Tivemos a honra de receber do professor Aldo Dinucci, maior especialista em Epicteto do Brasil, suas traduções direto do grego das Diatribes (Livro I) e do Encherídion.
Sem dúvida estas são as melhores traduções de Epicteto para o Português.
Filosofia atual e prática
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Excelente entrevista publicada no blog do Aldo Dinucci. Estoicismo, pitagorismo e história comentados pelo filósofo David Fideler, autor do livro Um café com Sêneca: Um Guia Estoico Para a Arte de Viver.
Traduzido para o português pelo Dr. Marcus Resende
David Fideler, autor de vários livros, entre os quais Um café com Sêneca: Um Guia Estoico Para a Arte de Viver, trabalhou como professor universitário, editor e diretor de um centro de humanidades. Estudou filosofia grega clássica e religiões mediterrâneas na Universidade da Pensilvânia e é PhD em filosofia. Nascido nos Estados Unidos, ele vive atualmente em Saraievo, com sua esposa e filho. Ele é o editor do website Stoic Insights e um conselheiro do Centro da Academia de Platão em Atenas. Recentemente, David foi entrevistado por Michael Nevradakis para a revista grega Orthos Logos sobre “Porque a Filosofia Clássica importa hoje”. Essa é a versão da entrevista em português.
Michael Nevradakis (MN): Sua história de vida tem sido interessante, percorrendo seu caminho para a Bósnia, especificamente para Saraievo, saindo do oeste de Michigan. Conte-nos sobre essa trajetória e sobre o que trouxe você para esta parte do mundo.
David Fideler (DF): Essa é uma pergunta interessante, e há muitas dimensões para ela. Uma parte dela é que minha esposa é daqui. Mas outra razão para eu ter vindo para cá se deve à longa história de pluralismo espiritual em Saraievo, onde nós vivemos. Quando os judeus foram expulsos da Espanha, em 1492, muitos vieram para cá, e aqui nós temos um dos maiores cemitérios judaicos antigos em toda a Europa. Eles gostaram da vida em Saraievo e a chamaram de “Pequena Jerusalém” da Europa. E eles viveram pacificamente com mulçumanos, cristãos ortodoxos e católicos.
Hoje, a coisa incrível para nós é que todos esses grupos religiosos se deram bem e viveram em harmonia, em Saraievo, por cerca de 500 anos, até a guerra da Bósnia nos anos 90. Por exemplo, a mesquita principal está praticamente em frente a uma sinagoga antiga. E estes dois prédios estão a três minutos de caminhada da Antiga Igreja Ortodoxa e da Catedral Católica. Então, há essa pequena área, na qual todos esses prédios religiosos, de diferentes confissões, estão localizados.
Saraievo é também incrível por ser o ponto de encontro de muitas culturas diferentes, que você pode ver refletidas na arquitetura. É a fronteira sul do Império Austro-Húngaro, a fronteira norte do Império Otomano, a fronteira leste da Igreja Católica, e a fronteira oeste da Igreja Ortodoxa. Em um momento você pode caminhar através de uma área com arquitetura Austro-Húngara e, de repente, entrar em uma área com arquitetura Otomana.
MN: O que primeiro motivou você a se dedicar, neste momento e com essa idade, à filosofia grega clássica e aos escritos de Platão e dos estoicos?
DF: Quando eu era adolescente, eu fiquei interessado em Platão e Pitágoras. Então, eu comecei a ler esses tipos de textos, incluindo os diálogos de Platão, ainda na adolescência. Eu também estava interessado nas religiões gregas, incluindo as religiões de mistério e como elas influenciaram o desenvolvimento do cristianismo. Ao longo dos anos, eu trabalhei em muitas diferentes áreas e tópicos relacionados a filosofias e religiões antigas, e meu interesse nunca diminuiu, embora tenha se expandido para outras áreas. Por exemplo, eu também estudei a história da ciência e a redescoberta do conhecimento clássico no renascimento italiano.
MN: O que é o estoicismo e a filosofia estoica?
DF: O estoicismo é uma escola filosófica que teve sua origem em Atenas, em torno do ano 300 AEC. Foi fundada por Zenão de Cítio, que falava na Stoa Poikile, ou “Stoa Pintada”, na ágora. Zenão e seus seguidores, em Atenas, produziram dezenas, ou mesmo centenas de escritos, mas, infelizmente, nenhum destes sobreviveu ao tempo em forma completa. E a Stoa Pintada é, hoje, apenas uma ruína sem atrativos.
Dito isso, existem muitos relatos sobre o pensamento estoico, muito influenciados por Sócrates. Alguns escritores antigos até chamavam os primeiros estoicos de “socráticos.”
Os estoicos seguiram Sócrates ao acreditar que “virtude é o único bem verdadeiro”. Quanto a isso, eles queriam dizer que as pessoas devem desenvolver um excelente caráter interior. Então, a partir disso, tudo que fazemos deve ser caracterizado pela excelência.
Eles também acreditavam que a natureza estava permeada pelo logos ou a racionalidade. Zenão dizia que, se um ser humano deseja encontrar a felicidade ou a eudaimonia, deve “viver em acordo com a natureza.” Isso significa que os seres humanos devem desenvolver sua própria natureza racional, ou a centelha do logos que temos em nós. Isso nos permitiria aceitar as leis da natureza e nos conduzir a vidas felizes e tranquilas.
Enquanto os primeiros estoicos gregos se concentraram no estudo da natureza (física), lógica e ética, os estoicos romanos se concentraram mais na ética – como viver uma vida boa e feliz.
Os estoicos acreditavam que algumas coisas estão “sob nosso controle”, especialmente desenvolver um bom caráter, enquanto muitas outras coisas não estão sob nosso controle. Eles também acreditavam que muitos tipos de emoções se baseiam em juízos mentais. Uma afirmação estoica muito famosa é: “não são as coisas que nos afetam, mas o nosso juízo sobre as coisas”. Hoje isso é chamado de teoria cognitiva da emoção, que os estoicos descobriram, e forma a base da moderna Terapia Cognitiva Comportamental (TCC).
MN: É dito que o estoicismo foi a filosofia mais influente do império romano. Como ela impactou o mundo durante e depois dessa época da história?
DF: Os três mais famosos estoicos romanos foram Sêneca (4 AEC – 65 EC), Epicteto (50-135 EC), e Marco Aurélio (121 – 180 EC). E, diferente dos primeiros estoicos gregos, a maior parte de seus escritos nos chegaram.
Os escritos de Sêneca somam centenas de páginas, e são a mais compreensiva descrição da filosofia estoica que temos em qualquer escrito remanescente. Epicteto era um escravo grego que se tornou liberto, e que fundou sua própria escola de filosofia estoica em Roma, depois da morte de Sêneca. E, Marco Aurélio, certamente, era tanto um estudante da filosofia estoica quanto um imperador romano. Suas Meditações atualmente vendem mais de 100.000 cópias em inglês por ano. No que se refere à influência do estoicismo, podemos ver que ele foi aceito pelas pessoas, desde um escravo até um imperador romano. E sua influência continua hoje.
O estoicismo entrou em declínio depois de Marco Aurélio, mas foi muito influente durante o Renascimento italiano. Na verdade, Petrarca, o fundador do humanismo renascentista, lia um pouco de Sêneca todos os dias, o qual é um hábito que eu também desenvolvi.
Há cerca de uma década, ou um pouco mais, o interesse pelo estoicismo tem renascido no mundo de língua inglesa. Eu acho que isso acontece porque o nosso tempo se assemelha muito ao período helenístico e ao início do Império Romano. Em outras palavras, o nosso mundo se sente cada vez mais fora do controle. Esse foi o sentimento antes do Covid e antes da guerra na Ucrânia, e agora este mundo se sente ainda mais fora do controle. Um dos atrativos do estoicismo, penso eu, é que ele ensina às pessoas como viver uma vida boa, recompensadora e tranquila, independente do que esteja acontecendo no mundo, de forma geral. Outro aspecto que é atraente sobre o estoicismo é que algumas pessoas o veem como algo que se assemelha a uma forma de budismo ocidental.
O crescimento do interesse pelo estoicismo, porém, não está limitado apenas ao mundo de língua inglesa. Meu livro Café da Manhã com Sêneca, que é um guia para as ideias de Sêneca, dirigido a uma audiência geral, já foi impresso mundialmente em dezesseis línguas.
MN: Você é também reconhecido como um especialista na escola pitagórica e no pitagorismo. O que esta filosofia e escola de pensamento nos ensina hoje?
DF: De acordo com antigas descrições, Pitágoras foi o primeiro a se autodeclarar filósofo ou “amante da sabedoria”. Ele foi o primeiro a chamar o universo de kosmos, “uma boa ordem”. Apesar de não termos nenhum dos escritos originais de Pitágoras, eu acredito que nós temos acesso às suas mais importantes ideias, as quais podemos encontrar em Platão e em outros escritores, relacionadas a número, kosmos e harmonia.
Os pitagóricos acreditavam que o mundo tem uma estrutura matemática. Hoje, nós podemos ver isso nas proporções matemáticas da natureza e das coisas vivas, e nas leis matemáticas que nós descobrimos na natureza. Pitágoras disse que o universo é um kosmos, ou uma boa ordem, mas o motivo do porque é uma boa ordem, deve-se à harmonia e à proporção matemática. As partes de um ser vivo, ou de um prédio bem projetado, se harmonizam para criar o equilíbrio de toda a estrutura.
MN: Como esse tipo de pensamento filosófico é relevante e aplicável nos dias de hoje, no aspecto individual e no coletivo?
DF: Harmonia significa “encaixar”, e o próprio mundo, assim como os seres vivos, consistem da relação entre o todo e as partes. Harmonia dá origem ao equilíbrio. Porém, sem harmonia, a vida em si não existiria, porque a vida depende desses tipos de relacionamento. Isso torna o princípio da harmonia muito relevante.
Harmonia é também essencial para criar coisas bonitas, como edifícios. Os gregos e romanos eram muito conscientes desses princípios, os quais foram redescobertos na Renascença. Podemos usar a harmonia para entendermos muitas coisas sobre as obras da natureza. Mas nós também podemos usar a harmonia, do mesmo jeito que eles fizeram na Renascença, para criar um mundo que é equilibrado, satisfatório, e no qual vale a pena viver. O arquiteto renascentista Leon Battista Alberti entendeu a harmonia muito bem, e a descreveu dessa maneira: “Eu defino beleza como a harmonia de todas as partes […] encaixadas com tal proporção e conexão que nada pode ser acrescentado, diminuído ou alterado, exceto para pior”.
MN: Qual é o seu ponto de vista sobre o significado da vida?
DF: Eu entendo que o significado da vida não é uma teoria ou um conceito, mas uma experiência que nos ocorre quando nossas vidas fazem sentido. E a vida das pessoas faz sentido quando elas têm uma profunda conexão com uma realidade que vai além de nossa limitada individualidade. Essa realidade pode ser a sua família ou outras pessoas. Pode ser também a sociedade. Pode ser identificada em uma atitude de ajudar outras pessoas. Pode ser a natureza. Pode ser o universo como um todo. Para pessoas religiosas, a realidade pode ser Deus ou a dimensão espiritual dela mesma. Ou pode ser todas essas coisas juntas.
Fazer sentido significa que nós precisamos sentir uma conexão com uma realidade maior, que vai além da nossa limitada individualidade, porque se nós estamos isolados, não percebemos o significado – sentimos solidão. Este sentido de significado depende também de um tipo de harmonia. Como disse Sêneca: “A amizade cria entre nós uma parceria em todas as coisas […] Você deve viver para o outro se quiser viver para si mesmo”.
MN: Fale-nos sobre a filosofia como uma arte de viver, como explicada em seu livro mais recente, cujo título é Um café com Sêneca: Um Guia Estoico Para a Arte de Viver.
DF: Há cerca de doze anos eu comecei a ler Sêneca e desenvolvi um pequeno ritual de leitura de ler uma de suas cartas, matinalmente, durante o café da manhã.
A ideia da filosofia como uma arte de viver é um retorno a Sócrates, e Sêneca faz parte dessa tradição. Hoje, a filosofia se tornou muito especializada, muito intelectual e muito dissociada da vida diária. Sêneca, por sua vez, foca no lado prático da filosofia, ou em como a filosofia pode nos ajudar a lidar com importantes problemas da vida diária: em como superar emoções negativas como preocupação, ansiedade e ira; em como desenvolver um melhor caráter pessoal; em como lidar com contratempos e adversidades; em como entender a si mesmo e viver com autenticidade; e em muitos outros tópicos.
Sêneca não era somente um filósofo, era também um tipo de protopsicólogo que escreveu coisas que não eram identificadas até cinquenta anos atrás. Ele estava muito à frente do seu tempo. Ele também acreditava no poder da amizade e das relações pessoais para nos ajudar a nos tornarmos pessoas melhores e nos fazer progredir na vida e na filosofia. Você pode ver como isso era importante para Sêneca, porque cada um dos seus escritos filosóficos foram endereçados a uma pessoa – seja um amigo ou um membro da família.
MN: O que o pensamento clássico e a prática relacionada à política, tal como a República de Platão, nos oferece em termos de soluções para os desafios que o mundo enfrenta hoje?
DF: Um dos objetivos da República de Platão era definir a natureza da justiça, a qual está dentro de nós e na sociedade. Na República, Platão discute as outras virtudes cardinais: sabedoria, coragem e moderação. Estas quatro virtudes eram também essenciais para os estoicos. Se nós pudéssemos realmente entender essas quatro virtudes e colocá-las em prática, eu estou certo de que estaríamos vivendo em um mundo melhor. O objetivo de Platão, ao fundar a Academia, era o mesmo objetivo dos humanistas da Renascença. Ambos queriam criar líderes mais virtuosos para melhorar a sociedade.
MN: Você também escreveu anteriormente, “No mundo antigo, as ideias estoicas sobre a igualdade humana e companheirismo contribuíram para a ideia cristã primitiva da fraternidade universal na humanidade.” Fale-nos sobre essa fraternidade universal da humanidade e até que ponto algo dessa natureza é possível.
DF: Os estoicos acreditavam que todos os seres humanos possuem a faculdade da razão, ou o logos. A ideia de que somos criaturas racionais está também refletida no termo homo sapiens. Por causa dessa centelha de razão que possuímos, nascemos semelhantes uns aos outros, e somos irmãos e irmãs uns dos outros. Isso significa que somos todos membros de uma Cosmópolis, ou “uma comunidade global”.
Certamente, se você acredita que outros seres humanos são seus irmãos ou suas irmãs, você os tratará bem, com amor e respeito. Isso está intimamente relacionado à palavra latina humanitas, que significa, ao mesmo tempo, humanidade, bondade, benevolência, civilização e aprendizado.
Isso pode ser aplicado ao mundo real? Claro que pode. Mas precisamos, primeiro, nos identificar como seres humanos, antes de nos identificar com qualquer outro tipo de grupo, tribo ou nacionalidade. Antes de pensarmos em nossas diferenças, precisamos, primeiro, entender que somos parte de uma humanidade comum que nos une com os demais huma nos.
MN: Há alguns anos atrás você organizou um Simpósio sobre o futuro da educação e das humanidades, em Atenas, e visitou o local da Academia de Platão. Como foi seguir as pegadas de Platão, contemplar e discutir ideias em um lugar tão especial?
DF: Foi, finalmente, fantástico estar lá, porque muito tempo atrás, em 1996, eu fui contratado pela Ross School para escrever uma história da Academia de Platão e das outras escolas que nasceram dela. Isso é algo que muitos filósofos nunca pensaram a respeito: Por que Platão fundou a Academia e o que realmente aconteceu lá? Se você quer, realmente, entender Platão, acho que essas perguntas são essenciais.
Um motivo pelo qual eu me tornei tão interessado na Academia de Platão é porque ela era muito desprezada. O outro motivo é que eu tenho muito interesse pela filosofia da educação, e eu estou sempre insatisfeito com o tipo de sistema educacional que nós temos hoje. Por isso eu queria retornar ao princípio da educação no mundo ocidental e entender o que Platão estava tentando atingir ao estabelecer sua escola. Talvez, penso eu, poderíamos aprender algo de valor dessa experiência para melhorar a educação de hoje.
MN: Da forma que entendo, você, assim como outros estoicos e filósofos, incluindo Donald Robertson (com quem tivemos a oportunidade de conversar no ano passado), estão envolvidos no recém-lançado projeto do Centro da Academia de Platão. O que este projeto significa e o que o inspirou?
DF: Ele é, na verdade, um tipo de milagre, mas o Parque Academus, em Atenas, onde Platão fundou sua escola, sobreviveu por mais de 2.000 anos. Ele está rodeado por um bairro, mas é uma milagre histórico continuar sendo uma parque, e ninguém construiu casas sobre ele por um período de 230 séculos.
Há muito tempo, eu sonhava em oferecer um seminário em Atenas sobre as antigas escolas filosóficas de lá, começando com a Academia de Platão. Mas, então, Donald Robertson mudou-se para Atenas, e veio com essa grande ideia de criar um centro de conferência perto do local da Academia de Platão, o que tornava muito mais viável a possibilidade de fazer as coisas naquele lugar.
O objetivo do Centro Acadêmico de Platão não é reestabelecer a Academia de Platão. Certamente, precisaríamos de um Platão para isso. A ideia é criar um pequeno centro de conferência perto do Parque Academus, o qual irá sediar eventos relacionados à filosofia clássica. Existem, também, planos de criar um centro sobre o questionamento e o diálogo socrático, que foi o mais importante método educacional usado na Academia de Platão. Além de colocar a Academia de Platão “de volta ao mapa”, como eles dizem, as pessoas associadas ao projeto querem preservar o parque e seus sites arqueológicos e melhorar a economia da vizinhança em Atenas.
OL: Você acha que nós podemos usar essas ideias da filosofia clássica para ajudar a resolver os conflitos em nosso mundo muito polarizado de hoje?
DF: Sim, totalmente. Não há como negar que as pessoas são diferentes em muitas maneiras, algo que os filósofos antigos reconheceram: somos uma mistura de semelhanças e diferenças. Mas, no nível mais profundo, somos todos seres humanos, com as mesmas necessidades humanas. Todos nós queremos ter uma boa vida e viver em um mundo onde a justiça e a equidade são maiores do que a corrupção.
No pensamento dos pitagóricos, de Platão e dos estoicos, existia uma importante ênfase sobre a ideia de unidade como um princípio cósmico – e também sobre os tipos de coisas que nos unem, como seres humanos, como a ideia da cosmópolis. Então, deveríamos, primeiro, sempre pensar sobre a nossa humanidade comum e tentar nos engajar em um diálogo com as pessoas que pensam diferentemente, não necessariamente para mudar suas mentes, mas com o propósito de uma compreensão mútua.
Infelizmente, eu acho que muito da polarização social e política de hoje é dirigida pelos meios de comunicação e mídias sociais, porque esse tipo de polarização é muito lucrativa, mesmo que seja muito prejudicial. As pessoas que encorajam esse tipo de polarização, geralmente apelam para os piores aspectos da natureza humana, então eu quero fazer o oposto e explorar nossa humanidade comum. Eu estou convencido de que superar a polarização e realizar o ideal da unidade e igualdade humana – irmandade – é uma das tarefas mais urgentes de nosso tempo. Como disse Sêneca, “Elimine a comunhão e você irá destruir a unidade da raça humana, da qual nossa vida depende”.
Para Leitura Posterior
· Livros de David, Café da Manhã com Sêneca: Um Guia Estoico Para a Arte de Viver
· Uma Pequena História da Academia de Platão, por David Fideler
Originalmente publicado em:
https://aldodinucci.blogspot.com/2023/05/porque-filosofia-classica-e-importa.html
Baltasar Gracián, um erudito jesuíta espanhol, apresenta em “A Arte da Prudência” 300 ensinamentos para colocarmos em prática em nosso dia a dia. São estratégias de para se ter sucesso e atingir a felicidade em um mundo hostil. Mostrando as hipocrisias das relações humanas, os conselhos de Gracián envolvem temas como, amizade, trabalho, relacionamentos e conquistas, além de evidenciar sua visão espiritual e religiosa sobre o mundo.
Na Espanha, nada supera o estoicismo de Baltasar Gracián, cheio de sagacidade, ironia e moral. O autor cita várias vezes Sêneca e também Marco Aurélio. Alguns exemplos:
“É tolo aquele que aos quarenta anos de idade clama por saúde a Hipócrates, mais ainda aquele que clama por cordura a Sêneca.” § 36
“Tema a si mesmo, e não precisará mais de Sêneca como preceptor imaginário.” §50
“Caiu em desrespeito a ciência da filosofia. Sêneca introduziu-a em Roma e por algum tempo ela empolgou os nobres. Mas agora é considerada inútil e impertinente.” §100
“Subimos a escada da vida, e os degraus – os dias – desaparecem um após o outro, no momento em que movemos nossos pés. Não há como descer, nada a fazer a não ser ir adiante.“
Poderia escrever mais, contudo o prefácio de Jean Tosetto, que abre o texto, diz tudo:
Por Jean Tosetto[1]
De tempos em tempos os executivos de grandes empresas elegem um novo livro de cabeceira, resgatando algum clássico do passado. Citar bestsellers atuais pode ser arriscado, pois antes de se tornarem referências duradouras, podem ficar ultrapassados ou cair numa espécie de folclore de segunda linha. Entretanto, jamais pegará mal citar um filósofo antigo, não é mesmo? Assim, políticos, esportistas e investidores replicam essas dicas quentes de leitura.
Deste modo, dizem que o ex-presidente norte-americano Bill Clinton relê “Meditações”, do imperador Marco Aurélio, todos os anos. O badalado especulador Nassim Nicholas Taleb citou Sêneca em seus escritos e pronto: muita gente começou a ler as cartas do estoico que fora questor em Roma. Porém, quem ocupa o Olimpo das recomendações literárias para pessoas que desejam vencer na carreira são o chinês Sun Tzu, autor de “A Arte da Guerra”, e o florentino Nicolau Maquiavel, que escreveu “O Príncipe”.
Maquiavel ficou tão famoso que sua obra-prima é mais conhecida pelo seu próprio sobrenome do que pelo título formal. Involuntariamente, ele conseguiu a façanha de cunhar um adjetivo. Se um dia alguém te chamar de maquiavélico, cuidado: isso não é exatamente um elogio. Um sujeito maquiavélico pode se passar por alguém astuto, capaz de elaborar um plano bem detalhado que prevê reações para eventuais revezes, mas para a maioria das pessoas, o maquiavélico é alguém sem princípios éticos, que ignora os preceitos morais.
Esse é um dos problemas de alguém que lê “O Príncipe” de Maquiavel: desconfiar que não podemos agir feito damas ou cavalheiros, pois damas e cavalheiros são pessoas previsíveis – e ser previsível na política (ou no ambiente de trabalho) não seria o caminho indicado para se dar bem no longo prazo, de acordo com o escritor. O outro problema é que você tem que se imaginar no lugar de um regente nacional quando está lendo este legado renascentista, incluindo a edição comentada por Napoleão Bonaparte.
Algo semelhante acontece com “A Arte da Guerra”. Sun Tzu não escreveu o tratado militar para os civis, mas para os generais. Cabe ao leitor se colocar no lugar de um chefe de tropas para extrair as lições práticas para o seu cotidiano – uma tarefa que fica mais difícil para quem está começando a trabalhar no chão de uma fábrica ou fazendo estágio num escritório. Você vira a última página e pensa consigo mesmo:
“Então eu preciso ser uma pessoa inescrupulosa para subir na vida?”
Queria encaixar um palavrão na frase anterior, aquele que ofende o elemento e sua progenitora, mas seria uma indelicadeza com o prefácio de “A Arte da Prudência”, de Baltasar Gracián, afinal de contas, ele foi padre e professor, mais do que um militar vitorioso.
Gracián compreendia como poucos os diversos níveis hierárquicos das organizações, dado que além de integrar um exército que venceu batalhas na Guerra da Catalunha, em meados do século XVII, ele pertenceu à Companhia de Jesus. Ou seja, ele foi um subalterno que galgou passos até ganhar a alcunha de “O Pai da Vitória”. No meio do caminho aprendeu a lidar com superiores, colegas no mesmo patamar e pessoas sob suas ordens.
Quando Gracián reuniu trezentos aforismos para publicar em forma de livro, ele sabia que a maioria absoluta dos leitores jamais seriam generais ou chefes de estado, muito menos papas ou cardeais. Esse talvez seja o aspecto mais reconfortante de sua obra. Ao ler a “A Arte da Prudência” ficamos com a impressão de que podemos ser vencedores, mesmo sem alcançar o ápice da carreira que imaginamos. Ápice que o autor também não alcançou, mas isso não impediu que seu nome ficasse marcado na História.
Também é agradável ficar com a sensação de que não precisamos ser como uma máquina fria e sem coração (mas que sabe dissimular) para ter sucesso em nosso ambiente de trabalho. Porém, isso não quer dizer que podemos ser ingênuos e desarmados. Não precisar ser como as raposas não significa que devemos agir feito cordeiros.
Embora tenha sido um teólogo exemplar, Gracián não leva sua coleção de conselhos para o lado místico ou religioso. Ao contrário, ele se baseia na lógica e na observação do que estava ao seu redor para tecer máximas de teor prático e realista, repletas de conceitos racionais de retórica refinada, que levaram os críticos a classificar o filósofo neo-estoico como membro do Conceptismo, corrente literária do estilo barroco que tinha no poeta Francisco Gómez de Quevedo seu maior expoente.
Assim, Gracián se distancia de Sun Tzu e Maquiavel, para se aproximar de Sêneca e Marco Aurélio na estante de livros que sobrevivem à cabeceira da cama daqueles que apreciam uma leitura edificante e prazerosa.
Disponível na Amazon, Apple, Google e Kobo.
[1] Jean Tosetto (1976) é arquiteto e urbanista graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, São Paulo. Tem escritório próprio desde 1999. O autor e editor de livros é adepto do Value Investing e colabora com a Suno Research desde janeiro de 2017, onde já escreveu livros de sucesso em parcerias com Tiago Reis, Professor Baroni e Felipe Tadewald. Publicou sua primeira obra, “MP Lafer: a recriação de um ícone”, em 2012, de forma independente.
Professor Aldo Dinucci lançou recentemente sua nova tradução, direto do latim, de AD PAVLINVM, DE BREVITATE VITAE, Sobre a Brevidade da Vida de Sêneca.
Aldo resume os ensinamentos de forma brilhante e concisa:
1. A maioria dos mortais reclama da Natureza por ela supostamente nos ter dado uma vida breve. Entretanto, a vida humana só é breve se o tempo dado não for bem empregado.
2. Muitos clamam por ócio, mas não dão essa oportunidade a si próprios, pois vivem sobrecarregados em suas ocupações diárias. Sêneca oferece vários exemplos de homens célebres que ilustram esse fato, como César Augusto e Cícero.
3. Muitos dos que se dedicam ao ócio também tornam sua vida pior e mais curta por causa dele. Sêneca esclarece que ócio não é, como muitos pensavam e muitos mais pensam hoje, se dedicar aos prazeres excessivos, como embebedar-se em banquetes (uma preferência nacional romana, que corresponde de certa forma ao nossos churrascos) e consagrar sua vida ao sexo.
4. O ócio também não consiste em se consagrar a estudos estéreis, erudições vazias e pedantes. O verdadeiro ócio, consagrado ao estudo da filosofia, deve tornar melhor o humano e abrir-lhe as portas para o conhecimento das coisas do mundo e da Divindade que as governa.Sêneca, portanto, nos ensina a administrar e bem empregar nosso tempo. Ele nota que não temos ciência da importância de nosso tempo por ele, embora seja necessariamente limitado, nos parecer infinito, razão pela qual o desperdiçamos e deixamos que nos seja tomado por ocupações e preocupações inúteis e por pessoas que nada nos acrescentam.
Disponível na Amazon:
Nossa tradução, do inglês:
“Enfermaria nº 6” é o conto mais famoso de Tchekhov. A história é ambientada em um hospital provincial e explora o conflito filosófico entre Ivan Dmitritch, um paciente, e Andrey Ragin, médico-chefe do hospital. Ivan denuncia a injustiça que vê em toda parte, enquanto o médico insiste em ignorar a injustiça e outros males; parcialmente como resultado desta forma de pensar, ele negligencia resolver as péssimas condições da ala psiquiátrica.
O conto pode ser visto como uma analogia ao comportamento humano, que, em vez de lidar com os problemas, opta por vê-los à distância e ignorá-los. É uma história de ideias sobre a vontade, ação e inação, e o lugar do indivíduo na sociedade. Gira em torno do principal dilema de Tchekhov – Será possível o progresso? Ou em milhares de anos apenas os aspectos superficiais da vida terão mudado, enquanto os instintos humanos básicos permanecerão os mesmos?
No conto, o paciente desafia o estoicismo do médico-chefe e abala os fundamentos de sua crença. O médico nunca sofreu, diz o paciente, e portanto suas convicções sobre os ciclos intermináveis e repetitivos da vida e da história só podem ser acadêmicas, teóricas e, portanto, sem sentido. O Dr. Ragin é eloquente em sua defesa do estoicismo:
“A vida é uma armadilha vexatória; quando um homem pensante atinge a maturidade e atinge a plena consciência, não pode deixar de sentir que está em uma armadilha da qual não há como escapar. De fato, ele é convocado sem sua escolha por circunstâncias fortuitas de não-existência para a vida… Para quê? Ele tenta descobrir o significado e o objeto de sua existência … Se se considera que o objetivo da medicina consiste em aliviar a dor, surge a pergunta: Para quê aliviá-la? Em primeiro lugar, dizem que a dor leva o homem à perfeição e, em segundo, que se a humanidade aprender, efetivamente, a aliviar as suas dores com a ajuda de pílulas e remédios, abandonará por completo a religião e a filosofia, em que até agora encontrara não apenas defesa contra todos os males mas também a felicidade.” (Enfermaria nº 6, VI)
Toda escolha, diz Ragin, é uma não escolha – sem sentido em um mundo definido pelo nascimento casual e pela morte inevitável. Um quarto aconchegante junto a um fogo é igual a uma cela de prisão, ele justifica, porque a aleatoriedade que produziu ambos não tem nenhum significado ou valor inerente. O mundo externo não tem nenhum propósito, nenhum futuro e nenhum significado; e a única expressão válida da humanidade é a aceitação incondicional desta realidade. Há apenas duas qualidades admiráveis do homem – a busca da compreensão e o desprezo pela vaidade. “O homem verdadeiramente sábio não se surpreende com nada“, diz Ragin.
Dr. Ragin: — Você é um homem que sabe pensar. Em qualquer situação pode encontrar tranquilidade interior. O pensamento livre e profundo, que aspira a compreender a vida, e o desprezo total pela estúpida vaidade humana são os dois bens supremos que o homem conhece, e você pode possuí-los ainda que viva atrás de grades. Diógenes viveu num barril, mas, apesar disso, foi mais feliz que todos os reis da Terra.
Ivan Dmitritch: — Diógenes não precisava de um escritório e uma casa aquecida; a Grécia é um país quente; podia permanecer no seu tonel comendo laranjas e azeitonas. Mas se tivesse vivido na Rússia, já não digo em Dezembro, mas mesmo em Maio, teria pedido uma casa. Ficaria gelado.
Dr. Ragin:— Não. Uma pessoa pode ser insensível ao frio como a qualquer outra dor. Marco Aurélio diz: “Uma dor é uma ideia vívida de dor; faça um esforço de vontade para mudar essa ideia, rejeitá-la, parar de reclamar e a dor desaparecerá”. Isso é verdade. O homem sábio, ou simplesmente o homem reflexivo e pensativo, distingue-se precisamente por seu desprezo pelo sofrimento; está sempre contente e surpreso por nada.
(Enfermaria nº 6, IX)
O doente mental, a única pessoa inteligente em toda a cidade, mostra o cinismo e falhas do falso estoicismo do médico:
Ivan Dmitritch: — Os estoicos a que você se refere eram homens notáveis, mas a sua doutrina estagnou há dois mil anos e não avançou mais, nem avançará, porque não é praticado nem tem vida. Apenas obteve um certo êxito entre uma minoria que passa o seu tempo a estudar e a ruminar toda a espécie de doutrinas; a maior parte das pessoas não chegou a compreendê-la. Uma doutrina que preconiza a indiferença em relação às riquezas, às comodidades da vida, e o desdém pelos sofrimentos e a morte, é totalmente incompreensível para a imensa maioria, já que esta não conheceu nunca as riquezas nem as comodidades. E desprezar o sofrimento significaria para eles desprezar a própria vida, visto que o homem na sua essência é feito de sensações de fome, frio, desconsiderações, derrotas, e um medo perante a morte à semelhança de Hamlet. Nestas sensações está encerrada a vida inteira: pode cansar-nos, podemos odiá-la, mas não desprezá-la. Assim, portanto, repito: a doutrina dos estoicos nunca poderá ter futuro. Pelo contrário, aquilo que progride, conforme pode observar, desde o princípio do mundo até ao dia de hoje, é a luta, a sensibilidade perante a dor, a capacidade de responder às excitações…
(Enfermaria nº 6, X)
Fazer vista grossa ao sofrimento com base em sua perpetuidade é de alguma forma errado ou mesmo imoral? Será que o sofrimento nega automaticamente a teoria filosófica? Se Ragin chora quando seu dedo é preso em uma porta, isso significa que ele tem instintivamente, e por isso corretamente, descartado o estoicismo?
O progressivo e inevitável declínio do Dr. Ragin é doloroso de se observar. Quando o próprio médico é lá internado, ele percebe a falácia de sua filosofia e, tarde demais, entende que o mal deve ser enfrentado. O livro, como a instituição em que é ambientado, é frio, insensível e hostil. Somente as idéias e o debate entre Dr. Ragin e Ivan Dmitrich têm vida.
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“Nascemos sob um reinado e obedecer a Deus é liberdade“
Justo Lípsio ( 1547 – 1606 d.C), foi filólogo e humanista flamengo considerado um dos eruditos mais famosos do século XVI. Autor de uma série de obras que pretendiam recuperar a antiga corrente filosófica do estoicismo num formato compatível com o cristianismo tomando como modelo de partida a obra Sêneca. Viveu, toda sua vida, em meio a Guerra dos 80 anos (1568 a 1648). Na época os Países Baixos pertenciam ao Império Espanhol. Altos impostos, desemprego e a perseguição católica contra os calvinistas criaram uma perigosa oposição e revolta liberal. Nascido em família católica, troca de lado, aliando-se aos calvinistas, para depois retornar à fé católica.
Em Sobre a Constância Justo Lípsio aconselha a busca de um estado de espírito reto e inabalável, baseado em uma firmeza interior (constância), que emana, não de mera opinião, mas de julgamento e razão justos.
Lípsio se concentra no valor do estoicismo para fortalecimento da mente contra problemas e ansiedades externas. Em uma época de disputas e perseguições religiosas, Lípsio pretendia que o livro fosse tanto um consolo quanto uma solução para as calamidades que ele e seus contemporâneos estavam sofrendo. O resultado é um manual para a vida prática e, como tal, está mais focado em regras morais do que em argumentos filosóficos rigorosos. O tema central do livro é a necessidade de cultivar a resistência voluntária e inflexível para todas as circunstâncias humanas.
O livro é escrito na forma de um diálogo entre Lípsio e seu velho amigo Carlos Langhe, no texto lançado no papel de um sábio estoico que havia conseguido o domínio sobre suas emoções pela razão.
O jovem Lípsio começou seu estudo de Sêneca, bem como o de Tácito, durante a época que morou em Roma, em 1569. Foi seu professor Marc-Antoine Muret quem primeiro estimulou seu interesse em Sêneca e no estoicismo romano, dando origem a uma obsessão vitalícia que alternaria entre filologia e filosofia. O interesse filosófico de Lípsio pelo estoicismo romano levou à publicação de seu diálogo baseado em Sêneca de grande sucesso, estabelecido em meio às violentas lutas religiosas e políticas da Holanda, De constantia in publicis malis (“Sobre a Constância em Tempos de Calamidade Pública”). Esta foi sua primeira tentativa de combinar estoicismo e cristianismo a fim de criar uma nova filosofia que ajudaria os indivíduos a viver o difícil período de guerras civis e religiosas que estavam dilacerando o norte da Europa.
Um olhar mais atento ao primeiro trabalho neo-estoico de Lípsio revela que de constantia era o manifesto de um humanista que estava convencido de ter encontrado na filosofia de Sêneca tanto um consolo quanto uma solução para as calamidades públicas que ele e seus contemporâneos estavam suportando.
Do livro A Vida Feliz de Sêneca, Lípsio toma o lema: “Nascemos sob um reinado e obedecer a Deus é liberdade”( I.14). Depois de definir Deus, providência e destino, ele chega à necessidade (necessitas), a conclusão lógica de sua mútua cooperação: tudo que é governado pelo destino acontece por necessidade (I.19). O exemplo mais óbvio desta necessidade natural é a decadência e destruição de todas as coisas temporais (I.15-16).
Embora consolando seus leitores, Lípsio não nega a arrogância do poder, as atrocidades da história ou a crueldade de tiranos e imperadores. No entanto, ele tenta encorajar seus leitores a adotar uma atitude de constância, listando uma longa série de divinae clades (desastres aprovados por Deus): exemplos horríveis da história destinados a ilustrar a utilidade do castigo divino e a demonstrar que males como terremotos, pestilência, guerra e tirania fazem parte da condição humana – na verdade, do plano de Deus para a preservação e melhoria do mundo como um todo. Além disso, argumenta ele, os males do tempo presente não são particularmente graves nem piores do que os que existiam no passado: “Pois como o trabalho dividido entre muitos é fácil: do mesmo modo, também é com a tristeza” (II.26).
Espera-se, portanto, que o homem verdadeiramente sábio aceite a lei da necessidade com firmeza e fortaleza mental, ao mesmo tempo em que perceba que “o homem é uma sombra e um sonho” (I,17), ele deve mostrar desprezo pelo curso dos acontecimentos humanos cultivando constância: “a razão correta como sendo um verdadeiro sentido e julgamento das coisas humanas e divinas“ (I.4). A mãe desta constância é a paciência, que é governada pela razão. A razão – ao contrário das falsas opiniões – não é nada mais que um verdadeiro julgamento sobre as coisas humanas e divinas. É esta transformação interior – baseada nos princípios estoicos essenciais da razão, coragem, justiça e sujeição à vontade de Deus – que torna possível viver feliz em meio à inevitável decadência e agitação do mundo.
Assim, “envoltos pela névoa e pelas nuvens da opinião” (I.2), nunca devemos parar de tentar dominar, pela razão, nossas paixões e emoções (adfectus) – desejo, alegria, medo e dor (cupiditas, gaudium, metus e dolor) – e nossas falsas opiniões. As emoções não apenas perturbam o equilíbrio da alma e impedem a constância, elas são falsas e perigosas, pois podem perturbar o desapego necessário ao homem sábio. Consequentemente, é necessário “acirrar nossa mente e temperá-la de modo que possamos alcançar a paz em meio à agitação e a tranquilidade em meio ao conflito“ (I.1). Se a razão, a governante legítima de nossa mente, puder vencer nossas paixões e falsas opiniões, poderemos enfrentar o mal público e privado com verdadeira constância. Devido a três emoções, porém – engano, patriotismo, e piedade pelos infortúnios dos outros – todos nós carregamos a guerra dentro de nós mesmos. Pior ainda, o que nos parece ser uma virtude é na verdade um vício, pois pensar que sofremos por causa do sofrimento de nosso país nos faz sofrer por nós mesmos e por nossa propriedade, enquanto a pena pelo sofrimento dos outros é indigna em um homem sábio. Devemos, portanto, obedecer à prescrição estoica para extirpar todas essas emoções nocivas.
O diálogo entre Lípsio e seu velho amigo Langhe – lançado no papel de um sábio estoico que havia conseguido o domínio sobre suas emoções pela razão – tem claramente o objetivo de proporcionar aos leitores algo mais simples do que a filosofia contemporânea, que Lípsio criticava por sua sutileza excessiva, e de estabelecer a constância como principal virtude. O Sobre a Constância de Lípsio tem assim um foco diferente do tratado de Sêneca De constantia sapientis (“Sobre a Constância do Sábio“), no qual foi ostensivamente modelado; pois nos capítulos 1a 12 do Livro I Lípsio apresenta a virtude da constância como um remédio para o tumulto dos tempos e exorta os leitores a se distanciarem completamente de todos os sentimentos que poderiam levar a qualquer tipo de envolvimento emocional nas guerras políticas e religiosas que os rodeavam.
No entanto, ele não aconselhou o abandono dos assuntos públicos e a retirada para a vida privada. Estoicos e cristãos eram cosmopolitas, cuja verdadeira pátria era o céu. Eles deveriam ser bons cidadãos para serem bons homens, “executará mais em obras do que em palavras: e estenderá sua mão aos pobres e necessitados, em vez de sua língua.” (1.12) e, como tal, render-se ao plano de Deus para a humanidade e ao imutável poder da providência.
Lípsio reformula a apatheia estoica como um antídoto adequado às paixões religiosas e políticas de sua época e transforma a Fortuna estoica na providência divina cristã (ficando o destino subordinado a Deus em vez do contrário).
Embora o livro Sobre a Constância não fosse o tratamento mais sistemático ou teórico da ética estoica de Lípsio, mas sim um texto de filosofia prática, um manual para uma vida sábia, este adquiriu uma posição de destaque no pensamento europeu. Tendo mais de oitenta edições entre os séculos XVI e XVIII, sendo mais de quarenta no latim original e o restante em traduções para uma ampla gama de línguas europeias. O tratado, que incorpora elementos do calvinismo militante juntamente com argumentos sobre o livre arbítrio utilizado pelos jesuítas, tornou-se patrimônio cultural universal durante o período barroco, influenciando a erudição, a poesia e a arte até o Iluminismo.
Jean Tosetto, em parceria com a Suno Research, lançou esta semana o livro Estoicismo aplicado aos investimentos no qual defende que a ataraxia, estado mental emulado pelos estoicos, beneficia investidores cientes de que a prosperidade vai além do progresso material, lhes provendo maior controle sobre as emoções para lidar com os riscos inerentes da renda variável.
O livro, na verdade um longo artigo, é muito bem escrito e trata um assunto importante sem cair na falha, tão comum atualmente, de confundir o estoicismo como uma “auto ajuda para ficar rico rápido”. Aborda as razões para estudar as finanças e os estoicos, a relação entre o processo de investimento e as emoções e os benefícios do estoicismo para os investidores, sem nunca descuidar do principal ponto, que o dinheiro não é um fim em si mesmo, mas uma ferramenta que pode ser útil para o desenvolvimento pessoal e para se entregar algo de bom para a sociedade.
Trechos:
O pensamento de Jean está em linha com os grandes mestres do estoicismo. Sêneca no livro “A Vida Feliz“ aborda a relação do dinheiro e virtude:
“Ninguém condenou a sabedoria à pobreza. O filósofo pode possuir ampla riqueza, mas não possuirá riqueza que tenha sido arrancada de outro, ou que esteja manchada com o sangue de outra pessoa: ela deve ser obtida sem prejudicar qualquer homem e sem que ela seja obtida por meios vis; deve ser honrosamente acessível e honrosamente gasta.” (XXIII,1)
“Se as minhas riquezas me deixarem, não levarão consigo nada além de si mesmas: já vocês ficarão desnorteadas e parecerão ficar fora de si se as perderem: comigo as riquezas ocupam um certo lugar, mas com você elas ocupam lugar mais alto de todos. Em suma, minhas riquezas pertencem a mim, você pertence às suas riquezas.” (XXII, 5)
O Autor palestrou sobre o tema na Stoicon X-Aracaju, evento de filosofia organizado pelo GT Epicteto e pelo grupo Viva Vox, sob a supervisão do Professor Doutor Aldo Dinucci, da Universidade Federal de Sergipe.
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Neste sábado, 20 de novembro acontece o Stoicon-X Aracaju. Irei falar brevemente sobre estoicismo e religião, focando na obra de Boécio e Justo Lípsio.
Boécio (480 a 524 d.C.) foi um filósofo, poeta, estadista e teólogo romano, cujas obras tiveram uma profunda influência na filosofia Patrística e Escolástica. Sua principal obra A Consolação da Filosofia foi escrita na prisão à espera da morte. Trata-se de uma obra-prima da literatura e do pensamento europeu; ela se basta, e teria o mesmo valor se ignorássemos tudo a respeito daquele que a concebeu entre duas sessões de tortura, à espera de sua execução. Contudo, a história pessoal do autor é bem conhecida. Ele foi um homem cuja fortuna se elevou ao mais alto nível possível; mas que experimentou o colapso total dessa fortuna, ficando conhecido por ter se mantido firme na prisão até mesmo sob tortura.
Justus Lipsius ( 1547 – 1606 d.C) foi um filólogo e humanista flamengo considerado um dos eruditos mais famosos do século XVI. Foi autor de uma série de obras que pretendiam recuperar a antiga corrente filosófica do estoicismo num formato compatível com o cristianismo tomando como modelo de partida a obra Sêneca. A mais importante dessas obras foi Sobre a constância. Sua nova forma de estoicismo influenciou grande número de seus contemporâneos intelectuais dando lugar ao movimento conhecido como neoestoicismo.
Livros:
A 60km de Viena estão as ruínas da antiga cidade romana de Carnuntum. Lá o imperador Marco Aurélio escreveu o segundo livro suas meditações.
Reconstruíram uma parte das ruínas, para mostrar como eram as construções da época. Semana passada houve uma encenação do cotidiano da época do fim do império Romano. Para aqueles que tiverem oportunidade de vir a Viena, vale muito a pena uma visita.
Abaixo texto completo das Meditações de Marco Aurélio escrito na cidade.
Gosto especialmente do trecho sobre autoconhecimento:
“O fracasso em observar o que está na mente de outro raramente fez um homem infeliz; mas aqueles que não observam os movimentos de suas próprias mentes devem ser necessariamente infelizes.“
——
1. Comece a manhã dizendo a si mesmo, eu me encontrarei com o intrometido, o ingrato, arrogante, enganador, invejoso, anti-social. Tudo isso acontece com eles por causa de sua ignorância do que é bom e mau. Mas eu, que vi a natureza do bem que é belo, e do mal que é feio, e a natureza do que é maligno, que é semelhante a mim; não [só] do mesmo sangue ou semente, mas que participa da [mesma] inteligência e [mesma] parte da divindade, não posso ser ferido por nenhum deles, pois ninguém pode prender em mim o mal, nem posso ficar bravo com meu próximo, nem o odiar. Porque somos feitos para a cooperação, assim como pés, como mãos, como pálpebras, como as linhas dos dentes superiores e inferiores[1]. Agir uns contra os outros, portanto, é contrário à natureza; e agir uns contra os outros é importunar-se e desviar-se.
2. O que quer que eu seja, eu sou um pouco de carne, sopro de vida[2] e a parte que reina. Jogue fora os seus livros; não se distraia mais; isso não é permitido; mas, como se estivesse agora morrendo, despreze a carne; é sangue, ossos e tecido, uma conjuntura de nervos, veias e artérias. Veja também o sopro, que tipo de coisa é; ar, e nem sempre o mesmo, mas cada momento emitido e novamente aspirado. O terceiro, então, é a parte que rege; considere assim: Você é um homem de idade; não mais deixe que isso seja escravizador, não mais seja puxado pelas linhas como um fantoche para movimentos anti-sociais, não fique mais insatisfeito com sua sorte atual, ou hesite com o futuro.
3. Tudo o que vem dos deuses está cheio de providência. O que é da fortuna não está separado da natureza ou sem interligação e inflexão com as coisas que são ordenadas pela providência. De lá todas as coisas fluem; e há além da necessidade, e aquilo que é para a vantagem de todo o universo, do qual você é uma parte. Mas isso é bom para cada parte da natureza que a natureza do todo traz, e o que serve para sustentar esta natureza. Agora o universo é preservado, assim como pelas mudanças dos elementos, assim como pelas mudanças das coisas compostas dos elementos. Que estes princípios sejam suficientes para você; que sejam sempre opiniões firmes. Mas rejeite a sede dos livros, para que não morra murmurando, mas alegremente, verdadeiramente, e de coração seja grato aos deuses.
4. Lembre-se de quanto tempo você tem postergado estas coisas, e quantas vezes você tem recebido uma oportunidade dos deuses, e ainda assim não a tem usado. Você deve agora finalmente perceber de que universo você é uma parte, e de que mestre do universo sua existência é um efluxo, e que um limite de tempo foi fixado para você, que se você não o usar para limpar as nuvens de seu espírito, ele vai, e você vai, e ele nunca mais voltará.
5. Cada momento pense firmemente como um romano e homem para fazer o que você tem em mãos com perfeita e simples dignidade, e sentimento de afeto, e liberdade, e justiça, e para dar a si mesmo o descanso de todos os outros pensamentos. E você se aliviará se fizer cada ato de sua vida como se fosse o último, deixando de lado todo descuido e aversão passional aos mandamentos da razão, e toda hipocrisia, egoismo e insatisfação com a parte que foi dada a você. Você vê quão poucas são as coisas às quais um homem precisa seguir para ser capaz de viver uma vida que flui em tranquilidade como a dos deuses; pois os deuses por sua parte não exigirão nada mais daquele que observa essas coisas.
6. Faça mal a você mesma, faz mal a você mesma, minha alma, mas não terá mais a oportunidade de honrar-se a si mesma[3]. A vida de cada homem é suficiente. † Mas a sua está quase terminada, embora a sua alma não reverencie a si mesma, mas coloque a sua felicidade nas almas dos outros.
7. As coisas externas que recaem sobre você o distraem? Dê a si mesmo tempo para aprender algo novo e bom, e deixe de ser rodopiado como um pião. Mas então você também deve evitar ser levado para o outro lado; pois esses também são insignificantes que se cansaram na vida pela sua atividade, e ainda não têm nenhum objeto ao qual dirigir cada um dos seus passos, e, em uma palavra, todos os seus pensamentos.
8. O fracasso em observar o que está na mente de outro raramente fez um homem infeliz; mas aqueles que não observam os movimentos de suas próprias mentes devem ser necessariamente infelizes.
9. Isto você deve sempre ter em mente, qual é a natureza do todo, e qual é a minha natureza, e como isto está relacionado com aquilo, e que tipo de parte é de que tipo de todo, e que não há ninguém que o impeça de sempre fazer e dizer as coisas que são de acordo com a natureza da qual você é uma parte.
10. Teofrasto[4], em sua comparação de maus feitos — uma comparação como se faria de acordo com as noções comuns da humanidade — diz, como um verdadeiro filósofo, que as ofensas que são cometidas pelo desejo são mais culpáveis do que aquelas que são cometidas pela ira. Pois aquele que se excita com a ira parece afastar-se da razão com uma certa dor e contração inconsciente; mas aquele que ofende pelo prazer, sendo dominado pelo prazer, parece estar de uma maneira mais desmedida e mais feminina em suas ofensas. Com razão, então, e de uma forma digna de filosofia, ele disse que a ofensa que é cometida por prazer é mais censurável do que aquela que é cometida pela dor, e no conjunto, uma é mais como uma pessoa que foi injustiçada primeiro e através da dor é compelida a ficar irritada, mas a outra é movida pelo seu próprio impulso de fazer o mal, sendo levada a fazer algo pelo prazer.
11. Uma vez que é possível que se retire da vida neste exato momento[5], controle todos os atos e pensamentos em concordância[6]. Mas sair do meio dos homens, se há deuses, não é uma coisa a temer, pois os deuses não o envolverão no mal; mas se realmente não existem, ou se eles não têm preocupação com assuntos humanos, o que é para mim viver em um universo sem deuses ou sem providência? Mas na verdade eles existem, e eles se importam com as coisas humanas, e eles puseram todos os recursos ao alcance do homem para capacitá-lo a não cair em males reais. E, quanto ao resto, se existisse algo de mal, eles teriam providenciado para que isso também estivesse totalmente no poder de um homem de não cair nele. Agora, o que não torna um homem pior, como pode piorar a vida de um homem? Mas nem por ignorância, nem tendo o conhecimento, mas não o poder de proteger contra ou corrigir essas coisas, é possível que a natureza do universo tenha negligenciado essas coisas, nem é possível que ela tenha cometido um erro tão grande, seja por falta de poder ou falta de habilidade, que o bem e o mal devem ocorrer indiscriminadamente para o bom e o mau. Mas a morte certamente, e a vida, a honra e a desonra, a dor e o prazer, todas essas coisas acontecem igualmente aos homens bons e maus, sendo coisas que não nos tornam nem melhores nem piores. Portanto, não são nem boas nem ruins.
12. Quão rapidamente todas as coisas desaparecem, no universo os próprios corpos, mas com o tempo a lembrança deles. Qual é a natureza de todas as coisas sensatas, e particularmente aquelas que atraem com a sedução do prazer ou aterrorizam pela dor, ou são apregoadas pela fama vaporosa; quão sem valor, e desprezíveis, e sórdidas, e perecíveis, e mortas elas estão, tudo isso é parte da faculdade intelectual de observação. Observe também de quem são essas opiniões e vozes, o que é a morte, e o fato de que, se o ser humano olhar para ela em si mesmo, e pela força abstrata da reflexão determinar em suas partes todas as coisas que nela se apresentam à imaginação, então a considerará como nada mais que uma atividade da natureza; e se alguém tiver medo de uma atividade da natureza, será uma criança. No entanto, essa não é apenas uma atividade da natureza, mas é também uma coisa que conduz aos propósitos da natureza. Observe também como o homem se aproxima da Divindade…[7]
13. Nada é mais miserável do que um homem que atravessa tudo em círculos e se empenha nas coisas debaixo da terra, como diz o poeta[8], e procura por conjectura o que está na mente de seus semelhantes, sem perceber que basta cuidar do daemon[9] dentro dele, e reverenciá-lo sinceramente. E a reverência do daemon consiste em mantê-lo livre de paixão e inconsciência, e de insatisfação com o que vem dos deuses e dos homens. Pois as coisas dos deuses merecem veneração por sua excelência; e as coisas dos homens devem ser-nos queridas em razão do parentesco; e às vezes até, de certo modo, elas despertam nossa piedade em razão da ignorância dos homens do bem e do mal; sendo este defeito não menos do que a cegueira que nos priva do poder de distinguir as coisas brancas e negras.
14. Ainda que você vá viver três mil anos, e tantas vezes dez mil anos, lembre-se ainda que nenhum homem perde outra vida além da que agora vive, nem outra vida além da que agora perde. O mais longo e o mais curto são assim levados ao mesmo. Porque o presente é o mesmo para todos, embora o que perece não seja o mesmo; e assim o que está perdido parece ser um mero momento. Pois um homem não pode perder nem o passado nem o futuro: pois aquilo que um homem não tem, como pode alguém tirar-lho? Estas duas coisas, então, você deve ter em mente: a primeira, que todas as coisas desde a eternidade são de semelhantes formas e vêm em círculos, e que não faz diferença se um homem deve ver as mesmas coisas durante cem anos, ou duzentos, ou um tempo infinito; e a segunda, que o que tem maior longevidade e aquele que vai morrer logo perderão exatamente a mesma coisa. Porque o presente é a única coisa de que um homem pode ser privado, se é verdade que isto é a única coisa […].
15. Lembre-se que tudo é opinião. Pois o que foi dito pelo cínico Mônimo[10] é evidente: e também evidente é a utilidade do que foi dito, se um homem se apropria do essencial.
16. A alma do homem comete atos de violência contra si mesma, antes de mais nada, quando se torna um tumor e, por assim dizer, uma excrescência no universo. Pois ser incomodado com tudo o que acontece é uma dissociação de nós mesmos da natureza, em alguma parte da qual estão contidas as naturezas de todas as outras coisas. Em segundo lugar, a alma violenta-se a si mesma quando se afasta de qualquer ser humano, ou mesmo se dirige a ele com a intenção de ferir, como o são as almas dos que se enfurecem. Em terceiro lugar, a alma comete violência a si mesma quando é dominada pelo prazer ou pela dor. Em quarto lugar, quando ela desempenha um papel, e faz ou diz qualquer coisa dissimulada e indisciplinada. Em quinto lugar, quando permite que qualquer ato próprio e qualquer ação seja sem finalidade, e faz qualquer coisa sem pensar e sem considerar o que é, sendo certo que mesmo as menores coisas sejam feitas com referência a um fim; e a finalidade das criaturas racionais é seguir a razão e a lei mais venerada.
17. Da vida humana o tempo é um ponto, e a substância está em fluxo, e a percepção difícil, e a composição do corpo como um todo sujeita à putrefação, e a alma um turbilhão, e a fortuna difícil de ser revelada, e a fama uma coisa sem discernimento. E, para dizer tudo em uma palavra, tudo o que pertence ao corpo é uma torrente, e o que pertence à alma é um sonho e um vapor, e a vida é uma guerra e uma viagem ao estrangeiro, e depois da fama está o esquecimento. O que é então aquilo que é capaz de conduzir um homem? Uma coisa, e só uma, é a filosofia. Mas isto consiste em manter o daemon, dentro de um homem livre de violência e ileso, superior às dores e prazeres, não fazendo nada sem um propósito, nem ainda falsamente e com hipocrisia, não sentindo a necessidade de outro homem fazer ou não fazer nada; e além disso, aceitando tudo o que acontece, e tudo o que lhe é atribuído, como vindo de lá, de onde quer que esteja, de onde ele mesmo veio; e, finalmente, esperando a morte com uma mente alegre, como sendo nada mais que uma dissolução dos elementos de que todo ser vivo é composto. Mas, se não há malefício para os próprios elementos em cada um deles, que se transformam continuamente em outros, por que haveria o ser humano de ter qualquer receio da mudança e da dissolução de todos os elementos? Pois isso está de acordo com a natureza, e nada existe de mal que esteja de acordo com a natureza.
Isso foi escrito em Carnuntum[11].
[1] Xenofonte, Memorabilia. Livro II. 3, 18
[2] Pneuma: na filosofia estoica é o conceito de “sopro de vida”, uma mistura dos elementos ar (em movimento) e fogo (como calor).
[3] Talvez devesse ser: “Estás a fazer violência a ti mesmo“. ὑβρίζείς
[4]Teofrasto (Eresos, 372 a.C. — 287 a.C.) foi um filósofo da Grécia Antiga, sucessor de Aristóteles na escola peripatética. Era oriundo de Eressos, em Lesbos, seu nome original era Tirtamo, mas ficou conhecido pela alcunha de ‘Teofrasto’, que lhe foi dada por Aristóteles, segundo se diz, para indicar as qualidades de orador.
[5]Ou pode significar, “uma vez que está em seu poder partir;” o que dá um significado um pouco diferente.
[6]Ver Cícero, Discussões Tusculanas, I, 49.
[7]Trecho não disponível. Ver também Livro VI. 28.
[8]Píndaro também conhecido como Píndaro de Cinoscefale ou Píndaro de Beozia, foi um poeta grego, autor de Epinícios ou Odes Triunfais. Veja em Teeteto de Platão, XI,1.
[9]Daemon (em grego δαίμων, transliteração daímôn) tradução “divindade”, “espírito”, no plural daemones. A palavra daímôn se originou com os gregos na Antiguidade; no entanto, ao longo da História, surgiram diversas descrições para esses seres. O nome em latim é daemon, que veio a dar o vocábulo em português demônio. A palavra grega que designa o fenômeno da felicidade é Eudaimonia (εὐδαιμονία). Ser feliz para os gregos é viver sob a influência de um bom daemon. Assim é a forma como Sócrates se refere a seu daemon.
[10] Mônimo de Siracusa foi um filósofo cínico de Siracusa. De acordo com Diógenes Laércio, Mônimo foi escravo de um cambista de coríntio. A fim de que pudesse se tornar um aluno de Diógenes, Mônimo fingiu ter enlouquecido e começou a atirar dinheiro para a rua até que seu senhor o descartou.
[11] Carnuntum era uma cidade de Panónia, no lado sul do Danúbio, a cerca de trinta milhas a leste de Vindobona (atual Viena).