Carta 8: Sobre o isolamento do filósofo

Em sua oitava carta Sêneca continua aconselhar evitar a multidão e as coisas que agradam à multidão, lembrando que  aquilo que a “fortuna” nos dá também pode nos retirar.

(“fortunae” para o autor latino, se assemelha à nossa “sorte” ou “destino”, mas era também uma divindade. Imagem: Fortuna Marina por Frans Francken, A deusa romana Fortuna distribui aleatoriamente seus favores)

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Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você sugere, “evite a multidão, e retire-se dos homens, e contente-se com a sua própria consciência?” Onde estão os conselhos da sua escola, que ordenam que um homem morra em meio ao trabalho produtivo?[1]” Quanto ao curso que eu lhe pareço incitar de vez em quando, meu objetivo em recolher-me e trancar a porta é ser capaz de ajudar um número maior. Nunca passo um dia em ociosidade; aproveito até uma parte da noite para estudar. Não me dou tempo para dormir, mas me rendo ao sono quando preciso, e quando meus olhos estão cansados e prontos para caírem fechado, eu os mantenho em sua tarefa.
  2. Tenho-me afastado não só dos homens, mas dos negócios, especialmente dos meus próprios negócios; estou trabalhando para gerações posteriores, escrevendo algumas ideias que podem ser de ajuda para eles. Há certos conselhos sadios, que podem ser comparados às prescrições de remédios; estes eu estou pondo por escrito; pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas, que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.
  3. Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar. Eu clamo a eles: “Evite o que agrada à multidão: evite os dons do acaso, avalie todo o bem que o acaso lhe traz, em espírito de dúvida e de medo, pois são os animais que são enganados pela tentação. Você chama essas coisas de “presentes da fortuna”? São armadilhas. E qualquer homem dentre vocês que deseje viver uma vida de segurança evitará, ao máximo de seu poder, esses ramos favoráveis, por meio dos quais os mortais, muito lamentavelmente neste caso, são enganados; porque nós pensamos que nós os mantemos em nosso poder, mas eles é quem nos prendem.
  4. Tal curso nos leva a caminhos precipitados, e a vida em tais alturas termina em queda. Além disso, nem mesmo podemos nos levantar contra a prosperidade quando ela começa a nos conduzir a sota-vento; nem podemos descer, tampouco, “com o navio em seu curso”; a fortuna não nos afunda, ela estufa nossas velas e nos precipita sobre as rochas.
  5. “Apegue-se, pois, a esta regra sadia e saudável da vida – que você satisfaça seu corpo apenas na medida em que for necessário para a boa saúde. O corpo deve ser tratado mais rigorosamente, para que não seja desobediente à mente. Coma apenas para aliviar a sua fome, beba apenas para saciar a sua sede, vista-se apenas para manter fora o frio, abrigue-se apenas como uma proteção contra o desconforto pessoal. Pouco importa a casa ser construída de madeira ou de mármore importado, compreenda que um homem é abrigado tão bem por uma palha quanto por um telhado de ouro. Despreze tudo o que o trabalho inútil cria como um ornamento e um objeto de beleza. E reflita que nada além da alma é digno de admiração, pois para a alma, se ela for grandiosa, nada é grande. “
  6. Quando eu comungo em tais termos comigo e com as gerações futuras, você não acha que eu estou fazendo mais bem do que quando eu apareço como conselheiro na corte, ou carimbo meu selo sobre uma decisão, ou presto ajuda ao senado, por palavra ou ação, a um candidato? Acredite em mim, aqueles que parecem estar ocupados com nada estão ocupados com as maiores tarefas; eles estão lidando ao mesmo tempo com coisas mortais e coisas imortais.
  7. Mas devo parar, e prestar minha contribuição habitual, para equilibrar esta carta. O pagamento não será feito de minha própria propriedade; pois ainda estou copiando Epicuro. Hoje leio, em suas obras, a seguinte frase: “Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia”. O homem que se submete e entrega-se a ela não é mantido esperando; ele é emancipado no ato. Pois o próprio serviço da Filosofia é a liberdade.
  8. É provável que você me pergunte por que cito tantas palavras nobres de Epicuro em vez de palavras tiradas de nossa própria escola. Mas há alguma razão pela qual você deve considerá-las como ditos de Epicuro e não domínio público? Quantos poetas exalam ideias que foram proferidas ou poderiam ter sido proferidas por filósofos! Não preciso falar sobre as tragédias e os nossos escritores de drama; porque estes últimos são também um pouco sérios, e ficam a meio caminho entre comédia e tragédia. Que quantidade de versos sagrados estão enterrados na mímica! Quantas linhas de Públio são dignas de serem declamadas por atores célebres, assim como pelos pés descalços![2]
  9. Vou citar um versículo dele, que diz respeito à filosofia, e particularmente aquela fase da qual discutimos há pouco, onde ele diz que os dons do acaso não devem ser considerados como parte de nossas posses:
Ainda é alheio o que você ganhou devido a cobiça.Alienum est omne, quicquid optando evenit.[3]
  1. Recordo que você mesmo expressou essa ideia de maneira muito mais feliz e concisa: O que a Fortuna fez não é seu. E uma terceira, dita por você ainda, não deve ser omitida: O bem que pode ser dado, pode ser removido. Eu não vou colocar isso em sua conta de despesas, porque eu a dei a partir de seu próprio patrimônio.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Em contraste com a doutrina estoica geral de participar da política e atividades do mundo.

[2]excalceatis”, Comediantes ou mímicos

[3] Provérbios de Públio Siro.