A Carta XVII de Sêneca a Lucílio é uma reflexão profunda sobre a relação entre a riqueza, a pobreza, e a sabedoria, enfatizando a importância da filosofia para alcançar uma vida plena e livre de preocupações materiais. Mais uma vez Sêneca aborda a questão da pouca importância do dinheiro para a felicidade e nos exalta a colocar o estudo da filosofia em primeiro plano, deixando a acumulação de riquezas em segundo.
Tal conselho, vindo de um dos mais ricos homens de Roma pode parecer hipócrita, e o próprio Sêneca era alvo de seus críticos, que perguntavam: “Por que você fala muito melhor do que vive?” Sêneca em seus escritos discorre sobre a possibilidade de alguém ser rico, até mesmo extremamente rico, e manter a integridade ética. Existem três critérios principais para isso, Sêneca nos diz.
O rico virtuoso deve manter a atitude correta, alheia e não-escrava em relação à sua riqueza, possuindo-a sem obrigação e disposto a desistir de tudo quando necessário: “Ele é um grande homem que usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa a prata como se fosse barro“. (Carta 98: Sobre a inconstância da fortuna)
Em segundo lugar, ele deve adquirir riquezas de maneira moralmente legítima, para que seu dinheiro não seja “manchado de sangue ”.
Em terceiro lugar, ele deve usar suas riquezas generosamente, para beneficiar os menos favorecidos do que ele – uma disposição que convida à comparação com o trabalho de caridade praticado por filantropos ricos em nosso próprio tempo.
Conciliar a riqueza com os ensinamentos de Sêneca pode ser visto como um desafio de viver segundo os princípios da filosofia enquanto se navega pelas realidades do mundo. Ele não defende a rejeição total da riqueza, mas sim um uso judicioso e virtuoso dela, sempre com a mente voltada para a virtude e o bem comum. A riqueza, para Sêneca, deve ser um instrumento para a prática da filosofia, não um fim em si mesmo, e ele mesmo tentou demonstrar isso através de sua vida e ensinamentos, embora nem sempre tenha sido visto como consistente em sua prática.
1. Elimine todas as coisas desse tipo se você é sábio. Ou melhor, para que seja sábio! Objetive uma mente sã, rápida e com toda a sua força. Se qualquer vínculo o retém, desfaça-o ou corte-o. “Mas”, diz você, “minha propriedade me atrasa, desejo fazer tal arranjo, que me sustente quando não puder mais trabalhar, para que a pobreza não seja um fardo para mim, ou eu mesmo um fardo para os outros.”
2. Você não parece, ao dizer isto, conhecer a força e o poder desse bem que você está considerando. De fato, você compreende tudo o que é importante, o grande benefício que a filosofia confere, mas você ainda não discerne com precisão suas várias funções, nem sabe quão grande é a ajuda que recebemos da filosofia em tudo. Para usar a linguagem de Cícero, “ela corre em nosso auxílio”,70 ela não só nos ajuda nas maiores questões, mas também desde a menor. Siga meu conselho, chame a sabedoria em consulta, ela irá aconselhá-lo a não sentar para sempre em seu livro-razão.
3. Sem dúvida, seu objetivo, que você deseja alcançar com tal adiamento de seus estudos, é que a pobreza não lhe aterrorize. Mas e se ela for algo a se desejar? As riquezas têm impedido muitos homens de alcançarem a sabedoria, a pobreza é desembaraçada e livre de cuidados. Quando a trombeta soa, o homem pobre sabe que não está sendo atacado, quando há um grito de “fogo”, ele só procura uma maneira de escapar e não se pergunta o que pode salvar; se o homem pobre deve ir para o mar, o porto não ressoa, nem os cais são abalados com o séquito de um indivíduo. Nenhuma multidão de escravos envolve o homem pobre, escravos para cujas bocas o mestre deve cobiçar as plantações férteis de seus vizinhos.
4. É fácil preencher poucos estômagos, quando eles são bem treinados e anseiam nada mais, a não ser serem preenchidos. A fome custa pouco. O escrúpulo custa muito. A pobreza está satisfeita com o preenchimento de necessidades urgentes. Por que, então, você deve rejeitar a Filosofia como uma amiga?
5. Mesmo o homem rico segue seu caminho quando é sensato. Se você deseja ter tempo livre para sua mente, seja um pobre homem ou se assemelhe a um pobre homem. O estudo não pode ser útil a menos que você se esforce para viver simplesmente, e viver simplesmente é pobreza voluntária. Então, fora com todas as desculpas como: “Eu ainda não tenho o suficiente, quando eu ganhar a quantidade desejada, então vou me dedicar inteiramente à filosofia.” E, no entanto, este ideal, que você está adiando e colocando em segundo lugar, deve ser assegurado em primeiro lugar. Você deve começar com ele. Você retruca: “Eu desejo adquirir algo para viver.” Sim, mas aprenda enquanto você está adquirindo, pois se alguma coisa o impede de viver nobremente, nada pode impedi-lo de morrer nobremente.
6. Não há nenhuma razão pela qual a pobreza deva nos afastar da filosofia, não, nem mesmo a real carestia. Pois, quando se aprofunda na sabedoria, podemos suportar até a fome. Os homens suportaram a fome quando suas cidades foram sitiadas e que outra recompensa por sua resistência eles obtiveram a não ser não cair sob o poder do conquistador? Quão maior é a promessa de liberdade eterna e a certeza de que não precisamos temer nem aos deuses nem aos homens! Mesmo que nós morramos de fome, devemos alcançar essa meta.
7. Os exércitos suportam toda a maneira de carestia, vivem de raízes e resistem à fome com alimentos repugnantes demais para mencionar.71 Tudo isso eles têm sofrido para ganhar um reino e, o que é mais assombroso, ganhar um reino que será de outro. Será que algum homem hesitaria em suportar a pobreza a fim de libertar sua mente da loucura? Portanto, não se deve procurar primeiro acumular riquezas. Pode-se chegar na filosofia, mesmo sem dinheiro para a passagem.
8. É mesmo assim. Depois de ter possuído todas as outras coisas, também deseja possuir sabedoria? É a filosofia o último requisito da vida, uma espécie de suplemento? Não, seu plano deve ser este: ser um filósofo agora, quer você tenha alguma coisa, quer não. Se você já tem alguma coisa, como você sabe que já não tem muito? Mas se você não tem nada, procure o discernimento primeiro, antes de qualquer outra coisa.
9. “Mas,” você diz, “eu irei carecer das necessidades da vida.” Em primeiro lugar, você não pode carecer delas, porque a natureza exige pouco e o homem sábio adapta suas necessidades à natureza. Mas se maior necessidade chegar, o sábio rapidamente se despedirá da vida e deixará de ser um problema para si mesmo. Se, no entanto, seus meios de existência forem escassos e reduzidos, ele fará o melhor deles, sem se angustiar ou se preocupar com nada mais do que com as necessidades básicas. Fará justiça ao seu ventre e aos seus ombros com espírito livre e feliz, rir-se-á da agitação dos homens ricos e dos caminhos confusos daqueles que se abalam em busca da riqueza,
10. e dirá: “Por que, por sua própria vontade, adia a vida real para o futuro distante? Para que algum juro seja depositado, ou por algum dividendo futuro ou para um lugar no testamento de algum velho rico, quando você pode ser rico aqui e agora? A sabedoria oferece a riqueza à vista e paga em dobro àqueles em cujos olhos ela tornou a riqueza supérflua.” Estes comentários referem-se a outros homens; você está mais perto da classe rica. Mude a sua idade e você terá muito.72 Mas em todas as idades, o que é necessário permanece o mesmo.
11. Eu poderia encerrar minha carta neste momento se eu não o tivesse acostumando mal. Não se pode cumprimentar a realeza sem trazer um presente e no seu caso eu não posso dizer adeus sem pagar um preço. Mas o que será? Tomarei emprestado de Epicuro: “A aquisição de riquezas tem sido para muitos homens não um fim, mas uma mudança, de problemas”.73
12. Não me admiro. Pois a culpa não está na riqueza, mas na própria mente. Aquilo que fez da pobreza um fardo para nós, torna as riquezas também um fardo. Assim como pouco importa se você coloca um homem doente em uma cama de madeira ou sobre uma cama de ouro, pois onde quer que ele seja movido ele vai levar sua doença com ele, também não é preciso se importar se a mente doente é outorgada às riquezas ou à pobreza. O padecimento vai com o homem.
71 Ver ensaio Sobre a Ira III, XX, 2 onde Sêneca relata como os soldados de Cambises, devido à imprudência deste soberano, se viram forçados a comer as solas de seus sapatos cozidas ao fogo.
72 Isto é, imagine-se jovem. Outra intepretação é mude de época, verá que tem mais que seus antepassados.
Na nona carta Sêneca discorre sobre a complexa relação entre autossuficiência e a necessidade de amizade, refletindo sobre as ideias de Epicuro e os estoicos.
Em todo o texto o termo “sábio” é repetido inúmeras vezes. É importante entender que o conceito “sábio” para os filósofos antigos é um ideal a ser atingido, e não alguém real. Segundo Sêneca o sábio se equivale aos deuses, com a única distinção do sábio ser humano e mortal. É um humano perfeito no auge das qualidades.
A carta também explica o conceito estoico de indiferente: “Se ele perde uma mão por doença ou guerra, ou se algum acidente fere um ou ambos os olhos, ele ficará satisfeito com o que resta, tendo tanto prazer em seu corpo debilitado e mutilado como ele tinha quando era sadio. Mas enquanto ele não se queixa por esses membros ausentes, ele prefere não os perder.” (IX, §4)
Autossuficiência e Amizade: Sêneca começa discutindo a visão de Epicuro sobre a autossuficiência do sábio e como isso se relaciona com a necessidade de amizades. Epicuro critica a ideia de que o sábio não precisa de amigos, argumentando que mesmo o sábio deseja companhia.
Felicidade e Posse Interna: A felicidade genuína vem de dentro, não depende de bens externos ou mesmo de amigos. O sábio pode perder tudo e ainda assim se considerar completo.
Crítica ao Materialismo: Sêneca critica a visão de que a posse material ou poder pode trazer felicidade, destacando que a verdadeira felicidade reside na satisfação interna.
Sêneca aconselha “Para que você possa ser amado, ame.” e nos alerta sobre o risco das amizades por interesse: “Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará por interesse.” (IX, §6 e 9 )
Assim, embora o sábio seja autossuficiente, isso não exclui a busca por amizades verdadeiras que enriquecem a vida sem depender delas para a felicidade. Sêneca nos a refletir sobre como a felicidade e a paz interior são cultivadas internamente, independentemente das perdas ou ganhos externos.
1. Você deseja saber se Epicuro está certo quando, em uma de suas cartas, repreende aqueles que sustentam que o sábio é autossuficiente e por isso não precisa de amizades.33 Esta é a objeção levantada por Epicuro contra Estilpo e aqueles que acreditam que o bem supremo é uma alma insensível e impassível.
2. Estamos limitados a encontrar um duplo significado se tentarmos expressar resumidamente o termo grego apatheia (ἀπάθεια) em uma única palavra, tomando-o pela palavra latina impatientia (impaciência). Porque pode ser entendida no sentido oposto ao que desejamos que ela tenha. O que queremos dizer é uma alma que rejeita qualquer sensação de maldade, mas as pessoas interpretarão a ideia como a de uma alma que não pode suportar nenhum mal.34 Considere, portanto, se não é melhor dizer “uma alma invulnerável, que não pode ser ofendida” ou “uma alma inteiramente além do reino do sofrimento”.
3. Há essa diferença entre nós e a outra escola:35 nosso sábio ideal sente seus problemas, mas os supera; o homem sábio deles nem sequer os sente. Mas nós e eles temos essa ideia, que o sábio é autossuficiente. No entanto, ele deseja amigos, vizinhos e associados, não importa o quanto ele seja suficiente em si mesmo.
4. E perceba quão autossuficiente ele é; pois de vez em quando ele pode se contentar com apenas uma parte de si. Se ele perde uma mão por doença ou guerra, ou se algum acidente fere um ou ambos os olhos, ele ficará satisfeito com o que resta, tendo tanto prazer em seu corpo debilitado e mutilado como ele tinha quando era sadio. Mas enquanto ele não se queixa por esses membros ausentes, ele prefere não os perder.
5. Nesse sentido o homem sábio é autossuficiente, pode prescindir de amigos, mas não deseja ficar sem eles. Quando eu digo “pode”, quero dizer isto: ele sofre a perda de um amigo com serenidade. Mas a ele nunca faltam amigos, pois está em seu próprio controle quão breve ele vai repor a perda. Assim como Fídias,36 se ele perdesse uma estátua, imediatamente esculpiria outra, da mesma forma nossa habilidade na arte de fazer amizades pode preencher o lugar de um amigo perdido.
6. Se você perguntar como alguém pode fazer um amigo rapidamente, vou dizer-lhe, desde que concordemos que eu possa pagar a minha dívida de uma vez e zerar a conta e, no que se refere a esta carta, estaremos quites. Hecato, diz: “Eu posso mostrar-lhe uma poção, composta sem drogas, ervas ou qualquer feitiço de bruxa: Para que você possa ser amado, ame!”. Agora, há um grande prazer, não só em manter amizades velhas e estabelecidas, mas também na aquisição de novas.
7. Existe a mesma relação entre conquistar um novo amigo e já ter conquistado, como há entre o fazendeiro que semeia e o fazendeiro que colhe. O filósofo Átalo costumava dizer: “É mais agradável fazer um amigo do que mantê-lo, pois é mais agradável ao artista pintar do que ter acabado de pintar”. Quando alguém está ocupado e absorvido em seu trabalho, a própria absorção dá grande prazer; mas quando alguém retira a mão da obra-prima concluída, o prazer não é tão penetrante. Daí em diante, é dos frutos de sua arte que ele desfruta; era a própria arte que ele apreciava enquanto pintava. No caso de nossos filhos, na juventude produzem os frutos mais abundantes, mas na infância, eram mais doces e agradáveis.
8. Voltemos agora à questão. O homem sábio, eu digo, autossuficiente como é, no entanto, deseja amigos apenas para o propósito de praticar a amizade, a fim de que suas qualidades nobres não permaneçam dormentes. Não, todavia, para o propósito mencionado por Epicuro na carta citada acima: “Que haja alguém para sentar-se com ele enquanto doente, para ajudá-lo quando ele está na prisão ou em necessidade”, mas sim para que ele possa ter alguém em cujo leito hospitalar ele próprio possa sentar, alguém prisioneiro em mãos hostis que ele mesmo possa libertar. Aquele que só pensa em si e estabelece amizades por razão egoísta, não pensa corretamente. O fim será como o início: se ele faz amizade com alguém que poderia libertá-lo da escravidão, ao primeiro barulho da corrente, tal amigo o abandonará.
9. Estas são as chamadas “amizades de céu de brigadeiro”37; aquele que é escolhido por causa da sua utilidade será satisfatório apenas enquanto for útil. Por isso os homens prósperos são protegidos por tropas de amigos, mas aqueles que faliram ficam em meio à vasta solidão, seus “amigos” fugindo da própria crise que está a testar seus valores. Por isso, também, vemos muitos casos vergonhosos de pessoas que, por medo, desertam ou traem. O começo e o fim não podem senão harmonizar. Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará a amizade por interesse. Um homem será atraído por alguma recompensa oferecida em troca de sua amizade se ele for atraído por algo na amizade além da amizade em si.
10. Para que propósito, então, eu faço um homem meu amigo? A fim de ter alguém para quem eu possa dar minha vida, que eu possa seguir para o exílio, alguém por quem eu possa apostar minha própria vida e pagar a promessa depois. A amizade que você retrata é uma negociata e não uma amizade. Ela considera apenas a conveniência e olha apenas para os resultados.
11. Sem dúvida, o sentimento de um amante tem algo semelhante à amizade, pode-se chamá-lo de amizade enlouquecida. Mas, embora isso seja verdade, alguém ama por vislumbrar lucro ou promoção ou renome? O amor puro, livre de todas as outras coisas, excita a alma com o desejo pelo objeto da beleza, não sem a esperança de uma correspondência ao afeto. E então? Pode uma causa que é mais elevada produzir uma paixão que é moralmente condenável?
12. Você pode replicar: “Estamos agora discutindo a questão de saber se a amizade deve ser cultivada por sua própria causa”. Pelo contrário, nada mais urgente exige demonstração, pois se a amizade deve ser procurada por si mesma, pode buscá-la quem seja autossuficiente. “Como, então,” você pergunta, “ele a procura?” Precisamente como ele procura um objeto de grande beleza, não atraído a ele pelo desejo de lucro, nem mesmo assustado pela instabilidade da Fortuna. Aquele que procura a amizade com objetivo interesseiro, despoja-a de toda a sua nobreza.
13. “O homem sábio é autossuficiente”. Essa frase, meu caro Lucílio, é incorretamente explicada por muitos porque eles retiram o homem sábio do mundo e forçam-no a habitar dentro de sua própria pele. Mas devemos marcar com cuidado o que significa essa sentença e até onde ela se aplica. O homem sábio é autossuficiente para uma existência feliz, mas não para a mera existência. Pois ele precisa de muita assistência para a mera existência, mas para uma existência feliz ele precisa apenas de uma alma sã e reta, que menospreze a Fortuna.
14. Quero também dizer a você uma das distinções de Crisipo, que declara que o sábio não deseja nada, ao mesmo tempo que precisa de muitas coisas.38 “Por outro lado”, diz ele, “nada é necessário para o tolo, pois ele não entende como usar nenhuma coisa, mas ele deseja tudo.”39 O homem sábio precisa de mãos, olhos e muitas coisas que são necessárias para seu uso diário; mas a ele nada falta. Porque o desejo implicaria uma necessidade não atendida e nada é necessário ao homem sábio.
15. Portanto, embora ele seja autossuficiente, ainda precisa de amigos. Ele anseia tantos amigos quanto possível, não, no entanto, para que ele possa viver feliz, pois ele viverá feliz mesmo sem amigos. O bem supremo não requer nenhum auxílio prático de fora. Ele é desenvolvido em casa e surge inteiramente dentro de si. Se o bem procura qualquer porção de si mesmo no exterior, começa a estar sujeito ao jogo da Fortuna.
16. As pessoas podem dizer: “Mas que tipo de existência o sábio terá, se ele for deixado sem amigos quando jogado na prisão, ou quando encalhado em alguma nação estrangeira, ou quando retido em uma longa viagem, ou quando em lugar ermo?” Sua vida será como a de Júpiter que, em meio à dissolução do mundo, quando os deuses se confundem na unidade e a natureza descansa por um pouco, pode se retirar em si mesmo e entregar-se a seus próprios pensamentos.40 Da mesma maneira o sábio agirá: ele se retirará em si mesmo e viverá consigo mesmo.
17. Enquanto for capaz de administrar seus negócios de acordo com seu julgamento, será autossuficiente; enquanto se casa com uma esposa, é autossuficiente; enquanto educa os filhos, é autossuficiente; e ainda assim não poderia viver se tivesse que viver sem a sociedade dos homens. Conclamações naturais e não suas próprias necessidades egoístas, o atraem às amizades. Pois, assim como outras coisas têm para nós uma atratividade inerente, também tem a amizade. Como odiamos a solidão e ansiamos por sociedade, à medida que a natureza atrai os homens uns para os outros, existe também uma atração que nos faz desejosos de amizade.
18. Não obstante, embora o sábio possa amar seus amigos com carinho, muitas vezes contrapondo-os com ele mesmo e colocando-os à frente de si próprio, todo o amor será limitado a seu próprio ser e ele falará as palavras que foram faladas pelo próprio Estilpo, a quem Epicuro critica em sua carta. Pois Estilpo, depois que seu país foi capturado e seus filhos e sua esposa mortos, ao sair da desolação geral só e mesmo assim feliz, falou da seguinte maneira para Demétrio,41 conhecido como “Cidade Sitiada” por causa da destruição que ele trouxe sobre elas, em resposta a pergunta se ele tinha perdido alguma coisa: “Eu tenho todos os meus bens comigo!”
19. Isto é ser um bravo e corajoso homem! O inimigo conquistou, mas Estilpo conquistou seu conquistador. “Não perdi nada!” Sim, ele forçou Demétrio a se perguntar se ele mesmo havia conquistado algo, afinal. “Meus bens estão todos comigo!” Em outras palavras, ele não considerou nada que pudesse ser tirado dele como sendo um bem. Ficamos maravilhados com certos animais porque eles podem passar pelo fogo e não sofrer danos corporais, mas quão mais maravilhoso é um homem que marchou ileso e incólume através do fogo, da espada e da devastação! Você entende agora o quão mais fácil é conquistar uma tribo inteira do que conquistar um homem? Este dito de Estilpo é comum com o estoicismo; o estoico também pode carregar de forma ilesa seus bens através de cidades devastadas pois ele é autossuficiente. Basta-se a si mesmo: tais são os limites que ele estabelece para sua própria felicidade.
20. Mas você não deve pensar que nossa escola sozinha pode proferir palavras nobres. O próprio Epicuro, o crítico de Estilpo, usava semelhante linguagem. Coloco ao meu crédito, embora eu já tenha quitado minha dívida para o dia de hoje. Ele diz: “Quem não considera o que tem como riqueza mais ampla, é infeliz, embora seja o senhor do mundo inteiro”. Ou, se a seguinte lhe parece uma frase mais adequada, porque devemos traduzir o significado e não as meras palavras: “Um homem pode governar o mundo e ainda ser infeliz se ele não se sente supremamente feliz”.
21. Contudo, para que você saiba que esses sentimentos são universais, propostos, certamente, pela natureza, você encontrará em um dos poetas cômicos esta estrofe:
O que importa a situação em que você se encontra, se ela é ruim a seus próprios olhos?
22. Você poderia dizer; “Se, o homem rico, senhor de muitos, mas escravo de ganância por mais, chamar-se de feliz, sua própria opinião o tornará feliz?” Não importa o que ele diz, mas o que ele sente; não como se sente em um dia específico, mas como se sente em todos os momentos. Não há razão porém, para que você tema que este grande privilégio caia em mãos indignas; somente o sábio está satisfeito com o que tem. O insensato está sempre perturbado com o descontentamento consigo mesmo.
36Fídias foi um célebre escultor da Grécia Antiga. Sua biografia é cheia de lacunas e incertezas e o que se tem como certo é que ele foi o autor de duas das mais famosas estátuas da Antiguidade, a Atena Partenos e o Zeus Olímpico, e que sob a proteção de Péricles encarregou-se da supervisão de um vasto programa construtivo em Atenas, concentrado na reedificação da Acrópole, devastada pelos persas em 480 a.C.
38A distinção baseia-se no significado de egeret “estar em falta de” algo indispensável, e opus esse, “ter necessidade de” algo do qual se pode prescindir.
39 Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro VII.
40 Alusão à teoria estoica da conflagração (ekpyrosis). Segundo esta teoria estoica, o mundo se renovaria de tempos em tempos, o mundo se resumiria ao fogo artífice (Logos = Zeus = Inteligência universal) e todos os demais deuses seriam tragados nesta unidade primordial. O processo cosmogônico daria origem a outro mundo que, para alguns estoicos, seria uma repetição de tudo o que vivemos. Daí que tudo aconteceria novamente, e todos renasceriam, mas (como disse Sêneca numa carta), sem qualquer lembrança de uma vida anterior. Então, se esta teoria fosse verdade, esta poderia ser nossa bilionésima vida, e pra nós não faria diferença, pois não teríamos consciência disso. Essa teoria reflete a concepção grega do eterno retorno. Ver George Stock, Estoicismo.
41Demétrio I (337 a.C. — 283 a.C.), cognominado Poliórcetes, foi um rei da Macedônia. Seu apelido, “cidade sitiada” (Poliorketes), refere-se à sua habilidade militar em sitiar e conquistar cidades.
42Autor desconhecido, talvez uma adaptação do grego. Alguns eruditos atribuem o verso a Publílio Siro.
“Enfermaria nº 6” é o conto mais famoso de Tchekhov. A história é ambientada em um hospital provincial e explora o conflito filosófico entre Ivan Dmitritch, um paciente, e Andrey Ragin, médico-chefe do hospital. Ivan denuncia a injustiça que vê em toda parte, enquanto o médico insiste em ignorar a injustiça e outros males; parcialmente como resultado desta forma de pensar, ele negligencia resolver as péssimas condições da ala psiquiátrica.
O conto pode ser visto como uma analogia ao comportamento humano, que, em vez de lidar com os problemas, opta por vê-los à distância e ignorá-los. É uma história de ideias sobre a vontade, ação e inação, e o lugar do indivíduo na sociedade. Gira em torno do principal dilema de Tchekhov – Será possível o progresso? Ou em milhares de anos apenas os aspectos superficiais da vida terão mudado, enquanto os instintos humanos básicos permanecerão os mesmos?
No conto, o paciente desafia o estoicismo do médico-chefe e abala os fundamentos de sua crença. O médico nunca sofreu, diz o paciente, e portanto suas convicções sobre os ciclos intermináveis e repetitivos da vida e da história só podem ser acadêmicas, teóricas e, portanto, sem sentido. O Dr. Ragin é eloquente em sua defesa do estoicismo:
“A vida é uma armadilha vexatória; quando um homem pensante atinge a maturidade e atinge a plena consciência, não pode deixar de sentir que está em uma armadilha da qual não há como escapar. De fato, ele é convocado sem sua escolha por circunstâncias fortuitas de não-existência para a vida… Para quê? Ele tenta descobrir o significado e o objeto de sua existência … Se se considera que o objetivo da medicina consiste em aliviar a dor, surge a pergunta: Para quê aliviá-la? Em primeiro lugar, dizem que a dor leva o homem à perfeição e, em segundo, que se a humanidade aprender, efetivamente, a aliviar as suas dores com a ajuda de pílulas e remédios, abandonará por completo a religião e a filosofia, em que até agora encontrara não apenas defesa contra todos os males mas também a felicidade.” (Enfermaria nº 6, VI)
Toda escolha, diz Ragin, é uma não escolha – sem sentido em um mundo definido pelo nascimento casual e pela morte inevitável. Um quarto aconchegante junto a um fogo é igual a uma cela de prisão, ele justifica, porque a aleatoriedade que produziu ambos não tem nenhum significado ou valor inerente. O mundo externo não tem nenhum propósito, nenhum futuro e nenhum significado; e a única expressão válida da humanidade é a aceitação incondicional desta realidade. Há apenas duas qualidades admiráveis do homem – a busca da compreensão e o desprezo pela vaidade. “O homem verdadeiramente sábio não se surpreende com nada“, diz Ragin.
Dr. Ragin: — Você é um homem que sabe pensar. Em qualquer situação pode encontrar tranquilidade interior. O pensamento livre e profundo, que aspira a compreender a vida, e o desprezo total pela estúpida vaidade humana são os dois bens supremos que o homem conhece, e você pode possuí-los ainda que viva atrás de grades. Diógenes viveu num barril, mas, apesar disso, foi mais feliz que todos os reis da Terra. Ivan Dmitritch: — Diógenes não precisava de um escritório e uma casa aquecida; a Grécia é um país quente; podia permanecer no seu tonel comendo laranjas e azeitonas. Mas se tivesse vivido na Rússia, já não digo em Dezembro, mas mesmo em Maio, teria pedido uma casa. Ficaria gelado. Dr. Ragin:— Não. Uma pessoa pode ser insensível ao frio como a qualquer outra dor. Marco Aurélio diz: “Uma dor é uma ideia vívida de dor; faça um esforço de vontade para mudar essa ideia, rejeitá-la, parar de reclamar e a dor desaparecerá”. Isso é verdade. O homem sábio, ou simplesmente o homem reflexivo e pensativo, distingue-se precisamente por seu desprezo pelo sofrimento; está sempre contente e surpreso por nada. (Enfermaria nº 6, IX)
O doente mental, a única pessoa inteligente em toda a cidade, mostra o cinismo e falhas do falso estoicismo do médico:
Ivan Dmitritch:— Os estoicos a que você se refere eram homens notáveis, mas a sua doutrina estagnou há dois mil anos e não avançou mais, nem avançará, porque não é praticado nem tem vida. Apenas obteve um certo êxito entre uma minoria que passa o seu tempo a estudar e a ruminar toda a espécie de doutrinas; a maior parte das pessoas não chegou a compreendê-la. Uma doutrina que preconiza a indiferença em relação às riquezas, às comodidades da vida, e o desdém pelos sofrimentos e a morte, é totalmente incompreensível para a imensa maioria, já que esta não conheceu nunca as riquezas nem as comodidades. E desprezar o sofrimento significaria para eles desprezar a própria vida, visto que o homem na sua essência é feito de sensações de fome, frio, desconsiderações, derrotas, e um medo perante a morte à semelhança de Hamlet. Nestas sensações está encerrada a vida inteira: pode cansar-nos, podemos odiá-la, mas não desprezá-la. Assim, portanto, repito: a doutrina dos estoicos nunca poderá ter futuro. Pelo contrário, aquilo que progride, conforme pode observar, desde o princípio do mundo até ao dia de hoje, é a luta, a sensibilidade perante a dor, a capacidade de responder às excitações… (Enfermaria nº 6, X)
Fazer vista grossa ao sofrimento com base em sua perpetuidade é de alguma forma errado ou mesmo imoral? Será que o sofrimento nega automaticamente a teoria filosófica? Se Ragin chora quando seu dedo é preso em uma porta, isso significa que ele tem instintivamente, e por isso corretamente, descartado o estoicismo?
O progressivo e inevitável declínio do Dr. Ragin é doloroso de se observar. Quando o próprio médico é lá internado, ele percebe a falácia de sua filosofia e, tarde demais, entende que o mal deve ser enfrentado. O livro, como a instituição em que é ambientado, é frio, insensível e hostil. Somente as idéias e o debate entre Dr. Ragin e Ivan Dmitrich têm vida.
Cícero se definia como um cético acadêmico, isto é, um seguidor da Academia de Platão. Além disso particularmente se apunha à alegação epistemológica estoica de que a certeza absoluta de certas impressões era possível. Entretanto, foi solidário defensor da ética estoica. Com veremos neste livro, ele baseava seus ensinamentos éticos essencialmente nas premissas estoicas de que a virtude é a responsável pela felicidade e a tranquilidade espiritual. Hoje é uma de nossas fontes mais detalhadas sobre a doutrina do estoicismo.
Outro elemento que caracteriza Cícero como um dos campeões do estoicismo é sua forte oposição ao epicurismo. É importante notar aqui que Cícero tinha a tendência de reduzir Epicuro a uma filosofia que busca apenas prazer com o objetivo de gratificação instantânea.
No ano 44 a.C., Cícero estava em seus sessenta anos, afastado do poder político pela ditadura de Júlio César. Ele se dedicou a escrever para aliviar a dor do exílio e a recente perda de sua amada filha. Em um período de meses, ele produziu alguns dos mais lidos e influentes ensaios já escritos sobre assuntos que vão desde a natureza dos deuses e o papel adequado do governo até as alegrias de envelhecer e o segredo para encontrar a felicidade em vida. Entre estes trabalhos estava o breve ensaio Sobre a Amizade dedicado a Ático, seu melhor amigo.
Ele e Cícero tornaram-se amigos quando homens jovens e assim permaneceram durante todas suas vidas. Cícero dedicou-se à política romana e passou a maior parte de seus anos naquela cidade, uma época de tremenda agitação e guerra civil. Ático, por outro lado, observava a política romana a partir da distância segura de Atenas, enquanto permanecia em contato próximo com os principais homens de ambos os lados em Roma. Mesmo estando frequentemente separados, Cícero e Ático trocaram cartas ao longo dos anos que revelam uma amizade de rara devoção e calorosa afeição.
Sobre a Amizade é sem dúvida o melhor livro já escrito sobre o assunto. O conselho sincero que ele dá é honesto e comovente de uma forma que poucas obras dos tempos antigos são. Alguns romanos tinham visto a amizade em termos principalmente práticos como uma relação entre as pessoas para vantagem mútua. Cícero não nega que tais amizades sejam importantes, mas ele vai além do utilitarismo para enaltecer um tipo mais profundo de amizade em que duas pessoas se encontram um no outro sem buscar lucro ou vantagem do outro. Filósofos gregos como Platão e Aristóteles haviam escrito sobre a amizade centenas de anos antes. De fato, Cícero foi profundamente influenciado por seus escritos. Mas Cícero vai além de seus predecessores e cria nesta sucinta obra um guia convincente para encontrar, manter e apreciar essas pessoas em nossas vidas que valorizamos não pelo que elas podem nos dar, mas porque encontramos nelas uma alma semelhante a nossa. Sobre a Amizade está repleto de conselhos atemporais sobre amizade. Entre os melhores estão:
1. Existem diferentes tipos de amizades: Cícero reconhece que há muitas pessoas boas com quem entramos em contato em nossas vidas que chamamos de amigos, sejam eles sócios de negócios, vizinhos ou qualquer tipo de conhecidos. Mas ele faz uma distinção fundamental entre estas amizades comuns e bastante úteis e aqueles raros amigos aos quais nos ligamos em um nível muito mais profundo. Estas amizades especiais são necessariamente raras, pois exigem muito tempo e investimento de nós mesmos. Mas estes são os amigos que mudam profundamente nossas vidas, assim como nós mudamos a deles. Cícero escreve: “Com exceção da sabedoria, estou inclinado a acreditar que os deuses imortais não deram nada melhor à humanidade do que a amizade“. (§VI, 20)
2. Somente pessoas boas podem ser verdadeiras amigas: Pessoas de pobre caráter moral podem ter amigos, mas só podem ser amigos de utilidade pela simples razão de que a amizade real requer confiança, sabedoria e benevolência de base. Os tiranos e canalhas podem usar uns aos outros, assim como podem usar pessoas boas, mas as pessoas más nunca podem encontrar uma amizade verdadeira na vida.
3. Devemos escolher nossos amigos com cuidado: Temos que ser deliberados na escolha de nossas amizades pois pode ser muito confuso e doloroso descobrir que o suposto amigo não era a pessoa que pensávamos. Devemos ter calma, mover-nos lentamente e descobrir o que está no fundo do coração de uma pessoa antes de fazer o investimento pessoal que a verdadeira amizade exige.
4. Faça novos amigos, mas mantenha os antigos: Ninguém é um amigo mais agradável do que alguém que está com você desde o início. Mas não se limite aos companheiros da juventude, cuja amizade pode ter sido baseada em interesses não mais partilhados por você. Esteja sempre aberto a novas amizades, inclusive aquelas com pessoas mais jovens. Tanto você quanto eles serão privilegiados por isso.
5. Os amigos fazem de você uma pessoa melhor: Ninguém pode prosperar isoladamente. Deixados por nossa conta, estagnaremos e nos tornaremos incapazes de nos ver como somos. Um verdadeiro amigo o desafiará a se tornar melhor porque ele aprecia o potencial dentro de você.
6. Os amigos são francos: Os amigos sempre lhe dirão o que você precisa ouvir, não o que você quer que eles digam. Há muitas pessoas no mundo que o lisonjearão para seus próprios propósitos, mas somente um verdadeiro amigo – ou um inimigo – arriscará sua raiva dizendo-lhe a verdade. E sendo você mesmo uma boa pessoa, você deve ouvir seus amigos e acolher o que eles têm a dizer.
7. A recompensa da amizade é a própria amizade: Cícero reconhece que há vantagens práticas na amizade – conselho, companheirismo, apoio em tempos difíceis – mas em seu coração a verdadeira amizade não é uma relação de negócios. Ela não busca reembolso e não mantém contabilização. Não somos tão mesquinhos a ponto de “cobrar juros sobre nossos favores”, escreve Cícero. Ele acrescenta: “A recompensa da amizade é a própria amizade“.
8. Um amigo nunca pede que se faça algo errado: Um amigo arriscará muito por outro, mas não a honra. Se um amigo lhe pede para mentir, trapacear ou fazer algo vergonhoso, considere cuidadosamente se essa pessoa é quem você realmente pensava que era. Como a amizade é baseada na virtude, ela não pode existir quando se espera o mal de uma amizade.
9. As amizades podem mudar com o tempo: As amizades da juventude não serão as mesmas na velhice – nem deveriam ser. A vida muda todos nós com o tempo, mas os valores e qualidades essenciais que nos atraíram aos amigos em anos passados podem sobreviver ao teste do tempo. E, assim como o vinho, a melhor das amizades vai melhorar com a idade.
10. Sem amigos, não vale a pena viver a vida: Ou como diz Cícero: “Suponha que um deus o leve para longe, para um lugar onde lhe foi concedida uma abundância de todo bem material da natureza, mas lhe negue a possibilidade de alguma vez ver um ser humano. Quem teria a alma suficientemente temperada para suportar esse gênero de vida, e para evitar que a solidão retirasse de seus prazeres todo o seu sabor?” (§XXIII, 87-88)
O livro Sobre a Amizade teve uma tremenda influência sobre escritores nos tempos que o seguiram, desde Santo Agostinho até o poeta italiano Dante e mais além Thomas Jefferson. Não é menos valioso hoje em dia. Em uma era moderna da tecnologia e um foco implacável no eu que ameaça a própria ideia de amizades profundas e duradouras, Cícero tem mais a nos dizer do que nunca.
A carta 103 tem um tom mais amargo. Nela Sêneca nos alerta que o maior perigo que corremos não vem da natureza, acidentes ou doença, mas sim de outras pessoas, pois “o homem se delicia em arruinar o homem.” (CIII; §2)
Contra esse risco não temos certeza de proteção, contudo Sêneca recomenda sempre ajudar e nunca prejudicar nosso próximo:
“Evite, nas suas relações com os outros, prejudicar, para que não seja prejudicado. Você deve se alegrar com todos em suas alegrias e simpatizar com todos em seus problemas, lembrando dos serviços que deve prestar e os perigos que deve evitar.” (CIII; §2)
E a filosofia pode ser grande aliada, se a usarmos corretamente, ou seja, para corrigir nossos defeitos e não como ferramenta para apontar a falha dos outros.
Imagem: A Morte de Júlio César por Vincenzo Camuccini. César passou ileso por inúmeras conquistas militares e pela guerra civil, para acabar morto por seus colegas no senado.
1. Por que você está procurando por problemas que talvez possam vir a seu encontro, mas que, de fato, podem não chegar a seu caminho? Quero dizer incêndios, edifícios caindo e outros acidentes do tipo que são meros eventos e não tramas contra nós, sem o propósito deliberado de nos causarem mal. Melhor faria em procurar evitar os perigos reais que nos espreitam na intenção de nos apanhar à traição. Os acidentes, embora possam ser sérios, são poucos e raros – como naufragar ou cair de uma carruagem. Mas é do próximo que vem o perigo cotidiano de um homem. Equipe-se contra isso, vigie isso com um olho atento. Não há nenhum mal mais frequente, nenhum mal mais persistente, nenhum mal mais insinuante.
2. Mesmo a tempestade, antes de se iniciar, dá um aviso; casas trincam antes de caírem; e a fumaça é o precursor do fogo. Mas o dano provocado pelo homem é instantâneo e de quanto mais próximo ele vem, mais cuidadosamente está escondido. Você está errado em confiar na fisionomia daqueles que encontra. Eles têm o aspecto de homens, mas almas de bestas. A única diferença é que os animais selvagens lhe causam dano ao primeiro encontro, aqueles que passaram por nós não voltam para nos perseguir. Pois nada os incita a causar dano, exceto quando a necessidade os obriga: é a fome ou o medo que os instiga a lutar. Mas o homem se delicia em arruinar o homem.
3. Você deve, no entanto, refletir o perigo que você corre na mão do homem, para que você possa deduzir qual é o seu dever enquanto homem. Evite, nas suas relações com os outros, prejudicar, para que não seja prejudicado. Você deve se alegrar com todos em suas alegrias e simpatizar com todos em seus problemas, lembrando dos serviços que deve prestar e os perigos que deve evitar.
4. E o que você pode alcançar vivendo uma vida dessas? Não necessariamente a imunidade contra danos, mas pelo menos liberdade de engano; pelo menos consegue que não o tomem por tolo. Dessa forma, quando for capaz, refugie-se na filosofia: ela irá cuidar de você em seu seio e em seu santuário você estará seguro ou, pelo menos, mais seguro do que antes. As pessoas colidem apenas quando viajam pelo mesmo caminho.
5. Mas essa mesma filosofia nunca deve ser alardeada por você; pois a filosofia quando empregada com insolência e arrogância tem sido perigosa para muitos. Deixe-a retirar suas falhas, em vez de ajudá-lo a criticar as falhas dos outros. Não deixe que ela se afaste dos costumes da humanidade, nem faça com que ela condene o que ela mesma não faz. Um homem pode ser sábio sem alarde e sem provocar inimizade.
Na carta 101 Sêneca fala sobre a tolice de adiar o estudo da filosofia, isto é, aprender como viver uma boa vida, e focar em negócios, com a esperança de, no futuro, estar “bem provido” para uma vida de estudos. Sêneca diz que nunca sabemos o dia de nossa morte, logo, devemos estar todos os dias preparados:
“No entanto, o que é mais tolo do que nos admirar que algo que pode acontecer todos os dias aconteceu um dia? Existe de fato um limite fixado para nós, exatamente onde a lei sem remorso do destino o colocou, mas nenhum de nós sabe o quão perto se está desse limite. Portanto, deixe-nos agir como se tivéssemos chegado ao fim. Não adiemos nada, deixe-nos acertar a conta da vida todos os dias.” (CI, 7)
Sêneca, um dos homens mais ricos de seu tempo, faz uma observação muito correta e interessante para quem deseja enriquecer: diz que existem dois bons caminhos para a riqueza material: saber como ganhar dinheiro ou conservá-lo, “pois qualquer um desses dois pode fazer um homem rico.”
Na carta Sêneca defende que não devemos nos apegar a viva a qualquer custo. Ele dá o exemplo de Caio Mecenas, que preferia consumir-se por dor, morrer membro por membro, ao invés de expirar de uma vez por todas. Termina a carta com uma poderosa frase:
“O ponto é, não quão longamente você vive, mas quão nobremente você vive. E, muitas vezes, essa vida nobre significa que você não poderá viver por muito tempo.” (CI, 15)
1. Todos os dias e todas as horas revelam-nos o que somos, e nos lembram com uma nova evidência de que nos esquecemos das nossas fraquezas e fragilidades; então, enquanto planejamos a eternidade, eles nos obrigam a olhar a morte sobre nossos ombros. Você me pergunta o que significa esse preâmbulo? Refere-se a Cornélio Sinésio, um equestre romano distinguido e capaz, quem você conheceu. De origem humilde, ele atingiu a grande sucesso, e o resto do caminho já se mostrava fácil diante dele. Pois é mais fácil crescer em dignidade social do que começar a ascensão.
2. E a riqueza é muito lento para chegar onde há pobreza; até que possa se fugir dela, vai hesitante, mas desde que ultrapasse um pouco esse nível nunca mais para. Sinésio já estava ao lado da riqueza, ajudado nessa direção por dois ativos muito poderosos: saber como ganhar dinheiro e como conservá-lo também, pois qualquer um desses dons poderia ter feito dele um homem rico.
3. Aqui estava uma pessoa que vivia muito simplesmente, cuidadoso com a saúde e riqueza. Ele, como de costume, me visitou no início da manhã e então passou o dia inteiro, até o anoitecer, à beira do leito de um amigo que estava seriamente e irremediavelmente doente. Depois de um jantar confortável, de repente ele foi apanhado por um agudo ataque de angina e, com a respiração firmemente bloqueada por sua garganta inchada, mal viveu até o amanhecer. Então, dentro de poucas horas depois de cumprir todos os deveres de um homem sadio e saudável, ele caiu morto!
4. Aquele que estava aventurando investimentos por terra e mar, que também entrara na vida pública e não deixara nenhum tipo de negócio sem ser testado, durante a própria realização do sucesso financeiro e durante a própria investida dos bens pecuniários aos seus cofres, foi arrebatado deste mundo!
Enxerte agora as suas peras, Meliboeus, e pode suas videiras em ordem!
Insere nunc, Meliboee, piros, pone ordine vites.[1]
Mas quão tolo é delimitar e fazer planos para um longa vida, quando nem sequer é proprietário do dia seguinte! Que loucura é traçar esperanças de grande alcance! Dizer: “Vou comprar e construir, emprestar a juros e receber dinheiro, ganhar títulos de honra e, então, velho e cheio de anos, vou me entregar a uma vida privada para estudos estando bem provido.”
5. Acredite em mim quando digo que tudo é duvidoso, mesmo para aqueles que são prósperos. Ninguém tem o direito de desenhar para si mesmo seu futuro. Aquilo que nós seguramos desliza através de nossas mãos e a sorte nos corta exatamente na hora que estamos com estoque cheio. O tempo escoa por lei racional, mas na escuridão para nós; e o que significa para mim saber que o curso da natureza é certo, quando o meu é incerto?
6. Planejamos viagens distantes e adiamos o retorno depois de percorrer costas estrangeiras, planejamos o serviço militar e as recompensas lentas de campanhas difíceis, buscamos poder e as promoções de um cargo a outro e, ao mesmo tempo, a morte está ao nosso lado. Mas como nunca pensamos nisso, a não ser que afete ao nosso próximo, os casos de morte nos pressionam dia a dia, para permanecer em nossas mentes apenas enquanto despertam nossa surpresa.
7. No entanto, o que é mais tolo do que nos admirar que algo que pode acontecer todos os dias aconteceu um dia? Existe de fato um limite fixado para nós, exatamente onde a lei sem remorso do destino o colocou, mas nenhum de nós sabe o quão perto se está desse limite. Portanto, deixe-nos agir como se tivéssemos chegado ao fim. Não adiemos nada, deixe-nos acertar a conta da vida todos os dias.
8. A maior falha na vida é que está sempre imperfeita, a se completar, e que uma certa parte dela é adiada. Aquele que diariamente coloca os toques finais de sua vida nunca está com falta de tempo. E, no entanto, a partir desse desejo surge o medo e a ânsia de um futuro que destrói a alma. Não há mais miserável situação do que vir a esta vida sem se saber qual o rumo a seguir nela; o espírito inquieto debate-se com o inelutável receio de saber quanto e como ainda nos resta para viver, nossas almas perturbadas são colocadas em um estado de medo inexplicável.
9. Como, então, devemos evitar essa vacilação? Há apenas um jeito, como não há nenhuma previsão em nossa vida, se for fechada em si mesmo. Pois só está preocupado com o futuro aquele a quem o presente não é satisfatório. Mas quando eu pago à minha alma o devido, quando uma mente equilibrada sabe que um dia não difere da eternidade, seja qual for o dia ou o problema que o futuro possa trazer. Nesse caso a alma se destaca em alturas elevadas e ri sinceramente para si mesmo quando pensa na sucessão interminável dos tempos. Pois quais distúrbios podem resultar da mudança e da instabilidade da Fortuna, se se nós estivermos firmes perante a instabilidade?
10. Portanto, meu querido Lucílio, comece imediatamente a viver e conte cada dia separado como uma vida separada. Aquele que assim se preparou, aquele cuja vida cotidiana tenha sido um todo arredondado, está tranquilo em sua mente; mas aqueles que vivem só pela esperança descobrem que o futuro imediato desliza sempre de suas mãos e que a ganância toma seu lugar, e o medo da morte, uma maldição que traz maldição sobre todo o resto. Daí veio aquela oração mais degradada, na qual Mecenas não se recusa a sofrer fraqueza, deformidade e, como clímax, até mesmo a dor da crucificação apenas para que prolongasse o sopro da vida em meio a esses sofrimentos:[2]
11. Faça-me fraco na mão, fraco com pé mancando,Imponha uma corcunda inchada, afrouxe meus dentes instáveis;Enquanto exista vida, estou bem; mantenha-me indoMesmo que eu, á dura cruz fique empalado
Debilem facito manu, debilem pede coxo,Tuber adstrue gibberum, lubricos quate dentes ;Vita dum superest, benest; hanc mihi, vel acutaSi sedeam cruce, sustine.
12. Lá está ele, orando por aquilo que, se tivesse sucedido a ele, seria a coisa mais lamentável do mundo! E buscando um adiamento do sofrimento, como se estivesse pedindo por vida! Deveria considerá-lo mais desprezível se desejasse viver até o momento da crucificação: “Não!”, Ele chora, “você pode enfraquecer meu corpo somente se deixar o sopro de vida na minha carcaça maltratada e ineficaz! Mutile-me se quiser, mas permita-me, disforme e deformado como eu estou, apenas um pouco mais de tempo no mundo! Você pode me pregar e colocar meu lugar na cruz lancinante!” Vale a pena aturar a própria ferida, e manter-se empalado sobre um pelourinho, que só pode adiar algo que é o bálsamo dos problemas, o fim da punição? Vale a pena tudo isso apenas para possuir o sopro de vida que finalmente deverá ser entregue?
13. O que você pediria para Mecenas, a não ser a indulgência dos deuses? O que ele quer dizer com versos tão efeminados e indecentes? O que ele quer dizer ao contemporizar com tal medo? O que ele quer dizer com mendigar vil à vida? Ele nunca ouviu Virgílio ler as palavras:
Ele pede o clímax do sofrimento e – o que é ainda mais difícil de suportar – prolongamento e extensão do sofrimento. E o que ele ganha desse modo? Simplesmente o benefício de uma existência mais longa. Mas que tipo de vida é uma morte vagarosa?
14. Pode ser encontrado quem prefira consumir-se por dor, morrer membro por membro ou deixar a vida esvair gota por gota, ao invés de expirar de uma vez por todas? Pode alguém ser encontrado disposto a ser preso à árvore amaldiçoada,[4] há muito doente, já deformado, inchado com tumores no peito e nos ombros e respirando a vida em meio a uma agonia prolongada? Eu acho que teria muitas desculpas para morrer mesmo antes de montar a cruz! Negue, agora, se puder, que a natureza é muito generosa ao tornar a morte inevitável.
15. Muitos homens estão preparados para entrar em pechinchas ainda mais vergonhosas: trair amigos para viver mais ou voluntariamente aviltar seus filhos e, assim, aproveitar a luz do dia que é testemunha de todos os seus pecados. Devemos nos livrar desse desejo de vida e aprender que não faz diferença quando o seu sofrimento vem, porque em algum momento você é obrigado a sofrer. O ponto é, não quão longamente você vive, mas quão nobremente você vive. E, muitas vezes, essa vida nobre significa que você não poderá viver por muito tempo. Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Trecho de Éclogas de Virgílio (também chamadas de Bucólicas).
[2] Horácio, seu amigo íntimo, escreveu “para animar o Macenas desanimado”; e Plínio menciona suas febres e sua insônia “perpetua febris … Eidem triennio supremo nullo horae momento contigit somnus”.
A centésima carta é uma resposta de Sêneca a uma crítica de Lucílio de um texto de Papírio Fabiano. Fabiano foi professor de Sêneca quando jovem tendo sido um retórico e filósofo muito ativo nos tempos de Tibério e Calígula. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural.
A carta traz poucos ensinamentos filosóficos e foca em explicar qualidades do texto de Fabiano, que infelizmente, nos foi perdido. Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.
Nas cartas de Sêneca sempre estão presentes epigramas, isto é, textos curtos que expressam um pensamento de forma engenhosa. Geralmente tenho dificuldade em selecionar um, entre os vários, para ilustrar o artigo, mas a carta 100 não oferece nenhum. Contudo o exemplo do professor de Sêneca é um a ser seguido:
“Percebe-se que ele agiu assim para o leitor saber o que agradava a ele, e não para ele agradar ao leitor. Todo o seu trabalho visa progresso moral e sabedoria, sem qualquer busca de aplausos.” (X, 11)
1. Você me escreve que leu com a maior disposição o trabalho de Papírio Fabiano[1] intitulado “Os deveres de um cidadão” e que não atingiu suas expectativas; então, esquecendo que você está lidando com um filósofo, você procede a criticar seu estilo de escrita. Suponha agora, que sua afirmação é verdadeira – que ele derrame, em lugar de colocar suas palavras. Deixe-me no entanto, desde o início, dizer-lhe que esta característica da qual você fala tem um charme peculiar e que é uma graça apropriada para um estilo de suave compreensão. Pois, eu mantenho, é importante se o texto tropeça ou flui. Além disso, há também uma certa deferência a este respeito, como eu deixarei claro para você:
2. Fabiano parece-me não “verter” palavras mas sim ter um “fluxo”, deixa as palavras fluírem. Tão abundante é, sem confusão, e ainda não sem velocidade.[2] Isto é, de fato, o que seu estilo declara e anuncia: que ele não passou muito tempo trabalhando o assunto e retocando-o. Mas mesmo supondo que os fatos sejam como você diz, o homem está construindo caráter ao invés de palavras e está escrevendo essas palavras mais para a mente do que para os ouvidos.
3. Além disso, se ouvisse ele lendo o próprio texto você não teria tido tempo para considerar os detalhes – todo o trabalho lhe teria entusiasmado. Por regra geral, o que satisfaz pela rapidez é de menor valor quando tomado em consideração para a leitura. No entanto, essa mesma qualidade, de atrair à primeira vista, é uma grande vantagem, não importa se uma investigação cuidadosa pode descobrir algo a criticar.
4. Se você me perguntar, devo dizer que aquele que arrebata a aprovação é maior do que aquele que a merece; e ainda sei que o último é mais seguro, eu sei que ele pode dar garantias mais confiantes para o futuro. Uma maneira meticulosa de escrever não se adequa ao filósofo, se ele é tímido quanto às palavras, quando será valente e firme? Quando realmente mostrará seu valor?
5. O estilo de Fabiano não era negligente, mas assegurado. É por isso que você não encontrará nada de qualidade inferior em seu trabalho: suas palavras são bem escolhidas e mesmo assim não são caçadas. Elas não são artificialmente inseridas e invertidas, de acordo com a moda atual, mas possuem distinção, mesmo que elas sejam distantes do discurso mais vulgar. Lá você tem ideias honestas e esplêndidas, não encadeadas em aforismos, mas faladas com maior liberdade. Devemos, naturalmente, notar passagens que não são suficientemente podadas, não construídas com cuidado suficiente e que não possuem o esmalte que está em voga hoje em dia. Mas depois de considerar o todo você verá que não encontraremos futilidades nem obscuridades resultantes do excesso de concisão.
6. Pode ser, sem dúvida, que não haja nenhuma variedade de mármores, nenhum abastecimento de água corrente de um apartamento para outro, nenhum “quarto pobre”,[3] ou qualquer outro dispositivo que o luxo acrescente quando insatisfeito com encantos simples; mas é sim, aquilo que chamamos de “uma boa casa para se viver”. Além disso, as opiniões variam em relação ao estilo. Alguns desejam que ele seja polido de toda aspereza e alguns tomam um grande prazer na maneira abrupta que intencionalmente qualquer passagem se rompe e então, se espalha mais suavemente, dispersando as palavras finais de tal forma que as frases possam soar inesperadas.
7. Leia Cícero: seu estilo tem unidade, ele se move com um ritmo modulado e é gentil sem ser efeminado. O estilo de Asínio Polião,[4] por outro lado, é “acidentado”, brusco, parando quando você menos espera.[5] E, finalmente, Cícero sempre termina de forma gradual; enquanto Polião se interrompe, exceto nos poucos casos em que ele cliva em um ritmo definido, aliás sempre de um único padrão.
8. Além disso, você diz que tudo em Fabiano parece-lhe comum e sem elevação, mas eu considero que ele é livre dessa culpa. Pois esse estilo seu não é comum, mas simplesmente calmo e ajustado à sua mente pacífica e bem ordenada – não em um nível baixo, mas em um plano uniforme. Falta a verve e os grandes rasgos de orador (os quais você está procurando) e um choque súbito de epigramas.[6] Mas olhe, por favor, em todo o trabalho, quão bem ordenado é: há uma distinção nele. Seu estilo talvez não possua, mas sugere, dignidade.
9. Mencione alguém a quem você possa classificar antes de Fabiano. Cícero, digamos, cujos livros sobre filosofia são quase tão numerosos como os de Fabiano. Concordo com este ponto, mas não é pouco ser menos do que o maior. Ou Asínio Polião, digamos. Eu vou me render novamente e me contento respondendo: “É uma distinção ser o terceiro em tão grande campo”. Você também pode incluir Tito Lívio,[7] pois Lívio escreveu os diálogos que devem ser classificados como história e obras que declaradamente lidam com a filosofia. Eu também cederei no caso de Lívio. Mas considere quantos escritores Fabiano ultrapassa, se ele é superado apenas por três, e esses três são os maiores mestres da eloquência!
10. Mas, pode-se dizer, ele não oferece tudo: embora seu estilo seja elevado, não é forte; embora ele venha em profusão, falta força e envergadura; não é translúcido, mas é lustroso. “Alguém iria falhar”, você insiste, “em encontrar nele qualquer crítica dura ao vício, quaisquer palavras corajosas diante do perigo, qualquer desafio orgulhoso da Fortuna, quaisquer ameaças desdenhosas contra o egoísmo. Desejo ver o luxo repreendido, a luxúria condenada, o capricho esmagado. Deixe-o nos mostrar o entusiasmo pela oratória, a beleza da tragédia, a sutileza da comédia”. Você deseja que ele confie naquela mais pequena das coisas, fraseologia; mas ele jurou fidelidade à grandeza de seu assunto e carrega a eloquência atrás dele como uma espécie de sombra, mas não como propósito primário.
11. Nosso autor, sem dúvida, não investigará todos os detalhes, nem submeterá a análise, nem inspecionará e enfatizará cada palavra separada. Isso eu admito. Muitas frases ficam aquém, ou deixam de atingir o alvo e, às vezes, o estilo é indolente; mas há muita luz ao longo do trabalho. Existem longos trechos que não cansam o leitor. E, finalmente, ele oferece essa qualidade de deixar claro o que ele quis dizer ao escrever, e o escreveu de coração. Percebe-se que ele agiu assim para o leitor saber o que agradava a ele, e não para ele agradar ao leitor. Todo o seu trabalho visa progresso moral e sabedoria, sem qualquer busca de aplausos.
12. Não duvido que seus escritos sejam do tipo que descrevi, embora eu esteja me recordando deles em vez de manter uma lembrança certa, e embora o tom geral de seus escritos permaneça na minha mente, não devido a leitura cuidadosa e recente, mas em esboço, como é natural de um conhecimento antigo. Contudo, certamente, sempre que o ouvi dar uma palestra pareceu-me o trabalho dele não apenas sólido, mas completo, o tipo que inspiraria os jovens de talento e despertaria a ambição de se tornarem como ele, sem fazê-los sem esperança de superá-lo; e esse método de encorajamento me parece o mais eficaz de todos. Pois é desanimador inspirar em um homem o desejo da emulação e tirar-lhe a esperança. De qualquer forma, sua escrita era fluente e, embora não fosse possível aprovar todos os detalhes, o efeito geral era nobre.
Adeus.
[1] NT: Papirio Fabiano foi um retórico e filósofo da Roma Antiga, ativo na última época de Augusto e nos tempos de Tibério e Calígula, na primeira metade do primeiro século. Foi professor de Sêneca. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural e Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.
[2] ou seja, seu estilo é como um rio em vez de uma corredeira.
[3] Os homens ricos às vezes instalavam em seus palácios uma imitação de “cabine de homem pobre”, por contraste com os outros quartos ou como um gesto para uma vida simples; Sêneca usa a frase figurativamente para determinados dispositivos em composição. Ver também carta XVIII (Volume I) e Marcial, III, 48: “Pauperis extruxit cellam, sed vendidit Olus; praedia; nunc cellam pauperis Olus habet.”
[4] NT: Caio Asínio Polião (n. 65 a.C.–4 d.C.) foi um político da gente Asínia eleito cônsul em 40 a.C.. É conhecido por sua carreira como orador, poeta, autor teatral, crítico literário e, principalmente, como historiador, cuja obra, perdida, uma “História de Roma” até sua época, foi muito utilizada como fonte para as obras de Apiano e Plutarco. Polião foi ainda um patrono de Virgílio, amigo de Horácio e recebeu de ambos poemas dedicados a si.
[5] Ver Quintiliano, X, I;11: “multa in Asinio Pollione inventio, summa diligentia, adeo ut quibusdam etiam nimia videatur; et consilii et animi satis; a nitore et iucunditate Ciceronis ita longe abest, ut videri possit saeculo prior.”
[6] A redação aqui se assemelha de forma impressionante à do Velho Sêneca em Controversias. II.
[7] NT: Tito Lívio, conhecido simplesmente como Lívio, é o autor da obra histórica intitulada Ab urbe condita (“Desde a fundação da cidade”), onde tenta relatar a história de Roma desde o momento tradicional da sua fundação 753 a.C. até ao início do século I da Era Cristã.
Recentemente grupos de estoicismo em lingua inglesa estão debatendo o caráter de Sêneca, como vemos aqui e aqui. Creio que o filósofo, assim como São Paulo ou St. Agostinho de Hipona, descobriu o caminho da virtude e ética em uma etapa posterior de sua vida. Obviamente, como no caso dos santos, isto não mancha seus escritos e sua filosofia, muito pelo contrário, penso que acrescenta valor.
“Há certos conselhos sadios, que podem ser comparados às prescrições de remédios, estes eu estou pondo por escrito pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas, que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.” (VIII, 2) “Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar.” (VIII, 3)
No tratado A vida feliz, Sêneca responde a acusações que lhe são feitas, onde ele é notavelmente franco. Ele está falando com seu irmão sobre todos os seus fracassos pessoais, das maneiras pelas quais ele não está à altura do ideal e, acima de tudo, do seu incrível luxo: ele fala em ter árvores que são plantadas apenas para a sombra, de ter vinhos exclusivos, de ter tantos escravos que ele não sabe quais são seus nomes, de ter tantos imóveis que nem sequer sabe onde todos ficam. Em outras palavras, ele é realmente uma pessoa de estupenda riqueza. Diz que teria muito mais a listar contra si próprio. Mas no momento quer afirmar apenas um ponto:
“não sou um homem sábio, nem jamais serei. Por isso não exija de mim que eu seja igual ao melhor, mas que eu seja melhor do que os maus.” (A Vida Feliz, XVII, 3)
Sêneca sabe de suas falhas, mas afirma que está tentando. Ele está realmente tentando trabalhar seus vícios todos os dias e melhorar um pouco a cada dia que passa.
Um excelente livro para conhecer melhor a vida de Sêneca e sua filosodia foi escrito por Francis Holland. Originalmente destinada a servir de introdução para uma tradução das cartas de Sêneca que acabou não sendo publicada, o texto foi publicado independentemente, fez sucesso e atingiu público muito superior ao imaginado pelo próprio autor e editor.
A obra apresenta um relato atraente de Sêneca em relação à sua época e aos três imperadores com quem ele conviveu proximamente: Calígula, Cláudio e Nero. O relato vívido de Holland, usando muitas vezes citações do texto de Sêneca, descreve acontecimentos de sua vida que nos faz imaginar estarmos vivendo na corte do antigo império.
Acadêmicos da época da publicação criticaram alguns pontos do livro, afirmando não haver exatidão nos detalhes apresentados e erros históricos facilmente verificáveis. Por exemplo, Holland afirma que o pai de Sêneca escreveu cinco livros de Controvérsias (Controversiae), quando realmente foram dez. Outra crítica é que Holland faz declarações explicitas sem evidência: “a declaração explícita na p. 36 que Sêneca escreveu ‘após um intervalo de seis meses de sua chegada [na Córsega] a Consolação à sua mãe’ é, no que diz respeito à data, uma informação sem base evidencial, mas que toca um ponto controverso”.[1] Holland ignora muitas perguntas exasperantes ou as aborda apenas superficialmente. Não há uma boa discussão sobre a causa do banimento de Sêneca para Córsega, o suposto adultério de Sêneca com Júlia. Essa acusação afetaria fortemente seu caráter moral e deveria ser melhor explicada. Tão pouco o livro faz alusão à primeira esposa de Sêneca, apenas nos conta sobre Paulina, que é referida como segunda esposa.
O principal mérito do livro reside em sua simpatia entusiasta e cativante pelo assunto e em seus vivos olhares sobre a corte imperial em Roma. A falta de detalhes, omissões ou pequenas inexatidões são irrelevantes para aqueles que querem entender melhor a filosofia de Sêneca ao conhecer sua vida e época.
Se não conseguimos acordo nem sobre o caráter de políticos atuais, imagine então tentar julgar um estadista de 2000 anos atrás e, pior ainda, usando a moral vigente hoje! Devemos estudar e debater a filosofia de Sêneca pois a temos por escrito e podemos estuda-la objetivamente. Analisar o caráter do filósofo só polui e politiza o debate.
Na carta 95, Sêneca atende um pedido de Lucílio para aprofundar a discussão do tema da carta anterior, ou seja, a validade do ensino de preceitos em contraste com o uso de princípios. O texto é longo e complexo, e Sêneca, de forma bem humorada já alerta o leitor:
“…aceito o seu pedido de bom grado, e recuso a deixar o ditado comum perder o seu fundamento: “Não peça por aquilo que você desejaria não ter recebido’. Mas, sem piedade, me vingarei e colocarei uma enorme carta sobre seus ombros; por sua parte, se você ler isso com relutância, pode dizer: “Eu trouxe esse fardo a mim mesmo‘…” (XCV, 1-3)
Para Sêneca, ambos são úteis e imprescindíveis, mas sem princípios, os preceitos são inúteis, pois “quando um homem está organizando sua existência como um todo, não é suficiente lhe dar conselhos sobre detalhes“:
“Existe a mesma diferença entre princípios filosóficos e preceitos que existe entre as letras e frases; as últimas dependem das primeiras, enquanto as primeiras são a fonte da última e de todas as coisas.” (XCV, 12)
Como de costume, apresenta uma fantástica analogia para ilustrar seu ponto:
“Um homem pode saber que manter uma amante é o pior tipo de insulto para sua esposa, mas a luxúria o levará na direção oposta. Portanto, não servirá dar preceitos, a não ser que você primeiro remova as condições que possam prejudicar os preceitos; A alma, para lidar com os preceitos que oferecemos, deve primeiro ser liberada. ” (XCV, 37-38)
1. Você continua pedindo-me para explicar sem adiamento um tópico que eu observei uma vez que deveria ser adiado até o momento apropriado e para informar-lhe, por carta, se este departamento de filosofia que os gregos chamam de “paraenético”(paraenetice)[1] e nós, romanos, chamamos de “preceptorial”(praeceptiva), é suficiente para nos dar uma sabedoria perfeita. Eu sei que você vai entender se eu me recusar a fazê-lo. Mas aceito o seu pedido de bom grado, e recuso a deixar o ditado comum perder o seu fundamento: “Não peça por aquilo que você desejaria não ter recebido”.
2. Pois as vezes buscamos com esforço o que deveríamos recusar se fosse oferecido voluntariamente. Chame isso inconstância ou descaramento[2] – devemos punir o hábito com pronta observância. Há muitas coisas que nós gostaríamos que os homens pensassem que desejamos, mas que realmente não desejamos. Um palestrante às vezes traz ao palco um enorme trabalho de pesquisa, escrito na letra mais minúscula e muito dobrado; depois de ler uma grande parte, ele diz: “Eu vou parar, se desejarem”; e surge um grito: “Leia mais, continue lendo!” Dos lábios daqueles que estão ansiosos para que o palestrante libere o paço. Muitas vezes queremos uma coisa e oramos por outra, sem contar a verdade nem mesmo aos deuses, o bom é que os deuses ou não nos atendem ou têm pena de nós.
3. Mas, sem piedade, me vingarei e colocarei uma enorme carta sobre seus ombros; por sua parte, se você ler isso com relutância, pode dizer: “Eu trouxe esse fardo a mim mesmo”, e pode classificar-se entre aqueles homens cujas esposas muito ambiciosas os deixam frenéticos, ou aqueles que as riquezas, ganhas pelo suor extremo da testa, só trazem angustias, ou aqueles que são torturados pelos cargos públicos que procuraram por todo tipo de dispositivo e trabalho, e todos os outros que são responsáveis por seus próprios infortúnios.
4. Mas devo parar este preâmbulo e abordar o problema em questão. Os homens dizem: “A vida feliz consiste na conduta correta, os preceitos guiam para a conduta correta, portanto os preceitos são suficientes para alcançar a vida feliz”. Mas nem sempre nos orientam para a conduta correta; isso ocorre somente quando a vontade é receptiva; e às vezes são aplicados em vão, quando as opiniões erradas atormentam a alma.
5. Além disso, um homem pode agir corretamente sem saber que ele está agindo corretamente. Pois ninguém, exceto aquele treinado desde o início e equipado com uma razão completa, pode desenvolver proporções perfeitas, entender quando deve fazer certas coisas e até que ponto, e em cuja companhia, e como, e por quê. Sem esse treinamento, um homem não pode esforçar-se com todo seu coração ao que é honrado, ou mesmo com firmeza ou alegria, mas sempre estará olhando para trás e hesitando.
6. Também é dito: “Se a conduta honrosa resulta dos preceitos, os preceitos são amplamente suficientes para a vida feliz; como a primeira dessas afirmações é verdadeira, portanto a segunda também é verdadeira”. Devemos responder a estas palavras que a conduta honrosa é, com certeza, provocada por preceitos, mas não apenas por preceitos.
7. “Então”, vem a resposta, “se as outras artes se contentam com os preceitos, a sabedoria também estará contente com eles, pois a própria sabedoria é uma arte de viver. E, no entanto, o piloto é feito por preceitos que lhe dizem isso ou aquilo sobre como virar o leme, colocar suas velas, fazer uso de um vento justo, bordejar, fazer o melhor das brisas inconstantes e variáveis – tudo da maneira correta. Outros artesãos também são guiados por preceitos, portanto, os preceitos serão capazes de realizar o mesmo resultado no caso do nosso artesão na arte de viver”.
8. Agora, todas essas artes estão preocupadas com as ferramentas da vida, mas não com a vida como um todo. Portanto, há muito para embaraçar essas artes e complicá-las – como a esperança, a ganância, o medo. Mas essa arte que professa ensinar a arte da vida não pode ser impedida por qualquer circunstância de exercer suas funções; pois sacode as complicações e atravessa os obstáculos. Gostaria de saber o quão diferente sua posição em relação as outras artes? No caso destas últimas, é mais perdoável errar voluntariamente ao invés de por acidente; mas, no caso da sabedoria, a pior falha é cometer o pecado deliberadamente.
9. Quero dizer algo assim: um estudioso se ruborizará por vergonha, não se ele cometer um erro gramatical intencionalmente, mas se o fizer involuntariamente; se um médico não perceber que seu paciente está falecendo, é um praticante muito mais pobre do que se reconhecesse o fato e escondesse seu conhecimento. Mas, nesta arte de viver, um erro voluntário é mais vergonhoso. Além disso, muitas artes, sim e as mais liberais de todas, têm sua doutrina especial, e não apenas preceitos de conselhos. Na profissão médica, por exemplo, existem as diferentes escolas: de Hipócrates, de Asclepíades,[3] de Temiso.
10. E, além disso, nenhuma arte que se preocupe com teorias pode existir sem suas próprias doutrinas; os gregos chamam de dogmatas, enquanto nós, romanos, podemos usar o termo “doutrinas” ou “princípios”, ou “princípios adotados”,[4] como você encontrará em geometria ou astronomia. Mas a filosofia é tanto teórica como prática; contempla e, ao mesmo tempo, age. Você está realmente enganado se você acha que a filosofia não oferece nada além de ajuda mundana; suas aspirações são mais altas do que isso. Ela chama: “Eu investigo todo o universo, nem estou satisfeita, me mantendo dentro de uma morada mortal, para dar conselhos favoráveis ou desfavoráveis. Os grandes assuntos convidam e estão bem acima de você. Nas palavras de Lucrécio[5]:
11. Para ti, eu revelarei os caminhos do céu
E os deuses, espalhando-se diante de teus olhosOs átomos, – de onde todas as coisas são trazidas ao nascimento,Aumentado e promovido pelo poder criativo,E atingem a putrefação quando a Natureza os expulsa.
Nam tibi de summa caeli ratione deumqueDisserere incipiam et rerum primordia pandam ;Unde omnis natura creet res, auctet alatque,Quoque eadem rursus natura perempta resolvat.
Filosofia, portanto, sendo teórica, deve ter suas doutrinas.
12. E por quê? Porque nenhum homem pode realizar devidamente as ações certas, exceto aquele que tenha sido dotado da razão, que lhe permitirá, em todos os casos, cumprir todas as categorias de dever. Essas categorias ele não pode observar a menos que receba preceitos para cada ocasião, e não só pela da ocasião. Os preceitos por si próprios são fracos e, por assim dizer, sem raízes se forem prescritos às partes e não ao todo. São as doutrinas que nos fortalecerão e nos apoiarão em paz e calma, que incluirão simultaneamente a totalidade da vida e do universo em sua plenitude. Existe a mesma diferença entre princípios filosóficos e preceitos que existe entre as letras e frases;[6] as últimas dependem das primeiras, enquanto as primeiras são a fonte da última e de todas as coisas.
13. As pessoas dizem: “A sabedoria antiga aconselhava apenas o que se deveria fazer e evitar, e, no entanto, os homens de tempos passados eram homens muito melhores. Quando os eruditos apareceram, os sábios tornaram-se raros. Dessa forma, a franca e simples virtude foi transformada em conhecimento escondido e astuto, somos ensinados a debater e não a viver”.
14. Claro, como você diz, a sabedoria antiga, especialmente em seus primórdios, era imperfeita; mas também as outras artes, nas quais a destreza desenvolveu com o progresso. Nem naqueles dias havia necessidade de curas cuidadosamente planejadas. A maldade ainda não havia chegado a um ponto tão alto, ou se espalhado tão amplamente. Os vícios simples podiam ser tratados com curas simples; agora, no entanto, precisamos de defesas erguidas com todo o cuidado, por causa dos poderes mais fortes pelos quais somos atacados.
15. A medicina consistiu-se uma vez no conhecimento de algumas ervas, para impedir o fluxo de sangue ou para curar feridas; então, gradualmente, atingiu o seu estágio atual de complexa variedade. Não é de admirar que, nos primeiros dias, o medicamento tivesse menos a fazer! Os corpos dos homens ainda eram sólidos e fortes; sua alimentação era leve e não estragada pela arte e pelo luxo, pois então começamos a procurar pratos não para a remoção, mas para o despertar do apetite, e inventamos inúmeros molhos para estimular a gula, então, o que antes era alimento para um homem faminto tornou-se um fardo para o estômago cheio.
16. Daí vem palidez e um tremor de músculos encharcados pelo vinho e uma magreza repulsiva, devido à indigestão e não à fome. Dessa forma, pequenos passos cambaleantes e uma marcha incerta como a da embriaguez. Daí a hidropisia,[7] espalhando sob toda a pele e a barriga crescendo para uma pança através de um hábito de consumir mais do que pode. Daí a icterícia, os semblantes descoloridos e os corpos que se apodrecem por dentro, e os dedos que se tornam nodosos quando as articulações se endurecem e os músculos entorpecidos e sem poder de sensação e a palpitação do coração.
17. Por que razão eu menciono tonturas? Ou falar de dor nos olhos e na orelha, comichão e dor no cérebro febril e úlceras internas em todo o sistema digestivo? Além disso, existem inúmeros tipos de febre, algumas agudas em sua malignidade, outras nos arrasando com danos sutis e outras que vêm acompanhadas de calafrios e severa maleita.
18. Por que devo mencionar as outras doenças inumeráveis, as torturas que resultam de uma vida luxuosa? Os homens costumavam estar livres de tais males, porque eles ainda não haviam diminuído sua força pela indulgência, porque eles tinham controle sobre si mesmos e proviam suas próprias necessidades. Eles enrijeceram seus corpos pela labuta e pelo trabalho real, cansando-se correndo ou caçando ou cultivando a terra. Eles eram revigorados por comida da qual apenas um homem faminto poderia ter prazer. Por isso, não havia necessidade de todas as nossas poderosas parafernálias médicas, de tantos instrumentos e caixas de pomadas. Por razões simples, eles gozavam de uma saúde simples; foi necessário um percurso elaborado para produzir doenças elaboradas.
19. Note o número de coisas – tudo a passar por uma única garganta – que o luxo mistura, depois de devastar a terra e o mar. Tantos pratos diferentes certamente devem estar em desacordo; eles são unidos fortemente e são digeridos com dificuldade, cada um acotovelando o outro. E não é de admirar que as doenças resultantes de alimentos variados sejam diversas e variadas; deve haver um transbordamento quando tantas combinações não naturais se misturam. Por isso, há tantas maneiras de estar doente quanto há de viver.
20. O ilustre fundador da guilda e da profissão da medicina[8] observou que as mulheres nunca perdiam os cabelos nem sofriam dor nos pés; e, no entanto, hoje em dia elas ficam sem cabelos e são afligidas pela gota. Isso não significa que o físico da mulher tenha mudado, mas que tenha sido conquistado; ao competir por indulgências masculinas, elas também competem pelos males dos quais os homens são herdeiros.
21. Elas dormem tão tarde e bebem tanto licor quanto eles; elas desafiam os homens na luta e na bebedeira; elas não são menos dadas ao vômito de estômagos distendidos e, assim, descarregando todo o vinho novamente; nem estão atrás dos homens em consumir gelo, como um alívio para suas digestões febris. E elas mesmo igualam os homens em suas paixões, embora tenham sido criadas para sentir amor passivamente (que os deuses e deusas possam amaldiçoá-las!). Elas inventam as variedades mais impossíveis de não castidade e na companhia dos homens elas fazem o papel dos homens. Que maravilha, então, que possamos checar a declaração do melhor e mais experiente médico, quando tantas mulheres são carecas e sofrem de gota! Por causa de seus vícios, as mulheres deixaram de merecer os privilégios de seu sexo; elas renegaram sua natureza feminina e, portanto, estão condenadas a sofrer as doenças dos homens.
22. Os médicos da antiguidade não sabiam nada sobre a prescrição de nutrientes frequentes e o sustento do pulso fraco com vinho; eles não entendiam a prática da sangria e de aliviar as queixas crônicas com banhos de vapor; eles não entendiam como, ao enfaixar os tornozelos e os braços, convocar às partes externas a força que havia se refugiado ao centro. Eles não eram obrigados a buscar muitas variedades de alívio, porque as variedades de sofrimento eram muito poucas em número.
23. Hoje em dia, no entanto, a que etapa os males da doença estão avançados! Este é o juro que pagamos pelos prazeres que desejamos além do que é razoável e correto. Você não precisa imaginar que as doenças estão além da conta: conte os cozinheiros! Todos os interesses intelectuais estão em suspenso; aqueles que seguem conferências de cultura em salas vazias, em lugares afastados. Os salões do professor e do filósofo estão desertos; mas que multidão nos cafés! Quantos jovens assediam as cozinhas de seus amigos glutões!
24. Não devo mencionar as tropas de escravos sem fortuna que devem suportar outros tratamentos vergonhosos depois que o banquete acaba. Não devo mencionar as tropas de catamitas[9], classificadas de acordo com a nação e a cor, que devem ter a mesma pele lisa e a mesma maneira de vestir os cabelos, de modo que nenhum menino com madeixas lisas possam ficar entre os de cabelos encaracolados. Nem devo mencionar a confusão de padeiros, e o número de garçons que em um determinado aviso correm para transportar os pratos. Oh, deuses! Quantos homens trabalham para divertir uma única barriga!
25. O que? Você imagina que esses cogumelos, o veneno do gourmet, não causam maldade em segredo, mesmo que não tenham tido efeito imediato? O que? Você acha que sua neve de verão não endurece o tecido do fígado? O que? Você acha que aquelas ostras, uma comida gosmenta engordada em lodo, não sobrecarregam com o peso da lama? O que? Você não acha que o chamado “garum – o molho das Províncias”, o extrato apodrecido de peixe venenoso, queime o estômago com sua putrefação salgada? O que? Você acha que os pratos corrompidos que um homem engole quase queimando do fogo da cozinha são apagados no sistema digestivo sem fazer mal? Quão repugnantes, e quão insalubres são os seus arrotos, e como os homens ficam enojados consigo mesmos quando respiram os vapores da orgia de ontem! Você pode ter certeza de que a comida deles não está sendo digerida, mas está apodrecendo.
26. Lembro-me de ter ouvido uma fofoca sobre um prato notório em que tudo do qual os gourmets adoram era amontoado por um restaurante que estava rapidamente entrando em bancarrota; havia dois tipos de mexilhões e as ostras aparadas na linha onde são comestíveis, separadas a intervalos por ouriços-do-mar; o todo estava flanqueado por tainhas cortadas e servidas sem as espinhas.[10]
27. Nestes nossos dias estamos envergonhados de alimentos separados; as pessoas misturam muitos sabores em um. A mesa de jantar faz o que o estômago deveria fazer. Eu vislumbro em seguida que a comida será servida já mastigada! E quão longe disso estamos quando separamos conchas e ossos e o cozinheiro executa o trabalho dos dentes? Eles dizem: “É muito difícil levar nossos luxos um a um, deixe-nos ter tudo servido ao mesmo tempo e misturado com o mesmo sabor. Por que eu deveria me contentar com um único prato? Vamos ter muitos chegando ao mesmo tempo, as delícias de vários cursos devem ser combinadas e confundidas.”
28. Aqueles que costumavam declarar que isso era feito para exibição e notoriedade devem entender que não é feito para exibição, mas que é uma oblação ao nosso senso de dever! Deixe-nos ter, ao mesmo tempo, embebidos no mesmo molho, pratos que costumam ser servidos separadamente. Não há diferença: deixe as ostras, os ouriços-do-mar, os crustáceos e os salmonetes serem misturados e cozidos no mesmo prato. Um vomitado não formaria uma massa mais caótica!
29. E como a comida em si é complicada, de modo que as doenças resultantes são complexas, inexplicáveis, múltiplas, variadas, os medicamentos começaram a fazer campanha contra eles de muitas maneiras e por muitas regras de tratamento. Agora, eu declaro que a mesma afirmação se aplica à filosofia. Ela era mais simples porque os pecados dos homens eram em menor escala e podiam ser curados com pequena dificuldade; no entanto, em face de toda inversão moral, os homens não devem deixar nenhum remédio não experimentado. E seria possível que essa praga fosse então superada!
30. Estamos loucos, não apenas individualmente, mas a nível nacional. Evitamos o homicídio culposo e assassinatos isolados; mas e a guerra e o tão voraz crime de matar povos inteiros? Não há limites para nossa ganância, nenhuma para nossa crueldade. E enquanto esses crimes forem cometidos escondido e por indivíduos, eles são menos prejudiciais e menos portentosos; mas as crueldades são praticadas de acordo com atos do senado e da assembleia popular, e o público é convidado a fazer o que é proibido ao indivíduo.
31. Ações que seriam punidas com a morte quando cometidas em particular, são louvadas por nós, porque os generais uniformizados as realizaram. O homem, naturalmente a classe de ser vivo mais branda, não tem vergonha de se deleitar com o sangue dos outros, de fazer guerra e de encaminhar seus filhos à guerra, quando as feras e os animais selvagens mantêm a paz uns com os outros.
32. Contra esta loucura excessiva e disseminada a filosofia tornou-se uma questão do maior esforço, e tomou forças em proporção às forças ganhas pela oposição. Costumava ser fácil repreender os homens que eram escravos da bebida e que procuravam comida da mais luxuosa; Não seria exigido um esforço poderoso para trazer o espírito de volta à simplicidade de onde apenas a pouco partira. Mas agora
É preciso a mão rápida, ao mestre artesão.
Nunc manibus rapidis opus est, nunc arte magistra.[11]
33. Os homens procuram prazer de todas as fontes. Nenhum vício permanece dentro dos limites; o luxo é precipitado em ganância. Estamos impressionados com o esquecimento daquilo que é honroso. Nada de valor é atraente, é vil. O homem, um objeto de reverência aos olhos do homem, agora é abatido por brincadeira e esporte; e aqueles que costumavam acreditar ser profano treinar com o propósito de infligir feridas, estão expostos e indefesos; e é um espetáculo satisfatório ver um homem feito um cadáver.[12]
34. Em meio a esta condição de inversão da moral, é necessário algo mais forte do que o habitual – algo que sacuda esses males crônicos; a fim de erradicar uma crença profunda em ideias erradas, a conduta deve ser regulada por doutrinas. É somente quando adicionamos preceitos, consolo e encorajamento a estes, que podem prevalecer; por si só são ineficazes.
35. Se nos fossemos segurar os homens firmemente atados e os afastarmos dos males que os agarraram firmemente, eles deveriam aprender o que é maligno e o que é bom. Eles deveriam saber que tudo, exceto a virtude, podem mudar de qualificativo, e merecerem umas vezes serem consideradas como más e outras como boas. Assim como o principal vínculo de união do soldado é seu juramento de fidelidade, seu amor à bandeira, e seu horror à deserção, e assim como, após essa etapa, outros deveres podem ser facilmente exigidos dele, e confiança dada a ele uma vez o juramento ter sido administrado; assim é com aqueles que você traz para a vida feliz: os primeiros fundamentos devem ser colocados, e a virtude trabalhada nesses homens. Que sejam mantidos por uma espécie de adoração supersticiosa da virtude; que eles a amem; deixe-os desejar viver com ela e se recusarem a viver sem ela.
36. “Mas o que, então,” dizem, “certas pessoas não ganharam caminho para a excelência sem treinamento complicado? Não fizeram grandes progressos obedecendo apenas preceitos básicos?” Muito verdadeiro; mas seus temperamentos eram propícios, e eles pegaram atalho pelo caminho. Pois assim como os deuses imortais não aprenderam a virtude tendo nascido com a virtude completa e contendo em sua natureza a essência do bem – mesmo assim certos homens estão equipados com qualidades incomuns e alcançam sem um longo aprendizado o que normalmente é uma questão de ensino, acolhendo coisas honestas assim que as ouvem. Por isso, as mentes escolhidas se apoderam rapidamente da virtude, ou então a produzem dentro de si mesmas. Mas seu companheiro embotado e lento, que é prejudicado por seus maus hábitos, deve ter essa ferrugem da alma incessantemente esfregada.
37. Agora, assim como o primeiro tipo, que está inclinado para o bem, pode ser elevado às alturas com mais rapidez: também os espíritos mais fracos podem ser auxiliados e libertados de suas opiniões malignas se confiarmos a eles os princípios aceitos da filosofia; e você pode entender o quão essencial são esses princípios da seguinte maneira. Certas coisas se afundam em nós, tornando-nos preguiçosos de certa forma, e precipitados de outras. Essas duas qualidades, a de imprudência e a outra de preguiça, não podem ser controladas ou despertadas, a menos que removamos suas causas, que são admiração equivocada e medo confuso. Enquanto estivermos obcecados por tais sentimentos, você pode nos dizer: “Você deve esse dever ao seu pai, isso para seus filhos, isso para seus amigos, isso para seus hóspedes”; mas a ganância sempre nos impedirá, não importa como tentemos. Um homem pode saber que ele deve lutar por seu país, mas o medo o dissuadirá. Um homem pode saber que ele deve suar sua última gota de energia em favor de seus amigos, mas o luxo irá proibir. Um homem pode saber que manter uma amante é o pior tipo de insulto para sua esposa, mas a luxúria o levará na direção oposta.
38. Portanto, não servirá dar preceitos, a não ser que você primeiro remova as condições que possam prejudicar os preceitos; não servirá nada mais do que colocar as armas ao seu lado e se aproximar do inimigo sem ter as mãos livres para usar essas armas. A alma, para lidar com os preceitos que oferecemos, deve primeiro ser liberada.
39. Suponha que um homem aja como deveria; ele não pode se manter assim de forma contínua ou consistente, já que não saberá o motivo de tal forma de agir. Parte de sua conduta resultará corretamente por fortuna ou prática; mas à sua mão não há nenhuma regra pelo qual possa regular seus atos, e em que possa confiar para lhe dizer se o que faz está certo. Aquele que é bom por simples acaso não dá garantia de manter esse caráter para sempre.
40. Além disso, os preceitos talvez o ajudem a fazer o que deve ser feito; mas eles não o ajudarão a fazê-lo da maneira correta; e se eles não o ajudam a esse fim, eles não o conduzem à virtude. Eu admito a você que, se admoestado, um homem fará o que deveria; mas isso não é suficiente, já que o crédito reside, não na ação real, mas na forma como é feito.
41. O que é mais vergonhoso do que uma refeição cara que come a renda mesmo de um equestre[13]? Ou o que é tão digno da condenação do censor como sempre saciar a si mesmo e seu “gênio” interior? – se posso usar os termos dos nossos gastrônomos! E, no entanto, muitas vezes um jantar inaugural[14] custa ao homem mais cuidadoso um milhão de sestércios![15] A própria soma é vergonhosa se gasta na gula, mas é irrepreensível se gasta para honrar o cargo! Pois não é luxo, mas uma despesa sancionada pelo costume.
42. Um salmonete de tamanho monstruoso foi oferecido ao imperador Tibério. Dizem que pesava quatro quilos e meio (e por que não deveria fazer cócegas nos palatos de certos glutões mencionando seu peso?). Tibério ordenou que fosse enviado para o mercado de peixe e colocado à venda, observando: “Eu vou ser tomado inteiramente por surpresa, meus amigos, se Apício[16] ou Otávio não comprar esse salmonete”. O palpite tornou-se realidade além da expectativa: os dois homens o disputaram, e Otávio ganhou, adquirindo assim uma grande reputação entre os seus íntimos porque comprou por cinco mil sestércios um peixe que o Imperador havia vendido e que até Apício não conseguiu comprar. Pagar tal preço foi vergonhoso para Otávio, mas não para o indivíduo que comprou o peixe para presenteá-lo a Tibério – embora eu também estivesse inclinado a culpar o último também; mas, de qualquer modo, admirava um presente do qual pensava ser digno de César.
43. Outro exemplo: quando as pessoas se sentam ao lado da cama de seus amigos doentes, nós honramos seus motivos. Mas, quando as pessoas fazem isso com o objetivo de alcançar um legado, são como abutres à espera de carniça. O mesmo ato pode ser vergonhoso ou honorável: a maneira e os princípios que o motivaram fazem toda a diferença. Ora, todas nossas as ações serão honestas se nós as conformarmos à moralidade, se pensarmos que a honra e seus resultados sejam o único bem que pode cair na fortuna do homem; pois outras coisas só são temporariamente boas.
44. Penso, então, que deve haver profundamente implantada uma firme crença que se aplicará à vida como um todo: é o que eu chamo de “princípio”. E, como essa crença é, assim serão nossos atos e nossos pensamentos. Como nossos atos e nossos pensamentos são, então nossa vida será. Quando um homem está organizando sua existência como um todo, não é suficiente lhe dar conselhos sobre detalhes.
45. Marco Bruto, no livro que ele tem intitulado “Sobre o(s) dever(es)”, dá muitos preceitos a pais, filhos e irmãos; mas ninguém cumprirá seu dever como deveria, a menos que tenha algum princípio ao qual possa basear sua conduta. Devemos colocar diante de nossos olhos o objetivo do Bem Supremo, para o qual devemos lutar, e para o qual todos os nossos atos e palavras devem ter referência – assim como os marinheiros devem orientar seu curso de acordo com uma certa estrela.
46. A vida sem ideais é errática: assim que um ideal é configurado, as doutrinas começam a ser necessárias. Tenho certeza de que você admitirá que não há nada mais vergonhoso do que uma conduta incerta e vacilante, do que o hábito de um recuo receoso, sem saber onde por os pés. Esta será a nossa experiência em todos os casos, se primeiro não eliminarmos as causas que nos entravam e manietam a alma e a impedem de dar o melhor de si própria.
47. Preceitos são geralmente ditos sobre como os deuses devem ser adorados. Mas vamos proibir que as lâmpadas sejam iluminadas no sábado,[17] já que os deuses não precisam de luz, nem os homens apreciam a fuligem. Permitamos que os homens ofereçam saudações matutinas e se aglomerem nas portas dos templos; as ambições mortais são atraídas por tais cerimônias, mas Deus é adorado por aqueles que realmente o conhecem. Permita-nos proibir trazer toalhas e raspadores de banho para Júpiter, e oferecer espelhos para Juno; pois Deus não precisa de servos. Claro que não; ele mesmo faz serviço à humanidade, em todos os lugares e a tudo Deus sempre está à mão para ajudar.
48. Embora um homem ouça quais limites deve observar em sacrifício, e até onde deve se afastar de superstições onerosas, ele nunca fará progresso suficiente até que tenha concebido uma ideia correta de Deus – referindo-se a Ele como alguém que possui todas as coisas, e atribui todas as coisas, e as concede sem contrapartida.
49. E por que razão os deuses têm feito ações de bondade? É a sua natureza. Quem pensa que não estão dispostos a fazer mal, está errado; eles não podem fazer mal. Eles não podem receber ou infligir ferimentos; pois causar dano tem a mesma natureza que sofrer danos. A natureza universal, toda gloriosa e toda bonita, tornou-se incapaz de infligir males aqueles que retirou do perigo do mal.
50. O primeiro ato para adorar os deuses é acreditar nos deuses; ao lado de reconhecer sua majestade, reconhecer sua bondade sem a qual não há majestade. Além disso, para saber que eles são comandantes supremos no universo, controlando todas as coisas pelo seu poder e agindo como guardiões da raça humana, mesmo que às vezes não sejam conscientes do indivíduo. Eles não dão nem têm o mal, mas eles castigam e restringem certas pessoas e impõem penalidades e, às vezes, punem ao conceder o que parece bom externamente. Você quer ser agradável aos deuses? Então seja um bom homem. Quem os imita, está os adorando suficientemente.
51. Então vem o segundo problema, como lidar com homens. Qual é o nosso propósito? Que preceitos oferecemos? Devemos pedir que se abstenham de derramar sangue? Que pequena coisa não é prejudicar alguém a quem você deveria ajudar! É realmente digno de grandes elogios, quando o homem trata o homem com bondade! Devemos aconselhar esticar a mão para o marinheiro naufragado, ou apontar o caminho para ao viajante, ou compartilhar uma migalha com o faminto? Sim, se eu puder apenas lhe dizer primeiro tudo o que deve ser concedido ou retido; entretanto, posso estabelecer para a humanidade uma regra curta para os nossos deveres nas relações humanas:
52. Tudo o que você vê, o que abrange o divino e o homem, é um – somos partes de um grande corpo. A natureza nos produziu relacionados uns com os outros, já que ela nos criou da mesma fonte e para o mesmo fim. Ela engendrou em nós um afeto mútuo, e nos fez propensos a amizades. Ela estabeleceu equidade e justiça; de acordo com sua decisão, é mais lamentável cometer do que sofrer lesões. Por meio de suas ordens, deixe nossas mãos estarem prontas para todos que precisam ser ajudados.
53. Deixe este verso penetrar seu coração e estar sempre pronto nos seus lábios:
Deixe-nos possuir coisas em comum; o nascimento é nosso em comum. Nossas relações uns com os outros são como um arco de pedra, que colapsaria se as pedras não se apoiassem mutuamente.
54. Em seguida, depois de considerar deuses e homens, vejamos como devemos fazer uso das coisas. É inútil que possamos ter preceitos, a menos que comecemos por refletir sobre a opinião que devemos ter em relação a tudo – acerca da pobreza, riqueza, renome, desgraça, cidadania, exílio. Deixe-nos banir o rumor e definir um valor em cada coisa, perguntando o que cada coisa é de fato, e não o que os homens lhe chamam.
55. Passemos agora a uma consideração das virtudes. Algumas pessoas nos aconselharão a avaliar altamente a prudência, apreciar a bravura e ter mais próximo, se possível, a justiça do que todas as outras qualidades. Mas isso não nos fará bem, se não soubermos o que é a virtude, seja simples ou composta, seja uma ou mais do que uma, se suas partes estão separadas ou entrelaçadas umas com as outras; se aquele que tem uma virtude também possui as outras virtudes; e quais são as distinções entre elas.
56. O carpinteiro não precisa investigar sua arte à luz de sua origem ou de sua função, mais do que um artista de pantomima precisa investigar a arte de dançar; se essas artes se entendem, nada falta, pois não se referem à vida como um todo. Mas a virtude significa o conhecimento de outras coisas além de si mesma: se quisermos aprender a virtude, devemos aprender tudo sobre a virtude.
57. A conduta não terá razão, a menos que a vontade de agir seja correta; pois esta é a fonte de conduta. Nem, novamente, a vontade estará certa sem uma atitude correta da mente; pois esta é a fonte da vontade. Além disso, essa atitude de espírito não será encontrada mesmo no melhor dos homens, a menos que tenha aprendido as leis da vida como um todo e tenha elaborado um julgamento adequado sobre tudo e a menos que tenha reduzido os fatos a um padrão de verdade. A paz mental é desfrutada apenas por aqueles que alcançaram um padrão de julgamento fixo e imutável; o resto da humanidade continuamente rasa e vagante em suas decisões, flutuando em uma condição onde alternadamente rejeitam as coisas e as buscam. Permanecem indecisos sem saber se hão de levar ou não até ao fim os seus propósitos.
58. E qual é a razão para esse jogar de um lado para o outro? É porque nada é claro para eles, porque eles usam o critério mais inseguro – a opinião comum. Se você quiser sempre desejar a mesma coisa, você deve desejar a verdade. Mas não se pode alcançar a verdade sem princípios básicos; os princípios abraçam toda a vida. As coisas boas e más, honestas e vergonhosas, justas e injustas, obedientes e desleais, as virtudes e a prática delas, a posse de confortos, valor e respeito, saúde, força, beleza, agilidade dos sentidos – todas essas qualidades exigem quem seja capaz de avaliá-las. À pessoa deve ser concedido saber qual o valor de cada objeto a ser classificado.
59. Por vezes você é enganado e acredita que certas coisas valem mais do que seu real valor; na verdade, você é enganado pois acha que deva valorar em mera moeda aquelas coisas que nós, homens, consideramos valer mais, por exemplo, riqueza, influência e poder. Você nunca entenderá isso, a menos que tenha investigado o padrão real pelo qual essas condições são relativamente avaliadas. Como as folhas não podem prosperar por meio de seus próprios esforços, mas precisam de um ramo ao qual elas possam se apegar e de onde possam tirar a seiva, então seus preceitos, quando levados sozinhos, desaparecem; eles devem ser enxertados em uma escola de filosofia.
60. Além disso, aqueles que eliminam os princípios não entendem que são provados pelos próprios argumentos através os quais eles dão para refutá-los. Pois o que esses homens estão dizendo? Eles estão dizendo que os preceitos são suficientes para desenvolver a vida e que os princípios de sabedoria (em outras palavras, dogmas) são supérfluos. E, no entanto, esse próprio enunciado deles é um princípio, como se eu devesse agora observar que é preciso dispensar os preceitos com o fundamento de serem supérfluos, que é preciso fazer uso de princípios e que nossos estudos devem ser direcionados exclusivamente para esse fim; assim, pela minha própria afirmação de que os preceitos não devem ser levados a sério, eu estaria proferindo um preceito!
61. Existem alguns assuntos em filosofia que precisam de admoestação; há outros que precisam de prova, e uma grande prova, também, porque eles são complicados e dificilmente podem ser esclarecidos com o maior cuidado e a maior habilidade dialética. Se as provas forem necessárias, também são doutrinas; as doutrinas deduzem a verdade por meio do raciocínio. Alguns assuntos são claros e outros são vagos: aqueles que os sentidos e a memória podem abraçar são claros; aqueles que estão fora do alcance deles são vagas. Mas a razão não é satisfeita por fatos óbvios; sua função mais alta e mais nobre é lidar com coisas ocultas. As coisas escondidas precisam de prova; a prova não pode vir sem princípios; portanto, princípios são necessários.
62. O que leva a um acordo geral, e semelhante a um perfeito, é uma crença segura em certos fatos; mas, se, sem essa garantia, todas as coisas estão à deriva em nossas mentes, então os princípios são indispensáveis; pois eles dão às nossas mentes os meios de uma decisão inabalável.
63. Além disso, quando aconselhamos um homem a considerar seus amigos tão altamente como a si mesmo, para refletir que um inimigo pode se tornar um amigo, a estimular o amor no amigo e aplacar o ódio no inimigo, acrescentamos: “Isso é justo e honroso”. Agora, o elemento justo e honroso em nossos princípios é abraçado pela razão; portanto, a razão é necessária; pois sem ela os princípios também não podem existir.
64. Mas vamos unir as duas. Pois, de fato, os ramos são inúteis sem suas raízes, e as raízes são fortalecidas pelos ramos que produziram. Todos podem entender quão úteis são as mãos; elas, obviamente, nos ajudam. Mas o coração, a fonte do crescimento, do poder e do movimento das mãos, está escondido. E posso dizer o mesmo sobre os preceitos: eles são manifestos, enquanto os princípios da sabedoria estão escondidos. E como somente os iniciados conhecem a porção mais sagrada dos ritos, então, na filosofia, as verdades ocultas são reveladas apenas aos que são membros e foram admitidos nos ritos sagrados. Mas os preceitos e outros assuntos são familiares mesmo para os não iniciados.
65. Posidônio sustenta que não só a dação de preceitos (não há nada para impedir que use essa palavra), mas mesmo a persuasão, a consolação e o encorajamento são necessários. Para isso, ele acrescenta a investigação das causas (mas não consigo ver por que eu não deveria ousar chamar isso de “etiologia”,[19] uma vez que os estudiosos que monitoram a língua latina usam o termo como tendo o direito de fazê-lo). Ele observa que também será útil ilustrar cada virtude particular; esta ciência Posidônio chama etologia, enquanto outros a chamam de caracterismo. Dá os sinais e as marcas que pertencem a cada virtude e vício, de modo que, por meio deles, a distinção pode ser feita entre coisas semelhantes.
66. Sua função é a mesma que a do preceito. Pois aquele que profere preceitos diz: “Se você quiser ter autocontrole, aja assim e assim”. Aquele que ilustra, diz: “O homem que age assim e assim, e se abstém de certas outras coisas, possui autocontrole”. Se você perguntar qual é a diferença aqui, digo que uma pessoa dá os preceitos da virtude, a outra dá sua personificação. Essas ilustrações, ou, para usar um termo comercial, essas amostras, têm, eu confesso, uma certa utilidade; basta colocá-las à exposição com boas recomendações, e você encontrará homens para copiá-las.
67. Você, por exemplo, julgaria ser útil ter evidências para que você reconhecesse um cavalo de puro sangue e não fosse enganado em sua compra ou desperdiçasse seu tempo por um animal inferior? Mas quanto mais útil é conhecer as marcas de uma alma insuperável – marcas que alguém pode apropriar de outro para si mesmo!
68. Imediatamente, o potro de raça pura pisa a terra,Marchando com um passo animado;É o primeiro a caminha e a atravessar os rios de peito abertoCom ousadia, confia na ponte desconhecida,Não temendo estrondo vazio. Seu pescoço elevadoE cabeça ágil, barriga curta e costas fortes,Seu peito com espírito exibe seus nervos… … Então, se a guerra ressoa ao longeNão pode descansar, mas pica os ouvidos com os membros curiosos,Reunindo sob suas narinas, espirala fogo.
Continue pecoris generosi pullus in arvisAltius ingreditur et mollia crura reponit;Primus et ire viam et fluvios temptare minantisAudet et ignoto sese committere ponti,Nec vanos horret strepitus. Illi ardua cervixArgutumque caput, brevis alvus obesaque terga,Luxuriatque toris animosum pectus……Turn, si qua sonum procul arma dederunt.Stare loco nescit, micat auribus et tremit artusConlectumque premens volvit sub naribus ignem.[20]
69. A descrição de Virgílio, embora se refira a outra coisa, poderia perfeitamente ser o retrato de um homem corajoso; de qualquer forma, eu mesmo não deveria selecionar nenhum outro símile para um herói. Se eu tivesse que descrever Catão, que estava desesperado no meio da guerra civil, que primeiro atacou os exércitos que já marchavam para os Alpes, que mergulhou de frente no conflito civil, esse é exatamente o tipo de expressão e atitude que eu deveria dar a ele.
70. Certamente, ninguém poderia mais “marchar com um passo animado” do que aquele que se levantou contra César e Pompeu ao mesmo tempo e quando alguns estavam apoiando o partido de César e outros, o de Pompeu, lançou um desafio aos dois líderes, mostrando assim que a república também tinha alguns apoiantes. Pois não basta dizer de Catão “não treme ao ouvir ruídos vãos”. Claro que ele não tem medo! Ele não recua frente a ruídos reais e iminentes; Diante de dez legiões, reforços gauleses e uma multidão de cidadãos e estrangeiros, ele pronuncia palavras repletas de liberdade, encorajando a República a não falhar na luta pela liberdade, mas a lutar contra todos os perigos; ele declara que é mais honrado cair em servidão do que estar de acordo com ela.
71. Que força e energia ele tem! Que confiança ele exibe em meio ao pânico geral! Ele sabe que é o único cuja situação não está em questão, e que os homens não perguntam se Catão é livre, mas se ele ainda está entre os livres. Daí o seu desprezo pelo perigo e pela espada. Que prazer dizer, admirando a firmeza constante de um herói que não caiu quando todo o estado estava em ruínas: “Um peito másculo, abundante em coragem!”
72. Será útil não apenas indicar qual é a qualidade usual dos homens bons e delinear suas figuras e características, mas também relacionar e estabelecer que homens desse tipo houveram. Podemos imaginar a última e mais valente ferida de Catão, através da qual a Liberdade expirou por último; ou o sábio Lélio e sua vida harmoniosa com seu amigo Cipião; ou os nobres atos do outro Catão, o velho, em feitos públicos ou privados; ou os bancos de madeira de Q. Tubero com pele de cabra em vez de tapeçarias, e vasos de barro expostos para o banquete frente ao próprio santuário de Júpiter! O que mais significou, exceto consagração da pobreza diante do próprio Capitólio? Embora eu não conheça nenhum outro seu para o classificar entre os Catões, este não é o suficiente? Era uma censura pública, não um banquete.
73. Quão lamentavelmente os que desejam a glória mas não conseguem entender o que é a glória, ou de que maneira deve ser procurada! Naquele dia, a população romana viu a mobília de muitos homens; ficaram maravilhados apenas com a de um! O ouro e a prata de todos os outros foram quebrados e derretidos várias vezes; mas os copos de barro de Tubero persistirão pela eternidade.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Na retórica, a protrepsia (grego: πρότρεψις) e a paraênesis (παραίνεσις) são dois estilos de exortação intimamente relacionados que são empregados por filósofos morais. O uso de “conselhos por preceitos”, discutido na carta anterior por outro ângulo.
[2] “vernilitas”, o descaramento ou ousadia de um escravo domestico.
[3]Asclepíades de Bitínia (129 a.C. – 40 a.C.) foi um médico grego nascido em Prusa, na Bitínia, que trabalhou em Roma. Teve sua formação em Alexandria, o maior centro científico de sua época. Asclepíades tinha muitos pupilos, que formavam a escola Metódica.
[6] Do Latim “elementa et membra”, pode significar “letras e cláusulas” ou “matéria e formas de matéria”.
[7] A hidropsia, também conhecida como ascite, ou barriga d’água, não é uma doença propriamente dita, mas um sinal clínico que pode ser decorrente de algumas enfermidades., uma síndrome. Ela ocorre quando há retenção de líquidos na cavidade abdominal, músculos e pele, o que prejudica o bom funcionamento do organismo como um todo.
[9]Catamita era o companheiro jovem, pré-adolescente ou adolescente, em uma relação de pederastia entre dois homens no mundo antigo, especialmente na antiga Roma. Geralmente refere-se a amantes homossexuais jovens e passivos.
[12] Mais uma vez Sêneca critica os tão populares jogos de gladiadores
[13] A ordem equestre romana (ordo equester) formava a mais baixa das duas classes aristocráticas da Roma Antiga, estando abaixo da ordem senatorial (ordo senatorius).
[14] Jantar de gala oferecido pelo oficial ao assumir seu posto.
[15] O sestércio (sestertius, em latim) era uma antiga moeda romana. O sestércio foi criado por volta de 211 a.C. como uma pequena moeda de prata que valia um-quarto de denário
[16] Marco Gávio Apício (ou simplesmente Apício; em latim Marcus Gavius Apicius) foi um gastrônomo romano do século I d.C. suposto escritor do livro De re coquinaria, a melhor fonte para se conhecer a gastronomia do mundo romano.
[17] Alusão ao culto judaico, que se difundiu um tanto em Roma e chegou mesmo a gozar de uma certa protecção de Popeia, mulher de Nero.
[18] Trecho de Heaautontimorumenos (O Punidor de Si Mesmo), de Públio Terêncio Afro.
[19]etiologia (do grego αιτία, aitía, “causa”) é o estudo ou ciência das causas.
[20] Trecho de Geórgias, iii, de Virgílio, 75-81 e 83-85.
Na carta 94 Sêneca usa a técnica do diálogo para debater se preceitos, ou seja, conselhos práticos sobre casos individuas, são ou não úteis à filosofia.
Usa os primeiros 17 parágrafos para apresentar a opinião de Aríston, um estoico que estudou com Zenão. Ao fim desta exposição ficamos convencidos que o uso de conselhos práticos é algo indevido e inútil à filosofia. Contudo, Sêneca usa então o restante da carta para desmontar cada um dos argumentos dos antigos estoicos e defender aguerridamente a utilidade dos preceitos:
As pessoas dizem: “Qual a vantagem apontar o óbvio?” Muito bom; pois às vezes conhecemos fatos sem prestar atenção neles. O conselho não é para ensinar; apenas simplesmente aguça a atenção e nos desperta. Concentra a memória e a impede de perder o controle. (XCIV, 25)
“Seja econômico com o tempo!” “Conheça a ti mesmo!” Porventura precisa ser informado do significado quando alguém lhe repete linhas como estas? Essas máximas não precisam de nenhum argumento especial; elas vão direto às nossas emoções e nos ajudam simplesmente porque a Natureza está exercendo sua função adequada. (XCIV, 28)
A carta também debate pontos de vista de Cleantes e Posodônio, filósofos estoicos gregos cujas obras não sobreviveram ao tempo.
1. Esse departamento da filosofia que fornece preceitos adequados a caso individual, em vez de enquadrá-los para a humanidade em geral[1] – o que, por exemplo, aconselha como um marido deve se conduzir em relação a sua esposa ou como um pai deve educar seus filhos, ou como um mestre deve governar seus escravos – este departamento da filosofia, digo, é aceito por alguns como a única parte significativa, enquanto os outros departamentos são rejeitados com o argumento de que eles se desviam para além da esfera de necessidades práticas – como se qualquer homem pudesse dar conselhos sobre uma parcela da vida sem ter adquirido primeiro um conhecimento do total da vida como um todo!
2. Mas Aríston,[2] o estoico, pelo contrário, acredita que o departamento acima mencionado é de pouca importância – ele afirma que não penetra na mente, não tendo neles mais que preceitos de velhos e que o maior benefício é derivado dos dogmas reais da filosofia e da definição do Sumo Bem. Quando um homem ganha uma compreensão completa dessa definição e aprende tais princípios, diz ele, será capaz de deliberar por si próprio o que fazer em cada situação.
3. Assim como o aluno do lançamento do dardo continua visando um alvo fixo e, assim, treina a mão para dar direção ao míssil. Quando, por instrução e prática, ganha a habilidade desejada, ele pode empregá-lo contra qualquer alvo que deseje tendo aprendido a atingir não qualquer objeto aleatório, mas precisamente o objeto em que ele apontou. Aquele que se equipa para toda a vida não precisa ser aconselhado sobre cada item separado, porque agora está treinado para se opor a seu problema como um todo; pois não sabe apenas como ele deve viver com sua esposa ou seu filho, mas como ele deve viver corretamente. Nesse conhecimento, também está incluído a forma adequada de viver com esposa e filhos.
4. Cleantes sustenta que este departamento da sabedoria é realmente útil, mas que é uma coisa fraca, a menos que seja derivada de princípios gerais, isto é, a menos que seja baseado em um conhecimento dos dogmas reais da filosofia e suas principais rubricas. Este assunto é, portanto, duplo, levando a duas linhas de investigação separadas: primeiro, é útil ou inútil? E, segundo, pode produzir um bom homem? Em outras palavras, é supérfluo, ou torna todos os outros departamentos supérfluos?
5. Aqueles que exigem a visão de que este departamento é supérfluo argumentam da seguinte forma: “Se um objeto que é mantido na frente dos olhos interfere com a visão, ele deve ser removido. Porque enquanto estiver no caminho, é uma perda de tempo oferecer tais preceitos como estes: Caminhe assim e assim, estenda a mão naquela direção”. Da mesma forma, quando algo cega a alma de um homem e impede-a de ver a linha do dever claramente, não adianta aconselhá-lo: “Viva assim e assim com seu pai, assim e assim com sua esposa”. Porque os preceitos não servirão de nada, enquanto a mente está nublada de erro, somente quando a nuvem estiver dispersa ficará claro qual é o dever de cada um. Caso contrário, você apenas mostrará ao homem doente o que ele deveria fazer se estivesse bom, em vez de fazê-lo bom.
6. Suponha que você esteja tentando revelar ao homem pobre a arte de “agir como rico”; como se pode realizar isso enquanto sua pobreza não for alterada? Você está tentando deixar claro para um faminto de que maneira ele deve atuar o papel de alguém com um estômago bem preenchido; o primeiro requisito, no entanto, é aliviá-lo da fome que agarra seus sinais vitais. “O mesmo, asseguro-lhe, é válido para as falhas, as próprias falhas devem ser removidas e não devem ser dados preceitos que não possam ser realizados enquanto as falhas permanecem. A menos que você expulse as falsas opiniões sob as quais sofremos, o avarento nunca receberá instrução sobre o uso adequado do seu dinheiro, nem o covarde quanto ao modo de desprezar o perigo.”
7. Você deve fazer com que o avarento saiba que o dinheiro não é bem nem um mal, mostre-lhe homens de riqueza que são miseráveis até o último grau. Você deve informar o covarde que as coisas que geralmente nos assustam são menos temerosas que o boato anuncia, se o objeto do medo é o sofrimento ou a morte, que quando a morte vem – fixada por lei para todos nós – muitas vezes é um grande consolo refletir que nunca pode voltar, que em meio ao sofrimento, a determinação da alma será tão boa como uma cura, pois a alma torna mais leve qualquer fardo que resista com uma determinação corajosa. E lembre-se que a dor tem essa qualidade excelente: se for prolongada, ela não pode ser grave e, se grave, não pode ser prolongada; e que devemos aceitar corajosamente o que quer que as leis inevitáveis do universo lance sobre nós.
8. Quando, por meio de tais doutrinas, você trouxer o homem pecador para um senso de sua própria condição, quando souber que a vida feliz não é aquilo que se ajusta ao prazer, mas o que está em conformidade com a Natureza, quando ele cair profundamente apaixonado pela virtude como o único bem do homem e evitar a infâmia como o único mal do homem, e quando ele souber que todas as outras coisas – riqueza, cargos, saúde, força, domínio – ocupam posição intermediário, indiferente, e não devem ser contadas nem entre bens nem entre os males, então ele não precisará de um bedel para cada ação separada, para dizer-lhe: “Caminha assim e assim, coma assim e assim. Esta é a conduta própria de um homem e a de uma mulher, isto para um homem casado e isso para um solteiro.”
9. De fato, as pessoas que se esforçam para oferecer esses conselhos não são capazes de pô-los em prática. É assim que o pedagogo aconselha o menino e a avó, seu neto, é o professor mais irritadiço da escola que afirma que nunca se deve perder o temperamento. Vá para uma escola primária, e você aprenderá que apenas esses pronunciamentos, que emanam de filósofos altamente qualificados, podem ser encontrados no livro de aula para meninos!
10. Outro ponto: vocês oferecerão preceitos que são claros ou preceitos que são duvidosos? Aqueles que são claros não precisam de conselheiro, e preceitos duvidosos não ganham credibilidade, de modo que a prestação de preceitos é supérflua. Na verdade, você deveria estudar o problema dessa maneira: Se você está aconselhando alguém em uma questão obscura e de sentido duvidoso, você deve completar seus preceitos por meio de provas, e se você deve recorrer a provas, seus meios de prova são mais eficazes e mais satisfatórios em si mesmos.
11. É assim que você deve tratar seu amigo, assim seu cidadão, assim seu associado. E por quê? “Porque é justo.” No entanto, posso encontrar todo esse material incluído sob o título de Justiça. Acho que o jogo limpo é desejável em si mesmo, não sermos forçados a isso pelo medo nem contratados para esse fim via pagamento, e que nenhum homem é justo senão quem é atraído por qualquer coisa além da própria virtude do ato. Depois de convencer-me dessa visão e absorvê-la completamente, o que posso obter de tais preceitos, que só ensinam quem já está treinado? Para quem sabe, é supérfluo dar preceitos, a quem não sabe, é insuficiente. Pois deve ser informado, não só o que está sendo instruído a fazer, mas também o porquê.
12. Repito, tais preceitos são úteis para aquele que tem ideias corretas sobre o bem e o mal, ou para quem não tem? O último não receberá nenhum benefício de você; uma ideia que entra em conflito com seu conselho já monopolizou sua atenção. Aquele que tomou uma decisão cuidadosa sobre o que deva ser procurado e o que deva ser evitado sabe o que deve fazer, sem uma única palavra de você. Portanto, todo esse departamento de filosofia pode ser abolido.
13. Há duas razões pelas quais nos extraviamos: ou há na alma uma qualidade má que foi provocada por opiniões erradas, ou, mesmo que não possuídas por ideias falsas, a alma é propensa a falsidade e rapidamente corrompida por alguma aparência externa que a atrai na direção errada. Por esta razão, é nosso dever tratar com cuidado a mente doente e liberá-la de falhas, ou tomar posse da mente quando ainda está desocupada e ainda inclinada ao que é mal. Ambos os resultados podem ser alcançados pelas principais doutrinas da filosofia, portanto, a oferta de tais preceitos não serve de nada.
14. Além disso, se dermos preceitos a cada indivíduo, a tarefa é estupenda. Pois uma classe de preceito deve ser dada ao financista, outra ao fazendeiro, outra ao homem de negócios, outra a quem cultiva as boas graças da realeza, outra a quem procurará a amizade de seus iguais, outra a ele que irá julgar os de menor hierarquia.
15. No caso do casamento, você avisará a uma pessoa como ela deve se comportar com uma esposa que antes de seu casamento era uma donzela, e outra como deveria se comportar com uma mulher que anteriormente tinha estado casada com outro; como o marido de uma mulher rica deve agir, ou outro homem com uma esposa sem dote. Ou você não pensa que há alguma diferença entre uma mulher estéril e uma que tem filhos, entre uma avançada em anos e uma mera garota, entre uma mãe e uma madrasta? Não podemos incluir todos os tipos e, no entanto, cada tipo requer tratamento separado; mas as leis da filosofia são concisas e são válidas em todos os casos.
16. Além disso, os preceitos da sabedoria devem ser definidos e certos: quando as coisas não podem ser definidas, estão fora da esfera da sabedoria; pois a sabedoria conhece os limites adequados das coisas. Devemos, portanto, acabar com este departamento de preceitos, porque não pode cumprir tudo aquilo que promete apenas a alguns, mas a sabedoria abraça tudo.
17. Entre a insanidade das pessoas em geral e a insanidade que está sujeita a tratamento médico, não há diferença, exceto que esta sofre de doença e a primeira de opiniões falsas. Em um caso, os sintomas da loucura podem ser atribuídos a doenças; no outro a má saúde da mente. Se alguém oferecer preceitos a um louco – como ele deveria falar, como ele deveria andar, como ele deveria se comportar em público e privado, este seria mais lunático do que a pessoa a quem ele está aconselhando. O que é realmente necessário é tratar a bílis negra[3] e remover a causa essencial da loucura. E isso é o que também deve ser feito no outro caso: o da mente doente. A própria loucura deve ser abalada; caso contrário, suas palavras de conselho desaparecerão no ar.
18. Isto é que Aríston diz; e eu responderei seus argumentos um a um. Primeiro, em oposição ao que ele diz sobre a obrigação de alguém de remover o que bloqueia o olho e dificulta a visão. Eu admito que essa pessoa não precisa de preceitos para ver, mas que precisa de tratamento para curar sua visão e livrar-se do obstáculo que a prejudica. Pois é a natureza que nos dá a nossa visão; e aquele que remove os obstáculos restaura a natureza para sua própria função. Mas a natureza não nos ensina nosso dever em todos os casos.
19. Mais uma vez, se a catarata de um homem é curada, ele não pode, imediatamente após sua recuperação, devolver a visão a outros homens também; mas quando somos libertos do mal, podemos também libertar os outros. Não há necessidade de incentivo, ou mesmo de conselho, para que o olho possa distinguir cores diferentes; preto e branco podem ser diferenciados sem instigação de outro. A mente, por outro lado, precisa de muitos preceitos para ver o que deve fazer na vida; no tratamento dos olhos o médico não só realiza a cura, mas também dá conselhos na barganha.
20. Ele diz: “Não há nenhuma razão pela qual você deva imediatamente expor sua visão fraca para um brilho perigoso, comece com a escuridão, e então entre em meia-luz, e, finalmente, seja mais ousado, acostumando-se gradualmente à luz brilhante do dia. Não há razão para que você deva estudar imediatamente depois de comer, não há razão para que você imponha tarefas difíceis aos seus olhos quando estão inchados e inflamados, evite os ventos e as fortes rajadas de ar frio que sopram no seu rosto” – E outras sugestões do mesmo tipo, que são tão valiosas quanto as próprias drogas. A arte do médico complementa remédios por conselho.
21. “Mas,” vem a resposta, “o erro é a fonte do pecado, os preceitos não eliminam o erro, nem expulsam nossas falsas opiniões sobre o bem e o mal”. Eu admito que os preceitos por si só não são eficazes para derrubar as crenças equivocadas da mente; mas eles, naquela conta, não falham quando acompanhados de outras medidas também. Em primeiro lugar, eles atualizam a memória; em segundo lugar, quando classificados em suas próprias categorias, os assuntos que se mostraram uma massa confusa quando considerados como um todo, podem ser considerados dessa forma com maior cuidado. De acordo com a teoria dos nossos adversários, você pode até dizer que o consolo e a exortação são supérfluos. No entanto, eles não são supérfluos; nem também o é o conselho.
22. “Mas é loucura”, replicam, “prescrever o que um homem doente deveria fazer, como se estivesse bom, quando você realmente deveria restaurar sua saúde, porque sem saúde preceitos não valem a pena”. Mas não tem homens doentes e homens sadios em comum, no sentido em que eles precisam de conselhos contínuos? Por exemplo, para não acatar avidamente os alimentos, e para evitar ficar exausto. Pobre e rico têm em comum certos preceitos válidos a ambos.
23. “Cure a ganância deles, então”, as pessoas dizem, “e você não precisará palestrar tanto para os pobres como para os ricos, desde que, no caso de cada um deles, o desejo tenha diminuído”. Mas não é uma coisa ser livre do desejo por dinheiro, e outra coisa saber como usar esse dinheiro? Os sovinas não conhecem os limites adequados em matéria de dinheiro, mas mesmo aqueles que não são avarentos não conseguem compreender o seu uso. Então vem a resposta: “Evite o erro e seus preceitos se tornam desnecessários”. Isso esta errado; pois supor que a avareza é diminuída, que o luxo é confinado, que a imprudência é retida, e que a preguiça é estimulada pela espora; mesmo depois que os vícios são removidos, devemos continuar a aprender o que devemos fazer, e como devemos fazê-lo.
24. “Nada”, diz-se, “será realizado aplicando conselhos sobre faltas mais graves”. Não; e nem mesmo medicamentos podem dominar doenças incuráveis; no entanto, são usados em alguns casos como remédio, em outros como alívio. Nem mesmo o poder da filosofia universal, embora convoque toda a sua força para o propósito, removerá da alma o que é agora uma doença teimosa e crônica. Mas a sabedoria, apenas porque ela não tem poder para curar tudo, não é incapaz de fazer curas.
25. As pessoas dizem: “Qual a vantagem apontar o óbvio?” Muito bom; pois às vezes conhecemos fatos sem prestar atenção neles. O conselho não é para ensinar; apenas simplesmente aguça a atenção e nos despertar. Concentra a memória e a impede de perder o controle. Deixamos passar muito do que está diante dos nossos próprios olhos. O conselho é, de fato, uma espécie de exortação. A mente geralmente tenta ignorar mesmo aquilo que está diante de nossos olhos; devemos, portanto, impor a ela o conhecimento de coisas perfeitamente conhecidas. Pode-se repetir aqui o ditado de Calvo[4] sobre Vatínio[5]: “Vocês sabem que o suborno está acontecendo, e todos sabem que vocês sabem disso”.
26. Você sabe que a amizade deve ser escrupulosamente honrada e, no entanto, você não a mantém honrada. Você sabe que um homem faz errado ao exigir a castidade de sua esposa, enquanto ele mesmo está com esposas de outros homens; você sabe que, assim como sua esposa não deve ter relações com um amante, você também não deve se relacionar com uma amante; e ainda assim você não age de acordo. Portanto, você deve ser continuamente trazido a lembrar desses fatos; pois eles não devem estar no armazém, mas estar prontos para o uso. E o que quer que seja saudável deve ser frequentemente discutido e muitas vezes trazido à frente da mente, para que possa estar não apenas familiar a nós, mas também pronto para o uso. E lembre-se, também, de que, desta forma, as verdades evidentes se tornam ainda mais evidentes.
27. “Mas se”, vem a resposta, “seus preceitos não são óbvios, você será obrigado a adicionar provas, daí as provas e não os preceitos serão úteis”. Mas a influência do bedel não pode ser útil, mesmo sem provas? É como as opiniões de um especialista jurídico, que são válidas mesmo que os motivos para elas não sejam entregues. Além disso, os preceitos que são dados são de grande peso em si mesmos, sejam eles narrados no tecido da canção ou condensados em provérbios de prosa, como a famosa sabedoria de Catão: “Não compre o que você deseja, mas o que você deve ter. O que você não precisa, é caro mesmo por um ceitil”.[6] Ou aquelas respostas oraculares, como:
28. “Seja econômico com o tempo!” “Conheça a ti mesmo!” Porventura precisa ser informado do significado quando alguém lhe repete linhas como estas:
Esquecer os problemas é a maneira de curá-los.A fortuna favorece os corajosos, mas o covarde fica pelo caminho.
Iniuriarum remedium est oblivio.Audentes fortuna iuvat, piger ipse sibi obstat.[7]
Essas máximas não precisam de nenhum argumento especial; elas vão direto às nossas emoções e nos ajudam simplesmente porque a Natureza está exercendo sua função adequada.
29. A alma carrega dentro de si a semente de tudo o que é honrado, e esta semente é estimulada ao crescimento por conselho, como uma faísca que ventilada por uma suave brisa desenvolve seu fogo natural. A virtude é despertada por um toque, um choque. Além disso, há certas coisas que, embora na mente, ainda não estão prontas para serem aplicadas, mas começam a funcionar facilmente assim que são colocadas em palavras. Certas coisas se espalham em vários lugares, e é impossível que a mente não organizada organize-as em ordem. Portanto, devemos levá-las à unidade, e juntar-se a elas, para que elas possam ser mais poderosas e mais uma elevação para a alma.
30. Ou, se os preceitos não servem de nada, então todos os métodos de instrução devem ser abolidos e devemos nos contentar apenas com a Natureza. Aqueles que mantêm esta visão não entendem que um homem é animado e rápido de inteligência, outro é lento e estúpido, e certamente alguns homens têm mais inteligência do que outros. A força do espírito é nutrida e continua crescendo por preceitos; ele acrescenta novos pontos de vista para aqueles que são inatos e corrige ideias depravadas.
31. “Mas suponha”, as pessoas replicam, “que um homem não é possuidor de dogmas sólidos, como o conselho pode ajudá-lo quando é acorrentado por dogmas viciosos?” Nesse caso, com certeza, ele é libertado disso; pois sua disposição natural não foi esmagada, mas superada e mantida baixa. Mesmo assim, continua tentando se levantar de novo, lutando contra as influências que fazem o mal; mas quando ganha apoio e recebe ajuda de preceitos, cresce mais forte, desde que o problema crônico não tenha corrompido ou aniquilado o homem natural. Nesse caso, nem mesmo o treinamento que vem da filosofia, lutando com todas as suas forças, fará a restauração. Que diferença, de fato, há entre os dogmas da filosofia e os preceitos, a menos que seja isso, que os primeiros são gerais e os últimos especiais? Ambos lidam com conselhos, um através do universal, o outro através do particular.
32. Alguns dizem: “Se alguém está familiarizado com dogmas justos e honestos, será supérfluo aconselhá-lo”. De jeito nenhum; pois essa pessoa realmente aprendeu a fazer coisas que deveria fazer; mas não vê com suficiente clareza quais são essas coisas. Pois somos impedidos de realizar ações dignas de louvor, não só por nossas emoções, mas também por falta de prática para descobrir as demandas de uma situação particular. Nossas mentes muitas vezes estão sob um bom controle e, no entanto, estão ao mesmo tempo inativas e inexperientes em encontrar o caminho do dever, e o conselho torna isso claro.
33. Mais uma vez, está escrito: “Retire todas as falsas opiniões relativas ao beme ao mal, mas substitua-as por opiniões verdadeiras, então o conselho não terá função a executar”. A ordem da alma pode, sem dúvida, ser estabelecida dessa maneira; mas estas não são as únicas maneiras. Pois, embora possamos deduzir por provas apenas o que é o bem e o mal, no entanto, os preceitos têm seu próprio papel. A prudência e a justiça consistem em certos deveres; e os deveres são definidos por preceitos.
34. Além disso, o julgamento quanto ao bem e ao mal se fortalece ao seguir nossos deveres, e os preceitos nos conduzem para esse fim. Pois ambos estão de acordo um com o outro; nem os preceitos podem assumir a liderança, a menos que os deveres os seguirem. Observam sua ordem natural; portanto, os preceitos são claramente os primeiros.
35. “Preceitos”, diz-se “são inúmeros”. Errado de novo! Pois não são inúmeros no que diz respeito a coisas importantes e essenciais. Claro que há pequenas distinções, devido ao tempo, ou ao lugar, ou à pessoa; mas, mesmo nesses casos, existem preceitos que possuem uma aplicação geral.
36. “Ninguém, no entanto”, diz, “cura a loucura por preceitos e, portanto, também não cura a maldade”. Há uma distinção; pois se você livrar um homem de insanidade, ele se torna sano novamente, mas se removemos falsas opiniões, a visão de uma conduta prática não segue imediatamente. Mesmo assim, o conselho irá, no entanto, confirmar a opinião certa sobre o bem e o mal. E também é errado acreditar que os preceitos não são úteis aos loucos. Apesar de por si só serem inúteis, os preceitos são uma ajuda para a cura. Tanto repreensão como castigo dominam um lunático. Note-se que aqui me referi a lunáticos cujo juízo é perturbado, mas não desesperadamente perdido.
37. “Ainda assim”, é objetado, “as leis nem sempre nos fazem fazer o que devemos fazer, e o que mais são leis senão preceitos misturados com ameaças?” Agora, antes de tudo, as leis não persuadem exatamente porque ameaçam; preceitos, no entanto, em vez de coação, corrigem os homens com súplicas. Novamente, as leis amedrontam o homem a não cometer crime, enquanto os preceitos incitam o homem ao seu dever. Além disso, podemos dizer mesmo que as leis favorecem os bons costumes, desde que pretendam não só impor como também instruir.
38. Neste ponto, eu não concordo com Posidônio, que diz: “Não creio que as Leis de Platão deveriam ter os preâmbulos que lhes foram adicionados. Pois uma lei deve ser breve, para que os não iniciados possam compreendê-la com mais facilidade. Deve ser uma voz, por assim dizer, enviada do céu, deve mandar, não debater. Nada me parece mais estúpido ou mais tolo do que uma lei com preâmbulo. Advirta-me, diga-me o que você deseja que eu faça; não estou aprendendo, mas obedecendo.” Mas leis moldadas desta maneira são úteis; por isso você notará que um estado com leis defeituosas terá defeitos morais.
39. “Mas”, diz-se, “não são úteis em todos os casos”. Bem, nem é a filosofia; e, no entanto, a filosofia não é tão ineficaz e inútil no treinamento da alma. Além disso, a filosofia não é a Lei da Vida? Admitamos, se quisermos, que as leis não servem; não é necessariamente verdade que o aconselhamento também não deva servir. Por este motivo, você deve dizer que a consolação não serve, e a advertência, exortação, repreensão e elogio; uma vez que são todos variações de conselhos. É através de tais métodos que chegamos a uma condição perfeita da mente.
40. Nada é mais bem-sucedido em trazer influências honrosas para suportar a mente, ou em endireitar o espírito vacilante que é propenso ao mal, do que a associação com homens bons. Pois a visão frequente, a audição frequente deles pouco a pouco penetra no coração e adquire a força dos preceitos. Somos realmente elevados apenas por conhecer homens sábios; e alguém pode ser ajudado por um grande homem, mesmo quando ele está em silêncio.
41. Eu não poderia facilmente dizer-lhe como isso nos ajuda, embora eu esteja certo do fato de ter recebido ajuda dessa maneira. Fédon[8] diz: “Certos animais pequenos não deixam dor quando nos picam, tão sutil é seu poder, tão enganoso no propósito de danos. A picada é revelada por um inchaço e, mesmo no inchaço, não há ferida visível”. Essa também será sua experiência ao lidar com homens sábios, você não descobrirá como ou quando o benefício vem para você, mas descobrirá que o recebeu.
42. “Qual é o ponto desta observação?” Você pergunta. É, que bons preceitos beneficiarão você tanto quanto bons exemplos. Pitágoras declara que nossas almas experimentam uma mudança quando entramos em um templo e contemplamos as imagens dos deuses face a face e aguardamos as declarações de um oráculo.
43. Além disso, quem pode negar que mesmo os mais inexperientes são efetivamente atingidos pela força de certos preceitos? Por exemplo, por tais provérbios breves, mas importantes como: “Nada em excesso[9]”, “A mente gananciosa não é satisfeita por nenhum ganho”, “Você deve esperar ser tratado pelos outros como você mesmo os tratou”[10]. Recebemos um tipo de choque quando ouvimos tais palavras; ninguém pensa em duvidar delas ou em perguntar “Por quê?” Tão fortemente, deveras, a mera verdade, não acompanhada por explicações, nos atrai.
44. Se a reverência reina na alma e reprime o vício, por que o conselho não pode fazer o mesmo? Além disso, se a repreensão dá uma sensação de vergonha, por que o conselho não tem o mesmo poder, mesmo se usa preceitos nus? O conselho que ajuda a sugestão por razão – que acrescenta o motivo de fazer uma coisa determinada e a recompensa que aguarda aquele que realiza e obedece a tais preceitos – é mais efetivo e se instala mais profundamente no coração. Se os comandos são úteis, também é o conselho. Mas se alguém é ajudado por comandos; portanto, também é ajudado por conselhos.
45. A virtude é dividida em duas partes – na contemplação da verdade e na conduta. O treinamento ensina a contemplação, e a admoestação ensina a conduta. E a conduta correta pratica e revela a virtude. Mas se, quando um homem está prestes a agir, ele é ajudado por conselhos, ele também é ajudado pela admoestação. Portanto, se a conduta correta é necessária para a virtude, e se, além disso, a admoestação deixa clara a conduta correta, então a admoestação também é uma coisa indispensável.
46. Há dois fortes apoios para a alma: confiar na verdade e convicção em nós mesmos; ambas são o resultado da admoestação. Pois os homens acreditam nelas, e quando a crença é estabelecida, a alma recebe grande inspiração e fica cheia de confiança. Portanto, a admoestação não é supérflua. Marco Agripa, um homem de grande alma, a única pessoa entre aquelas que as guerras civis levaram à fama e poder cuja prosperidade ajudou o estado, costumava dizer que estava muito endividado com o provérbio: “Harmonia faz crescer as pequenas coisas, a falta de harmonia faz com que as coisas grandes apodreçam”.[11]
47. Ele considerava que havia se tornado o melhor dos irmãos e o melhor dos amigos em virtude desse ditado. E se os provérbios de tal tipo, quando aceitos intimamente pela alma, podem moldar essa mesma alma, por que a seção da filosofia que consiste em tais provérbios não pode gozar de influência igual? A virtude depende em parte do treinamento e, em parte, da prática; você deve aprender primeiro e, em seguida, fortalecer sua aprendizagem por ação. Se isso é verdade, não só as doutrinas da sabedoria nos ajudam, mas também os preceitos, que controlam e banem nossas emoções por meio de uma espécie de decreto oficial.
48. Aríston diz: “A filosofia é dividida em conhecimento e estado de espírito. Pois quem aprendeu e entendeu o que deva fazer e evitar, não é um homem sábio até que sua mente seja metamorfoseada na forma daquilo que ele aprendeu. Este terceiro departamento – o de preceito – é composto de ambos os outros, de dogmas de filosofia e estado de espírito. Portanto, é supérfluo no que diz respeito ao aperfeiçoamento da virtude, as outras duas partes são suficientes para esse propósito”.
49. Sobre essa base, portanto, mesmo a consolação seria supérflua, uma vez que isso também é uma combinação dos outros dois, assim como a exortação, a persuasão e até mesmo a própria prova. Pois a prova também se origina de uma atitude mental bem ordenada e firme. Mas, embora essas coisas resultem de um estado de mente sã, o estado sadio da mente também resulta delas; é, ao mesmo tempo, tanto o criador delas como resultante delas.
50. Além disso, o que você menciona é a meta de um homem já perfeito, de alguém que atingiu o auge da felicidade humana. Mas a obtenção dessas qualidades é lenta, e, entretanto, por questões práticas, o caminho deve ser mostrado em benefício de alguém que ainda esteja longe da perfeição, mas que esteja fazendo progresso. Sabedoria por sua própria força talvez descubra este caminho sem a ajuda da admoestação; pois ela trouxe a alma a um estágio onde esta pode ser impulsionada apenas na direção certa. Os personagens mais fracos, no entanto, precisam de alguém para precedê-los, para dizer: “Evite isso” ou “Faça isso”.
51. Além disso, se alguém aguarda o momento em que possa saber sozinho qual é a melhor linha de ação, algumas às vezes se desviará e, desviando-se, será impedido de chegar ao ponto em que é possível contentar-se consigo próprio. A alma deve, portanto, ser guiada no momento em que está se tornando capaz de se guiar. Os meninos estudam de acordo com a direção. Seus dedos são segurados e guiados por outros para que possam seguir os contornos das letras; Em seguida, eles são obrigados a imitar uma cópia e a alicerçar nela um estilo de caligrafia. Da mesma forma, a mente é ajudada se for ensinada de acordo com a direção.
52. Tais fatos provam que este departamento da filosofia não é supérfluo. A questão em seguida surge se esta parte sozinha é suficiente para tornar os homens sábios. O problema deve ser tratado no devido momento[12]; mas no momento, omitindo todos os argumentos, não é claro que precisamos de alguém a quem possamos invocar como nosso mentor em oposição aos preceitos dos homens em geral?
53. Não há nenhuma palavra que atinja nossos ouvidos sem nos fazer mal; somos feridos tanto por bons desejos quanto por maldições. As orações irritadas de nossos inimigos inculcam medos falsos em nós; e o carinho de nossos amigos nos prejudica por seus desejos gentis. Pois esse carinho nos coloca a tatear por bens que estão distantes, inseguros e vacilantes, quando realmente podemos abrir o depósito de felicidades de casa.
54. Não nos permitimos, eu mantenho, viajar por uma estrada direta. Nossos pais e nossos escravos nos atraem para o errado. Ninguém confina seus erros para si mesmo; as pessoas pulverizam insensatez entre os seus vizinhos, e recebem-na por sua vez. Por esta razão, em um indivíduo, você encontra os vícios das nações, porque a nação os deu ao indivíduo. Cada um, ao corromper os outros, corrompe-se; o indivíduo embebe e, em seguida, transmite, a maldade, o resultado é uma grande massa de maldade, porque o pior em cada pessoa separada é concentrado em uma massa.
55. Devemos, portanto, ter um guardião, por assim dizer, para nos puxar continuamente pelo ouvido e dissipar rumores e protestar contra entusiasmos populares. Pois você está enganado se supor que nossas falhas são inatas em nós; elas vieram de fora, foram empilhadas sobre nós. Por isso, ao receber admoestações frequentes, podemos rejeitar as opiniões que retinam sobre nossos ouvidos.
56. A natureza não nos predestinou para nenhum vício; ela nos produziu em saúde e liberdade. Ela não colocou diante de nossos olhos nenhum objeto que pudesse atiçar em nós a coceira da ganância. Ela colocou ouro e prata debaixo de nossos pés, e ordenou que os pés pisoteassem e esmagassem tudo o que nos pisa e esmaga. A natureza elevou nosso olhar para o céu e desejou que quiséssemos olhar para cima para contemplar suas obras gloriosas e maravilhosas. Ela nos deu o nascente e o pôr-do-sol, o curso giratório do mundo apressado que revela as coisas da terra ao dia e os corpos celestes de noite, os movimentos das estrelas, que são lentos se você os compara com o universo, mas mais rápido se você refletir sobre o tamanho das órbitas que descrevem com velocidade; ela nos mostrou os sucessivos eclipses do sol e da lua, e outros fenômenos, maravilhosos porque ocorrem regularmente ou porque, por causas súbitas, eles ajudam a ver – como trilhas noturnas de fogo, ou relâmpagos no céu aberto não acompanhado pelo som de Trovões, ou colunas e as traves dos vários fenômenos de luzes.
57. Ela ordenou que todos esses corpos deveriam prosseguir acima de nossas cabeças; mas ouro e prata, com o ferro que, devido ao ouro e à prata, nunca traz a paz, ela escondeu, como se fossem coisas perigosas para confiar à nossa guarda. Somos nós mesmos que os arrastamos para a luz do dia, para que possamos lutar por eles; somos nós mesmos que, cavoucando a terra inferior, extraímos as causas e ferramentas de nossa própria destruição; somos nós mesmos que atribuímos nossas próprias faltas à Fortuna e não coramos ao considerar como os mais elevados objetos aqueles que uma vez se encontravam nas profundezas da Terra.
58. Você deseja saber quão falso é o brilho que engana seus olhos? Na verdade, não há nada mais imundo ou mais envolvido na escuridão do que essas coisas da terra, afundadas e cobertas há tanto tempo na lama onde elas pertencem. É claro que elas são sujas; elas foram transportadas por um longo e sombrio poço de mina. Não há nada mais feio que esses metais durante o processo de refinamento e separação do minério. Além disso, assista os próprios operários que devem lidar e peneirar a árida categoria de sujeira, o tipo que vem do fundo; veja como besuntados de fuligem eles são!
59. E, no entanto, as coisas que eles lidam poluem a alma mais do que o corpo, e há mais impureza no dono da mina do que no trabalhador. Portanto, é indispensável que sejamos admoestados, que tenhamos algum defensor com mente reta e, em meio a todos os tumultos e sons discordantes da falsidade, ouçamos apenas uma voz. Mas qual voz será essa? Certamente, uma voz que, em meio a todo o tumulto da busca de si mesmo, sussurra palavras saudáveis na orelha ensurdecida, dizendo:
60. Você não precisa ter inveja daqueles a quem as pessoas chamam de grandioso e afortunado, os aplausos não precisam perturbar sua atitude serena e sua sanidade mental, você não precisa se sentir enojado com seu espírito calmo porque você vê um grande homem vestido de púrpura, protegido pelos conhecidos símbolos de autoridade, você não precisa julgar o magistrado para quem o caminho é aberto como sendo mais feliz do que você, a quem o funcionário dele empurra da estrada. Se você exerce uma atividade lucrativa para si mesmo, e prejudicial a ninguém, limpe suas próprias falhas do caminho.
61. Há muitos que atearam fogo às cidades, que atacaram guarnições que permaneceram inexpugnáveis por gerações e seguras por várias eras, que criam montes tão altos como as paredes que são sitiando, que com aríetes e catapultas destroem torres que foram criadas em uma altura maravilhosa. Há muitos que podem enviar suas colunas à frente e pressionar destrutivamente sobre a parte de trás do inimigo, que pode alcançar o Grande Mar gotejando com o sangue das nações; mas mesmo esses homens, antes que pudessem conquistar seu inimigo, foram conquistados por sua própria ganância. Ninguém suportou seu ataque; mas eles mesmos não podiam suportar o desejo de poder e o impulso à crueldade; no momento em que pareciam estar perseguindo outros, eles próprios estavam sendo perseguidos.
62. Alexandre foi perseguido ao infortúnio e despachado para países desconhecidos por um desejo louco de destruir o território de outros homens. Você acredita que o homem estava em seus sentidos tanto que começou pela Grécia a devastação, a terra onde ele recebeu sua educação? Aquele que arrancou o mais caro tesouro de cada nação, exigindo que os espartanos fossem escravos, e que os atenienses ficassem quietos? Não contente com a ruína de todos os estados que Filepe havia conquistado ou subornado a escravidão, derrubou várias comunas em diversos lugares e carregou suas armas em todo o mundo; sua crueldade estava cansada, mas nunca cessou – como uma besta selvagem que rasga em pedaços mais do que sua fome demanda.
63. Ele juntou muitos reinos em um único reino; gregos e persas temem o mesmo senhor; as nações que Dário tinha deixado livre se submeteram ao jugo: ainda assim ele passa além do oceano e do sol, julgando vergonhoso que ele desvie seu curso de vitória dos caminhos que Hercules e Baco haviam pisado; ele ameaça a própria violência da natureza. Ele não deseja ir; mas ele não pode ficar; ele é como um peso que cai de cabeça, seu percurso acaba apenas quando chega ao chão.
64. Não foi virtude ou razão que persuadiu Cneu Pompeu a participar de guerras estrangeiras e civis; era o desejo louco de sua glória irreal. Ora ele atacava a Hispânia e a facção de Sertório; depois se retirava para acorrentar os piratas e subjugar os mares. Estas eram apenas desculpas e pretextos para ampliar seu poder.
65. O que o atraiu para a África, para o Norte, contra Mitrídates, para a Armênia e todos os cantos da Ásia? Certamente era o desejo ilimitado de poder; pois apenas em seus próprios olhos ainda não era suficientemente grande. E o que levou Júlio César à destruição combinada de si mesmo e do estado? Fama, egoísmo, e a definição de nenhum limite para a primazia sobre todos os outros homens. Ele não podia permitir que uma única pessoa o ultrapassasse, embora o estado permitisse que dois homens ficassem à cabeça.
66. Você acha que Caio Mario, que já foi cônsul (ele recebeu este cago em uma ocasião, e o roubou em todas as outras) cortejou todos os seus perigos por inspiração da virtude quando matava os Teutos e os Cimbros, e perseguindo Jugurta através das regiões selvagens da África? Mario comandou exércitos, mas quem comandava Mário era a ambição.
67. Quando homens como esses estavam perturbando o mundo, eram eles mesmos perturbados – como os ciclones que turbilhonam o que tomaram, mas que primeiro se turbilhonam a sim mesmos e podem por isso se atirar com toda a força, totalmente sem controle; portanto, depois de causar tal destruição para os outros, eles sentem em seu próprio corpo a força ruinosa que lhes permitiu causar estragos para muitos. Não pense que alguém pode ser feliz à custa da infelicidade dos outros.
68. Devemos desvendar todos os casos que são forçados diante de nossos olhos e amontoados em nossos ouvidos; devemos limpar nossos corações, pois eles estão cheios de conversa maligna. A virtude deve ser conduzida no lugar que estas ocuparam, – uma espécie de virtude que pode erradicar a falsidade e as doutrinas que transgridam a verdade, ou possa nos separar da multidão, na qual confiamos demais e possa nos restaurar para a fruição de opiniões sólidas. Pois esta é a sabedoria – um retorno à Natureza e uma restauração à condição a qual os erros do homem nos conduziram.
69. É uma grande parte da saúde ter abandonado os conselheiros da loucura e ter fugido para longe de uma companhia que é mutuamente prejudicial. Para que você possa conhecer a verdade da minha observação, veja como é diferente a vida de cada indivíduo perante o público daquela de seu eu interior. Uma vida tranquila não dá, por si só, lições de conduta correta; o campo não ensina uma vida simples; não, mas quando testemunhas e espectadores são removidos, as falhas que amadurecem em público calam fundo.
70. Quem veste o manto púrpura para exibi-lo aos olhos de ninguém? Quem usa peitoral de ouro quando janta sozinho? Quem, enquanto se deita sob a sombra de uma árvore do campo, mostra na solidão o esplendor de seu luxo? Ninguém se torna elegante apenas para sua própria visão, ou mesmo para a admiração de alguns amigos ou parentes. Em vez disso, ele espalha seus vícios bem providos em proporção ao tamanho da multidão admiradora.
71. É assim: claquistas e testemunhas são agentes irritantes de todas as nossas fraquezas. Você pode nos fazer cessar de desejar, se apenas nos faz deixar de nos exibir. A ambição, o luxo e o capricho precisam de um palco para agir; você vai curar todos esses males se você procurar o isolamento.
72. Portanto, se a nossa morada estiver situada no meio de uma cidade, deve haver um conselheiro que esteja perto de nós. Quando os homens louvam grandes rendas, ele deve louvar a pessoa que pode ser rica com um patrimônio pequeno e que meça sua riqueza pelo uso que faz dela. Em face daqueles que glorificam a influência e o poder, deve, por sua própria vontade, recomendar um tempo dedicado ao estudo, e uma alma que abandonou o externo e se encontrou.
73. Ele deve apontar pessoas, felizes na estimativa popular, que cambaleiam em suas invejadas alturas de poder, mas que estão consternadas e mantêm uma opinião muito diferente de si do que os outros detêm. O que outros acreditam ser elevado, é para eles um precipício completo. Por isso, eles estão assustados e agitados sempre que olham para baixo o abrupto íngreme de sua grandeza. Pois eles refletem que existem várias maneiras de cair e que o ponto mais alto é o mais escorregadio.
74. Então eles temem aquilo para o qual se esforçaram, e a boa fortuna que os fez importantes aos olhos dos outros pesa mais sobre si mesmos. Então eles louvam o lazer banal e independência; eles odeiam o glamour e tentam escapar enquanto suas fortunas ainda não são prejudicadas. Então, finalmente, você pode vê-los estudando filosofia em meio ao seu medo, e caçando conselhos de qualidade quando suas fortunas dão errado. Por estas duas coisas estão, por assim dizer, em polos opostos – boa fortuna e bom senso; é por isso que somos mais sábios quando estamos em meio à adversidade. É a prosperidade que nos afasta do caminho íntegro.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Isto é a praecepta, a moral prática, que ministra conselhos, por oposição à moral teórica que estabelece os princípios básicos, decreta.
[2]Aríston de Quios (em grego: Ἀρίστων ὁ Χίος; fl. c. 260 a.C.) foi discípulo de Zenão. Esboçou um sistema de filosofia estoica que esteve, em muitos aspectos, mais próximo da anterior filosofia cínica.
[3] Humorismo, ou humoralismo, foi uma teoria sobre a constituição e funcionamento do corpo humano adotada pelos médicos e filósofos gregos e romanos. Essencialmente, essa teoria afirmava que o corpo humano era preenchido com quatro substâncias básicas, chamadas de os quatro humores, ou humores, o quais estão balanceados quando a pessoa está saudável. Todas as doenças e inaptidões resultavam do excesso ou da deficiência de um desses quatro humores. Os quatro humores eram identificados como bílis negra, bílis amarela, fleuma e sangue. Os gregos e os romanos, e os estabelecimentos médicos posteriores da Europa Ocidental que adotavam e adaptavam a filosofia médica clássica, acreditavam que cada um desses humores poderia aumentar e diminuir no corpo, dependendo da dieta e da atividade.
[4]G. Licínio Calvo, orador e poeta contemporâneo de César e Cícero, amigo íntimo de Catulo, célebre sobretudo pelos seus discursos contra Vatínio (cf. Catulo 53), ainda lidos e admirados no tempo Tácito e Plínio. Utilizou uma oratória tão refinada que, no julgamento de Vatínio, foi interrompido no meio do discurso por uma frase: “Jurados, pergunto-lhes se irão condenar o suspeito simplesmente pela eloquência do acusador!”
[5]Públio Vatínio foi um político da gente Vatínia da República Romana eleito cônsul em 47 a.C.. Depois de terminado seu mandato, Vatínio foi acusado formalmente por Caio Livínio Calvo de aceitar subornos.
[6]Moeda referida também no Novo Testamento (Lucas 12:6) que tem o valor de 1/16 de denário. Quantia insignificante, coisa de pequeno valor.
[8]Provavelmente referência a Fédon de Élis, um filósofo grego. Fédon era nativo de Élis, tendo sido capturado em guerra e vendido como escravo. Veio posteriormente a entrar em contato com Sócrates em Atenas, tendo este o libertado da escravatura. Mais tarde, regressou a Élis, fundando uma escola filosófica, a Escola de Élis.
[9] Sentença oracular, como as citadas anteriormente.
[12] Esse problema, a saber, se a parenética, ou preceptística, é por si só suficiente para a formação do sábio, está discutido na carta XCV, a próxima.