Carta 8: Sobre o isolamento do filósofo

A oitava carta de Sêneca aborda a tensão entre a vida contemplativa e a ação social, uma questão central no estoicismo e na filosofia em geral. Sêneca defende um isolamento temporário não como um fim em si mesmo, mas como meio de melhor servir à sociedade, refletindo sobre o valor da introspecção e do estudo intenso.

Sêneca continua aconselhar evitar a multidão e as coisas que agradam à multidão, lembrando que  aquilo que a “fortuna” nos dá também pode nos retirar. “Fortunae” para o autor latino, se assemelha à nossa “sorte” ou “destino”, mas era também uma divindade.

A carta de Sêneca encontra ressonância na modernidade, onde a busca por sucesso e bens materiais muitas vezes ofusca a busca por sabedoria e contentamento interior. A ideia de que a verdadeira liberdade vem da submissão à filosofia, ou a um sistema de valores elevados, é uma mensagem que ainda ressoa.

Uma frase forte da oitava carta de Sêneca a Lucílio, que resume muitos dos temas centrais da carta e do estoicismo em geral, é:
“Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia.”
Essa frase encapsula a ideia de que a verdadeira liberdade humana não vem da autonomia externa ou das posses materiais, mas da adesão a uma vida guiada pela razão e pela virtude, que é a essência da filosofia estoica. Ela sugere que a liberdade verdadeira é alcançada através da submissão à disciplina filosófica, que nos liberta das illusões e vicissitudes da fortuna e das paixões descontroladas.

(Imagem: Fortuna Marina por Frans Francken, A deusa romana Fortuna distribui aleatoriamente seus favores)


VIII. Sobre o isolamento do filósofo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Uma objeção sua: “Você sugere que se evite a multidão, se retire do contato dos homens e contente-se com a sua própria consciência?” Onde estão os conselhos da sua escola, que ordenam que um homem morra em meio ao trabalho produtivo?”1 Quanto ao curso que eu lhe pareço incitar de vez em quando, meu objetivo em recolher-me e trancar a porta é ser capaz de ajudar um número maior.2 Nunca passo um dia em ociosidade, aproveito até uma parte da noite para estudar. Não me dou tempo para dormir, mas me rendo ao sono quando preciso. E quando meus olhos estão cansados e prontos para caírem fechados, eu os mantenho em sua tarefa.

2. Tenho me afastado não só dos homens, mas dos negócios, especialmente dos meus próprios negócios. Estou trabalhando para gerações posteriores, escrevendo algumas ideias que podem ser de ajuda para elas.3 Há certos conselhos sadios que podem ser comparados às prescrições de remédios; estes eu estou pondo por escrito, pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.

3. Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar. Eu clamo a eles: “Evite o que agrada à multidão: evite os presentes da fortuna, avalie todo o bem que o acaso lhe traz, em espírito de dúvida e de medo, pois são os animais que são enganados pela tentação”. Você chama essas coisas de “presentes da fortuna”? São armadilhas. E qualquer homem dentre vocês que deseje viver uma vida de segurança evitará, ao máximo de seu poder, esses ramos favoráveis por meio dos quais os mortais, muito lamentavelmente neste caso, são enganados. Isso porque nós pensamos que nós as mantemos em nosso poder, mas são elas que nos prendem.

4. Tal curso nos leva a caminhos precipitados e a vida em tais alturas termina em queda. Além disso, nem mesmo podemos nos levantar contra a prosperidade quando ela começa a nos conduzir a sota-vento, nem podemos descer, tampouco, “com o navio em seu curso”. A fortuna não nos afunda, ela estufa nossas velas e nos precipita sobre as rochas.

5. Apegue-se pois, a esta regra sadia e sólida para a vida: que você satisfaça seu corpo apenas na medida em que for necessário para a boa saúde. O corpo deve ser tratado mais rigorosamente, para que não seja desobediente à mente. Coma apenas para aliviar a sua fome, beba apenas para saciar a sua sede, vista-se apenas para manter fora o frio, abrigue-se apenas como uma proteção contra o desconforto pessoal. Pouco importa a casa ser construída de madeira ou de mármore importado, compreenda que um homem é abrigado tão bem por uma palha quanto por um telhado de ouro. Despreze tudo o que o trabalho inútil cria como um ornamento e um objeto de beleza. E reflita que nada além da alma é digno de admiração, pois para a alma, se ela for grandiosa, nada é grande.

6. Quando eu comungo em tais termos comigo e com as gerações futuras, você não acha que eu estou fazendo mais bem do que quando eu apareço como conselheiro na corte ou carimbo meu selo sobre uma decisão ou presto ajuda ao senado ou por palavra ou ação presto meu apoio a um candidato qualquer? Acredite em mim, aqueles que parecem estar ocupados com nada estão ocupados com as maiores tarefas: eles estão lidando ao mesmo tempo com os planos humano e divino.

7. Mas devo parar e prestar minha contribuição habitual, para equilibrar esta carta. O pagamento não será feito de minha própria propriedade, pois ainda estou copiando Epicuro. Hoje leio, em suas obras, a seguinte frase: “Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia”.4 O homem que se submete e entrega-se a ela não é mantido esperando; ele é emancipado no ato. Pois o próprio serviço da filosofia é a liberdade.

8. É provável que você me pergunte por que cito tantas palavras nobres de Epicuro em vez de palavras tiradas de nossa própria escola. Mas há alguma razão pela qual você deve considerá-las como ditos de Epicuro e não domínio público? Quantos poetas exalam ideias que foram proferidas ou poderiam ter sido proferidas por filósofos! Não preciso falar sobre as tragédias e os nossos escritores de drama; porque estes últimos são também um pouco sérios e ficam a meio caminho entre comédia e tragédia. Que quantidade de versos sagrados estão enterrados na mímica! Quantas linhas de Publílio são dignas de serem declamadas por atores célebres, assim como pelos pés descalços!5

9. Vou citar um versículo dele que diz respeito à filosofia e, particularmente, aquela frase sobre a qual discutimos há pouco, onde ele diz que os dons do acaso não devem ser considerados como parte de nossas posses:

Ainda é alheio o que você ganhou do acaso .

Alienum est omne, quicquid optando evenit.5

10. Recordo que você mesmo expressou essa ideia de maneira muito mais feliz e concisa: “O que a Fortuna fez não é seu”. E uma terceira, dita por você ainda, não deve ser omitida: “O bem que pode ser dado, pode ser removido.” Eu não vou colocar isso em sua conta de despesas, porque eu a dei a partir de seu próprio patrimônio.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Notas:

1 Em contraste com a doutrina estoica geral de participar da política e atividades do mundo. Ao contrário dos epicuristas, que defendiam uma vida à margem das obrigações políticas e sociais, os estoicos aconselhavam a participação ativa do sábio nos assuntos do estado. Isto explica, em boa parte pelo menos, a importante carreira pública do próprio Sêneca. Ver George Stock, Estoicismo.

2 As condições sócio-políticas podem ser tais, contudo, que obriguem o sábio a recolher-se à vida estritamente privada, como fez Sêneca a partir de 63 quando perdeu influência sobre Nero. Ver o tratado Sobre o Ócio em que Sêneca aprofunda o assunto.

3 Essas Cartas!

5 “excalceatis”, referência a comediantes ou mímicos.

6  Provérbios de Publílio Siro (Século 1 a.C.). Também conhecido como Publilio Sirio, ou como Publilius Syrius ou Publio Sirio. Era nativo na Síria e foi feito escravo e enviado para a Itália, mas graças ao seu talento, ganhou o favor de seu senhor, que o libertou e o educou.

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