Carta 17: Sobre Filosofia e Riquezas

Mais uma vez Sêneca aborda a questão da pouca importância do dinheiro para a felicidade e exalta Lucílio colocar o estudo da filosofia em primeiro plano, deixando a acumulação de riquezas em segundo.

Tal conselho, vindo de um dos mais ricos homens de Roma pode parecer hipócrita, e o próprio Sêneca era alvo de seus críticos, que perguntavam: “Por que você fala muito melhor do que vive?” Sêneca em seus escritos discorre sobre a possibilidade de alguém ser rico, até mesmo extremamente rico, e manter a integridade ética. Existem três critérios principais para isso, Sêneca nos diz.

  1. O rico virtuoso deve manter a atitude correta, alheia e não-escrava em relação à sua riqueza, possuindo-a sem obrigação e disposto a desistir de tudo quando necessário: “Ele é um grande homem que usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa a prata como se fosse barro“. (Carta 98:  Sobre a inconstância da fortuna)
  2. Em segundo lugar, ele deve adquirir riquezas de maneira moralmente legítima, para que seu dinheiro não seja “manchado de sangue ”.
  3. Em terceiro lugar, ele deve usar suas riquezas generosamente, para beneficiar os menos favorecidos do que ele – uma disposição que convida à comparação com o trabalho de caridade praticado por filantropos ricos em nosso próprio tempo.

(Imagem O julgamento de Midas por Pieter Jacobsz. Codde)

 

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Sobre Filosofia e Riquezas

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Elimine todas as coisas desse tipo, se você é sábio; ou melhor, para que seja sábio; objetive uma mente sã, rápida e com toda a sua força. Se qualquer vínculo o retém, desfaça-o ou corte-o. “Mas”, diz você, “minha propriedade me atrasa, desejo fazer tal arranjo, que me sustente quando não puder mais trabalhar, para que a pobreza não seja um fardo para mim, ou eu mesmo um fardo para os outros.”
  2. Você não parece, ao dizer isto, conhecer a força e o poder desse bem que você está considerando. De fato, você compreende tudo o que é importante, o grande benefício que a filosofia confere, mas você ainda não discerne com precisão suas várias funções, nem sabe quão grande é a ajuda que recebemos da filosofia em tudo, para usar a linguagem de Cícero, ela não só nos ajuda nas maiores questões, mas também desde a menor. Siga meu conselho; chame a sabedoria em consulta; ela irá aconselhá-lo a não sentar para sempre em seu livro-razão.
  3. Sem dúvida, seu objetivo, o que você deseja alcançar com tal adiamento de seus estudos, é que a pobreza não lhe aterrorize. Mas e se ela for algo a desejar? As riquezas têm impedido muitos homens de alcançarem a sabedoria; a pobreza é desembaraçada e livre de cuidados. Quando a trombeta soa, o homem pobre sabe que não está sendo atacado; quando há um grito de “fogo”, ele só procura uma maneira de escapar, e não pergunta o que pode salvar; se o homem pobre deve ir para o mar, o porto não ressoa, nem os cais são abalados com o séquito de um indivíduo. Nenhuma multidão de escravos envolve o homem pobre, escravos para cujas bocas o mestre deve cobiçar as plantações férteis de seus vizinhos.
  4. É fácil preencher poucos estômagos, quando eles são bem treinados e anseiam nada mais, a não ser serem preenchidos. A fome custa pouco; O escrúpulo custa muito. A pobreza está satisfeita com o preenchimento de necessidades urgentes. Por que, então, você deve rejeitar a Filosofia como uma amiga?
  5. Mesmo o homem rico segue seus caminhos quando é sensato. Se você deseja ter tempo livre para sua mente, seja um pobre homem, ou se assemelhe a um pobre homem. O estudo não pode ser útil a menos que você se esforce para viver simplesmente; e viver simplesmente é pobreza voluntária. Então, fora com todas as desculpas, como: “Eu ainda não tenho o suficiente, quando eu ganhar a quantidade desejada, então vou me dedicar inteiramente à filosofia.” E, no entanto, este ideal, que você está adiando e colocando em segundo lugar, deve ser assegurado em primeiro lugar; você deve começar com ele. Você retruca: “Eu desejo adquirir algo para viver.” Sim, mas aprenda enquanto você está adquirindo; pois se alguma coisa o proíbe de viver nobremente, nada o proíbe de morrer nobremente.
  6. Não há nenhuma razão pela qual a pobreza deva nos afastar da filosofia, – não, nem mesmo a necessidade real. Pois, quando se aprofunda na sabedoria, podemos suportar até a fome. Os homens suportaram a fome quando suas cidades foram sitiadas, e que outra recompensa por sua resistência eles obtiveram a não ser não cair sob o poder do conquistador? Quão maior é a promessa de liberdade eterna, e a certeza de que não precisamos temer nem a Deus nem aos homens! Mesmo que nós morramos de fome, devemos alcançar essa meta.
  7. Os exércitos suportam toda a maneira de carestia, vivem de raízes, e resistem à fome com alimentos repugnantes demais para mencionar. Tudo isso eles têm sofrido para ganhar um reino, e, o que é mais assombroso, ganhar um reino que será de outro. Será que algum homem hesitaria em suportar a pobreza, a fim de libertar sua mente da loucura? Portanto, não se deve procurar primeiro acumular riquezas; pode-se chegar na filosofia, mesmo sem dinheiro para a viagem.
  8. É mesmo assim. Depois de ter possuído todas as outras coisas, também deseja possuir sabedoria? É a filosofia o último requisito da vida, uma espécie de suplemento? Não, seu plano deve ser este: ser um filósofo agora, se você tem alguma coisa ou não, – se você tem alguma coisa, como você sabe que já não tem muito? – Mas se você não tem nada, procure o discernimento primeiro, antes de qualquer outra coisa.
  9. “Mas,” você diz, “eu irei carecer das necessidades da vida.” Em primeiro lugar, você não pode carecer delas; porque a natureza exige pouco, e o homem sábio adapta suas necessidades à natureza. Mas se maior necessidade chegar, ele rapidamente se despedirá da vida e deixará de ser um problema para si mesmo. Se, no entanto, seus meios de existência forem escassos e reduzidos, ele fará o melhor deles, sem se preocupar ou se preocupar com nada mais do que com as necessidades básicas; fará justiça ao seu ventre e aos seus ombros; com espírito livre e feliz, rir-se-á da agitação dos homens ricos e dos caminhos confusos daqueles que se abalam em busca da riqueza,
  10. e dirá: “Por que, por sua própria vontade, adia a vida real para o futuro distante? Para que algum juro seja depositado, ou por algum dividendo futuro, ou para um lugar no testamento de algum velho rico, quando você pode ser rico aqui e agora? A sabedoria oferece a riqueza a vista, e paga em dobro àqueles em cujos olhos ela tornou a riqueza supérflua.” Estes comentários referem-se a outros homens; você está mais perto da classe rica. Mude a sua idade, e você terá muito[1]. Mas em todas as idades, o que é necessário permanece o mesmo.
  11. Eu poderia encerrar minha carta neste momento, se eu não o tivesse acostumando mal. Não se pode cumprimentar a realeza sem trazer um presente; e no seu caso eu não posso dizer adeus sem pagar um preço. Mas o que será? Tomarei emprestado de Epicuro: “A aquisição de riquezas tem sido para muitos homens, não um fim, mas uma mudança, de problemas”.
  12. Não me admiro. Pois a culpa não está na riqueza, mas na própria mente. Aquilo que fez da pobreza um fardo para nós, torna as riquezas também um fardo. Assim como pouco importa se você coloca um homem doente em uma cama de madeira ou sobre uma cama de ouro, pois onde quer que ele seja movido ele vai levar sua doença com ele, por isso não é preciso se importar se a mente doente é outorgada às riquezas ou à pobreza. O padecimento vai com o homem.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Isto é, imagine-se jovem.

Carta 16: Filosofia, o Guia da Vida

Seria o estoicismo útil para religiosos? e para ateus e agnósticos? Sêneca diz que sim, e para todos. A ideia básica da carta 16 é deixada clara nas primeiras linhas: “nenhum homem pode viver uma vida feliz, ou mesmo uma vida suportável, sem o estudo da sabedoria” (XVI.1)

Mas o estudo da filosofia é na verdade um amor à sabedoria, e não deve ser perseguido por questões triviais, como Sêneca deixa claro pouco depois: “não é um truque para fisgar o público; não é concebida para aparecer. É uma questão, não de palavras, mas de fatos. Não é perseguida de modo que o dia possa render alguma diversão”(XVI.3). Isso praticamente eliminaria muita filosofia acadêmica moderna.

No quinto parágrafo Sêneca apresenta um interessante argumento sobre por que a filosofia deveria ser nosso guia na vida, independentemente de nossas posições religiosas (metafísicas): “se a fortuna nos amarra por uma lei inexorável, ou se Deus, como árbitro do universo, providenciou tudo, ou se o acaso dirige e lança os assuntos humanos sem método, a filosofia deve ser nossa defesa”.

Observe as três possibilidades consideradas: Destino inexorável, ou o que hoje chamaríamos de determinismo; Deus como o planejador de tudo o que acontece no universo, semelhante à idéia cristã da Providência; ou o Acaso, o caos epicurista que caracteriza um cosmos no qual Deus não desempenha nenhum papel ativo.

Isso não é nada diferente do afirmado por Marco Aurélio em suas Meditações:

Ou uma necessidade do destino e uma ordem inviolável, ou uma providência compassiva, ou um caos fortuito, sem direção. Se, pois, trata-se de uma necessidade inviolável, a que oferece resistência? E se uma providência que aceita ser compassiva, faça a ti mesmo merecedor do socorro divino. E se um caos sem guia, conforma- te, porque em meio de um fluxo de tal índole dispõe em seu interior de uma inteligência guia.” (Meditações XII, 14)

Sêneca, em seguida, puxa uma de suas não raras citações positivas de Epicuro: “Isto também é um ditado de Epicuro: ‘Se você vive de acordo com a natureza, você nunca será pobre, se você viver de acordo com a opinião, você nunca será rico.” (XVI.7)

A carta conclui com esse contraste agradável e instrutivo, que leva a uma verdade profunda: “Suponha que a fortuna cubra-o com ouro, roupas em roxo, luxo e riqueza… Adicione estátuas, pinturas, e tudo o que a arte tem concebido para o luxo; você só aprenderá com essas coisas a desejar ainda mais… O falso não tem limites. ”(XVI.8-9)

(imagem  “Philosophy and Christian Art” porDaniel Huntington)


 

XVI Sobre Filosofia, o Guia da Vida

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Tenho certeza que está claro para você, Lucílio, que nenhum homem pode viver uma vida feliz, ou mesmo uma vida suportável, sem o estudo da sabedoria; você sabe também que uma vida feliz é alcançada quando a nossa sabedoria é levada ao auge, mas que a vida é pelo menos suportável, mesmo quando a nossa sabedoria apenas começa. Essa ideia, no entanto, embora clara, deve ser fortalecida e implantada mais profundamente pela reflexão diária; é mais importante para você manter as resoluções que já fez do que ir e fazer novas. Você deve perseverar, deve desenvolver uma nova força através do estudo contínuo, até que o que era apenas uma boa disposição se torne um propósito bem estabelecido.
  2. Daí você não precisa mais vir a mim com muita conversa e declarações solenes; sei que você fez grandes progressos. Eu entendo os sentimentos que originam suas palavras; não são palavras fingidas ou enganosas. No entanto, vou dizer-lhe o que penso, que no momento tenho esperanças para você, mas ainda não perfeita confiança. E gostaria que você adotasse a mesma atitude em relação a si mesmo; não há nenhuma razão porque você deva colocar muita confiança em si mesmo rapidamente e sem grande esforço. Examine-se; examine-se e observe-se de várias maneiras; mas antes de tudo diga se é na filosofia ou meramente na própria vida que você fez progresso[1].
  3. Filosofia não é um truque para fisgar o público; não é concebida para aparecer. É uma questão, não de palavras, mas de fatos. Não é perseguida de modo que o dia possa render alguma diversão antes que seja extenuado, ou que nosso ócio possa ser aliviado de um tédio que nos irrita. Molda e constrói a alma; ordena nossa vida, guia nossa conduta, nos mostra o que devemos fazer e o que devemos deixar por fazer; ela senta ao leme e dirige o nosso curso enquanto nós titubeamos em meio a incertezas. Sem ela, ninguém pode viver intrepidamente ou em paz de espírito. Inúmeras coisas que acontecem a cada hora pedem conselhos; e esses conselhos devem ser buscados na filosofia.
  4. Talvez alguém diga: “Como pode a filosofia me ajudar, frente a existência da Fortuna?” De que serve a filosofia, se Deus governa o universo? De que vale, se a fortuna governa tudo? Não só é impossível mudar as coisas que são determinadas, mas também é impossível planejar de antemão contra o que é indeterminado, ou Deus já antecipou meus planos, e decidiu o que devo fazer, ou então a fortuna não dá liberdade aos meus planos.
  5. Se a verdade, Lucílio, está em uma ou em todas estas perspectivas, nós devemos ser filósofos; se a fortuna nos amarra por uma lei inexorável, ou se Deus, como árbitro do universo, providenciou tudo, ou se o acaso dirige e lança os assuntos humanos sem método, a filosofia deve ser nossa defesa. Ela nos encorajará a obedecer a Deus alegremente, e a fortuna desafiadoramente; ela nos ensinará a seguir a Deus e a suportar a fortuna.
  6. Mas não é meu propósito agora ser levado a uma discussão sobre o que está sob nosso próprio controle, se a presciência é suprema, ou se uma cadeia de eventos fatais nos arrasta em suas garras, ou se o repentino e o inesperado nos domina; Volto agora ao meu aviso e à minha exortação, para que não permita que o impulso do seu espírito se enfraqueça e fique frio. Mantenha-se firme nele e estabeleça-o firmemente, a fim de que o que é agora ímpeto possa tornar-se um hábito da mente.
  7. Se eu lhe conheço bem, você já está tentando descobrir, desde o início da minha carta, a pequena contribuição que ela traz para você. Peneire a carta e você a encontrará. Você não precisa se maravilhar com nenhum gênio meu; porque, ainda assim, eu sou pródigo apenas com a propriedade de outros homens. – Mas por que eu disse “outros homens”? O que quer de bom que seja dito por alguém é meu. Este é também um dito de Epicuro: “Se você vive de acordo com a natureza, você nunca será pobre, se você viver de acordo com a opinião, você nunca será rico.
  8. Os desejos da natureza são leves; as exigências da opinião são ilimitadas. Suponha que a propriedade de muitos milionários seja entregue em sua posse. Suponha que a fortuna leve você muito além dos limites de um rendimento privado, cubra-o com ouro, roupas em roxo, e traga-lhe a tal grau de luxo e riqueza que você possa cobrir a terra sob seus pés de mármore; que você possa não só possuir, mas andar sobre, riquezas. Adicione estátuas, pinturas, e tudo o que a arte tem concebido para o luxo; você só aprenderá com essas coisas a desejar ainda mais.
  9. Os desejos naturais são limitados; mas aqueles que brotam da falsa opinião não tem ponto de parada. O falso não tem limites. Quando você está viajando em uma estrada, deve haver um fim; mas quando perdido, suas andanças são ilimitadas. Recorra seus passos, portanto, de coisas inúteis, e quando você quiser saber se o que procura é baseado em um desejo natural ou em um desejo enganoso, considere se ele pode parar em algum ponto definido. Se você perceber, depois de ter viajado muito, que há um objetivo mais distante sempre em vista, você pode ter certeza que esta situação é contrária à natureza.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Ou seja, apenas avançou em idade.


 

Livros Citados:

 


 

Princípio Estoico #2: Viva pela Virtude

Alcançar a “virtude” é o bem mais elevado.

O que os estoicos denotavam como “virtude” era sobressair ou florescer em termos de nossa natureza humana racional. Basicamente, quando você vive de acordo com a virtude, você está vivendo a Boa Vida. Essa excelência humana se dá em diferentes formas de virtude destacada nas quatro virtudes cardeais:

  • Sabedoria prática: a habilidade de navegar situações complexas de forma lógica, informada e calma;
  • Autodisciplina ou Temperança: o exercício de autorrestrição e moderação em todos os aspectos da vida;
  • Justiça: tratar outros justamente mesmo quando fazem algo errado;
  • e Coragem: não só em circunstâncias extraordinárias, mas ao encararmos desafios diários com claridade e integridade.

Quando agimos de acordo com essas virtudes, caminhamos para a Boa Vida. No sentido estoico, você só pode ser virtuoso se praticar todas as virtudes. A virtude é um pacote tudo-ou-nada e somente um Sábio as têm completamente. É importante entender que o conceito “sábio” para os filósofos antigos é um ideal a ser atingido, e não alguém real. Segundo Sêneca o sábio se equivale aos deuses, com a única distinção do sábio ser humano e mortal.

Para os estóicos, é indiscutível que a virtude deva ser sua própria recompensa. Você faz algo porque é a coisa certa a fazer. Você age virtuosamente por sua própria causa.  Às vezes, agir de acordo com a virtude traz benefícios adicionais,  no entanto, esses benefícios devem ser interpretados como “bônus adicional” e não podem ser o principal motivo da ação.

(Imagem: Escolha de Hercules entre a Virtude e Vício por Pelagio Pelagi)

 


Princípios Estoicos:

Pensamento do Dia #24: Cícero – De Finibus

“Se um homem tem o propósito de acertar uma lança ou uma flecha em um alvo, seu derradeiro objetivo seria fazer tudo o que pudesse para mirar o melhor possível e atirar com firmeza. O homem nesta ilustração teria que fazer tudo para apontar corretamente, no entanto, embora ele fizesse tudo para alcançar seu propósito, seu ‘objetivo final‘, por assim dizer, seria o que corresponde ao que chamamos de Bem Principal na conduta da vida, enquanto que atingir o alvo seria na nossa terminologia ‘indiferente’“. (CiceroDe Finibus Bonorum et Malorum , 3.22 “Sobre a Finalidade do Bem e do Mal“)

O que está explicando aqui é um aspecto crucial da doutrina estoica: só se pode trabalhar sobre o que está sob seu controle (mirar a flecha, da melhor forma possível), mas deve-se aceitar o resultado (a flecha atingir ou não o alvo), porque isso não está sob nosso controle.

(imagem – primeira página de versão latina da obra)

Carta 11: Sobre o rubor da modéstia

A 11ª carta a Lucílio trata de dois princípios estoicos cruciais.

Sêneca começa com o tópico improvável de corar, algo que simplesmente não podemos evitar, não importa o quão bravamente tentamos. Ele diz a seu amigo que “nenhuma sabedoria consegue remover as fragilidades naturais do corpo. O que é intrínseco e inato pode ser atenuado pelo treinamento, mas não totalmente superado”. (XI.1)

Esta é uma visão notável e um reconhecimento imediato dos limites da filosofia: a própria sabedoria, o principal bem de acordo com os estoicos, não pode superar nossas predisposições naturais e reações inatas. Se experimentarmos um constrangimento, coramos, se sentirmos medo ou raiva, não podemos evitar a precipitação da adrenalina. Tudo isso está fora do nosso controle e, portanto, Epicteto mais tarde diria, “não é nosso encargo“.

Isso estabelecido, Sêneca continua com o que ele pensa ser bom conselho:  cultivar a sabedoria apesar das suas limitações. Mas, como cultivamos sabedoria exatamente? Pode ser ensinada?  A resposta de Seneca é o estoicismo por excelência:

“Estime um homem de grande caráter, e mantenha-o sempre diante de seus olhos, vivendo como se ele estivesse observando você, e arranjando todas as suas ações como se ele as tivesse visto” (XI.8)… “Escolha, portanto, um Catão; ou, se Catão lhe parece um modelo muito severo, escolha um Lélio, um espírito mais suave… Pois precisamos ter alguém segundo o qual podemos ajustar nossas características; você nunca pode endireitar o que é torto a menos que você use uma régua.” (XI.10)

A escolha do seu exemplo pessoal depende de você, mas escolha bem, continue praticando ao imaginar que ele ou ela sempre olha sobre seus ombros, e seu bastão torto será gradualmente endireitado com a ajuda da régua reta.

Imagem: Morte de Catão por Pierre Bouillon. Catão era o melhor exemplo de conduta estoica para Sêneca.

Livros citados:

   

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Carta 9. Sobre Filosofia e Amizade

Na nona carta Sêneca discorre sobre a Amizade e sua relação com a filosofia.

Em toda a carta o termo  “sábio” é repetido inúmeras vezes. É importante entender que o conceito “sábio” para os filósofos antigos é um ideal a ser atingido, e não alguém real. Segundo Sêneca o sábio se equivale aos deuses, com a única distinção do sábio ser humano e mortal. É um humano perfeito no auge das qualidades.

Sêneca aconselha “Para que você possa ser amado, ame.” e  nos alerta sobre o risco das amizades por interesse:  Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará por interesse. Um homem será atraído por alguma recompensa oferecida em troca de sua amizade se ele for atraído por algo na amizade além da amizade em si.

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Carta 9. Sobre Filosofia e Amizade

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você deseja saber se Epicuro está certo quando, em uma de suas cartas, repreende aqueles que sustentam que o sábio é autossuficiente e por isso não precisa de amizades.[1] Esta é a objeção levantada por Epicuro contra Estilpo e aqueles que acreditam que o bem supremo é uma alma insensível e impassível.
  2. Estamos limitados a encontrar um duplo significado se tentarmos expressar resumidamente o termo grego apatheia (ἀπάθεια) em uma única palavra, tomando-o pela palavra latina impatientia (impaciência). Porque pode ser entendida no sentido oposto ao que desejamos que ela tenha. O que queremos dizer é uma alma que rejeita qualquer sensação de maldade, mas as pessoas interpretarão a ideia como a de uma alma que não pode suportar nenhum mal.[2] Considere, portanto, se não é melhor dizer “uma alma invulnerável, que não pode ser ofendida” ou “uma alma inteiramente além do reino do sofrimento”.
  3. Há essa diferença entre nós e a outra escola:[3] nosso sábio ideal sente seus problemas, mas os supera; o homem sábio deles nem sequer os sente. Mas nós e eles temos essa ideia, que o sábio é autossuficiente. No entanto, ele deseja amigos, vizinhos e associados, não importa o quanto ele seja suficiente em si mesmo.
  4. E perceba quão autossuficiente ele é; pois de vez em quando ele pode se contentar com apenas uma parte de si. Se ele perde uma mão por doença ou guerra, ou se algum acidente fere um ou ambos os olhos, ele ficará satisfeito com o que resta, tendo tanto prazer em seu corpo debilitado e mutilado como ele tinha quando era sadio. Mas enquanto ele não se queixa por esses membros ausentes, ele prefere não os perder.
  5. Nesse sentido o homem sábio é autossuficiente, pode prescindir de amigos, mas não deseja ficar sem eles. Quando eu digo “pode”, quero dizer isto: ele sofre a perda de um amigo com serenidade. Mas a ele nunca faltam amigos, pois está em seu próprio controle quão breve ele vai repor a perda. Assim como Fídias,[4] se ele perdesse uma estátua, imediatamente esculpiria outra, da mesma forma nossa habilidade na arte de fazer amizades pode preencher o lugar de um amigo perdido.
  6. Se você perguntar como alguém pode fazer um amigo rapidamente, vou dizer-lhe, desde que concordemos que eu possa pagar a minha dívida de uma vez e zerar a conta e, no que se refere a esta carta, estaremos quites. Hecato, diz: “Eu posso mostrar-lhe uma poção, composta sem drogas, ervas ou qualquer feitiço de bruxa: Para que você possa ser amado, ame!”. Agora, há um grande prazer, não só em manter amizades velhas e estabelecidas, mas também na aquisição de novas.
  7. Existe a mesma relação entre conquistar um novo amigo e já ter conquistado, como há entre o fazendeiro que semeia e o fazendeiro que colhe. O filósofo Átalo costumava dizer: “É mais agradável fazer um amigo do que mantê-lo, pois é mais agradável ao artista pintar do que ter acabado de pintar”. Quando alguém está ocupado e absorvido em seu trabalho, a própria absorção dá grande prazer; mas quando alguém retira a mão da obra-prima concluída, o prazer não é tão penetrante. Daí em diante, é dos frutos de sua arte que ele desfruta; era a própria arte que ele apreciava enquanto pintava. No caso de nossos filhos, na juventude produzem os frutos mais abundantes, mas na infância, eram mais doces e agradáveis.
  8. Voltemos agora à questão. O homem sábio, eu digo, se basta como é, no entanto, deseja amigos apenas para o propósito de praticar a amizade, a fim de que suas qualidades nobres não permaneçam dormentes. Não, todavia, para o propósito mencionado por Epicuro na carta citada acima: “Que haja alguém para sentar-se com ele enquanto doente, para ajudá-lo quando ele está na prisão ou em necessidade”, mas sim para que ele possa ter alguém em cujo leito hospitalar ele próprio possa sentar, alguém prisioneiro em mãos hostis que ele mesmo possa libertar. Aquele que só pensa em si e estabelece amizades por razão egoísta, não pensa corretamente. O fim será como o início: se ele faz amizade com alguém que poderia libertá-lo da escravidão, ao primeiro barulho da corrente, tal amigo o abandonará.
  9. Estas são as chamadas “amizades de céu de brigadeiro”[5]; aquele que é escolhido por causa da sua utilidade será satisfatório apenas enquanto for útil. Por isso os homens prósperos são protegidos por tropas de amigos, mas aqueles que faliram ficam em meio à vasta solidão, seus “amigos” fugindo da própria crise que está a testar seus valores. Por isso, também, vemos muitos casos vergonhosos de pessoas que, por medo, desertam ou traem. O começo e o fim não podem senão harmonizar. Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará a amizade por interesse. Um homem será atraído por alguma recompensa oferecida em troca de sua amizade se ele for atraído por algo na amizade além da amizade em si.
  10. Para que propósito, então, eu faço um homem meu amigo? A fim de ter alguém para quem eu possa dar minha vida, que eu possa seguir para o exílio, alguém por quem eu possa apostar minha própria vida e pagar a promessa depois. A amizade que você retrata é uma negociata e não uma amizade. Ela considera apenas a conveniência e olha apenas para os resultados.
  11. Sem dúvida, o sentimento de um amante tem algo semelhante à amizade, pode-se chamá-lo de amizade enlouquecida. Mas, embora isso seja verdade, alguém ama por vislumbrar lucro ou promoção ou renome? O amor puro, livre de todas as outras coisas, excita a alma com o desejo pelo objeto da beleza, não sem a esperança de uma correspondência ao afeto. E então? Pode uma causa que é mais elevada produzir uma paixão que é moralmente condenável?
  12. Você pode replicar: “Estamos agora discutindo a questão de saber se a amizade deve ser cultivada por sua própria causa”. Pelo contrário, nada mais urgente exige demonstração, pois se a amizade deve ser procurada por si mesma, pode buscá-la quem seja autossuficiente. “Como, então,” você pergunta, “ele a procura?” Precisamente como ele procura um objeto de grande beleza, não atraído a ele pelo desejo de lucro, nem mesmo assustado pela instabilidade da fortuna. Aquele que procura a amizade com objetivo interesseiro, despoja-a de toda a sua nobreza.
  13. O homem sábio se basta”. Essa frase, meu caro Lucílio, é incorretamente explicada por muitos porque eles retiram o homem sábio do mundo e forçam-no a habitar dentro de sua própria pele. Mas devemos marcar com cuidado o que significa essa sentença e até onde ela se aplica. O homem sábio se basta para uma existência feliz, mas não para a mera existência. Pois ele precisa de muita assistência para a mera existência, mas para uma existência feliz ele precisa apenas de uma alma sã e reta, que menospreze a fortuna.
  14. Quero também dizer a você uma das distinções de Crisipo, que declara que o sábio não deseja nada, ao mesmo tempo que precisa de muitas coisas.[6]Por outro lado”, diz ele, “nada é necessário para o tolo, pois ele não entende como usar nenhuma coisa, mas ele deseja tudo.”[7] O homem sábio precisa de mãos, olhos e muitas coisas que são necessárias para seu uso diário; mas a ele nada falta. Porque o desejo implicaria uma necessidade não atendida e nada é necessário ao homem sábio.
  15. Portanto, embora ele seja autossuficiente, ainda precisa de amigos. Ele anseia tantos amigos quanto possível, não, no entanto, para que ele possa viver feliz, pois ele viverá feliz mesmo sem amigos. O bem supremo não requer nenhum auxílio prático de fora. Ele é desenvolvido em casa e surge inteiramente dentro de si. Se o bem procura qualquer porção de si mesmo no exterior, começa a estar sujeito ao jogo da fortuna.
  16. As pessoas podem dizer: “Mas que tipo de existência o sábio terá, se ele for deixado sem amigos quando jogado na prisão, ou quando encalhado em alguma nação estrangeira, ou quando retido em uma longa viagem, ou quando em lugar ermo?” Sua vida será como a de Júpiter que, em meio à dissolução do mundo, quando os deuses se confundem na unidade e a natureza descansa por um pouco, pode se retirar em si mesmo e entregar-se a seus próprios pensamentos.[8] Da mesma maneira o sábio agirá: ele se retirará em si mesmo e viverá consigo mesmo.
  17. Enquanto for capaz de administrar seus negócios de acordo com seu julgamento, será autossuficiente; enquanto se casa com uma esposa, é autossuficiente; enquanto educa os filhos, é autossuficiente; e ainda assim não poderia viver se tivesse que viver sem a sociedade dos homens. Conclamações naturais e não suas próprias necessidades egoístas, o atraem às amizades. Pois, assim como outras coisas têm para nós uma atratividade inerente, também tem a amizade. Como odiamos a solidão e ansiamos por sociedade, à medida que a natureza atrai os homens uns para os outros, existe também uma atração que nos faz desejosos de amizade.
  18. Não obstante, embora o sábio possa amar seus amigos com carinho, muitas vezes contrapondo-os com ele mesmo e colocando-os à frente de si próprio, todo o amor será limitado a seu próprio ser e ele falará as palavras que foram faladas pelo próprio Estilpo, a quem Epicuro critica em sua carta. Pois Estilpo, depois que seu país foi capturado e seus filhos e sua esposa mortos, ao sair da desolação geral só e mesmo assim feliz, falou da seguinte maneira para Demétrio,[9] conhecido como “Cidade Sitiada” por causa da destruição que ele trouxe sobre elas, em resposta a pergunta se ele tinha perdido alguma coisa: “Eu tenho todos os meus bens comigo!
  19. Isto é ser um bravo e corajoso homem! O inimigo conquistou, mas Estilpo conquistou seu conquistador. “Não perdi nada!” Sim, ele forçou Demétrio a se perguntar se ele mesmo havia conquistado algo, afinal. “Meus bens estão todos comigo!” Em outras palavras, ele não considerou nada que pudesse ser tirado dele como sendo um bem. Ficamos maravilhados com certos animais porque eles podem passar pelo fogo e não sofrer danos corporais, mas quão mais maravilhoso é um homem que marchou ileso e incólume através do fogo, da espada e da devastação! Você entende agora o quão mais fácil é conquistar uma tribo inteira do que conquistar um homem? Este dito de Estilpo é comum com o estoicismo; o estoico também pode carregar de forma ilesa seus bens através de cidades devastadas pois ele é autossuficiente. Basta-se a si mesmo: tais são os limites que ele estabelece para sua própria felicidade.
  20. Mas você não deve pensar que nossa escola sozinha pode proferir palavras nobres. O próprio Epicuro, o crítico de Estilpo, usava semelhante linguagem. Coloco ao meu crédito, embora eu já tenha quitado minha dívida para o dia de hoje. Ele diz: “Quem não considera o que tem como riqueza mais ampla, é infeliz, embora seja o senhor do mundo inteiro”. Ou, se a seguinte lhe parece uma frase mais adequada, porque devemos traduzir o significado e não as meras palavras: “Um homem pode governar o mundo e ainda ser infeliz se ele não se sente supremamente feliz”.
  21. Contudo, para que você saiba que esses sentimentos são universais, propostos, certamente, pela natureza, você encontrará em um dos poetas cômicos esta estrofe:

Infeliz é aquele que  não se considera feliz.

Non est beatus, esse se qui non putat.[10]

O que importa a situação em que você se encontra, se ela é ruim a seus próprios olhos?

  1. Você poderia dizer; “Se, o homem rico, senhor de muitos, mas escravo de ganância por mais, chamar-se de feliz, sua própria opinião o tornará feliz?” Não importa o que ele diz, mas o que ele sente; não como se sente em um dia específico, mas como se sente em todos os momentos. Não há razão porém, para que você tema que este grande privilégio caia em mãos indignas; somente o sábio está satisfeito com o que tem. O insensato está sempre perturbado com o descontentamento consigo mesmo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] NT: Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

[2] O termo grego ἀπάθεια (Apatheia) significa literalmente “ausência de sofrimento”, daí vem o termo apatia em português.

[3] NT: Isto é, escola cínica.

[4] Fídias foi um célebre escultor da Grécia Antiga. Sua biografia é cheia de lacunas e incertezas e o que se tem como certo é que ele foi o autor de duas das mais famosas estátuas da Antiguidade, a Atena Partenos e o Zeus Olímpico, e que sob a proteção de Péricles encarregou-se da supervisão de um vasto programa construtivo em Atenas, concentrado na reedificação da Acrópole, devastada pelos persas em 480 a.C.

[5] NT: em Latin, quas temporarias, tempo bom.

[6] A distinção baseia-se no significado de egeret “estar em falta de” algo indispensável, e opus esse, “ter necessidade de” algo do qual se pode prescindir.

[7] NT: Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro VII.

[8] NT: Alusão à teoria estoica da conflagração (ekpyrosis). Segundo esta teoria estoica, o mundo se renovaria de tempos em tempos, o mundo se resumiria ao fogo artífice (Logos = Zeus = Inteligência universal) e todos os demais deuses seriam tragados nesta unidade primordial. O processo cosmogônico daria origem a outro mundo que, para alguns estoicos, seria uma repetição de tudo o que vivemos. Daí que tudo aconteceria novamente, e todos renasceriam, mas (como disse Sêneca numa carta), sem qualquer lembrança de uma vida anterior. Então, se esta teoria fosse verdade, esta poderia ser nossa bilionésima vida, e pra nós não faria diferença, pois não teríamos consciência disso. Essa teoria reflete a concepção grega do eterno retorno. Ver George Stock, Estoicismo.

[9] NT: Demétrio I (337 a.C. — 283 a.C.), cognominado Poliórcetes, foi um rei da Macedônia. Seu apelido, “cidade sitiada” (Poliorketes), refere-se à sua habilidade militar em sitiar e conquistar cidades.

[10] Autor desconhecido, talvez uma adaptação do grego. Alguns eruditos atribuem o verso a Publílio Siro

Carta 8: Sobre o isolamento do filósofo

Em sua oitava carta Sêneca continua aconselhar evitar a multidão e as coisas que agradam à multidão, lembrando que  aquilo que a “fortuna” nos dá também pode nos retirar.

(“fortunae” para o autor latino, se assemelha à nossa “sorte” ou “destino”, mas era também uma divindade. Imagem: Fortuna Marina por Frans Francken, A deusa romana Fortuna distribui aleatoriamente seus favores)

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Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você sugere, “evite a multidão, e retire-se dos homens, e contente-se com a sua própria consciência?” Onde estão os conselhos da sua escola, que ordenam que um homem morra em meio ao trabalho produtivo?[1]” Quanto ao curso que eu lhe pareço incitar de vez em quando, meu objetivo em recolher-me e trancar a porta é ser capaz de ajudar um número maior. Nunca passo um dia em ociosidade; aproveito até uma parte da noite para estudar. Não me dou tempo para dormir, mas me rendo ao sono quando preciso, e quando meus olhos estão cansados e prontos para caírem fechado, eu os mantenho em sua tarefa.
  2. Tenho-me afastado não só dos homens, mas dos negócios, especialmente dos meus próprios negócios; estou trabalhando para gerações posteriores, escrevendo algumas ideias que podem ser de ajuda para eles. Há certos conselhos sadios, que podem ser comparados às prescrições de remédios; estes eu estou pondo por escrito; pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas, que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.
  3. Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar. Eu clamo a eles: “Evite o que agrada à multidão: evite os dons do acaso, avalie todo o bem que o acaso lhe traz, em espírito de dúvida e de medo, pois são os animais que são enganados pela tentação. Você chama essas coisas de “presentes da fortuna”? São armadilhas. E qualquer homem dentre vocês que deseje viver uma vida de segurança evitará, ao máximo de seu poder, esses ramos favoráveis, por meio dos quais os mortais, muito lamentavelmente neste caso, são enganados; porque nós pensamos que nós os mantemos em nosso poder, mas eles é quem nos prendem.
  4. Tal curso nos leva a caminhos precipitados, e a vida em tais alturas termina em queda. Além disso, nem mesmo podemos nos levantar contra a prosperidade quando ela começa a nos conduzir a sota-vento; nem podemos descer, tampouco, “com o navio em seu curso”; a fortuna não nos afunda, ela estufa nossas velas e nos precipita sobre as rochas.
  5. “Apegue-se, pois, a esta regra sadia e saudável da vida – que você satisfaça seu corpo apenas na medida em que for necessário para a boa saúde. O corpo deve ser tratado mais rigorosamente, para que não seja desobediente à mente. Coma apenas para aliviar a sua fome, beba apenas para saciar a sua sede, vista-se apenas para manter fora o frio, abrigue-se apenas como uma proteção contra o desconforto pessoal. Pouco importa a casa ser construída de madeira ou de mármore importado, compreenda que um homem é abrigado tão bem por uma palha quanto por um telhado de ouro. Despreze tudo o que o trabalho inútil cria como um ornamento e um objeto de beleza. E reflita que nada além da alma é digno de admiração, pois para a alma, se ela for grandiosa, nada é grande. “
  6. Quando eu comungo em tais termos comigo e com as gerações futuras, você não acha que eu estou fazendo mais bem do que quando eu apareço como conselheiro na corte, ou carimbo meu selo sobre uma decisão, ou presto ajuda ao senado, por palavra ou ação, a um candidato? Acredite em mim, aqueles que parecem estar ocupados com nada estão ocupados com as maiores tarefas; eles estão lidando ao mesmo tempo com coisas mortais e coisas imortais.
  7. Mas devo parar, e prestar minha contribuição habitual, para equilibrar esta carta. O pagamento não será feito de minha própria propriedade; pois ainda estou copiando Epicuro. Hoje leio, em suas obras, a seguinte frase: “Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia”. O homem que se submete e entrega-se a ela não é mantido esperando; ele é emancipado no ato. Pois o próprio serviço da Filosofia é a liberdade.
  8. É provável que você me pergunte por que cito tantas palavras nobres de Epicuro em vez de palavras tiradas de nossa própria escola. Mas há alguma razão pela qual você deve considerá-las como ditos de Epicuro e não domínio público? Quantos poetas exalam ideias que foram proferidas ou poderiam ter sido proferidas por filósofos! Não preciso falar sobre as tragédias e os nossos escritores de drama; porque estes últimos são também um pouco sérios, e ficam a meio caminho entre comédia e tragédia. Que quantidade de versos sagrados estão enterrados na mímica! Quantas linhas de Públio são dignas de serem declamadas por atores célebres, assim como pelos pés descalços![2]
  9. Vou citar um versículo dele, que diz respeito à filosofia, e particularmente aquela fase da qual discutimos há pouco, onde ele diz que os dons do acaso não devem ser considerados como parte de nossas posses:
Ainda é alheio o que você ganhou devido a cobiça.Alienum est omne, quicquid optando evenit.[3]
  1. Recordo que você mesmo expressou essa ideia de maneira muito mais feliz e concisa: O que a Fortuna fez não é seu. E uma terceira, dita por você ainda, não deve ser omitida: O bem que pode ser dado, pode ser removido. Eu não vou colocar isso em sua conta de despesas, porque eu a dei a partir de seu próprio patrimônio.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Em contraste com a doutrina estoica geral de participar da política e atividades do mundo.

[2]excalceatis”, Comediantes ou mímicos

[3] Provérbios de Públio Siro.

Carta 6: Sobre Compartilhar Conhecimento

Sêneca diz que nada é agradável de se possuir sem amigos para compartilhar.  Pede que Lucílio continue estudando, não só através de livros, mas principalmente através de exemplos, e, principalmente, que compartilhe com os outros o que tem aprendido.

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Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Sinto, meu caro Lucílio, que não só estou sendo reformado, mas transformado. Entretanto, ainda não me asseguro, nem concedo a esperança de que não haja em mim elementos que precisem ser mudados. Claro que há muitos que devem ser feitos mais consistentes, ou mais afiados, ou ser conduzido a maior destaque. E, de fato, esse mesmo fato é prova de que meu espírito está transformado em algo melhor, – que ele pode ver suas próprias falhas, das quais antes era ignorante. Em certos casos, os doentes são parabenizados apenas porque eles perceberam que estão doentes.
  2. Desejo, portanto, comunicar-lhe esta repentina mudança em mim; eu deveria então começar a depositar uma confiança mais segura em nossa amizade, – a verdadeira amizade que a esperança, o medo e o interesse próprio não podem romper, a amizade em que e para a qual os homens encontram a morte.
  3. Eu posso mostrar-lhe muitos a quem têm faltado, não um amigo, mas uma amizade; isso, no entanto, não pode acontecer quando as almas são unidas por inclinações idênticas em uma aliança de desejos honestos. E por que não pode acontecer? Porque em tais casos os homens sabem que têm todas as coisas em comum, especialmente suas aflições. Você não pode conceber o nítido progresso que eu percebo que cada dia me traz.
  4. E quando diz: “Dá-me também uma parte destes dons que acha tão útil”, respondo que estou ansioso para empilhar todos estes privilégios sobre você, e que estou feliz em aprender para que eu possa ensinar. Nada me agradará, não importa o quão excelente ou benéfico, se eu dever manter tal conhecimento exclusivo para mim. E se a sabedoria me for dada, sob a condição expressa de que ela deva ser mantida escondida e não pronunciada, eu deveria recusá-la. Nenhuma coisa boa é agradável de possuir, sem amigos para compartilhá-la.
  5. Vou, portanto, enviar-lhe os livros reais; e para que não perca tempo procurando aqui e ali por tópicos proveitosos, vou marcar certas passagens, para que você possa voltar-se imediatamente para aquelas que eu aprovo e admiro. Naturalmente, porém, a voz viva e a intimidade de uma vida comum ajudarão você mais do que a palavra escrita. Você deve ir para o cenário da ação, primeiro, porque os homens colocam mais fé em seus olhos do que em seus ouvidos, e segundo, porque o caminho é longo se alguém segue normas, mas curto e útil, se seguir exemplos.
  6. Cleantes[1] não poderia ter sido a imagem expressa de Zenão, se ele tivesse apenas ouvido suas palestras; ele compartilhou em sua vida, viu em seus propósitos ocultos, e observou-o para ver se ele viveu de acordo com suas próprias regras. Platão, Aristóteles, e toda a multidão de sábios que estavam destinados a seguir cada um o seu caminho diferente, tiraram mais proveito do caráter do que das palavras de Sócrates. Não era a sala de aula de Epicuro, mas viver juntos sob o mesmo teto, que fez grandes homens de Metrodoro, Hermarco e Polieno. Portanto, eu lhe insisto, não apenas para que aufira benefícios, mas para que conceda benefícios; pois podemos auxiliar-nos mutuamente.
  7. Entrementes, estou em dívida da minha pequena contribuição diária; você será dito o que me agradou hoje nos escritos de Hecato; são estas palavras: “Que progresso, você pergunta, eu fiz? Eu comecei a ser um amigo de mim mesmo.” Isso foi realmente um grande auxílio; tal pessoa nunca pode estar sozinha. Você pode ter certeza de que esse homem é amigo de toda a humanidade.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1]Cleantes de Assos (ca. 330 a.C. — ca. 230 a.C.), foi um filósofo estoico, discípulo e continuador de Zenão de Cítio. Tendo iniciado o estudo da filosofia aos 50 anos de idade, depois de ter sido atleta e apesar de viver na pobreza, seguiu as lições de Zenão de Cítio e após a morte deste, cerca do ano 262 a.C., assumiu a liderança da escola, cargo que manteria por 32 anos, preservando e aprofundando as doutrinas do seu mestre e antecessor.

(imagem: Escola de Atenas – por Raphael )

Carta 5: Sobre a virtude do Filósofo

Sêneca explica o significado do lema “Viva de acordo com a Natureza” e recomenda um estilo de vida frugal e comedido , evitando avarice e luxos extremos. Fala sobre esperança e medo, apresentando uma relação surpreendente entre ambos.

Finalmente exorta a aproveitarmos o presente sem ansiedade pelo futuro ou atormentação pelo passado.

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Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Eu o elogio e me encho de contentamento pelo fato de você ser persistente em seus estudos, e que, colocando tudo de lado, você a cada dia se esforça para se tornar um homem melhor. Não me limito a exortá-lo a continuar; eu realmente imploro que você faça isso. Advirto-o, no entanto, para não agir de acordo com a moda daqueles que desejam ser notáveis em vez de melhorar, fazendo coisas que despertarão comentários sobre o seu vestido ou estilo geral de vida.
  2. Deve ser evitado trajes repulsivos, cabelos desgrenhados, barba desleixada, desprezo aberto ao uso de talheres e quaisquer outras formas pervertidas de auto exibição. O mero conceito de filosofia, ainda que silenciosamente perseguido, é objeto de suficiente desprezo; E o que aconteceria se começássemos a nos afastar dos costumes de nossos semelhantes? Internamente, devemos ser diferentes em todos os aspectos, mas nosso exterior deve estar em conformidade com a sociedade.
  3. Não se vista demasiadamente elegante, nem ainda demasiadamente desleixado. Não se precisa de peitoral de prata, incrustado e gravado em ouro maciço; mas não devemos acreditar que a falta de prata e ouro seja prova da vida simples. Procuremos manter um padrão de vida mais elevado do que o da multidão, mas não um padrão contrário; caso contrário, assustaremos e repeliremos as mesmas pessoas que estamos tentando melhorar. Temos que compreender que eles estão relutantes a nos imitar em qualquer coisa, porque eles têm medo de que eles sejam compelidos a imitar-nos em tudo.
  4. A primeira coisa que a filosofia se compromete a dar é o companheirismo entre todos os homens; em outras palavras, simpatia e sociabilidade. Nós nos diferenciamos se nós somos diferentes dos outros homens. Devemos velar para que os meios pelos quais desejamos atrair admiração não sejam absurdos e odiosos. Nosso lema, como você sabe, é “Viva de acordo com a Natureza[1]; mas é bastante contrário à natureza torturar o corpo, odiar a elegância espontânea, ser sujo de propósito, comer comida que não é somente simples, mas repugnante e desagradável.
  5. Assim como é um sinal de luxo procurar finas iguarias, é loucura evitar o que é habitual e pode ser comprado a preço razoável. Filosofia exige vida simples, mas não de penitência; e podemos perfeitamente ser simples e asseados ao mesmo tempo. Este é o meio de que eu sanciono; nossa vida deve se guiar entre os caminhos de um sábio e os caminhos do mundo em geral; todos os homens devem admirá-la, mas devem compreendê-la também.
  6. “Bem, então, agiremos como os outros homens? Não haverá distinção entre nós e o mundo?” Sim, muito grande; que os homens descubram que somos diferentes do rebanho comum, se olharem de perto. Se eles nos visitam em casa, eles devem nos admirar, ao invés de nossas mobílias. É um grande homem quem usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa prataria como se de barro fosse. É o sinal de uma mente instável não poder tolerar riquezas.
  7. Mas desejo compartilhar com você o saldo positivo de hoje também. Encontro nos escritos de nosso Hecato[2] que a limitação dos desejos ajuda também a curar medos: “Deixe de ter esperança”, diz ele, “e deixará de temer”. Mas como, “você vai responder, “coisas tão diferentes podem ir lado a lado?” Deste modo, meu caro Lucílio: embora pareçam divergentes, contudo estão realmente unidas. Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, assim a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; o medo segue a esperança.
  8. Não me surpreende que procedam dessa maneira; cada conceito pertence a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a previdência, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.
  9. Animais evitam os perigos que veem, e quando escapam estão livres de preocupação; mas nós homens nos atormentamos sobre o que há de vir, assim como sobre o que é passado. Muitas de nossas bênçãos trazem a nós desgraça; pois a memória recorda as torturas do medo, enquanto a antevisão as antecipa. O presente sozinho não faz nenhum homem infeliz.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Lema da escola estoica.

[2] Hecato de Rodes foi um filósofo estoico, discípulo de Panécio de Rodes.

(imagem: Entre Esperanaça e Medo – por Lawrence Alma-Tadema )

A filosofia do Estoicismo

Ao invés de imaginar uma sociedade ideal, o estoico tenta lidar com o mundo do jeito que é enquanto persegue autodesenvolvimento através de quatro virtudes cardinais:
  • Sabedoria prática, a habilidade de navegar situações complexas de forma lógica, informada e calma;
  • Temperança, o exercício de autorrestrição e moderação em todos os aspectos da vida;
  • Justiça, tratar outros justamente mesmo quando eles fizeram algo errado;
  • e Coragem, não só em circunstâncias extraordinárias, mas ao encararmos desafios diários com claridade e integridade.
  

Excelente resumo do estoicismo, apesar de falado somente em inglês as legendas em português estão bastante razoáveis: