Carta 100: Sobre os escritos de Fabiano

A centésima carta é uma resposta de Sêneca a uma crítica de Lucílio de um texto de Papírio Fabiano. Fabiano foi professor de Sêneca quando jovem tendo sido um retórico e filósofo muito ativo nos tempos de Tibério e Calígula. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural.

A carta traz poucos ensinamentos filosóficos e foca em explicar qualidades do texto de Fabiano, que infelizmente, nos foi perdido. Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.

Nas cartas de Sêneca sempre estão presentes epigramas, isto é, textos curtos que expressam um pensamento de forma engenhosa. Geralmente tenho dificuldade em selecionar um, entre os vários, para ilustrar o artigo, mas a carta 100 não oferece nenhum. Contudo o exemplo do professor de Sêneca é um a ser seguido:

Percebe-se que ele agiu assim para o leitor saber o que agradava a ele, e não para ele agradar ao leitor. Todo o seu trabalho visa progresso moral e sabedoria, sem qualquer busca de aplausos.” (X, 11)

(Imagem Mosaico Virgílio no Museu Nacional Bardo, Tunísia)


C. Sobre os escritos de Fabiano

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você me escreve que leu com a maior disposição o trabalho de Papírio Fabiano[1] intitulado “Os deveres de um cidadão” e que não atingiu suas expectativas; então, esquecendo que você está lidando com um filósofo, você procede a criticar seu estilo de escrita. Suponha agora, que sua afirmação é verdadeira – que ele derrame, em lugar de colocar suas palavras. Deixe-me no entanto, desde o início, dizer-lhe que esta característica da qual você fala tem um charme peculiar e que é uma graça apropriada para um estilo de suave compreensão. Pois, eu mantenho, é importante se o texto tropeça ou flui. Além disso, há também uma certa deferência a este respeito, como eu deixarei claro para você:

2. Fabiano parece-me não “verter” palavras mas sim ter um “fluxo”, deixa as palavras fluírem. Tão abundante é, sem confusão, e ainda não sem velocidade.[2] Isto é, de fato, o que seu estilo declara e anuncia: que ele não passou muito tempo trabalhando o assunto e retocando-o. Mas mesmo supondo que os fatos sejam como você diz, o homem está construindo caráter ao invés de palavras e está escrevendo essas palavras mais para a mente do que para os ouvidos.

3. Além disso, se ouvisse ele lendo o próprio texto você não teria tido tempo para considerar os detalhes – todo o trabalho lhe teria entusiasmado. Por regra geral, o que satisfaz pela rapidez é de menor valor quando tomado em consideração para a leitura. No entanto, essa mesma qualidade, de atrair à primeira vista, é uma grande vantagem, não importa se uma investigação cuidadosa pode descobrir algo a criticar.

4. Se você me perguntar, devo dizer que aquele que arrebata a aprovação é maior do que aquele que a merece; e ainda sei que o último é mais seguro, eu sei que ele pode dar garantias mais confiantes para o futuro. Uma maneira meticulosa de escrever não se adequa ao filósofo, se ele é tímido quanto às palavras, quando será valente e firme? Quando realmente mostrará seu valor?

5. O estilo de Fabiano não era negligente, mas assegurado. É por isso que você não encontrará nada de qualidade inferior em seu trabalho: suas palavras são bem escolhidas e mesmo assim não são caçadas. Elas não são artificialmente inseridas e invertidas, de acordo com a moda atual, mas possuem distinção, mesmo que elas sejam distantes do discurso mais vulgar. Lá você tem ideias honestas e esplêndidas, não encadeadas em aforismos, mas faladas com maior liberdade. Devemos, naturalmente, notar passagens que não são suficientemente podadas, não construídas com cuidado suficiente e que não possuem o esmalte que está em voga hoje em dia. Mas depois de considerar o todo você verá que não encontraremos futilidades nem obscuridades resultantes do excesso de concisão.

6. Pode ser, sem dúvida, que não haja nenhuma variedade de mármores, nenhum abastecimento de água corrente de um apartamento para outro, nenhum “quarto pobre”,[3] ou qualquer outro dispositivo que o luxo acrescente quando insatisfeito com encantos simples; mas é sim, aquilo que chamamos de “uma boa casa para se viver”. Além disso, as opiniões variam em relação ao estilo. Alguns desejam que ele seja polido de toda aspereza e alguns tomam um grande prazer na maneira abrupta que intencionalmente qualquer passagem se rompe e então, se espalha mais suavemente, dispersando as palavras finais de tal forma que as frases possam soar inesperadas.

7. Leia Cícero: seu estilo tem unidade, ele se move com um ritmo modulado e é gentil sem ser efeminado. O estilo de Asínio Polião,[4] por outro lado, é “acidentado”, brusco, parando quando você menos espera.[5] E, finalmente, Cícero sempre termina de forma gradual; enquanto Polião se interrompe, exceto nos poucos casos em que ele cliva em um ritmo definido, aliás sempre de um único padrão.

8. Além disso, você diz que tudo em Fabiano parece-lhe comum e sem elevação, mas eu considero que ele é livre dessa culpa. Pois esse estilo seu não é comum, mas simplesmente calmo e ajustado à sua mente pacífica e bem ordenada – não em um nível baixo, mas em um plano uniforme. Falta a verve e os grandes rasgos de orador (os quais você está procurando) e um choque súbito de epigramas.[6] Mas olhe, por favor, em todo o trabalho, quão bem ordenado é: há uma distinção nele. Seu estilo talvez não possua, mas sugere, dignidade.

9. Mencione alguém a quem você possa classificar antes de Fabiano. Cícero, digamos, cujos livros sobre filosofia são quase tão numerosos como os de Fabiano. Concordo com este ponto, mas não é pouco ser menos do que o maior. Ou Asínio Polião, digamos. Eu vou me render novamente e me contento respondendo: “É uma distinção ser o terceiro em tão grande campo”. Você também pode incluir Tito Lívio,[7] pois Lívio escreveu os diálogos que devem ser classificados como história e obras que declaradamente lidam com a filosofia. Eu também cederei no caso de Lívio. Mas considere quantos escritores Fabiano ultrapassa, se ele é superado apenas por três, e esses três são os maiores mestres da eloquência!

10. Mas, pode-se dizer, ele não oferece tudo: embora seu estilo seja elevado, não é forte; embora ele venha em profusão, falta força e envergadura; não é translúcido, mas é lustroso. “Alguém iria falhar”, você insiste, “em encontrar nele qualquer crítica dura ao vício, quaisquer palavras corajosas diante do perigo, qualquer desafio orgulhoso da Fortuna, quaisquer ameaças desdenhosas contra o egoísmo. Desejo ver o luxo repreendido, a luxúria condenada, o capricho esmagado. Deixe-o nos mostrar o entusiasmo pela oratória, a beleza da tragédia, a sutileza da comédia”. Você deseja que ele confie naquela mais pequena das coisas, fraseologia; mas ele jurou fidelidade à grandeza de seu assunto e carrega a eloquência atrás dele como uma espécie de sombra, mas não como propósito primário.

11. Nosso autor, sem dúvida, não investigará todos os detalhes, nem submeterá a análise, nem inspecionará e enfatizará cada palavra separada. Isso eu admito. Muitas frases ficam aquém, ou deixam de atingir o alvo e, às vezes, o estilo é indolente; mas há muita luz ao longo do trabalho. Existem longos trechos que não cansam o leitor. E, finalmente, ele oferece essa qualidade de deixar claro o que ele quis dizer ao escrever, e o escreveu de coração. Percebe-se que ele agiu assim para o leitor saber o que agradava a ele, e não para ele agradar ao leitor. Todo o seu trabalho visa progresso moral e sabedoria, sem qualquer busca de aplausos.

12. Não duvido que seus escritos sejam do tipo que descrevi, embora eu esteja me recordando deles em vez de manter uma lembrança certa, e embora o tom geral de seus escritos permaneça na minha mente, não devido a leitura cuidadosa e recente, mas em esboço, como é natural de um conhecimento antigo. Contudo, certamente, sempre que o ouvi dar uma palestra pareceu-me o trabalho dele não apenas sólido, mas completo, o tipo que inspiraria os jovens de talento e despertaria a ambição de se tornarem como ele, sem fazê-los sem esperança de superá-lo; e esse método de encorajamento me parece o mais eficaz de todos. Pois é desanimador inspirar em um homem o desejo da emulação e tirar-lhe a esperança. De qualquer forma, sua escrita era fluente e, embora não fosse possível aprovar todos os detalhes, o efeito geral era nobre.

Adeus.


[1] NT: Papirio Fabiano foi um retórico e filósofo da Roma Antiga, ativo na última época de Augusto e nos tempos de Tibério e Calígula, na primeira metade do primeiro século. Foi professor de Sêneca. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural e Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.

[2] ou seja, seu estilo é como um rio em vez de uma corredeira.

[3] Os homens ricos às vezes instalavam em seus palácios uma imitação de “cabine de homem pobre”, por contraste com os outros quartos ou como um gesto para uma vida simples; Sêneca usa a frase figurativamente para determinados dispositivos em composição. Ver também carta XVIII (Volume I) e Marcial, III, 48: “Pauperis extruxit cellam, sed vendidit Olus; praedia; nunc cellam pauperis Olus habet.

[4] NT: Caio Asínio Polião (n. 65 a.C.–4 d.C.) foi um político da gente Asínia eleito cônsul em 40 a.C.. É conhecido por sua carreira como orador, poeta, autor teatral, crítico literário e, principalmente, como historiador, cuja obra, perdida, uma “História de Roma” até sua época, foi muito utilizada como fonte para as obras de Apiano e Plutarco. Polião foi ainda um patrono de Virgílio, amigo de Horácio e recebeu de ambos poemas dedicados a si.

[5] Ver Quintiliano, X, I;11: “multa in Asinio Pollione inventio, summa diligentia, adeo ut quibusdam etiam nimia videatur; et consilii et animi satis; a nitore et iucunditate Ciceronis ita longe abest, ut videri possit saeculo prior.

[6] A redação aqui se assemelha de forma impressionante à do Velho Sêneca em Controversias. II.

[7] NT: Tito Lívio, conhecido simplesmente como Lívio, é o autor da obra histórica intitulada Ab urbe condita (“Desde a fundação da cidade”), onde tenta relatar a história de Roma desde o momento tradicional da sua fundação 753 a.C. até ao início do século I da Era Cristã.