?

evasisse tot urbes
Argolicas mediosque fugam tenuisse per hostis?[4]

Pois a própria paz proporcionará uma maior apreensão. Mesmo em meio a segurança, você não terá confiança se a sua mente já tiver recebido um choque; uma vez que tenha adquirido o hábito de pânico cego é incapaz de fornecer mesmo a sua própria segurança. Pois não evita o perigo, mas foge dele. No entanto, estamos mais expostos ao perigo quando viramos as costas.

11. Você pode julgar como o mais grave dos males perder qualquer um dos que você ama; enquanto tudo isso não seria menos insensato do que chorar porque as árvores que atraem seus olhos e adornam sua casa perdem sua folhagem. Considere tudo o que lhe agrada como se fosse uma planta florescente. Aproveite ao máximo enquanto está em folha, pois diferentes plantas em diferentes estações devem cair e morrer. Mas assim como a perda de folhas é uma coisa leve, pois elas nascem de novo, assim também é com a perda daqueles a quem você ama e considera o deleite da sua vida, pois podem ser substituídos mesmo que não possam nascer de novo.

12. “Novos amigos, no entanto, não serão os mesmos”. Não, nem você mesmo permanecerá o mesmo, você muda com todos os dias e a cada hora. Mas nos outros homens, você vê mais facilmente o que o tempo saqueia. Em seu próprio caso, a mudança está oculta, porque não ocorre visivelmente. Outros são arrebatados da vista, nós mesmos estamos sendo furtivamente afastados de nós mesmos. Você não pensará em nenhum desses problemas, nem aplicará remédios para essas feridas. Você, por sua própria vontade, estará semeando uma safra de problemas por alternância de esperança e desespero. Se você é sábio, misture esses dois elementos: não espere sem desespero, nem se desespere sem esperança.

13. Qual o benefício que a viagem em si mesma já conseguiu dar a qualquer um? Não restringiu o prazer, nem refreou o desejo, nem controlou o mau humor, nem aniquilou os assaltos selvagens da paixão, nem deu a oportunidade de livrar a alma do mal. Viajar não pode nos dar discernimento ou livrar-nos dos nossos erros, apenas mantém nossa atenção por um momento em uma certa novidade, enquanto as crianças param para se perguntar sobre algo que não é familiar.

14. Além disso, isso nos irrita, através da vacilação de uma mente que sofre de um agudo ataque de enjoo; o próprio movimento o torna mais agudo e inquieto. Daí os pontos que tínhamos procurado mais ansiosamente, deixamos ainda mais ansiosamente, os atravessamos voando corno aves, vão-se ainda mais depressa do que vieram.

15. O que a viagem dará é familiaridade com outras nações: ela irá revelar-lhe montanhas de formas estranhas, ou estratos desconhecidos de planície, ou vales que são regados por riachos perenes, ou as características de algum rio que vem à nossa atenção. Observamos como o Nilo sobe e incha no verão, ou como o Tigre desaparece, correndo no subsolo através de espaços escondidos e depois aparece com grande amplidão. Ou como o rio Meandro,[5] esse assunto repetido e brinquedo de poetas, gira em curvas frequentes e muitas vezes em sinuosas torsões se aproxima de seu próprio canal antes de continuar seu curso. Mas esse tipo de informação não vai fazer de nós homens melhores ou mais saudáveis.

16. Devemos passar nosso tempo no aprendizado e cultivar aqueles que são mestres da sabedoria, estudando algo que foi investigado, mas não resolvido; com isso, a mente pode ser livrada da mais miserável servidão e conquistar sua liberdade. Na verdade, enquanto você ignorar o que deveria evitar ou procurar, ou o que é necessário ou supérfluo, ou o que é certo ou errado, você não estará viajando, mas simplesmente vagando.

17. Não haverá benefício para você nesta corrida de um lado para outro; pois você estará viajando com suas emoções e será seguido por suas aflições. Seguido não! Na realidade, você as está carregando e não as conduzindo. Daí elas pressionam você por todos os lados, continuamente lhe irritando e desgastando. É por remédio, e não paisagem, o que o doente deve procurar.

18. Suponha que alguém quebrou uma perna ou deslocou uma articulação, ele não embarca para outras regiões, mas ele chama o médico para arrumar o membro fraturado ou para movê-lo de volta ao seu lugar apropriado nas articulações. O que então? Quando o espírito está quebrado ou arruinado, você acha que essa mudança de lugar pode curá-lo? A enfermidade é muito profunda para ser curada por uma viagem.

19. Viajar não faz um médico ou um orador, nenhuma arte é aprendida simplesmente vivendo em um determinado lugar. Onde está a verdade, então? A sabedoria, a maior de todas as artes, pode ser obtida em uma viagem? Eu asseguro-lhe, viaje quanto quiser, nunca poderá estabelecer-se além do alcance do desejo, além do alcance do mau humor ou do alcance do medo; se fosse assim, a raça humana teria se reunido e peregrinado a tal local. Tais males, contanto que carregue com você suas causas, o sobrecarregarão e o preocuparão em suas perambulações sobre terra e mar.

20. Você duvida que não adianta fugir deles? É disso que você está fugindo, daquilo que tem dentro de si. Consequentemente, reforme a si mesmo, tire o peso de seus próprios ombros e mantenha dentro de limites seguros os desejos que devem ser removidos. Limpe sua alma. Se você quiser aproveitar as suas viagens, faça com que o companheiro de suas viagens seja saudável. Enquanto esse companheiro é avaro e significante, a ganância irá controlar você; e enquanto você se junta a um homem arrogante, suas maneiras autoritárias também estarão próximas. Viva com um carrasco e você nunca se livrará da sua crueldade. Se um adúltero é seu companheiro, ele irá acender as paixões mais vulgares.

21. Se você quer ser despojado de suas falhas, deixe para trás os exemplos de falhas. O avarento, o trapaceiro, o valentão, o sádico, que lhe farão muito mal por estar perto de você, estão dentro de você. Mude, portanto, para melhores associações: viva com os Catãos, com Lélios, com Tuberão. Ou, se você gosta de viver com os gregos também, passe seu tempo com Sócrates e com Zenão: o primeiro irá mostrar-lhe como morrer se for necessário; o último como morrer antes que a necessidade o imponha.

22. Viva com Crisipo, com Posidônio:[6] eles farão você conhecer as coisas terrenas e as coisas celestiais, eles irão lhe oferecer trabalho duro sobre algo mais do que certos rebusques de linguagem e frases para o entretenimento dos ouvintes, eles irão lhe oferecer coragem e como crescer frente ameaças. O único porto protegido das tempestades da sua vida é o desprezo pelo futuro, uma posição firme, uma prontidão para receber os ataques da Fortuna direto no peito, sem se esconder nem virar as costas.

23. A natureza nos trouxe braveza de espírito e, assim como ela implantou em certos animais um espírito de ferocidade, em outros astúcia, em outros terror, da mesma forma ela nos deu um espírito ambicioso e elevado, o que nos leva a buscar uma vida de grande honra, e não da maior segurança, que mais se assemelha à alma do universo, que segue e imita tanto quanto nossas medidas mortais permitem. Este espírito avança em frente, confiante do sucesso e consideração.

24. É superior a todos, monarca de tudo o que vê; assim não deve ser subordinado a nada, não encontrando nenhuma tarefa muito pesada e nada forte o suficiente para pesar seus ombros, vergar sua energia.

Formas temerosas de olhar, de labuta ou morte;

Terribiles visu formae letumque labosque;[7]

Não são nem um pouco terríveis, se alguém pode olhá-las com um olhar implacável e pode perfurar as sombras. Muitas vistas aterrorizadoras na noite, tornam-se ridículas de dia. “Formas temerosas de olhar, de labuta ou morte”, nosso Virgílio disse com excelência que essas formas são temíveis, não na realidade, mas apenas “de olhar” – em outras palavras, elas parecem terríveis, mas não são.

25. E nessas visões, o que há lá, eu pergunto, tão inspirador do medo que o rumor proclamou? Por que, meu querido Lucílio, um homem tem medo de trabalho pesado ou uma implacável morte? Inúmeros casos ocorrem na minha mente de homens que pensam que o que eles mesmos não conseguem fazer é impossível, que afirmam que pronunciamos palavras que são muito grandes para a natureza do homem.

26. Mas quanto mais eu estimo esses homens! Eles podem fazer essas coisas, mas recusam fazê-las. A quem que já tentou, essas tarefas se mostraram falsas? O que já fez o homem, que parecesse fácil de fazer? Nossa falta de confiança não é o resultado da dificuldade. A dificuldade vem da nossa falta de confiança. Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos; é porque não ousamos que as coisas são difíceis.

27. Se, no entanto, você deseja um modelo, tome de Sócrates, um ancião que sofreu muito tempo, que foi atacado por todas as dificuldades e ainda assim não foi derrotado pela pobreza (já que seus problemas domésticos se tornaram mais onerosos) e pelo trabalho, incluindo o trabalho árduo do serviço militar. Ele foi muito tentado em casa, se pensamos em sua esposa, uma mulher de maneiras ásperas e de língua rabugenta ou pelas crianças cuja irascibilidade se mostrou mais como da mãe do que do pai. E se você considerar os fatos, ele viveu em tempo de guerra, sob a tirania e sob democracia, que é mais cruel do que guerras e tiranos.

28. A guerra durou vinte e sete anos; findas as hostilidades o estado tornou-se vítima dos trinta tiranos, dos quais muitos eram inimigos pessoais.[8] Por último veio o clímax da condenação sob as mais graves acusações: acusaram-no de perturbar a religião do estado e de corromper a juventude, porque declararam ter influenciado a juventude a desafiar os deuses, desafiar o conselho e desafiar o Estado em geral. Em seguida, veio a prisão e o copo de veneno. Mas todas essas medidas mudaram a alma de Sócrates tão pouco que nem mudaram suas feições. Que distinção maravilhosa e rara! Ele manteve essa atitude até o fim e nenhum homem viu Sócrates eufórico ou deprimido. Em meio a todos os distúrbios da Fortuna, ele não estava perturbado.

29. Você deseja outro caso? Pegue o do Marco Catão, o jovem, a quem a Fortuna tratou de uma forma mais hostil e mais persistente. Mas ele resistiu, em todas as ocasiões, e em seus últimos momentos, no momento da morte, mostrou que um homem corajoso pode viver apesar da Fortuna, pode morrer apesar dela. Toda a sua vida foi passada em guerra civil, ou sob um regime político que logo criaria uma guerra civil. E você pode dizer que ele, tanto quanto Sócrates, declarou lealdade à liberdade em meio a escravidão – a menos que você pense que Pompeu, César e Crasso foram aliados da liberdade!

30. Ninguém jamais viu Catão mudar, não importa a frequência com que a república mudou: ele manteve-se o mesmo em todas as circunstâncias – como pretor, na derrota, sob acusação, na sua província, perante a assembleia, no exército, na morte. Além disso, quando a república estava em uma crise de terror, quando César estava de um lado com dez legiões emboscadas em seu controle, auxiliado por tantas nações estrangeiras; e quando Pompeu estava do outro, satisfeito de ficar sozinho contra todas as pessoas e quando os cidadãos estavam inclinados para César ou Pompeu, Catão sozinho estabeleceu um partido definitivo para a república.

31. Se você obtiver uma imagem mental desse período, você pode imaginar de um lado as pessoas e todo o proletariado ansioso pela revolução – do outro, os senadores e os cavaleiros, os homens escolhidos e honrados da comunidade; e havia entre eles – a República e Catão. Eu lhe digo, você ficará maravilhado quando você vir

O filho de Atreu e Príamo, e Aquiles, inimigo dos dois.

Atriden Priamumque et saevom ambobus Achillen.[9]

Seguindo Aquiles, Catão acusa um tanto quanto acusa o outro, procura que ambas facções deponham suas armas.

32. E este é o voto que ele lança a respeito de ambos: “Se César vencer, eu mato-me, se Pompeu vencer, eu vou para o exílio”. O que temeria quem, seja na derrota ou na vitória, tivesse atribuído a si próprio um destino que poderia ter sido atribuído a ele por seus inimigos em sua maior raiva? Então ele morreu por sua própria decisão.

33. Você vê que o homem pode suportar o trabalho: Catão, a pé, liderou um exército através dos desertos africanos. Você vê que a sede pode ser suportada: ele percorreu colinas cobertas de sol, arrastando os restos de um exército espancado e sem suprimentos, passando por falta de água e vestindo uma armadura pesada. Sempre foi o último a beber das poucas fontes que encontraram. Você vê que a honra e a desonra também podem ser desprezadas: pois relatam que no próprio dia em que Catão foi derrotado nas eleições para a pretura, ele jogou um jogo de bola. Você vê também que o homem pode ser livre do medo de superiores: porque Catão atacou César e Pompeu ao mesmo tempo, em um momento em que ninguém ousou entrar em conflito com um sem se esforçar para agradar o outro. Você vê que a morte pode ser desprezada, bem como o exílio: Catão infligiu o exílio sobre si mesmo e, finalmente, a morte. Entre um e outro, a guerra.

34. E, se apenas estivermos dispostos a retirar nossos pescoços do jugo, podemos manter um coração tão forte contra tantos terrores como esses. Mas antes de mais, devemos rejeitar os prazeres; eles nos tornam fracos e afeminados; eles nos fazem grandes demandas e, além disso, nos compelem a fazer grandes exigências da Fortuna. Em segundo lugar, devemos desprezar a riqueza: a riqueza é o diploma da escravidão. Abandone o ouro e a prata e qualquer outra coisa que seja um fardo sobre nossas casas ricamente mobiladas. A liberdade não pode ser obtida de mão beijada. Se você definir um alto valor para a liberdade, você deve definir um valor reduzido para todo o resto.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Lúcio Júnio Gálio Aneano, senador romano e irmão de Sêneca. É conhecido pelo julgamento de Paulo em Corinto relatado nos Atos dos Apóstolos.

[2] Relativo a, ou natural de Síbaris, antiga cidade grega do sul da Itália. Diz-se de, ou pessoa dada aos prazeres físicos, à voluptuosidade, à indolência.

[3] Para esse mesmo assunto, ver carta XXVIII – Sobre viajar como cura para o descontentamento. (Volume I)

[4] Trecho de Eneida, de Virgílio, III, 282

[5] NT: O rio Büyük Menderes (cujo nome em latim é Maeander, também chamando Meandro) é um rio no sudoeste da Turquia. Nasce no centro-oeste da Turquia, perto de Dinar, correndo oeste para o mar Egeu, desaguando perto da antiga cidade de Mileto.

[6] Esses homens são padrões ou intérpretes das virtudes. Os primeiros nomes representam respectivamente coragem, justiça e autocontrole. Sócrates é o sábio ideal, Zenão, Crisipo e Posidônio são, por sua vez, o fundador, o organizador e o modernizador do estoicismo. Ver George Stock, Estoicismo.

[7] Trecho de Eneida, de Virgílio, VI, 277

[8] NT: Tirania dos Trinta vai de 431 a 404 B.C. (Guerra do Peloponeso).

[9] Trecho de Eneida, de Virgílio.

Carta 103: Sobre os perigos da associação com nossos próximos

A carta 103 tem um tom mais amargo. Nela Sêneca nos alerta que o maior perigo que corremos não vem da natureza, acidentes ou doença, mas sim de outras pessoas, pois “o homem se delicia em arruinar o homem.” (CIII; §2)

Contra esse risco não temos certeza de proteção, contudo Sêneca recomenda sempre ajudar e nunca prejudicar nosso próximo:

Evite, nas suas relações com os outros, prejudicar, para que não seja prejudicado. Você deve se alegrar com todos em suas alegrias e simpatizar com todos em seus problemas, lembrando dos serviços que deve prestar e os perigos que deve evitar.” (CIII; §2)

E a filosofia pode ser grande aliada, se a usarmos corretamente, ou seja, para corrigir nossos defeitos e não como ferramenta para apontar a falha dos outros.

Imagem: A Morte de Júlio César por Vincenzo Camuccini. César passou ileso por inúmeras conquistas militares e pela guerra civil, para acabar morto por seus colegas no senado.


CIII. Sobre os perigos da associação com nossos próximos[1]

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Por que você está procurando por problemas que talvez possam vir a seu encontro, mas que, de fato, podem não chegar a seu caminho? Quero dizer incêndios, edifícios caindo e outros acidentes do tipo que são meros eventos e não tramas contra nós, sem o propósito deliberado de nos causarem mal. Melhor faria em procurar evitar os perigos reais que nos espreitam na intenção de nos apanhar à traição. Os acidentes, embora possam ser sérios, são poucos e raros – como naufragar ou cair de uma carruagem. Mas é do próximo que vem o perigo cotidiano de um homem. Equipe-se contra isso, vigie isso com um olho atento. Não há nenhum mal mais frequente, nenhum mal mais persistente, nenhum mal mais insinuante.

2. Mesmo a tempestade, antes de se iniciar, dá um aviso; casas trincam antes de caírem; e a fumaça é o precursor do fogo. Mas o dano provocado pelo homem é instantâneo e de quanto mais próximo ele vem, mais cuidadosamente está escondido. Você está errado em confiar na fisionomia daqueles que encontra. Eles têm o aspecto de homens, mas almas de bestas. A única diferença é que os animais selvagens lhe causam dano ao primeiro encontro, aqueles que passaram por nós não voltam para nos perseguir. Pois nada os incita a causar dano, exceto quando a necessidade os obriga: é a fome ou o medo que os instiga a lutar. Mas o homem se delicia em arruinar o homem.

3. Você deve, no entanto, refletir o perigo que você corre na mão do homem, para que você possa deduzir qual é o seu dever enquanto homem. Evite, nas suas relações com os outros, prejudicar, para que não seja prejudicado. Você deve se alegrar com todos em suas alegrias e simpatizar com todos em seus problemas, lembrando dos serviços que deve prestar e os perigos que deve evitar.

4. E o que você pode alcançar vivendo uma vida dessas? Não necessariamente a imunidade contra danos, mas pelo menos liberdade de engano; pelo menos consegue que não o tomem por tolo. Dessa forma, quando for capaz, refugie-se na filosofia: ela irá cuidar de você em seu seio e em seu santuário você estará seguro ou, pelo menos, mais seguro do que antes. As pessoas colidem apenas quando viajam pelo mesmo caminho.

5. Mas essa mesma filosofia nunca deve ser alardeada por você; pois a filosofia quando empregada com insolência e arrogância tem sido perigosa para muitos. Deixe-a retirar suas falhas, em vez de ajudá-lo a criticar as falhas dos outros. Não deixe que ela se afaste dos costumes da humanidade, nem faça com que ela condene o que ela mesma não faz. Um homem pode ser sábio sem alarde e sem provocar inimizade.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Compare com a carta VII (Volume I).

Carta 102: Sobre as indicações de nossa imortalidade

Na carta 102 são abordados dos assuntos, primeiro uma indagação de Lucílio sobre se boa reputação após a morte é considera um bem para os estoicos. Sêneca responde essa questão, mas logo em seguida passa para aquilo que realmente queria falar: sobre a imortalidade de alma, ou se a vida continua após a morte do corpo.

Sêneca então mostra a visão cosmopolita do estoicismo e faz analogia de nossa vida terrena como sendo semelhante a vida de um feto no útero, ou seja, apenas uma preparação para a etapa seguinte:

“A alma humana é uma coisa grande e nobre, não permite limites, exceto aqueles que podem ser compartilhados até mesmo com deuses. Em primeiro lugar, não dá anuência a lugar de nascimento, como Éfeso ou Alexandria ou qualquer terra que seja ainda mais densa ou ricamente povoada do que estas. A pátria da alma é todo o espaço que circunda a altura e a largura do firmamento.” (CII, §21)

“Da mesma forma que o ventre materno nos mantém por dez meses, nos preparando, não para o próprio útero, mas para a existência em que seremos enviados quando finalmente nos preparamos para respirar e viver ao ar livre; assim, ao longo dos anos, estendendo-se entre a infância e a velhice, estamos nos preparando para outro nascimento. “ (CII, §23)

A carta é excelente em sua totalidade e merece leitura atenta. Ao final, Sêneca concede também aos ateus, dizendo que mesmo quem assim pensa pode continuar a ser útil depois de morto pois somos “ajudados pelo bom exemplo; você entenderá assim que a presença de um homem nobre não é menos útil do que sua memória.” (CII, §30).

Imagem A Morte de Sócrates por Jacques-Louis David.


CII. Sobre as indicações de nossa imortalidade

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Assim como um homem é importuno quando desperta um sonhador de seus sonhos agradáveis – pois ele está arruinando um prazer que pode ser irreal, mas, no entanto, tem a aparência da realidade –  da mesma maneira sua carta me causou ruptura. Pois me trouxe de volta abruptamente, absorvido que estava em uma meditação agradável e pronto para prosseguir se tivesse sido permitido.

2. Estava prazerosamente investigando a imortalidade da alma ou melhor, pelos deuses,  acreditando nessa doutrina! Pois eu estava dando crédito às opiniões dos grandes autores, que não só aprovam, mas prometem essa condição agradável. Eu estava me entregando a uma esperança tão nobre, pois eu já estava cansado de mim, começando a desprezar os fragmentos da minha existência aniquilada e sentindo que estava destinado a passar para a infinidade do tempo e na herança da eternidade, quando de repente fui despertado pelo recebimento de sua carta e perdi meu lindo sonho. Mas, assim que eu puder me liberar de você, eu vou tentar rememorar minha linha de pensamento e salvá-la.

3. Havia uma observação, no início da sua carta, de que eu não havia explicado todo o problema ao tentar provar uma das crenças da nossa escola, que a reputação adquirida após a morte é um bem, pois não resolvi o problema com o qual geralmente somos confrontados: “nenhum bem resulta de soluções de continuidade, mas a reputação é constituída por uma solução de continuidade.

4. O que você está perguntando, meu querido Lucílio, pertence a outro tópico do mesmo assunto e foi por isso que adiei os argumentos, não só sobre esse tópico, mas também em outros tópicos que também abordaram o mesmo fundamento. Pois, como você sabe, certas questões lógicas são misturadas com questões éticas. Consequentemente, lidei com a parte essencial do assunto que tem a ver com a conduta moral[1] – ou seja, se é tolo e inútil se preocupar com o que está além do nosso último dia, ou se nossos bens morrem com a gente e não resta mais nada daquele homem que cessou de existir, ou ainda se, de uma coisa que nós não perceberemos quando ela suceder, é possível, antes que suceda, perceber ou ambicionar o que ela possa valer.

5. Todas essas coisas têm uma visão moral as conduzindo e, portanto, foram inseridas sob o tópico apropriado. Mas as observações dos dialéticos em oposição a essa ideia tiveram que ser peneiradas e portanto, foram deixadas de lado. Agora que você exige uma resposta para todas elas, eu examinarei todas as suas afirmações em bloco e depois as refutarei individualmente.

6. A menos que eu faça uma observação preliminar, será impossível entender minhas refutações. E qual é essa observação preliminar? Simplesmente isto: existem certos corpos contínuos, como um homem; existem certos corpos compostos, como navios, casas e tudo o que é o resultado da união de partes separadas em uma soma total. Existem certos outros constituídos por coisas distintas, cada membro permanecendo separado – como um exército, uma população ou um senado – pois as pessoas que constituem tais corpos estão unidas em virtude de lei ou função, mas, por sua natureza, são distintas e individuais. Bem, quais outras observações preliminares ainda desejo fazer?

7. Simplesmente isso: acreditamos que nada é bom, se for composto de coisas distintas. Pois um único bem deve ser enquadrado e controlado por uma única alma e a qualidade essencial de cada bem individual deve ser única. Isso poderia ser provado quando você desejar, entretanto, mesmo assim, teve que ser posto de lado, porque nossas próprias armas estão sendo usadas contra nós.

8. Os adversários falam assim: “Você diz que nenhum bem pode ser composto de coisas que são distintas? No entanto, essa reputação da qual você fala, é simplesmente a opinião favorável dos homens de bem. Assim como a reputação não consiste em observações de uma pessoa e como uma má reputação não consiste na desaprovação de uma pessoa, tal renome não significa que apenas agradamos a uma pessoa boa. Para se constituir em renome, é necessário o acordo de muitos homens dignos e louváveis. Isso resulta da decisão de um número – em outras palavras, de pessoas que são distintas. Portanto, a reputação não é um bem.”

9. A segunda objeção diz, novamente: “a reputação é o louvor dado a um homem bom por homens de bem. Louvor significa fala: agora a fala é um enunciado com um significado particular e uma expressão, mesmo dos lábios dos homens de bem, não é um bem em si. Pois qualquer ato de um bom homem não é necessariamente bom, ele grita seus aplausos e silva sua desaprovação, mas não se chama o grito ou a vaia de bens, mesmo que sua conduta possa ser admirada e louvada – não mais do que alguém poderia aplaudir um espirro ou uma tosse. Portanto, a reputação não é um bem.”

10. “Finalmente, diga-nos se o bem pertence àquele que louva ou a quem é louvado: se você diz que o bem pertence a quem é louvado, você estaria em um caminho tolo como se dissesse que é minha a boa saúde do meu vizinho. Mas louvar homens dignos é uma ação honrosa; assim, o bem é exclusivamente do homem que faz o louvor, do homem que realiza a ação, e não de nós, que estamos sendo louvados. E, no entanto, essa é a questão em discussão, que você quer provar.

11. Devo agora responder apressadamente às distintas objeções. A primeira pergunta ainda é, se qualquer coisa boa pode consistir em coisas de distintas – e há votos emitidos nos dois lados. Mais uma vez, a reputação precisa de muitos votos? A reputação pode ser satisfeita com a decisão de um único homem de bem: é um bom homem que decide que somos homens de bem.

12. Então a réplica é: “O quê! Você definiu a reputação como a estima de um indivíduo e a má reputação como a conversa fiada rancorosa de um único homem? Glória, também, levamos a ser mais generalizada, pois exige o acordo de muitos homens.” Mas a posição dos muitos é diferente daquela de um. E por que? Porque se o bom homem pensa bem de mim, isso equivale praticamente a ser bem pensado por todos os homens bons; pois todos vão pensar o mesmo, se eles me conhecerem. O seu julgamento é semelhante e idêntico. O efeito da verdade é igual. Eles não podem discordar, o que significa que eles necessariamente manteriam a mesma visão, não podendo manter juízos diferentes.

13. “A opinião de um homem”, você diz, “não é suficiente para criar glória ou renome”. No primeiro caso, um julgamento é uma ponderação universal porque todos, se lhes fosse pedido, teriam uma única opinião; no outro caso, no entanto, homens de caráter diferente dão juízos divergentes. Você encontrará emoções desconcertantes – tudo duvidoso, inconstante, não confiável. E você pode supor que todos os homens são capazes de manter uma opinião? Até mesmo um indivíduo não mantém uma única opinião. Com o bom homem é a verdade que causa a crença e a verdade tem apenas uma função e uma semelhança; enquanto na segunda classe de que falei, as ideias com as quais eles concordam são infundadas. Além disso, aqueles que são falsos nunca são firmes: são irregulares e discordantes.

14. “Mas o louvor”, diz o objetor, “não é senão um enunciado e um enunciado não é um bem”. Quando eles dizem que o renome é o louvor concedido ao bem pelo bem, o que eles referem não é um enunciado, mas um julgamento. Pois um bom homem pode permanecer em silêncio; mas se ele decide que uma certa pessoa é digna de louvor, essa pessoa é objeto de louvor.

15. Além disso, o louvor é uma coisa, e discurso laudatório é outra. O último exige um enunciado também. Portanto, ninguém fala de “um louvor fúnebre”, mas diz “discurso laudatório” – pois sua função depende da fala. E quando dizemos que um homem é digno de louvor, asseguramos haver bondade nele, não em palavras, mas em julgamento. Portanto, a boa opinião, mesmo de alguém que em silêncio sente aprovação interior de um homem bom, é louvor.

16. Mais uma vez, como eu disse, o louvor é uma questão de alma e não de discurso; pois a fala traz o louvor que a mente concebeu e publica-o à atenção dos muitos. Pois julgar um homem digno de louvor, é louvá-lo. E quando nosso trágico poeta nos canta que é maravilhoso “ser louvado por um herói muito louvado”, ele quer dizer, “por alguém digno de louvor”. Mais uma vez, quando um bardo igualmente venerável diz: “Louvor dá vida às artes”, ele não significa dar louvor, pois isso prejudica as artes. Nada tem corrompido oratória e todos os outros estudos que dependem de ouvir tanto quanto a aprovação popular.

17. A reputação exige necessariamente palavras, mas a glória pode se contentar com os julgamentos dos homens e é suficiente sem a palavra falada. É satisfeita não só em aprovação silenciosa, mas mesmo diante de protestos abertos. Existe, na minha opinião, essa diferença entre a reputação e glória – a última depende dos julgamentos dos muitos; mas a reputação, dos julgamentos de homens de bem.

18. A réplica vem: “Mas de quem é o bem deste renome, esse louvor prestado a um homem bom por homens bons? É de quem é louvado por alguém ou de quem louva?” Dos dois, eu digo. É meu próprio bem, porque sou louvado, porque naturalmente nasço para amar todos os homens e me alegro por ter feito boas ações e me felicito por eu ter encontrado homens que expressam suas ideias de minhas virtudes com gratidão; que eles sejam gratos, é um bem para muitos, mas também é um bem para mim. Pois o meu espírito está assim ordenado, que posso considerar o bem dos outros homens como meus – em qualquer caso, aqueles de cujo bem eu sou a causa.

19. Este bem é também o bem daqueles que fazem o louvor, pois é aplicado por meio da virtude. E todo ato de virtude é um bem. Meus amigos não poderiam ter encontrado essa bênção se eu não tivesse sido um homem de estampa correta. É, portanto, uma boa pertença a ambos os lados – o que é louvado quando se merece – tão verdadeiramente quanto uma boa decisão é o bem daquele que toma a decisão e também daquele a favor de quem a decisão foi tomada. Você duvida de que a justiça seja uma benção para o seu possuidor, bem como para o homem a quem o louvor devido foi pago? Louvar o merecedor é a justiça, portanto, o bem pertence a ambos os lados.

20. Esta será uma resposta suficiente para esses comerciantes em sutilezas. Mas não deve ser nosso propósito discutir as coisas com inteligência e arrastar a filosofia de sua majestade a jogos de palavras tão insignificantes. Quão melhor é seguir a estrada aberta e direta, ao invés de planejar uma rota tortuosa que você deve retraçar com problemas infinitos! Pois tal argumentação nada mais é do que o esporte de homens que habilmente fazem malabarismos uns com os outros.

21. Diga-me quão de acordo com a natureza é permitir que a mente atinja o universo ilimitado! A alma humana é uma coisa grande e nobre, não permite limites, exceto aqueles que podem ser compartilhados até mesmo com deuses. Em primeiro lugar, não dá anuência a lugar de nascimento, como Éfeso ou Alexandria ou qualquer terra que seja ainda mais densa ou ricamente povoada do que estas. A pátria da alma é todo o espaço que circunda a altura e a largura do firmamento, toda a cúpula arredondada dentro da qual a terra e o mar, dentro do qual o ar que separa o humano do divino também os une e onde todas as estrelas tomam turno em sentinela.

22. Mais uma vez, a alma não suportará uma extensão estreita da existência. “Todas as eras”, diz a alma, “são minhas, nenhuma época está fechada para grandes mentes, todo o tempo está aberto para o progresso do pensamento. Quando chegar o dia de separar o celestial de sua mistura terrena, eu vou deixar o corpo aqui onde eu o encontrei e, por minha própria vontade, me entregarei aos deuses. Agora não estou separada deles, mas sou simplesmente detida em uma prisão lenta e terrena.”

23. Estes atrasos da existência mortal são um prelúdio para a vida mais longa e melhor. Da mesma forma que o ventre materno nos mantém por dez meses, nos preparando, não para o próprio útero, mas para a existência em que seremos enviados quando finalmente nos preparamos para respirar e viver ao ar livre; assim, ao longo dos anos, estendendo-se entre a infância e a velhice, estamos nos preparando para outro nascimento. Um começo diferente, uma condição diferente, nos aguarda.

24. Ainda não podemos, exceto em intervalos raros, suportar a luz do céu, portanto, olhe para a frente sem temer a hora marcada, a última hora do corpo, mas não da alma. Examine tudo o que reside em você, como se fosse bagagem em um quarto de hotel: você deve viajar. A natureza deixa-lhe tão desnudo na partida quanto como na entrada.

25. Você não pode levar mais do que trouxe, além disso, você deve descartar a maior parte do que você trouxe com você para a vida: você será despojado da própria pele que o cobre, que foi sua última proteção, você será despojado da carne e perderá o sangue que circulou pelo seu corpo, você será despojado de ossos e nervos, a armação dessas partes fracas e transitórias.

26. Aquele dia que você teme como sendo o fim de todas as coisas, é o nascimento de sua eternidade. Por que postergar? Deixe de lado seu fardo, como se você não tivesse deixado previamente o corpo que era o seu esconderijo! Você se agarra ao seu fardo, você luta. No seu nascimento também foi necessário um grande esforço na parte da sua mãe para libertá-lo. Você chora e lamenta e, no entanto, esse mesmo choro aconteceu no nascimento também. Mas naquela ocasião podia ser desculpado – pois você veio ao mundo inteiramente ignorante e inexperiente. Quando você deixou a proteção calorosa e cuidadosa do útero de sua mãe, um ar mais livre passou em seu rosto, então você estremeceu com o toque de uma mão áspera e olhou com surpresa para objetos desconhecidos, ainda frágil e ignorante de todas as coisas.

27. Mas agora não é novidade ser separado daquilo que você já fez parte. Deixe seus membros já inúteis com resignação e dispense esse corpo em que você morou por tanto tempo. Será despedaçado, enterrado fora da vista e decomposto. Por que se abater? Isto é o que normalmente acontece: quando nascemos, as secundinas[2] sempre perecem. Por que amar uma coisa como se fosse sua própria posse? Era apenas a sua cobertura. Chegará o dia que irá rompê-la e ir para longe da companhia do ventre desagradável e fétido.

28. Afaste-se disso o máximo que puder e afaste-se do prazer, exceto daqueles que podem estar ligados a coisas essenciais e importantes. Afaste-se disso mesmo agora e reflita sobre algo mais nobre e mais elevado. Algum dia os segredos da natureza serão revelados a você, a névoa será removida de seus olhos e a luz brilhante fluirá em você de todos os lados. Imagine-se o quão grande é o brilho quando todas as estrelas misturam seus brilhos, nenhuma sombra perturbará o céu limpo. Toda a extensão do céu brilhará uniformemente, pois o dia e a noite são trocados apenas na atmosfera mais baixa. Então você vai dizer que você viveu na escuridão, depois de ter visto, em seu estado perfeito, a luz perfeita – aquela luz que agora você vê sombriamente com visão constrangida até o último grau. E, no entanto, tão distante quanto esteja, você já olha para ela com admiração, o que você acha que será a luz celestial quando você a vir em seu próprio âmbito?

29. Esses pensamentos não permitem que nada mesquinho se estabeleça na alma, nada vil, nada cruel. Eles sustentam que os deuses são testemunhas de tudo. Eles nos ordenam encontrar a aprovação dos deuses, nos preparar para nos juntarmos a eles em algum momento futuro e planejar a imortalidade. Aquele que apreendeu essa ideia não retrocede frente a nenhum exército atacante, não é aterrorizado pela trombeta e nem é intimidado por nenhuma ameaça.

30. Um homem que aguarda com expectativa pela morte, não sente medo. Mesmo aquele também, que acredita que a alma permanece somente enquanto for agrilhoada ao corpo, que se dispersa imediatamente após o perecimento,[3] mesmo quem assim pensa e age, pode continuar a ser útil depois de morto. Pois embora seja tirado da visão dos homens, ainda assim

a grande virtude do herói, a grande nobreza da sua raça continua a viver no nosso espírito.Multa viri virtus animo multusque recursat Gentis honos.[4]

Considere o quanto somos ajudados pelo bom exemplo; você entenderá assim que a presença de um homem nobre não é menos útil do que sua memória.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] NT: Nenhuma das cartas conservadas é dedicada à discussão deste problema.

[2] NT: Secundinas: placenta, cordão umbilical e membranas, normalmente expulsos do útero após o parto.

[3] Referência aos epicuristas. Ver Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres – Livro X – Epicuro

[4] Trecho de Eneida, de Virgílio.

Carta 101: Sobre a futilidade do planejamento prévio

Na carta 101 Sêneca fala sobre a tolice de adiar o estudo da filosofia, isto é, aprender como viver uma boa vida, e focar em negócios, com a esperança de, no futuro, estar “bem provido” para uma vida de estudos. Sêneca diz que nunca sabemos o dia de nossa morte, logo, devemos estar todos os dias preparados:

No entanto, o que é mais tolo do que nos admirar que algo que pode acontecer todos os dias aconteceu um dia? Existe de fato um limite fixado para nós, exatamente onde a lei sem remorso do destino o colocou, mas nenhum de nós sabe o quão perto se está desse limite. Portanto, deixe-nos agir como se tivéssemos chegado ao fim. Não adiemos nada, deixe-nos acertar a conta da vida todos os dias.” (CI, 7)

Sêneca, um dos homens mais ricos de seu tempo, faz uma observação muito correta e interessante para quem deseja enriquecer: diz que existem dois bons caminhos para a riqueza material: saber como ganhar dinheiro ou conservá-lo, “pois qualquer um desses dois pode fazer um homem rico.”

Na carta Sêneca defende que não devemos nos apegar a viva a qualquer custo. Ele dá o exemplo de Caio Mecenas, que preferia consumir-se por dor, morrer membro por membro, ao invés de expirar de uma vez por todas. Termina a carta com uma poderosa frase:

O ponto é, não quão longamente você vive, mas quão nobremente você vive. E, muitas vezes, essa vida nobre significa que você não poderá viver por muito tempo.” (CI, 15)

Imagem: Virgílio, Horácio e Mecenas, por Charles François Jalabert


CI. Sobre a Futilidade do Planejamento prévio

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Todos os dias e todas as horas revelam-nos o que somos, e nos lembram com uma nova evidência de que nos esquecemos das nossas fraquezas e fragilidades; então, enquanto planejamos a eternidade, eles nos obrigam a olhar a morte sobre nossos ombros. Você me pergunta o que significa esse preâmbulo? Refere-se a Cornélio Sinésio, um equestre romano distinguido e capaz, quem você conheceu. De origem humilde, ele atingiu a grande sucesso, e o resto do caminho já se mostrava fácil diante dele. Pois é mais fácil crescer em dignidade social do que começar a ascensão.

2. E a riqueza é muito lento para chegar onde há pobreza; até que possa se fugir dela, vai hesitante, mas desde que ultrapasse um pouco esse nível nunca mais para. Sinésio já estava ao lado da riqueza, ajudado nessa direção por dois ativos muito poderosos: saber como ganhar dinheiro e como conservá-lo também, pois qualquer um desses dons poderia ter feito dele um homem rico.

3. Aqui estava uma pessoa que vivia muito simplesmente, cuidadoso com a saúde e riqueza. Ele, como de costume, me visitou no início da manhã e então passou o dia inteiro, até o anoitecer, à beira do leito de um amigo que estava seriamente e irremediavelmente doente. Depois de um jantar confortável, de repente ele foi apanhado por um agudo ataque de angina e, com a respiração firmemente bloqueada por sua garganta inchada, mal viveu até o amanhecer. Então, dentro de poucas horas depois de cumprir todos os deveres de um homem sadio e saudável, ele caiu morto!

4. Aquele que estava aventurando investimentos por terra e mar, que também entrara na vida pública e não deixara nenhum tipo de negócio sem ser testado, durante a própria realização do sucesso financeiro e durante a própria investida dos bens pecuniários aos seus cofres, foi arrebatado deste mundo!

Enxerte agora as suas peras, Meliboeus, e pode suas videiras em ordem!Insere nunc, Meliboee, piros, pone ordine vites.[1]

Mas quão tolo é delimitar e fazer planos para um longa vida, quando nem sequer é proprietário do dia seguinte! Que loucura é traçar esperanças de grande alcance! Dizer: “Vou comprar e construir, emprestar a juros e receber dinheiro, ganhar títulos de honra e, então, velho e cheio de anos, vou me entregar a uma vida privada para estudos estando bem provido.

5. Acredite em mim quando digo que tudo é duvidoso, mesmo para aqueles que são prósperos. Ninguém tem o direito de desenhar para si mesmo seu futuro. Aquilo que nós seguramos desliza através de nossas mãos e a sorte nos corta exatamente na hora que estamos com estoque cheio. O tempo escoa por lei racional, mas na escuridão para nós; e o que significa para mim saber que o curso da natureza é certo, quando o meu é incerto?

6. Planejamos viagens distantes e adiamos o retorno depois de percorrer costas estrangeiras, planejamos o serviço militar e as recompensas lentas de campanhas difíceis, buscamos poder e as promoções de um cargo a outro e, ao mesmo tempo, a morte está ao nosso lado. Mas como nunca pensamos nisso, a não ser que afete ao nosso próximo, os casos de morte nos pressionam dia a dia, para permanecer em nossas mentes apenas enquanto despertam nossa surpresa.

7. No entanto, o que é mais tolo do que nos admirar que algo que pode acontecer todos os dias aconteceu um dia? Existe de fato um limite fixado para nós, exatamente onde a lei sem remorso do destino o colocou, mas nenhum de nós sabe o quão perto se está desse limite. Portanto, deixe-nos agir como se tivéssemos chegado ao fim. Não adiemos nada, deixe-nos acertar a conta da vida todos os dias.

8. A maior falha na vida é que está sempre imperfeita, a se completar, e que uma certa parte dela é adiada. Aquele que diariamente coloca os toques finais de sua vida nunca está com falta de tempo. E, no entanto, a partir desse desejo surge o medo e a ânsia de um futuro que destrói a alma. Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta para viver, nossas almas perturbadas são colocadas em um estado de medo inexplicável.

9. Como, então, devemos evitar essa vacilação? Há apenas um jeito, como não há nenhuma previsão em nossa vida, se for fechada em si mesmo. Pois só está preocupado com o futuro aquele a quem o presente não é satisfatório. Mas quando eu pago à minha alma o devido, quando uma mente equilibrada sabe que um dia não difere da eternidade, seja qual for o dia ou o problema que o futuro possa trazer. Nesse caso a alma se destaca em alturas elevadas e ri sinceramente para si mesmo quando pensa na sucessão interminável dos tempos. Pois quais distúrbios podem resultar da mudança e da instabilidade da Fortuna, se se nós estivermos firmes perante a instabilidade?

10. Portanto, meu querido Lucílio, comece imediatamente a viver e conte cada dia separado como uma vida separada. Aquele que assim se preparou, aquele cuja vida cotidiana tenha sido um todo arredondado, está tranquilo em sua mente; mas aqueles que vivem só pela esperança descobrem que o futuro imediato desliza sempre de suas mãos e que a ganância toma seu lugar, e o medo da morte, uma maldição que traz maldição sobre todo o resto. Daí veio aquela oração mais degradada, na qual Mecenas não se recusa a sofrer fraqueza, deformidade e, como clímax, até mesmo a dor da crucificação apenas para que prolongasse o sopro da vida em meio a esses sofrimentos:[2]

11. Faça-me fraco na mão, fraco com pé mancando, Imponha uma corcunda inchada, afrouxe meus dentes instáveis; Enquanto exista vida, estou bem; mantenha-me indo Mesmo que eu, á dura cruz fique empaladoDebilem facito manu, debilem pede coxo, Tuber adstrue gibberum, lubricos quate dentes ; Vita dum superest, benest; hanc mihi, vel acuta Si sedeam cruce, sustine.

12. Lá está ele, orando por aquilo que, se tivesse sucedido a ele, seria a coisa mais lamentável do mundo! E buscando um adiamento do sofrimento, como se estivesse pedindo por vida! Deveria considerá-lo mais desprezível se desejasse viver até o momento da crucificação: “Não!”, Ele chora, “você pode enfraquecer meu corpo somente se deixar o sopro de vida na minha carcaça maltratada e ineficaz! Mutile-me se quiser, mas permita-me, disforme e deformado como eu estou, apenas um pouco mais de tempo no mundo! Você pode me pregar e colocar meu lugar na cruz lancinante!” Vale a pena aturar a própria ferida, e manter-se empalado sobre um pelourinho, que só pode adiar algo que é o bálsamo dos problemas, o fim da punição? Vale a pena tudo isso apenas para possuir o sopro de vida que finalmente deverá ser entregue?

13. O que você pediria para Mecenas, a não ser a indulgência dos deuses? O que ele quer dizer com versos tão efeminados e indecentes? O que ele quer dizer ao contemporizar com tal medo? O que ele quer dizer com mendigar vil à vida? Ele nunca ouviu Virgílio ler as palavras:

Diga-me, a morte é tão miserável quanto isso?Usque adeone mori miserum est ?[3]

Ele pede o clímax do sofrimento e – o que é ainda mais difícil de suportar – prolongamento e extensão do sofrimento. E o que ele ganha desse modo? Simplesmente o benefício de uma existência mais longa. Mas que tipo de vida é uma morte vagarosa?

14. Pode ser encontrado quem prefira consumir-se por dor, morrer membro por membro ou deixar a vida esvair gota por gota, ao invés de expirar de uma vez por todas? Pode alguém ser encontrado disposto a ser preso à árvore amaldiçoada,[4] há muito doente, já deformado, inchado com tumores no peito e nos ombros e respirando a vida em meio a uma agonia prolongada? Eu acho que teria muitas desculpas para morrer mesmo antes de montar a cruz! Negue, agora, se puder, que a natureza é muito generosa ao tornar a morte inevitável.

15. Muitos homens estão preparados para entrar em pechinchas ainda mais vergonhosas: trair amigos para viver mais ou voluntariamente aviltar seus filhos e, assim, aproveitar a luz do dia que é testemunha de todos os seus pecados. Devemos nos livrar desse desejo de vida e aprender que não faz diferença quando o seu sofrimento vem, porque em algum momento você é obrigado a sofrer. O ponto é, não quão longamente você vive, mas quão nobremente você vive. E, muitas vezes, essa vida nobre significa que você não poderá viver por muito tempo. Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Trecho de Éclogas de Virgílio (também chamadas de Bucólicas).

[2] Horácio, seu amigo íntimo, escreveu “para animar o Macenas desanimado”; e Plínio menciona suas febres e sua insônia “perpetua febris … Eidem triennio supremo nullo horae momento contigit somnus”.

[3] Trecho de Aneida, de Virgílio.

[4] Infelix arbor, i.e. a cruz.

Carta 100: Sobre os escritos de Fabiano

A centésima carta é uma resposta de Sêneca a uma crítica de Lucílio de um texto de Papírio Fabiano. Fabiano foi professor de Sêneca quando jovem tendo sido um retórico e filósofo muito ativo nos tempos de Tibério e Calígula. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural.

A carta traz poucos ensinamentos filosóficos e foca em explicar qualidades do texto de Fabiano, que infelizmente, nos foi perdido. Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.

Nas cartas de Sêneca sempre estão presentes epigramas, isto é, textos curtos que expressam um pensamento de forma engenhosa. Geralmente tenho dificuldade em selecionar um, entre os vários, para ilustrar o artigo, mas a carta 100 não oferece nenhum. Contudo o exemplo do professor de Sêneca é um a ser seguido:

Percebe-se que ele agiu assim para o leitor saber o que agradava a ele, e não para ele agradar ao leitor. Todo o seu trabalho visa progresso moral e sabedoria, sem qualquer busca de aplausos.” (X, 11)

(Imagem Mosaico Virgílio no Museu Nacional Bardo, Tunísia)


C. Sobre os escritos de Fabiano

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você me escreve que leu com a maior disposição o trabalho de Papírio Fabiano[1] intitulado “Os deveres de um cidadão” e que não atingiu suas expectativas; então, esquecendo que você está lidando com um filósofo, você procede a criticar seu estilo de escrita. Suponha agora, que sua afirmação é verdadeira – que ele derrame, em lugar de colocar suas palavras. Deixe-me no entanto, desde o início, dizer-lhe que esta característica da qual você fala tem um charme peculiar e que é uma graça apropriada para um estilo de suave compreensão. Pois, eu mantenho, é importante se o texto tropeça ou flui. Além disso, há também uma certa deferência a este respeito, como eu deixarei claro para você:

2. Fabiano parece-me não “verter” palavras mas sim ter um “fluxo”, deixa as palavras fluírem. Tão abundante é, sem confusão, e ainda não sem velocidade.[2] Isto é, de fato, o que seu estilo declara e anuncia: que ele não passou muito tempo trabalhando o assunto e retocando-o. Mas mesmo supondo que os fatos sejam como você diz, o homem está construindo caráter ao invés de palavras e está escrevendo essas palavras mais para a mente do que para os ouvidos.

3. Além disso, se ouvisse ele lendo o próprio texto você não teria tido tempo para considerar os detalhes – todo o trabalho lhe teria entusiasmado. Por regra geral, o que satisfaz pela rapidez é de menor valor quando tomado em consideração para a leitura. No entanto, essa mesma qualidade, de atrair à primeira vista, é uma grande vantagem, não importa se uma investigação cuidadosa pode descobrir algo a criticar.

4. Se você me perguntar, devo dizer que aquele que arrebata a aprovação é maior do que aquele que a merece; e ainda sei que o último é mais seguro, eu sei que ele pode dar garantias mais confiantes para o futuro. Uma maneira meticulosa de escrever não se adequa ao filósofo, se ele é tímido quanto às palavras, quando será valente e firme? Quando realmente mostrará seu valor?

5. O estilo de Fabiano não era negligente, mas assegurado. É por isso que você não encontrará nada de qualidade inferior em seu trabalho: suas palavras são bem escolhidas e mesmo assim não são caçadas. Elas não são artificialmente inseridas e invertidas, de acordo com a moda atual, mas possuem distinção, mesmo que elas sejam distantes do discurso mais vulgar. Lá você tem ideias honestas e esplêndidas, não encadeadas em aforismos, mas faladas com maior liberdade. Devemos, naturalmente, notar passagens que não são suficientemente podadas, não construídas com cuidado suficiente e que não possuem o esmalte que está em voga hoje em dia. Mas depois de considerar o todo você verá que não encontraremos futilidades nem obscuridades resultantes do excesso de concisão.

6. Pode ser, sem dúvida, que não haja nenhuma variedade de mármores, nenhum abastecimento de água corrente de um apartamento para outro, nenhum “quarto pobre”,[3] ou qualquer outro dispositivo que o luxo acrescente quando insatisfeito com encantos simples; mas é sim, aquilo que chamamos de “uma boa casa para se viver”. Além disso, as opiniões variam em relação ao estilo. Alguns desejam que ele seja polido de toda aspereza e alguns tomam um grande prazer na maneira abrupta que intencionalmente qualquer passagem se rompe e então, se espalha mais suavemente, dispersando as palavras finais de tal forma que as frases possam soar inesperadas.

7. Leia Cícero: seu estilo tem unidade, ele se move com um ritmo modulado e é gentil sem ser efeminado. O estilo de Asínio Polião,[4] por outro lado, é “acidentado”, brusco, parando quando você menos espera.[5] E, finalmente, Cícero sempre termina de forma gradual; enquanto Polião se interrompe, exceto nos poucos casos em que ele cliva em um ritmo definido, aliás sempre de um único padrão.

8. Além disso, você diz que tudo em Fabiano parece-lhe comum e sem elevação, mas eu considero que ele é livre dessa culpa. Pois esse estilo seu não é comum, mas simplesmente calmo e ajustado à sua mente pacífica e bem ordenada – não em um nível baixo, mas em um plano uniforme. Falta a verve e os grandes rasgos de orador (os quais você está procurando) e um choque súbito de epigramas.[6] Mas olhe, por favor, em todo o trabalho, quão bem ordenado é: há uma distinção nele. Seu estilo talvez não possua, mas sugere, dignidade.

9. Mencione alguém a quem você possa classificar antes de Fabiano. Cícero, digamos, cujos livros sobre filosofia são quase tão numerosos como os de Fabiano. Concordo com este ponto, mas não é pouco ser menos do que o maior. Ou Asínio Polião, digamos. Eu vou me render novamente e me contento respondendo: “É uma distinção ser o terceiro em tão grande campo”. Você também pode incluir Tito Lívio,[7] pois Lívio escreveu os diálogos que devem ser classificados como história e obras que declaradamente lidam com a filosofia. Eu também cederei no caso de Lívio. Mas considere quantos escritores Fabiano ultrapassa, se ele é superado apenas por três, e esses três são os maiores mestres da eloquência!

10. Mas, pode-se dizer, ele não oferece tudo: embora seu estilo seja elevado, não é forte; embora ele venha em profusão, falta força e envergadura; não é translúcido, mas é lustroso. “Alguém iria falhar”, você insiste, “em encontrar nele qualquer crítica dura ao vício, quaisquer palavras corajosas diante do perigo, qualquer desafio orgulhoso da Fortuna, quaisquer ameaças desdenhosas contra o egoísmo. Desejo ver o luxo repreendido, a luxúria condenada, o capricho esmagado. Deixe-o nos mostrar o entusiasmo pela oratória, a beleza da tragédia, a sutileza da comédia”. Você deseja que ele confie naquela mais pequena das coisas, fraseologia; mas ele jurou fidelidade à grandeza de seu assunto e carrega a eloquência atrás dele como uma espécie de sombra, mas não como propósito primário.

11. Nosso autor, sem dúvida, não investigará todos os detalhes, nem submeterá a análise, nem inspecionará e enfatizará cada palavra separada. Isso eu admito. Muitas frases ficam aquém, ou deixam de atingir o alvo e, às vezes, o estilo é indolente; mas há muita luz ao longo do trabalho. Existem longos trechos que não cansam o leitor. E, finalmente, ele oferece essa qualidade de deixar claro o que ele quis dizer ao escrever, e o escreveu de coração. Percebe-se que ele agiu assim para o leitor saber o que agradava a ele, e não para ele agradar ao leitor. Todo o seu trabalho visa progresso moral e sabedoria, sem qualquer busca de aplausos.

12. Não duvido que seus escritos sejam do tipo que descrevi, embora eu esteja me recordando deles em vez de manter uma lembrança certa, e embora o tom geral de seus escritos permaneça na minha mente, não devido a leitura cuidadosa e recente, mas em esboço, como é natural de um conhecimento antigo. Contudo, certamente, sempre que o ouvi dar uma palestra pareceu-me o trabalho dele não apenas sólido, mas completo, o tipo que inspiraria os jovens de talento e despertaria a ambição de se tornarem como ele, sem fazê-los sem esperança de superá-lo; e esse método de encorajamento me parece o mais eficaz de todos. Pois é desanimador inspirar em um homem o desejo da emulação e tirar-lhe a esperança. De qualquer forma, sua escrita era fluente e, embora não fosse possível aprovar todos os detalhes, o efeito geral era nobre.

Adeus.


[1] NT: Papirio Fabiano foi um retórico e filósofo da Roma Antiga, ativo na última época de Augusto e nos tempos de Tibério e Calígula, na primeira metade do primeiro século. Foi professor de Sêneca. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural e Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.

[2] ou seja, seu estilo é como um rio em vez de uma corredeira.

[3] Os homens ricos às vezes instalavam em seus palácios uma imitação de “cabine de homem pobre”, por contraste com os outros quartos ou como um gesto para uma vida simples; Sêneca usa a frase figurativamente para determinados dispositivos em composição. Ver também carta XVIII (Volume I) e Marcial, III, 48: “Pauperis extruxit cellam, sed vendidit Olus; praedia; nunc cellam pauperis Olus habet.

[4] NT: Caio Asínio Polião (n. 65 a.C.–4 d.C.) foi um político da gente Asínia eleito cônsul em 40 a.C.. É conhecido por sua carreira como orador, poeta, autor teatral, crítico literário e, principalmente, como historiador, cuja obra, perdida, uma “História de Roma” até sua época, foi muito utilizada como fonte para as obras de Apiano e Plutarco. Polião foi ainda um patrono de Virgílio, amigo de Horácio e recebeu de ambos poemas dedicados a si.

[5] Ver Quintiliano, X, I;11: “multa in Asinio Pollione inventio, summa diligentia, adeo ut quibusdam etiam nimia videatur; et consilii et animi satis; a nitore et iucunditate Ciceronis ita longe abest, ut videri possit saeculo prior.

[6] A redação aqui se assemelha de forma impressionante à do Velho Sêneca em Controversias. II.

[7] NT: Tito Lívio, conhecido simplesmente como Lívio, é o autor da obra histórica intitulada Ab urbe condita (“Desde a fundação da cidade”), onde tenta relatar a história de Roma desde o momento tradicional da sua fundação 753 a.C. até ao início do século I da Era Cristã.

Extra: Carta 107: Espera por tudo / tradução de Aldo Dinucci

Temos uma excelente novidade! Um pouco de variação.
Quem acompanha o blog sabe que publicamos 99 cartas de Sêneca, traduzidas do inglês por Alexandre Vieira.

Recentemente o professor Aldo Dinucci lançou livro com tradução direto do latim de Cartas Selecionadas. Ao ler irão perceber estilo muito mais conciso e próximo do original de Sêneca. Não irei comentar a carta, mas trazer a pequena introdução que Aldo nos enviou:

Pessoal, pretendi fazer um manual de Sêneca com a minha tradução destas nove cartas do Latim. Sêneca me ajudou muito em um período muito difícil de minha vida. Esse livro é minha homenagem a quem considero um dos mais poderosos intelectuais (filósofo, dramaturgo, poeta, humorista, político) de todos os tempos. Meu objetivo é que seu pensamento continue ajudando quantas pessoas dele necessitarem. Saudações a todos.
Aldo Dinucci.

Professor Doutor em Logica & Filosofia – Universidade Federal de Sergipe

Cartas Selecionadas está disponível em papel e formato digital.

(imagem Boulanger Gustaveo mercado de escravos)


Carta CVII – Espera por tudo (Omnia Exspecta)

Sêneca saúda seu amigo Lucílio.

(1) Onde está aquela tua prudência? Onde está a sagacidade nas coisas que se devem discernir? Onde está a grandeza de alma? Já as pequenas coisas te afligem? Teus servos viram, em tuas ocupações, a oportunidade para a fuga. Se os amigos te enganaram, que tenham então este nome, o qual nosso erro lhes colocou de modo impensado. E que sejam assim chamados, para que seja mais vergonhoso não o serem. Pois bem, há algo a menos dentre as tuas coisas: aqueles amigos, que agora te faltam, são aqueles que destruíam a tua obra e te consideravam molesto aos demais.

(2) Nenhuma destas coisas é insólita, nenhuma inesperada. Ofender-te com estas coisas é tão ridículo quanto te queixares porque caíste em público ou porque te sujaste na lama. A mesma condição tem a vida, o banho público, a multidão, a viagem: algumas coisas serão atiradas em ti, algumas coisas acontecerão. Não é coisa delicada viver. A uma longa viagem vieste e é necessário que escorregues, que tropeces, que caias, que te canses e que exclames: “Ó Morte!”, isto é, é necessário que mintas. Num lugar, deixarás para trás um companheiro; noutro, sepultarás um; noutro ainda, terás medo; deste modo, por entre ferimentos, é necessário atravessar esta difícil viagem. (3) Deseja alguém morrer? Que seu espírito esteja preparado contra todas as coisas; que saiba, por si mesmo, que chegou onde estronda o trovão. Que saiba por si mesmo que chegou onde…

Perdas e Vingança estabeleceram seus quartéis de governo
E pálidas e tristes doenças e a velhice habitam[1].

Nesta morada, é necessário gastar a vida. Escapar dela não podes, desprezá-la podes. (4) Desprezarás, porém, se muitas vezes pensares e conjecturares as coisas futuras. Todos mais corajosamente atravessam aquilo para o que durante muito tempo se prepararam, e, do mesmo modo, resistem se previamente refletem sobre os obstáculos. Por outro lado, teme-se muito aquilo contra o que não se preparou, mesmo as coisas fúteis.  Isto é necessário fazer: que nada seja para nós inesperado. E, porque todas as coisas são mais graves por <serem> novidades, a reflexão constante te defenderá disso – assim, peço-te que, de modo algum, ajas como um mau recruta.

(5) “Os servos me deixaram”. A outro roubaram, a outro falsamente acusaram, a outro assassinaram, a outro traíram, a outro esmagaram, a outro envenenaram, a outro atingiram com falsa acusação: o que quer que digas, aconteceu a muitos. Em seguida, <é preciso que saibas que> muitos e variados dardos há e são dirigidos a nós. Alguns estão fixados em nós, alguns são lançados e chegam com força máxima, (6) alguns, que vão atingir outros, resvalam em nós.

(6) Em nada nos admiremos destes <dardos>, para os quais nascemos; os quais, por esta razão, de modo algum devem ser lamentados, porque são pátria para todos. Assim, digo que são iguais <para todos>, pois também se pode sofrer daquilo do que se escapa. Além disso, uma lei equitativa é o que é estabelecido para todos, não o que ocorre para todos. Que seja prescrita equidade ao espírito e que paguemos, sem queixas, os tributos de nossa condição mortal.

(7) O inverno faz vir o frio: é necessário gelar. O tempo traz de novo o calor: é necessário arder. A intempérie do céu provoca a saúde: é necessário adoecer. Uma fera em algum lugar se aproximará de nós, e também um homem mais pernicioso que todas as feras. Algo a água, algo o fogo retirar-nos-á. Esta condição das coisas não podemos mudar. Mas isto podemos <fazer>: adotar um espírito elevado e digno do homem nobre para (8) que corajosamente suportemos as coisas fortuitas e nos harmonizemos com a Natureza. A Natureza tempera este reino que vês com as mutações: o céu sereno sucede ao coberto de nuvens; agitam-se os mares com a condição de que se acalmem; parte do céu se ergue, parte imerge. A eternidade das coisas consiste nos contrários.

(9) É necessário que nosso espírito se adapte a esta lei; é necessário que siga esta lei, que a obedeça. E, o que quer que aconteça, é necessário que pense ter devido acontecer e que não deseje repreender a natureza, que siga a Divindade, da qual todas as coisas provêm.

Mau soldado é quem (10) segue gemendo o comandante. Portanto, cheios de ardor e diligentes, recebamos as ordens e não desertemos o curso desta belíssima obra à qual foi entrelaçada o que quer que teremos de suportar. E deste modo, exortemos a Júpiter, cujo governo é ornador dessa imensidade, da mesma maneira que nosso Cleantes o exorta através de versos mais que eloquentes, versos os quais me é permitido traduzir para o nosso idioma, a exemplo de Cícero, mais eloquente dos homens. Se te agradarem, aprová-los-á, se te desagradarem, saberás que aqui segui o exemplo de Cícero:

(11) Conduz-me, ó Pai Excelso e Senhor do Mundo,
Para onde quer que queiras, nenhum obstáculo impedir-me-á de seguir-te.
Diligente, estarei junto a ti. E, caso eu não o queira fazer
o que é possível ao intrépido, ainda assim seguir-te-ei, gemendo e infeliz.
O Destino conduz quem lhe obedece e arrasta a quem lhe opõe resistência.

(12) Que vivamos assim, que falemos assim; que o destino nos encontre prontos e diligentes. Eis o espírito elevado que confiou a si mesmo ao destino. E, em oposição a ele, o fraco e degenerado, que luta contra e julga mal a ordem do mundo e prefere corrigir os Deuses que a si mesmo.

Adeus.


[1] Virgílio, Eneida, vi, 274 ss.

Carta 99: Sobre consolo a quem se encontra em luto

Na carta 99 Sêneca fala sobre a consolação estoica para aqueles que sofrem com a morte. É uma carta severa, na qual vemos que o estoicismo pode ser duro, mas oferece um caminho para o fim do luto.

Nesta carta, Sêneca é bastante firme em sua oposição ao Epicurismo, contudo quebra o mito de que o estoicismo e insensível ao sofrimento:

Quer dizer quer agora, neste momento, estaria eu aconselhando você a ter um coração duro, desejando que você mantenha seu semblante imóvel na cerimônia fúnebre e não permitindo que sua alma sinta mesmo uma pitada de dor? De modo algum! Isso significaria insensibilidade e não virtude – participar da cerimônia de enterro daqueles próximos e queridos com a mesma expressão que você vê suas formas vivas e não mostrar nenhuma emoção pela primeira privação de seus familiares. Ainda assim, suponha que eu proíba você de mostrar emoção, há certos sentimentos que reivindicam seus direitos próprios. As lágrimas caem, não importa como tentamos controla-las e, sendo derramadas, aliviam a alma.” (XCIX, 15)

Ou seja, o estoico sente emoções e sofre por elas, apenas tenta mante-las sob controle, ao invés de ficar sob controle delas.

Imagem: Morte tocando violino, por Frans Francken.


XCIX. Sobre consolo a quem se encontra em luto

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Anexei uma cópia da carta que escrevi a Marulo[1] na ocasião da perda de seu filho em tenra idade – morte que, fiquei sabendo, ele suportou com quase nula coragem, comportando-se de forma bastante afeminada em sua dor. Nesta carta não observei a forma habitual de condolências: pois não acreditava que ele deveria ser tratado suavemente já que, na minha opinião, ele merecia críticas e não consolação. Quando um homem é atingido e está achando difícil suportar um ferimento grave, devemos fazer sua vontade por um tempo: permitamos que ele satisfaça seu pesar ou, de qualquer forma, dissipe o primeiro choque, até que a dor vá esmorecendo e perca a violência inicial.

2. Mas aqueles que adotam indulgência no sofrimento devem ser repreendidos imediatamente e devem saber que existe alguma insensatez, mesmo nas lágrimas.[2] “É consolação que você procura? Deixe-me dar-lhe uma repreensão em vez disso! Você se comporta como uma mulher na maneira em que você encara a morte do seu filho, o que faria se tivesse perdido um amigo íntimo? Um filho, um filho pequeno de futuro incerto está morto, apenas um fragmento de tempo foi perdido!

3. Nós caçamos desculpas para o sofrimento, nós até mesmo proferimos queixas injustas sobre a Fortuna, como se a Fortuna nunca nos desse motivos para reclamar! Mas eu realmente acreditava que você possuísse espírito suficiente para lidar com problemas concretos, sem contar os problemas irreais sobre os quais os homens se lamentam por força do hábito. Se você tivesse perdido um amigo (o maior golpe de todos),[3] mesmo assim você deveria tentar se regozijar por tê-lo possuído em vez de lamentar sua perda.

4. Mas muitos homens não conseguem contar quão variados foram seus ganhos, quão ótimas foram as suas alegrias. Sofrimento como o seu tem isso entre outros males: não é apenas inútil, mas ingrato. Foi tudo em vão ter tido tantos amigos? Durante tantos anos, em meio a associações tão próximas, depois de uma comunhão tão íntima de interesses pessoais, nada foi realizado? Você enterra a amizade com um amigo? E por que lamentar-se por ter perdido, se não foi útil tê-lo tido? Acredite-me, grande parte daqueles que amamos, embora o acaso tenha removido suas pessoas, ainda permanecem conosco. O passado é nosso e não há nada mais seguro para nós do que aquilo que se foi.

5. Nós somos ingratos pelos ganhos passados porque esperamos o futuro, como se o futuro (na hipótese de lá chegarmos) não fosse ser rapidamente misturado com o passado. As pessoas estabelecem um limite estreito para suas alegrias se elas só as aproveitam no presente, tanto o futuro quanto o passado servem para nosso deleite: um pela antecipação e o outro pelas memórias, mas o primeiro é contingente e pode não acontecer, enquanto o segundo é certo. Que loucura é, portanto, perder o controle sobre o que é o mais certo de tudo? Vamos descansar contentes com os prazeres que nos foram dados a desfrutar, se no entanto, enquanto nós os desfrutamos, a alma não foi perfurada como uma peneira, apenas para perder novamente o que havia recebido.

6. Existem inúmeros casos de homens que, sem lágrimas, enterraram filhos no auge da vida – homens que voltaram da pira funerária para a câmara do Senado ou para quaisquer outros deveres oficiais e imediatamente se ocuparam de outra coisa. E com razão pois, em primeiro lugar, é inútil se afligir se não for receber ajuda da aflição. Em segundo lugar, é injusto se queixar sobre o que aconteceu com um homem, mas que está reservado a todos. Mais uma vez, é tolo lamentar a perda, quando existe um intervalo tão curto entre os perdidos e os perdedores. Portanto, devemos ser mais resignados em espírito, porque acompanharemos de perto aqueles que perdemos.

7. Observe a rapidez do Tempo – a mais rápida das coisas – considere a brevidade do curso ao longo do qual aceleramos à velocidade máxima, perceba essa multidão de humanos que se esforça para o mesmo ponto com breves intervalos entre eles – mesmo quando eles parecem mais longos, aquele que você conta como morto simplesmente se postou à frente.[4] E o que é mais irracional do que lamentar o seu antecessor, quando você mesmo deve viajar a mesma jornada?

8. Um homem lamenta um evento que ele sabe que irá acontecer? Ou, se não pensar que a morte está no futuro do homem, se enganou. Um homem lamenta um evento que admite ser inevitável? Quem se queixa da morte de alguém, está se queixando de que ele era humano. Todos estamos vinculados pelo mesmo termo: aquele que tem o privilégio de nascer, está destinado a morrer.

9. Períodos de tempo nos separam, a morte nos nivela. O período que se situa entre o nosso primeiro dia e o nosso último é inconstante e incerto: se você o contar pelos problemas, é longo até para um rapaz, se por sua velocidade, é escasso mesmo para um idoso. Tudo é instável, traiçoeiro e mais incerto do que qualquer clima. Todas as coisas são jogadas e se deslocam para os seus opostos ao comando da Fortuna, em meio a esta turbulência de assuntos mortais, nada além da morte está mais certamente reservado a qualquer um. E, no entanto, todos os homens se queixam da única coisa da qual nenhum deles é iludido.

10. “Mas ele morreu na infância”. Eu ainda não estou preparado para dizer que aquele que rapidamente chega ao fim de sua vida conseguiu o melhor da barganha, voltemos a considerar o caso daquele que atingiu a velhice. Quão exíguo é o tempo que ele tem de vantagem sobre a criança! Pondere a grande extensão do abismo do tempo e considere o universo e depois contraste nossa vida humana com o infinito, então você verá quão breve é aquilo pelo que oramos e que procuramos alongar.

11. Quanto deste tempo é desperdiçado com o choro, quanto com preocupação! Quanto com orações para a morte antes da chegada da morte, quanto com nossa saúde, quanto com nossos medos! Quanto é ocupado por nossos anos de inexperiência ou de esforço inútil! E metade de todo esse tempo é desperdiçado em dormir. Adicione, além disso, nossos problemas, nossas dores, nossos perigos e você compreenderá que, mesmo da vida mais longa, a vida real é a menor parcela.

12. No entanto, quem irá admitir algo como: “Não está em melhor condição um homem que tem permissão para voltar para casa rapidamente, cuja jornada é realizada antes que ele fique cansado”? A vida não é um bem nem um mal: é simplesmente o lugar onde o bem e o mal existem. Por isso, este menino não perdeu nada além de uma aposta onde a chance de perder era mais provável que a de ganhar. Ele poderia ter se tornado sóbrio e prudente, ele poderia, via educação cuidadosa, ter sido moldado ao melhor padrão, mas (e esse medo é mais razoável), ele poderia ter se tornado exatamente como muitos.

13. Observe os jovens da linhagem mais nobre cuja extravagância os jogou na arena[5], note aqueles homens escravos de suas paixões próprias e as de outros em luxúria mútua, cujos dias nunca passam sem embriaguez ou algum ato vergonhoso, assim será claro para você que havia mais a temer do que a esperar. Por esta razão, você não deve dar desculpas para o sofrimento ou exasperar os ligeiros revezes, indignando-se.

14. Eu não estou exortando você a fazer um esforço e se levantar a grandes alturas, pois a minha opinião sobre você não é tão baixa que me faça pensar que é necessário que invoque todos os seus poderes para enfrentar esse problema que não é dor, é uma mera picada – e é você mesmo quem está transformando isso em dor. Sem dúvida, a filosofia lhe fará bom serviço, se você puder suportar corajosamente a perda de um menino que ainda era melhor conhecido por sua babá do que por seu pai.

15. E então? Quer dizer quer agora, neste momento, estaria eu aconselhando você a ter um coração duro, desejando que você mantenha seu semblante imóvel na cerimônia fúnebre e não permitindo que sua alma sinta mesmo uma pitada de dor? De modo algum! Isso significaria insensibilidade e não virtude – participar da cerimônia de enterro daqueles próximos e queridos com a mesma expressão que você vê suas formas vivas e não mostrar nenhuma emoção pela primeira privação de seus familiares. Ainda assim, suponha que eu proíba você de mostrar emoção, há certos sentimentos que reivindicam seus direitos próprios. As lágrimas caem, não importa como tentamos controla-las e, sendo derramadas, aliviam a alma.

16. O que então devemos fazer? Deixe-nos permitir que caiam, mas não ordenemo-las a fazê-lo, deixe-as, de acordo com a emoção, inundar os nossos olhos, mas não como a mera atuação. Deixe-nos, de fato, não adicionar nada ao sofrimento natural, nem o aumentar seguindo o exemplo dos outros. A exibição do sofrimento faz mais demandas do que o próprio sofrimento. Como poucos homens estão tristes em sua própria companhia! Eles lamentam mais alto para serem ouvidos, pessoas, que reservadas e silenciosas quando sozinhas, são induzidas a novos acessos de lágrimas quando veem outras perto delas! Nessas ocasiões elas se debatem, embora pudessem fazer isso com mais facilidade se ninguém estivesse presente para controlá-las, nessas ocasiões elas rezam pela morte, nessas ocasiões elas se revolvem em seus leitos. Mas seu sofrimento afrouxa com a saída dos espectadores.

17. Neste assunto, como em outros também, estamos cometemos a falha de nos ajustar ao padrão dos muitos e de atuamos de acordo ao que é convencional e não ao que é certo. Nós abandonamos a natureza e nos rendemos à multidão, que nunca é boa conselheira em nada e, a este respeito, como em todos os outros, é modelo de inconstância. As pessoas veem um homem que sofre seu sofrimento com bravura: o chamam de desalmado e selvagem; elas veem um homem que colapsa e se agarra aos seus mortos: o chamam de efeminado e fraco.

18. Tudo, portanto, deve ser baseado na razão. Mas nada é mais tolo do que cortejar uma reputação de tristeza e sancionar lágrimas, pois eu acredito que, em um homem sábio, algumas lágrimas caem por consentimento, outras por sua própria força. Eu vou explicar a diferença da seguinte maneira: quando a primeira notícia de alguma grave perda nos choca, quando abraçamos o corpo que em breve passará de nossos braços para as chamas funerárias, então as lágrimas são expelidas de nós pela necessidade da natureza. E a força vital, ferida pelo golpe de tristeza, sacode o corpo inteiro e também os olhos que, pressionados, fazem fluir a umidade que neles se encontra.

19. Lágrimas como essas caem por um processo próprio, processo esse involuntário, mas diferentes são as lágrimas que permitimos escapar quando nós meditamos em memória daqueles que perdemos. E há nelas uma certa tristeza quando lembramos o som de uma voz agradável, uma conversa cordial e os afazeres de outrora, em tal momento os olhos se afrouxam, por assim dizer, com alegria. A esse tipo de lágrimas nos entregamos, já o primeiro tipo nos subjuga.

20. Não há portanto, somente porque um grupo de pessoas está em sua presença ou sentado ao seu lado, nenhum motivo para você segurar ou derramar suas lágrimas, sejam elas impedidas ou derramadas, elas nunca são tão vergonhosas como quando fingidas. Deixe-as fluir naturalmente. Mas é possível que as lágrimas fluam dos olhos daqueles que estão quietos e em paz. Elas costumam fluir sem prejudicar a influência do sábio, com tanta restrição que elas não mostram nenhuma carência de sentimento ou auto respeito.

21. Podemos, asseguro-lhe, obedecer à natureza e ainda manter a nossa dignidade. Vi homens dignos de reverência, durante o enterro daqueles próximos e queridos, com semblantes sobre os quais o amor foi escrito, claro, mesmo depois que todo o aparato do luto foi removido e que não mostrou outra conduta do que aquela de verdadeira emoção. Há uma graciosidade mesmo no sofrimento. Isso deve ser cultivado pelo sábio, mesmo em lágrimas; assim como em outros assuntos também, há uma certa suficiência, é com o imprudente que tanto as dores quanto as alegrias transbordam.

22. Aceite com um espírito sereno o que é inevitável. Por acaso lhe aconteceu algo inacreditável, extraordinário? Ou que seja inédito? Quantos homens neste momento estão fazendo arranjos para funerais! Quantos estão comprando roupas de luto! Quantos estão chorando, quando você mesmo encerrou seu luto! Tão frequentemente quanto você reflete sobre a perda de seu filho, reflita também sobre o homem, que não tem nenhuma promessa segura de nada, a quem a Fortuna não acompanha inevitavelmente os confins da velhice, mas deixa-o ir apenas até qualquer ponto que julga adequado.

23. Você pode, no entanto, falar com frequência sobre os falecidos e celebrar sua memória na medida do possível. Essa memória irá retornar a você com mais frequência se você receber sua chegada sem amarguras, pois ninguém gosta de conversar com alguém que é triste e muito menos com a própria tristeza. As conversas dele, as brincadeiras de infância que fazia, se você as escutava com prazer, relembre delas frequentemente, afirme com decisão que ele poderia ter realizado todas as esperanças que você concebeu em seu espírito paterno.

24. De fato, esquecer os amados mortos, enterrar a memória junto com seus corpos, encharcá-los com lágrimas e depois deixar de pensar neles: essa é a marca de uma alma inferior à do homem. Pois é assim que os pássaros e as bestas amam seus jovens, seu afeto é rapidamente despertado e quase atinge loucura, mas esfria totalmente quando seu objeto morre. Essa qualidade não beneficia um homem de bom senso. Este deve continuar a lembrar, mas deve deixar de lamentar.

25. E, em nenhum caso, aprovo a observação de Metrodoro, de que há um certo prazer inerente à tristeza e que se deve obter esse prazer em momentos como estes. Estou citando as palavras reais de Metrodoro em ‘Cartas de Metrodoro à irmã’: “Há um certo prazer que nasce simultaneamente com a dor e que é preciso captar no próprio momento”.[6]

26. Não tenho dúvidas sobre quais serão seus sentimentos nesses assuntos, pois o que é mais vil do que “perseguir” o prazer no meio do luto – sim, em luto – e mesmo entre as lágrimas de alguém perseguir o que dará prazer? Estes são os homens que nos acusam de um rigor muito grande, caluniando nossos preceitos por causa da suposta dureza – porque, dizem eles, declaramos que o sofrimento não deve ser colocado na alma, ou então deve ser descartado imediatamente. Mas qual é o mais incrível ou desumano: não sentir nenhum sofrimento pela perda de um amigo ou ir a procura do prazer no meio do sofrimento?

27. O que nós estoicos aconselhamos é honrável: quando a emoção provoca um fluxo moderado de lágrimas e, por assim dizer, deixa de efervescer, a alma não deve ser entregue ao sofrimento. Mas o que você quer dizer, Metrodoro, ao afirmar que na grande dor deveria haver uma mistura de prazer? Esse é o método doce para pacificar as crianças, essa é a maneira como acalmamos os gritos dos bebês, derramando leite em suas gargantas! Mesmo no momento em que o corpo do seu filho está na pira, ou seu amigo em seu último suspiro, você não sofrerá a suspensão do prazer, em vez de agradar seu próprio sofrimento com prazer? O que é o mais honrado:  remover o sofrimento de sua alma ou admitir o prazer até mesmo na companhia do sofrimento? Eu disse “admitir”? Não, eu quero dizer “perseguir” e também através do próprio sofrimento.

28. Metrodoro diz: “Há um certo prazer que nasce simultaneamente com a dor”. Nós, estoicos, podemos dizer isso, mas você não pode. O único bem que você reconhece é o prazer e o único mal, a dor. Que relação pode haver entre um bem e um mal? Mas suponha que tal relação exista; agora, a todo tempo, deveria ser descartada? Devemos examinar o sofrimento também e ver com que elementos de deleite e prazer está rodeado?

29. Certos remédios, que são benéficos para algumas partes do corpo, não podem ser aplicados a outras partes porque a estas são, de certa forma, irritantes e impróprios. O que, em certos casos, funcionaria para um bom propósito sem qualquer prejuízo ao respeito próprio, pode tornar-se impróprio por causa da situação da ferida. Você também não ficaria envergonhado de curar a tristeza com o prazer? Não, este ponto dolorido deve ser tratado de forma mais drástica. Isto é o que você deve recomendar de preferência: que nenhuma sensação de mal pode alcançar alguém que esteja morto, pois se pode alcançá-lo, ele não está morto.

30. E eu digo que nada pode machucar aquele que é tão insignificante, pois se um homem pode ser ferido, ele está vivo. Você acha que ele está mal porque ele não existe mais ou porque ele ainda existe como alguém? E, no entanto, nenhum tormento pode vir a ele pelo fato de não existir mais, pois que sentimento pode pertencer a alguém que não existe? Nem tampouco do fato de que ele existe, pois ele escapou da maior desvantagem que a morte tem em si, ou seja, a inexistência.

31. Digamos, portanto a um homem que chora com saudades de um filho arrebatado na primeira infância: no que concerne à brevidade da existência, todos nós, jovens ou velhos, em comparação com o universo, estamos em pé de igualdade. O que nos cabe de toda a sucessão dos tempos é menos que uma ínfima parte, porque uma parte, mesmo ínfima, é uma parte, enquanto o tempo da nossa vida é praticamente nada. E ainda assim, ó loucura humana, que planos grandiosos nós fazemos para esta nulidade que é a existência!

32. Estas palavras que eu escrevi para você, não com a ideia de que você deva esperar de mim uma cura em uma data tão tardia – pois é claro para mim que você se contou tudo o que você vai ler na minha carta – mas com a ideia de que eu deveria repreendê-lo, mesmo pelo leve atraso durante o qual você regrediu de seu verdadeiro ser e que eu deva encorajá-lo para o futuro, despertar seu espírito contra a Fortuna e ficar atento a todos os seus golpes, não como se eles fossem possíveis, mas como se fossem inevitáveis e certos de chegar.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Provavelmente Quinto Júnio Marulo que foi um senador romano da gente Júnia nomeado cônsul sufecto para o nundínio de setembro a dezembro de 62. Ver Tácito, Anais, XIV, 48.

[2] Como Lipsius assinalou, o restante da carta de Sêneca consiste na citada carta a Marulo.

[3] A visão romana difere da visão moderna, assim como esta carta é bastante mais severa do que a Carta LXIII (sobre a morte de Flaco).

[4] Linguagem quase idêntica às palavras finais da carta LXIII: “quem putamus perisse, praemissus est

[5] Na época de Nero muitos jovens de classe nobre passaram a participar dos jogos de arena e corridas de biga, seguindo o (mau) exemplo do imperador. Ver Francis Holland no livro “Sêneca, Vida e Filosofia”.

[6] Ver Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, livro X

Carta 98: Sobre a inconstância da fortuna

Na carta 98 Sêneca mais uma vez alerta contra a busca por felicidade e sobre a excessiva confiança na Fortuna, ou seja, não prever que eventos prejudiciais acontecerão conosco.

Devemos ter em mente que tudo que acreditamos possuir, desde bens materiais aos amigos e família, são apenas empréstimos temporários, que um dia deixaremos de ter:

Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.

(XCVIII, 2)

Sêneca apresenta exemplos que homens de virtude e diz que devemos segui-los sem medo: “As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio, crucificação por Régulo, veneno por Sócrates, exílio por Rutílio e espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”. (XCVIII,12)

(imagem Matthias Stomer, Múcio na presença de Lars Porsena)


XCVIII. Sobre a inconstância da fortuna

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você nunca deve acreditar que qualquer pessoa que dependa da felicidade esteja feliz! É um apoio frágil esse prazer em coisas forasteiras, a alegria que veio de fora partirá algum dia. Mas essa alegria que brota completamente de si próprio é leal e sólida, aumenta e nos atende até o fim enquanto todas as outras coisas que provocam a admiração da multidão são apenas bens temporários. Você pode responder: “O que você quer dizer? Não seria possível que essas coisas sirvam tanto para utilidade quanto para trazer satisfação?” Claro. Mas somente se elas dependerem de nós, e não nós delas.

2. Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.

3. Um homem ruim torna tudo ruim, mesmo coisas que vieram com a aparência do melhor. Mas o homem reto e honesto corrige os erros da Fortuna e suaviza dificuldades e amarguras porque sabe como suportá-las, ele também aceita prosperidade com apreciação e moderação e enfrenta problemas com firmeza e coragem. Embora um homem seja prudente, embora ele conduza todos os seus interesses com um julgamento bem equilibrado, embora ele não tente nada além de suas forças, ele não alcançará o bem, que está livre e fora do alcance das ameaças, a menos que tenha certeza de lidar com habilidade com aquilo que é incerto.

4. Se você prefere observar outros homens – pois é mais fácil chegar a uma conclusão ao julgar os assuntos dos outros – ou se você se observa, com todo o preconceito deixado de lado, você perceberá e reconhecerá que não há utilidade em todas essas coisas desejáveis e amadas a menos que você se equipe em oposição à inconstância do acaso e suas consequências e a menos que você repita com frequência e com indiferença, em cada transtorno, as palavras: “Os deuses decretaram o contrário”.[1]

5. Não, em vez disso, adote uma frase que seja mais corajosa e mais próxima da verdade – uma sobre a qual você possa suportar com segurança seu espírito. Diga a si mesmo, sempre que as coisas se revelem contrárias à sua expectativa: “Os deuses decretaram o melhor!” Se você estiver com essa disposição de espírito, nada irá afetá-lo. Esta disposição você conseguirá se refletir sobre os possíveis altos e baixos nos assuntos humanos antes de testar a força da Fortuna, se vier a considerar filhos ou esposa ou propriedade com a ideia de que não os possuirá necessariamente para sempre e que não será mais miserável apenas porque os tenha deixado de possuir.

6. É trágico que a alma esteja apreensiva pelo futuro e miserável em antecipação à miséria, consumada com um ansioso desejo de que os objetos que dão prazer permaneçam em sua posse até o fim. Pois tal alma nunca estará em repouso. Na espera do futuro, perderá as bênçãos presentes que poderia já desfrutar. E não há diferença entre o sofrimento por algo perdido e o medo de perdê-lo.

7. Mas, por isso, não aconselho você a ser indiferente. Em vez disso, se afaste do que pode causar medo. Certifique-se de prever tudo o que possa ser previsto no planejamento. Observe e evite, muito antes de acontecer, qualquer coisa que seja susceptível de causar prejuízo. Para realizar isso, sua melhor assistência será um espírito confiante e uma mente fortemente decidida a suportar todas as coisas. Aquele que pode suportar a Fortuna, também pode se precaver contra a Fortuna. De qualquer forma, não há turbilhão de ondas quando o mar está calmo. E não há nada mais miserável ou tolo do que o medo prematuro. Que loucura é antecipar os problemas!

8. Muito bem, para expressar meus pensamentos em passo rápido e retratar em uma frase aqueles homens intrometidos e autotorturadores que estão tão descontrolados em meio a seus problemas como estão antes dos problemas: “Sofre mais do que é necessário, quem sofre antes que seja necessário”. Tais homens não pesam a quantidade de seus sofrimentos, por causa da mesma deficiência que os impede de estarem prontos para isso e com a mesma falta de restrição imaginam ingenuamente que sua Fortuna durará para sempre e imaginam ingenuamente que seus ganhos devem aumentar, assim como simplesmente continuar. Eles esquecem esse trampolim sobre o qual as coisas mortais são jogadas e eles acreditam garantir a si mesmos uma continuação infinita das dádivas da chance.

9. Por esta razão, considero excelente a frase de Metrodoro,[2] em uma carta de consolo à sua irmã pela perda de seu filho, um menino de grande promessa: “Todo o bem relativo aos mortais é mortal”.[3] Ele está se referindo aos bens para os quais os homens se atiram em cardumes. Pois o bem real não perece, é certo e duradouro e consiste em sabedoria e virtude –  é a única coisa imortal que é concedida aos mortais.

10. Mas os homens são tão instáveis e tão esquecidos do seu objetivo e do ponto para onde todos os dias os empurram, que ficam surpresos com a perda de qualquer coisa, embora algum dia eles sejam obrigados a perder tudo. Qualquer coisa de que você tenha o título de proprietário está em sua posse, mas não é sua, pois não há força naquilo que é fraco, nem qualquer coisa duradoura e invencível naquilo que é frágil. Devemos perder nossas vidas tão seguramente quanto perderemos nossa propriedade e isso, se compreendemos a verdade, é em si mesmo um consolo. Perca então com serenidade, pois você deve perder sua vida também.

11. Que recurso encontramos, então, diante dessas perdas? Simplesmente isso: manter em memória as coisas que perdemos e não sofrer pela perda do gozo que derivamos delas. Pois “ter” pode ser tirado de nós, “ter tido”, nunca. Um homem é ingrato no mais alto grau se, depois de perder algo, ele não sinta nenhum agradecimento por tê-lo recebido. A Fortuna nos rouba a coisa, mas nos deixou a utilidade e prazer que tiramos dela – e perdemos isso se somos tão injustos a ponto de nos arrepender de tê-la tido ao mesmo tempo que exigimos continuar a possuí-la.

12. Apenas diga a si mesmo: “de todas essas experiências que parecem tão assustadoras, nenhuma delas é insuperável. As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio[4], crucificação por Régulo, [5] veneno por Sócrates, exílio por Rutílio[6] e uma morte infligida pela espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”.

13. Novamente, aqueles objetos que atraem a multidão sob a aparência de beleza e felicidade, foram desprezados por muitos homens e em muitas ocasiões. Fabrício, [7] quando era general, recusou riquezas e quando foi censor as marcava com desaprovação. Túbero considerou a pobreza digna de si mesmo e da divindade no Capitólio quando, ao usar pratos de barro em um festival público, mostrou que o homem deveria estar satisfeito com o que os deuses ainda podiam usar. O ancião Séxtio rejeitou as honras do cargo, ele nasceu com a obrigação de participar de assuntos públicos e, no entanto, não aceitou a faixa larga[8] mesmo quando o divino Júlio lhe ofereceu. Pois ele entendia que o que pode ser dado também pode ser retirado. Deixe-nos também, portanto, realizar algum ato corajoso por nossa própria iniciativa, deixe-nos ser incluídos entre os tipos ideais da história.

14. Por que ficamos negligentes? Por que desanimamos? O que poderia ser feito, pode ser feito se apenas purificarmos nossas almas e seguirmos a natureza; pois quando se afasta da natureza, se é obrigado a desejar e temer e ser escravo das coisas do acaso. Podemos retornar ao caminho verdadeiro, podemos ser restaurados ao nosso estado adequado. Deixe-nos então ser assim, para que possamos suportar a dor, sob qualquer forma que atacar nossos corpos, e dizer à Fortuna: “Você está lidando com um homem, procure alguém a quem você possa conquistar!”Ä [9]

15. Por essas palavras e palavras de um tipo semelhante, a malignidade da úlcera é acalmada; e espero que possa ser reduzida, e seja curada ou interrompida, e envelheça junto com o próprio paciente. No entanto, estou confortável em relação a ele. O que agora estamos discutindo é a nossa própria perda: a partida de um excelente homem velho. Pois ele viveu uma vida plena e qualquer coisa adicional pode ser desejada por ele, não por sua própria causa, mas por causa daqueles que precisam de seus serviços.

16. Ele continua cheio de vida, e se deseja que esta se prolongue não é por si mesmo, mas por aqueles a quem a sua presença é útil. Outra pessoa poderia ter acabado com esses sofrimentos, mas o nosso amigo considera não menos vil fugir da morte do que fugir para a morte. “Mas”, vem a resposta, “se as circunstâncias justificarem, ele não tomará a partida?” Claro, se ele não pode mais ser útil a ninguém, se todo o seu negócio passar a ser lidar com a dor.

17. Isto, meu querido Lucílio, é o que queremos dizer ao estudar filosofia enquanto a aplicamos, praticando-a na verdade – anote a coragem que um homem prudente possui contra a morte e contra a dor quando se vê assediado por uma e golpeado pela outra. O que devemos fazer deve ser aprendido com quem faz.

18. Até agora, lidamos com argumentos – se alguém pode resistir à dor, ou se a aproximação da morte pode abater até grandes almas. Por que discutir isso ainda mais? Aqui há um fato imediato para nós enfrentarmos – a morte não torna nosso amigo mais valioso para enfrentar a dor nem a dor para enfrentar a morte. Em vez disso, ele confia em si mesmo diante de ambas. Ele não sofre com resignação porque espera a morte, nem morre com prazer porque está cansado de sofrer. À dor ele resiste, a morte ele espera.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Ver Virgílio, Eneida, II, 428

[2] Metrodoro de Lâmpsaco foi um filósofo grego da escola epicurista. Embora um dos quatro principais defensores do epicurismo, apenas fragmentos de suas obras permanecem.

[3] Ver Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres – Livro X – Epicuro

[4] Ver outras referências a Múcio nas epístolas XXIV e LXVI.

[5]NT: Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246 a.C.). Conta a tradição que os cartagineses teriam enviado o ilustre prisioneiro a Roma para que ele convencesse seus concidadãos a cederem à paz. O combinado era que, se ele não conseguisse fazê-lo, deveria retornar a Cartago para ser executado. Régulo, ao invés de defender a paz, revelou aos romanos as condições político-econômicas dos inimigos exortando-os a tentarem um último esforço, pois Cartago não conseguiria resistir à pressão da guerra e seria derrotada. Ao término de seu discurso, honrando a sua palavra, retornou para Cartago e foi torturado e executado. Aparentemente, a tortura infligida a Régulo, que teve as pálpebras cortadas e, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos

[6]NT: Públio Rutílio Rufo foi um político da gente Rutília da República Romana eleito cônsul em 104 a.C.

[7] NT: Caio Fabrício Luscino, dito Monocular, foi eleito cônsul por duas vezes, em 283 e 278 a.C. As histórias sobre Fabrício são os padrões de austeridade e incorruptibilidade, muito parecidas com as contadas sobre Cúrio Dentato.

[8] A faixa larga (de púrpura) ornava a toga dos senadores, por oposição à faixa estreita que decorava a toga dos equestres. Séxtio, portanto, recusou a oferta de ter seu nome na lista dos membros da classe senatorial. “Divino Júlio” é referência a Júlio Cesar.

[9] NT: Os filólogos estão de acordo em haver uma lacuna. Ao final do parágrafo 14. Hense defende que a carta 98 termina no §14 e que o texto a partir do §15 seria outra, cujo inicio se perdeu. Ignora-se quem seria este “excelente homem velho” referido a seguir.

Carta 96: Sobre o enfrentamento de dificuldades

Na curta e fantástica carta 96 Sêneca volta ao tema de como lidar com dificuldades, afirmando que tudo não passa de percepção, e que sofrimento e dificuldades são partes inevitáveis da vida:

você ainda se irrita e se queixa, não entendendo que, em todos os males a que se refere, existe realmente apenas um – o fato de que você se irrita e se queixa! (…) Tais condições são feitas por ordem, e não por acidente.” (XCVI, 1-2)

Para Sêneca, uma boa vida é uma vida de lutas, de enfrentamento. Aquele que não é atingido pela Fortuna e foge dos perigos e de suas responsabilidades é um covarde.

(imagem Cave canem por Jean-Léon Gérôme)


XCVI. Sobre o enfrentamento de dificuldades

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Apesar de tudo, você ainda se irrita e se queixa, não entendendo que, em todos os males a que se refere, existe realmente apenas um – o fato de que você se irrita e se queixa! Se você me perguntar, acho que, para um homem, não há aflição além da própria circunstância de ele julgar que a natureza contém em si motivos de aflição. Não me tolerarei mais no dia em que eu achar algo intolerável. Estou doente; mas isso é parte da minha fortuna. Meus escravos caíram doentes, minha renda desapareceu, minha casa ficou insalubre, fui atacado por perdas, acidentes, fadiga e medo; isso é algo comum. Não, isso foi uma atenuação; isso é algo inevitável.

2. Tais condições são feitas por ordem, e não por acidente. Se você confia em mim, essas são minhas emoções mais íntimas que acabo de revelar: quando tudo parecia ser difícil e árduo, eu formei o meu carácter em meio de todo tipo de circunstâncias aparentemente desfavoráveis e duras, eu me treinei não apenas para obedecer a Deus, mas para concordar com Suas decisões. Eu O segui porque minha alma quer, e não porque eu deva. Nunca me acontecerá algo que eu receba com mal humor ou com um rosto retorcido. Devo pagar todos os meus impostos voluntariamente. Agora, todas as coisas que nos fazem gemer ou recuar, são parte do imposto da vida – coisas, meu querido Lucílio, que você nunca deve esperar, nem sequer pedir, isenção.

3. Era doença da bexiga que o fazia apreensivo; cartas depressivas vieram de você; você estava cada vez pior; vou tocar a verdade mais de perto e dizer que você temeu por sua vida. Mas venha, você não sabia que, quando rezava por uma longa vida, que era por isso que orava? Uma longa vida inclui todos esses problemas, assim como uma longa jornada inclui pó e lama e chuva.

4. “Mas”, você chora, “eu queria viver e, ao mesmo tempo, ser imune a todos os males”. Um grito tão efeminado não faz crédito a um homem. Considere em que atitude você receberá esta oração minha (eu a ofereço não só em um bom, mas em um nobre espírito): “Que todos os deuses proíbam que a Fortuna o mantenha em luxo!”

5. Pergunte-se voluntariamente, o que escolheria se algum deus lhe desse a escolha – uma vida em um mercado ou vida em um acampamento. E, no entanto, a vida, Lucílio, é realmente uma batalha. Por esta razão, aqueles que são jogados no mar, aqueles que seguem subindo e descendo sobre penhascos e alturas, aqueles que seguem campanhas que trazem o maior perigo, são heróis e combatentes de primeira linha; mas as pessoas que vivem em um ócio podre e fácil enquanto outras trabalham, são meras “rolinhas” covardes que se escondem dos ataques. Os homens as desprezam.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.