Carta 103: Sobre os perigos da associação com nossos próximos

A carta 103 tem um tom mais amargo. Nela Sêneca nos alerta que o maior perigo que corremos não vem da natureza, acidentes ou doença, mas sim de outras pessoas, pois “o homem se delicia em arruinar o homem.” (CIII; §2)

Contra esse risco não temos certeza de proteção, contudo Sêneca recomenda sempre ajudar e nunca prejudicar nosso próximo:

Evite, nas suas relações com os outros, prejudicar, para que não seja prejudicado. Você deve se alegrar com todos em suas alegrias e simpatizar com todos em seus problemas, lembrando dos serviços que deve prestar e os perigos que deve evitar.” (CIII; §2)

E a filosofia pode ser grande aliada, se a usarmos corretamente, ou seja, para corrigir nossos defeitos e não como ferramenta para apontar a falha dos outros.

Imagem: A Morte de Júlio César por Vincenzo Camuccini. César passou ileso por inúmeras conquistas militares e pela guerra civil, para acabar morto por seus colegas no senado.


CIII. Sobre os perigos da associação com nossos próximos[1]

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Por que você está procurando por problemas que talvez possam vir a seu encontro, mas que, de fato, podem não chegar a seu caminho? Quero dizer incêndios, edifícios caindo e outros acidentes do tipo que são meros eventos e não tramas contra nós, sem o propósito deliberado de nos causarem mal. Melhor faria em procurar evitar os perigos reais que nos espreitam na intenção de nos apanhar à traição. Os acidentes, embora possam ser sérios, são poucos e raros – como naufragar ou cair de uma carruagem. Mas é do próximo que vem o perigo cotidiano de um homem. Equipe-se contra isso, vigie isso com um olho atento. Não há nenhum mal mais frequente, nenhum mal mais persistente, nenhum mal mais insinuante.

2. Mesmo a tempestade, antes de se iniciar, dá um aviso; casas trincam antes de caírem; e a fumaça é o precursor do fogo. Mas o dano provocado pelo homem é instantâneo e de quanto mais próximo ele vem, mais cuidadosamente está escondido. Você está errado em confiar na fisionomia daqueles que encontra. Eles têm o aspecto de homens, mas almas de bestas. A única diferença é que os animais selvagens lhe causam dano ao primeiro encontro, aqueles que passaram por nós não voltam para nos perseguir. Pois nada os incita a causar dano, exceto quando a necessidade os obriga: é a fome ou o medo que os instiga a lutar. Mas o homem se delicia em arruinar o homem.

3. Você deve, no entanto, refletir o perigo que você corre na mão do homem, para que você possa deduzir qual é o seu dever enquanto homem. Evite, nas suas relações com os outros, prejudicar, para que não seja prejudicado. Você deve se alegrar com todos em suas alegrias e simpatizar com todos em seus problemas, lembrando dos serviços que deve prestar e os perigos que deve evitar.

4. E o que você pode alcançar vivendo uma vida dessas? Não necessariamente a imunidade contra danos, mas pelo menos liberdade de engano; pelo menos consegue que não o tomem por tolo. Dessa forma, quando for capaz, refugie-se na filosofia: ela irá cuidar de você em seu seio e em seu santuário você estará seguro ou, pelo menos, mais seguro do que antes. As pessoas colidem apenas quando viajam pelo mesmo caminho.

5. Mas essa mesma filosofia nunca deve ser alardeada por você; pois a filosofia quando empregada com insolência e arrogância tem sido perigosa para muitos. Deixe-a retirar suas falhas, em vez de ajudá-lo a criticar as falhas dos outros. Não deixe que ela se afaste dos costumes da humanidade, nem faça com que ela condene o que ela mesma não faz. Um homem pode ser sábio sem alarde e sem provocar inimizade.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Compare com a carta VII (Volume I).