Pensamento 100: Cuidado com o ecletismo filosófico

Assim como nas religiões, as escolas filosóficas foram desenvolvidas ao longo dos séculos e constituem uma doutrina coerente e completa. Tanto o estoicismo e epicurismo são filosofias que nos ensinam a arte de viver bem.

Apesar de terem o mesmo objetivo, suas práticas e ideias são bastante antagônicas, assim será uma péssima ideia tentar escolher e conciliar os pontos que gostamos em cada uma delas e ignorar os pontos que não gostamos.

Não funciona, vira um Frankenstein eclético, algo assim:

Dito isso, segue um excelente artigo sobre O estoico e o epicurista.

https://otambosi.blogspot.com/2023/08/o-estoico-e-o-epicurista.html?view=classic

Resenha: Cícero – Sobre a Amizade

A vida sem amigos não vale a pena viver

Cícero se definia como um cético acadêmico, isto é, um seguidor da Academia de Platão. Além disso particularmente se apunha à alegação epistemológica estoica de que a certeza absoluta de certas impressões era possível. Entretanto, foi solidário defensor da ética estoica. Com veremos neste livro, ele baseava seus ensinamentos éticos essencialmente nas premissas estoicas de que a virtude é a responsável pela felicidade e a tranquilidade espiritual. Hoje é uma de nossas fontes mais detalhadas sobre a doutrina do estoicismo.

Outro elemento que caracteriza Cícero como um dos campeões do estoicismo é sua forte oposição ao epicurismo. É importante notar aqui que Cícero tinha a tendência de reduzir Epicuro a uma filosofia que busca apenas prazer com o objetivo de gratificação instantânea.

No ano 44 a.C., Cícero estava em seus sessenta anos, afastado do poder político pela ditadura de Júlio César. Ele se dedicou a escrever para aliviar a dor do exílio e a recente perda de sua amada filha. Em um período de meses, ele produziu alguns dos mais lidos e influentes ensaios já escritos sobre assuntos que vão desde a natureza dos deuses e o papel adequado do governo até as alegrias de envelhecer e o segredo para encontrar a felicidade em vida. Entre estes trabalhos estava o breve ensaio Sobre a Amizade dedicado a Ático, seu melhor amigo.

Ele e Cícero tornaram-se amigos quando homens jovens e assim permaneceram durante todas suas vidas. Cícero dedicou-se à política romana e passou a maior parte de seus anos naquela cidade, uma época de tremenda agitação e guerra civil. Ático, por outro lado, observava a política romana a partir da distância segura de Atenas, enquanto permanecia em contato próximo com os principais homens de ambos os lados em Roma. Mesmo estando frequentemente separados, Cícero e Ático trocaram cartas ao longo dos anos que revelam uma amizade de rara devoção e calorosa afeição.

Sobre a Amizade é sem dúvida o melhor livro já escrito sobre o assunto. O conselho sincero que ele dá é honesto e comovente de uma forma que poucas obras dos tempos antigos são. Alguns romanos tinham visto a amizade em termos principalmente práticos como uma relação entre as pessoas para vantagem mútua. Cícero não nega que tais amizades sejam importantes, mas ele vai além do utilitarismo para enaltecer um tipo mais profundo de amizade em que duas pessoas se encontram um no outro sem buscar lucro ou vantagem do outro. Filósofos gregos como Platão e Aristóteles haviam escrito sobre a amizade centenas de anos antes. De fato, Cícero foi profundamente influenciado por seus escritos. Mas Cícero vai além de seus predecessores e cria nesta sucinta obra um guia convincente para encontrar, manter e apreciar essas pessoas em nossas vidas que valorizamos não pelo que elas podem nos dar, mas porque encontramos nelas uma alma semelhante a nossa. Sobre a Amizade está repleto de conselhos atemporais sobre amizade. Entre os melhores estão:

1. Existem diferentes tipos de amizades: Cícero reconhece que há muitas pessoas boas com quem entramos em contato em nossas vidas que chamamos de amigos, sejam eles sócios de negócios, vizinhos ou qualquer tipo de conhecidos. Mas ele faz uma distinção fundamental entre estas amizades comuns e bastante úteis e aqueles raros amigos aos quais nos ligamos em um nível muito mais profundo. Estas amizades especiais são necessariamente raras, pois exigem muito tempo e investimento de nós mesmos. Mas estes são os amigos que mudam profundamente nossas vidas, assim como nós mudamos a deles. Cícero escreve: “Com exceção da sabedoria, estou inclinado a acreditar que os deuses imortais não deram nada melhor à humanidade do que a amizade“. (§VI, 20)

2. Somente pessoas boas podem ser verdadeiras amigas: Pessoas de pobre caráter moral podem ter amigos, mas só podem ser amigos de utilidade pela simples razão de que a amizade real requer confiança, sabedoria e benevolência de base. Os tiranos e canalhas podem usar uns aos outros, assim como podem usar pessoas boas, mas as pessoas más nunca podem encontrar uma amizade verdadeira na vida.

3. Devemos escolher nossos amigos com cuidado: Temos que ser deliberados na escolha de nossas amizades pois pode ser muito confuso e doloroso descobrir que o suposto amigo não era a pessoa que pensávamos. Devemos ter calma, mover-nos lentamente e descobrir o que está no fundo do coração de uma pessoa antes de fazer o investimento pessoal que a verdadeira amizade exige.

4. Faça novos amigos, mas mantenha os antigos: Ninguém é um amigo mais agradável do que alguém que está com você desde o início. Mas não se limite aos companheiros da juventude, cuja amizade pode ter sido baseada em interesses não mais partilhados por você. Esteja sempre aberto a novas amizades, inclusive aquelas com pessoas mais jovens. Tanto você quanto eles serão privilegiados por isso.

5. Os amigos fazem de você uma pessoa melhor: Ninguém pode prosperar isoladamente. Deixados por nossa conta, estagnaremos e nos tornaremos incapazes de nos ver como somos. Um verdadeiro amigo o desafiará a se tornar melhor porque ele aprecia o potencial dentro de você.

6. Os amigos são francos: Os amigos sempre lhe dirão o que você precisa ouvir, não o que você quer que eles digam. Há muitas pessoas no mundo que o lisonjearão para seus próprios propósitos, mas somente um verdadeiro amigo – ou um inimigo – arriscará sua raiva dizendo-lhe a verdade. E sendo você mesmo uma boa pessoa, você deve ouvir seus amigos e acolher o que eles têm a dizer.

7. A recompensa da amizade é a própria amizade: Cícero reconhece que há vantagens práticas na amizade – conselho, companheirismo, apoio em tempos difíceis – mas em seu coração a verdadeira amizade não é uma relação de negócios. Ela não busca reembolso e não mantém contabilização. Não somos tão mesquinhos a ponto de “cobrar juros sobre nossos favores”, escreve Cícero. Ele acrescenta: “A recompensa da amizade é a própria amizade“.

8. Um amigo nunca pede que se faça algo errado: Um amigo arriscará muito por outro, mas não a honra. Se um amigo lhe pede para mentir, trapacear ou fazer algo vergonhoso, considere cuidadosamente se essa pessoa é quem você realmente pensava que era. Como a amizade é baseada na virtude, ela não pode existir quando se espera o mal de uma amizade.

9. As amizades podem mudar com o tempo: As amizades da juventude não serão as mesmas na velhice – nem deveriam ser. A vida muda todos nós com o tempo, mas os valores e qualidades essenciais que nos atraíram aos amigos em anos passados podem sobreviver ao teste do tempo. E, assim como o vinho, a melhor das amizades vai melhorar com a idade.

10. Sem amigos, não vale a pena viver a vida: Ou como diz Cícero: “Suponha que um deus o leve para longe, para um lugar onde lhe foi concedida uma abundância de todo bem material da natureza, mas lhe negue a possibilidade de alguma vez ver um ser humano. Quem teria a alma suficientemente temperada para suportar esse gênero de vida, e para evitar que a solidão retirasse de seus prazeres todo o seu sabor? (§XXIII, 87-88)

O livro Sobre a Amizade teve uma tremenda influência sobre escritores nos tempos que o seguiram, desde Santo Agostinho até o poeta italiano Dante e mais além Thomas Jefferson. Não é menos valioso hoje em dia. Em uma era moderna da tecnologia e um foco implacável no eu que ameaça a própria ideia de amizades profundas e duradouras, Cícero tem mais a nos dizer do que nunca.

Disponível nas lojas: Amazon, Kobo, Apple e GooglePlay.

Carta 102: Sobre as indicações de nossa imortalidade

Na carta 102 são abordados dos assuntos, primeiro uma indagação de Lucílio sobre se boa reputação após a morte é considera um bem para os estoicos. Sêneca responde essa questão, mas logo em seguida passa para aquilo que realmente queria falar: sobre a imortalidade de alma, ou se a vida continua após a morte do corpo.

Sêneca então mostra a visão cosmopolita do estoicismo e faz analogia de nossa vida terrena como sendo semelhante a vida de um feto no útero, ou seja, apenas uma preparação para a etapa seguinte:

“A alma humana é uma coisa grande e nobre, não permite limites, exceto aqueles que podem ser compartilhados até mesmo com deuses. Em primeiro lugar, não dá anuência a lugar de nascimento, como Éfeso ou Alexandria ou qualquer terra que seja ainda mais densa ou ricamente povoada do que estas. A pátria da alma é todo o espaço que circunda a altura e a largura do firmamento.” (CII, §21)

“Da mesma forma que o ventre materno nos mantém por dez meses, nos preparando, não para o próprio útero, mas para a existência em que seremos enviados quando finalmente nos preparamos para respirar e viver ao ar livre; assim, ao longo dos anos, estendendo-se entre a infância e a velhice, estamos nos preparando para outro nascimento. “ (CII, §23)

A carta é excelente em sua totalidade e merece leitura atenta. Ao final, Sêneca concede também aos ateus, dizendo que mesmo quem assim pensa pode continuar a ser útil depois de morto pois somos “ajudados pelo bom exemplo; você entenderá assim que a presença de um homem nobre não é menos útil do que sua memória.” (CII, §30).

Imagem A Morte de Sócrates por Jacques-Louis David.


CII. Sobre as indicações de nossa imortalidade

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Assim como um homem é importuno quando desperta um sonhador de seus sonhos agradáveis – pois ele está arruinando um prazer que pode ser irreal, mas, no entanto, tem a aparência da realidade –  da mesma maneira sua carta me causou ruptura. Pois me trouxe de volta abruptamente, absorvido que estava em uma meditação agradável e pronto para prosseguir se tivesse sido permitido.

2. Estava prazerosamente investigando a imortalidade da alma ou melhor, pelos deuses,  acreditando nessa doutrina! Pois eu estava dando crédito às opiniões dos grandes autores, que não só aprovam, mas prometem essa condição agradável. Eu estava me entregando a uma esperança tão nobre, pois eu já estava cansado de mim, começando a desprezar os fragmentos da minha existência aniquilada e sentindo que estava destinado a passar para a infinidade do tempo e na herança da eternidade, quando de repente fui despertado pelo recebimento de sua carta e perdi meu lindo sonho. Mas, assim que eu puder me liberar de você, eu vou tentar rememorar minha linha de pensamento e salvá-la.

3. Havia uma observação, no início da sua carta, de que eu não havia explicado todo o problema ao tentar provar uma das crenças da nossa escola, que a reputação adquirida após a morte é um bem, pois não resolvi o problema com o qual geralmente somos confrontados: “nenhum bem resulta de soluções de continuidade, mas a reputação é constituída por uma solução de continuidade.

4. O que você está perguntando, meu querido Lucílio, pertence a outro tópico do mesmo assunto e foi por isso que adiei os argumentos, não só sobre esse tópico, mas também em outros tópicos que também abordaram o mesmo fundamento. Pois, como você sabe, certas questões lógicas são misturadas com questões éticas. Consequentemente, lidei com a parte essencial do assunto que tem a ver com a conduta moral[1] – ou seja, se é tolo e inútil se preocupar com o que está além do nosso último dia, ou se nossos bens morrem com a gente e não resta mais nada daquele homem que cessou de existir, ou ainda se, de uma coisa que nós não perceberemos quando ela suceder, é possível, antes que suceda, perceber ou ambicionar o que ela possa valer.

5. Todas essas coisas têm uma visão moral as conduzindo e, portanto, foram inseridas sob o tópico apropriado. Mas as observações dos dialéticos em oposição a essa ideia tiveram que ser peneiradas e portanto, foram deixadas de lado. Agora que você exige uma resposta para todas elas, eu examinarei todas as suas afirmações em bloco e depois as refutarei individualmente.

6. A menos que eu faça uma observação preliminar, será impossível entender minhas refutações. E qual é essa observação preliminar? Simplesmente isto: existem certos corpos contínuos, como um homem; existem certos corpos compostos, como navios, casas e tudo o que é o resultado da união de partes separadas em uma soma total. Existem certos outros constituídos por coisas distintas, cada membro permanecendo separado – como um exército, uma população ou um senado – pois as pessoas que constituem tais corpos estão unidas em virtude de lei ou função, mas, por sua natureza, são distintas e individuais. Bem, quais outras observações preliminares ainda desejo fazer?

7. Simplesmente isso: acreditamos que nada é bom, se for composto de coisas distintas. Pois um único bem deve ser enquadrado e controlado por uma única alma e a qualidade essencial de cada bem individual deve ser única. Isso poderia ser provado quando você desejar, entretanto, mesmo assim, teve que ser posto de lado, porque nossas próprias armas estão sendo usadas contra nós.

8. Os adversários falam assim: “Você diz que nenhum bem pode ser composto de coisas que são distintas? No entanto, essa reputação da qual você fala, é simplesmente a opinião favorável dos homens de bem. Assim como a reputação não consiste em observações de uma pessoa e como uma má reputação não consiste na desaprovação de uma pessoa, tal renome não significa que apenas agradamos a uma pessoa boa. Para se constituir em renome, é necessário o acordo de muitos homens dignos e louváveis. Isso resulta da decisão de um número – em outras palavras, de pessoas que são distintas. Portanto, a reputação não é um bem.”

9. A segunda objeção diz, novamente: “a reputação é o louvor dado a um homem bom por homens de bem. Louvor significa fala: agora a fala é um enunciado com um significado particular e uma expressão, mesmo dos lábios dos homens de bem, não é um bem em si. Pois qualquer ato de um bom homem não é necessariamente bom, ele grita seus aplausos e silva sua desaprovação, mas não se chama o grito ou a vaia de bens, mesmo que sua conduta possa ser admirada e louvada – não mais do que alguém poderia aplaudir um espirro ou uma tosse. Portanto, a reputação não é um bem.”

10. “Finalmente, diga-nos se o bem pertence àquele que louva ou a quem é louvado: se você diz que o bem pertence a quem é louvado, você estaria em um caminho tolo como se dissesse que é minha a boa saúde do meu vizinho. Mas louvar homens dignos é uma ação honrosa; assim, o bem é exclusivamente do homem que faz o louvor, do homem que realiza a ação, e não de nós, que estamos sendo louvados. E, no entanto, essa é a questão em discussão, que você quer provar.

11. Devo agora responder apressadamente às distintas objeções. A primeira pergunta ainda é, se qualquer coisa boa pode consistir em coisas de distintas – e há votos emitidos nos dois lados. Mais uma vez, a reputação precisa de muitos votos? A reputação pode ser satisfeita com a decisão de um único homem de bem: é um bom homem que decide que somos homens de bem.

12. Então a réplica é: “O quê! Você definiu a reputação como a estima de um indivíduo e a má reputação como a conversa fiada rancorosa de um único homem? Glória, também, levamos a ser mais generalizada, pois exige o acordo de muitos homens.” Mas a posição dos muitos é diferente daquela de um. E por que? Porque se o bom homem pensa bem de mim, isso equivale praticamente a ser bem pensado por todos os homens bons; pois todos vão pensar o mesmo, se eles me conhecerem. O seu julgamento é semelhante e idêntico. O efeito da verdade é igual. Eles não podem discordar, o que significa que eles necessariamente manteriam a mesma visão, não podendo manter juízos diferentes.

13. “A opinião de um homem”, você diz, “não é suficiente para criar glória ou renome”. No primeiro caso, um julgamento é uma ponderação universal porque todos, se lhes fosse pedido, teriam uma única opinião; no outro caso, no entanto, homens de caráter diferente dão juízos divergentes. Você encontrará emoções desconcertantes – tudo duvidoso, inconstante, não confiável. E você pode supor que todos os homens são capazes de manter uma opinião? Até mesmo um indivíduo não mantém uma única opinião. Com o bom homem é a verdade que causa a crença e a verdade tem apenas uma função e uma semelhança; enquanto na segunda classe de que falei, as ideias com as quais eles concordam são infundadas. Além disso, aqueles que são falsos nunca são firmes: são irregulares e discordantes.

14. “Mas o louvor”, diz o objetor, “não é senão um enunciado e um enunciado não é um bem”. Quando eles dizem que o renome é o louvor concedido ao bem pelo bem, o que eles referem não é um enunciado, mas um julgamento. Pois um bom homem pode permanecer em silêncio; mas se ele decide que uma certa pessoa é digna de louvor, essa pessoa é objeto de louvor.

15. Além disso, o louvor é uma coisa, e discurso laudatório é outra. O último exige um enunciado também. Portanto, ninguém fala de “um louvor fúnebre”, mas diz “discurso laudatório” – pois sua função depende da fala. E quando dizemos que um homem é digno de louvor, asseguramos haver bondade nele, não em palavras, mas em julgamento. Portanto, a boa opinião, mesmo de alguém que em silêncio sente aprovação interior de um homem bom, é louvor.

16. Mais uma vez, como eu disse, o louvor é uma questão de alma e não de discurso; pois a fala traz o louvor que a mente concebeu e publica-o à atenção dos muitos. Pois julgar um homem digno de louvor, é louvá-lo. E quando nosso trágico poeta nos canta que é maravilhoso “ser louvado por um herói muito louvado”, ele quer dizer, “por alguém digno de louvor”. Mais uma vez, quando um bardo igualmente venerável diz: “Louvor dá vida às artes”, ele não significa dar louvor, pois isso prejudica as artes. Nada tem corrompido oratória e todos os outros estudos que dependem de ouvir tanto quanto a aprovação popular.

17. A reputação exige necessariamente palavras, mas a glória pode se contentar com os julgamentos dos homens e é suficiente sem a palavra falada. É satisfeita não só em aprovação silenciosa, mas mesmo diante de protestos abertos. Existe, na minha opinião, essa diferença entre a reputação e glória – a última depende dos julgamentos dos muitos; mas a reputação, dos julgamentos de homens de bem.

18. A réplica vem: “Mas de quem é o bem deste renome, esse louvor prestado a um homem bom por homens bons? É de quem é louvado por alguém ou de quem louva?” Dos dois, eu digo. É meu próprio bem, porque sou louvado, porque naturalmente nasço para amar todos os homens e me alegro por ter feito boas ações e me felicito por eu ter encontrado homens que expressam suas ideias de minhas virtudes com gratidão; que eles sejam gratos, é um bem para muitos, mas também é um bem para mim. Pois o meu espírito está assim ordenado, que posso considerar o bem dos outros homens como meus – em qualquer caso, aqueles de cujo bem eu sou a causa.

19. Este bem é também o bem daqueles que fazem o louvor, pois é aplicado por meio da virtude. E todo ato de virtude é um bem. Meus amigos não poderiam ter encontrado essa bênção se eu não tivesse sido um homem de estampa correta. É, portanto, uma boa pertença a ambos os lados – o que é louvado quando se merece – tão verdadeiramente quanto uma boa decisão é o bem daquele que toma a decisão e também daquele a favor de quem a decisão foi tomada. Você duvida de que a justiça seja uma benção para o seu possuidor, bem como para o homem a quem o louvor devido foi pago? Louvar o merecedor é a justiça, portanto, o bem pertence a ambos os lados.

20. Esta será uma resposta suficiente para esses comerciantes em sutilezas. Mas não deve ser nosso propósito discutir as coisas com inteligência e arrastar a filosofia de sua majestade a jogos de palavras tão insignificantes. Quão melhor é seguir a estrada aberta e direta, ao invés de planejar uma rota tortuosa que você deve retraçar com problemas infinitos! Pois tal argumentação nada mais é do que o esporte de homens que habilmente fazem malabarismos uns com os outros.

21. Diga-me quão de acordo com a natureza é permitir que a mente atinja o universo ilimitado! A alma humana é uma coisa grande e nobre, não permite limites, exceto aqueles que podem ser compartilhados até mesmo com deuses. Em primeiro lugar, não dá anuência a lugar de nascimento, como Éfeso ou Alexandria ou qualquer terra que seja ainda mais densa ou ricamente povoada do que estas. A pátria da alma é todo o espaço que circunda a altura e a largura do firmamento, toda a cúpula arredondada dentro da qual a terra e o mar, dentro do qual o ar que separa o humano do divino também os une e onde todas as estrelas tomam turno em sentinela.

22. Mais uma vez, a alma não suportará uma extensão estreita da existência. “Todas as eras”, diz a alma, “são minhas, nenhuma época está fechada para grandes mentes, todo o tempo está aberto para o progresso do pensamento. Quando chegar o dia de separar o celestial de sua mistura terrena, eu vou deixar o corpo aqui onde eu o encontrei e, por minha própria vontade, me entregarei aos deuses. Agora não estou separada deles, mas sou simplesmente detida em uma prisão lenta e terrena.”

23. Estes atrasos da existência mortal são um prelúdio para a vida mais longa e melhor. Da mesma forma que o ventre materno nos mantém por dez meses, nos preparando, não para o próprio útero, mas para a existência em que seremos enviados quando finalmente nos preparamos para respirar e viver ao ar livre; assim, ao longo dos anos, estendendo-se entre a infância e a velhice, estamos nos preparando para outro nascimento. Um começo diferente, uma condição diferente, nos aguarda.

24. Ainda não podemos, exceto em intervalos raros, suportar a luz do céu, portanto, olhe para a frente sem temer a hora marcada, a última hora do corpo, mas não da alma. Examine tudo o que reside em você, como se fosse bagagem em um quarto de hotel: você deve viajar. A natureza deixa-lhe tão desnudo na partida quanto como na entrada.

25. Você não pode levar mais do que trouxe, além disso, você deve descartar a maior parte do que você trouxe com você para a vida: você será despojado da própria pele que o cobre, que foi sua última proteção, você será despojado da carne e perderá o sangue que circulou pelo seu corpo, você será despojado de ossos e nervos, a armação dessas partes fracas e transitórias.

26. Aquele dia que você teme como sendo o fim de todas as coisas, é o nascimento de sua eternidade. Por que postergar? Deixe de lado seu fardo, como se você não tivesse deixado previamente o corpo que era o seu esconderijo! Você se agarra ao seu fardo, você luta. No seu nascimento também foi necessário um grande esforço na parte da sua mãe para libertá-lo. Você chora e lamenta e, no entanto, esse mesmo choro aconteceu no nascimento também. Mas naquela ocasião podia ser desculpado – pois você veio ao mundo inteiramente ignorante e inexperiente. Quando você deixou a proteção calorosa e cuidadosa do útero de sua mãe, um ar mais livre passou em seu rosto, então você estremeceu com o toque de uma mão áspera e olhou com surpresa para objetos desconhecidos, ainda frágil e ignorante de todas as coisas.

27. Mas agora não é novidade ser separado daquilo que você já fez parte. Deixe seus membros já inúteis com resignação e dispense esse corpo em que você morou por tanto tempo. Será despedaçado, enterrado fora da vista e decomposto. Por que se abater? Isto é o que normalmente acontece: quando nascemos, as secundinas[2] sempre perecem. Por que amar uma coisa como se fosse sua própria posse? Era apenas a sua cobertura. Chegará o dia que irá rompê-la e ir para longe da companhia do ventre desagradável e fétido.

28. Afaste-se disso o máximo que puder e afaste-se do prazer, exceto daqueles que podem estar ligados a coisas essenciais e importantes. Afaste-se disso mesmo agora e reflita sobre algo mais nobre e mais elevado. Algum dia os segredos da natureza serão revelados a você, a névoa será removida de seus olhos e a luz brilhante fluirá em você de todos os lados. Imagine-se o quão grande é o brilho quando todas as estrelas misturam seus brilhos, nenhuma sombra perturbará o céu limpo. Toda a extensão do céu brilhará uniformemente, pois o dia e a noite são trocados apenas na atmosfera mais baixa. Então você vai dizer que você viveu na escuridão, depois de ter visto, em seu estado perfeito, a luz perfeita – aquela luz que agora você vê sombriamente com visão constrangida até o último grau. E, no entanto, tão distante quanto esteja, você já olha para ela com admiração, o que você acha que será a luz celestial quando você a vir em seu próprio âmbito?

29. Esses pensamentos não permitem que nada mesquinho se estabeleça na alma, nada vil, nada cruel. Eles sustentam que os deuses são testemunhas de tudo. Eles nos ordenam encontrar a aprovação dos deuses, nos preparar para nos juntarmos a eles em algum momento futuro e planejar a imortalidade. Aquele que apreendeu essa ideia não retrocede frente a nenhum exército atacante, não é aterrorizado pela trombeta e nem é intimidado por nenhuma ameaça.

30. Um homem que aguarda com expectativa pela morte, não sente medo. Mesmo aquele também, que acredita que a alma permanece somente enquanto for agrilhoada ao corpo, que se dispersa imediatamente após o perecimento,[3] mesmo quem assim pensa e age, pode continuar a ser útil depois de morto. Pois embora seja tirado da visão dos homens, ainda assim

a grande virtude do herói, a grande nobreza da sua raça continua a viver no nosso espírito.Multa viri virtus animo multusque recursat Gentis honos.[4]

Considere o quanto somos ajudados pelo bom exemplo; você entenderá assim que a presença de um homem nobre não é menos útil do que sua memória.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] NT: Nenhuma das cartas conservadas é dedicada à discussão deste problema.

[2] NT: Secundinas: placenta, cordão umbilical e membranas, normalmente expulsos do útero após o parto.

[3] Referência aos epicuristas. Ver Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres – Livro X – Epicuro

[4] Trecho de Eneida, de Virgílio.

Carta 97: Sobre a Degeneração da Época

Na Carta 97 Sêneca aborda um tema recorrente em todas as eras: pessoas maduras tendem a acreditar que o passado era melhor e mais íntegro, e que os jovens estão degenerados e equivocados. Mas Sêneca diz que não é nada disso pois essa negligência aos bons costumes são “vícios da humanidade e não dos tempos“.

Ele narra o caso de um político corrupto, Públio Cloto, que escapou da punição subornando e chantageando juízes com dinheiro e sexo, isso na presença de Catão, símbolo moral para Sêneca. Comparando com a política recente teremos mais uma prova da degeneração ser uma característica da humanidade, não dos tempos.

A carta é interessante também pois narra os rituais da Bona Dea (“Boa Deusa”) e da Floralia, em honra à deusa Flora. Cita máximas de Epicuro, concordando em pontos e discordando de alguns detalhes: “Um criminoso pode ter a sorte de conservar-se oculto, mas não pode estar seguro de assim permanecer“.

A conclusão é que o criminoso, mesmo que escape da lei, jamais poderá escapar da própria consciência, e saber que cometeu crime será punição suficiente devido a culpa e a ansiedade de ser pego:

Boa fortuna libera muitos homens do castigo, mas nenhum homem do medo. E por que seria assim, se não fosse enraizado em nós uma aversão por aquilo que a natureza condenou? Daí mesmo os homens que escondem seus pecados nunca podem contar com o fato de ficarem ocultos; pois suas consciências os convencem e revelam os crimes a si mesmo. Mas é propriedade da culpa ter medo. Ela nos faz doentes devido aos muitos crimes que escapam à vingança da lei e às punições prescritas para que as graves ofensas contra a natureza sejam pagas em dinheiro vivo e porque, em lugar de sofrer a punição, sofremos com o medo.” (XCVII, 16)

Imagem: O império da Flora por Giovanni Battista Tiepolo.


XCVII. Sobre a Degeneração da Época

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você está enganado, meu querido Lucílio, se você acha que o luxo, a negligência aos bons costumes e outros vícios são especialmente característicos de nossa época. Não, são os vícios da humanidade e não dos tempos. Nenhuma era na história esteve isenta de culpa. Além disso, se você começar a levar em conta as irregularidades típicas a qualquer época particular, você encontrará – para a vergonha do homem – que o pecado nunca foi mais explícito do que na própria presença de Catão.

2. Alguém acreditaria que dinheiro mudou de mão no julgamento quando Clódio[1] foi acusado de adultério com a esposa de César, quando ele violou o mistério ritual[2] daquele sacrifício que se é oferecido em nome do povo, quando todos os homens são tão rigorosamente removidos do recinto, tanto que até imagens de todas as criaturas masculinas estão cobertas? E, no entanto, o dinheiro foi dado ao júri e, mais vil do que essa pechincha, crimes sexuais foram exigidos de mulheres casadas e jovens rapazes como uma espécie de contribuição adicional.

3. O crime denunciado envolveu menos pecado do que sua absolvição, pois o réu por adultério parcelou os adultérios e não tinha certeza de sua própria absolvição até ter feito dos jurados criminosos como ele. Tudo isso foi feito no julgamento em que Catão deu testemunho, embora essa fosse sua única participação. Vou citar as reais palavras de Cicero, porque os fatos são tão ruins quanto inacreditáveis:

4. “Ele distribuiu cargos, promessas, súplicas e presentes. E mais do que isso (Céus misericordiosos, que estado de coisas abandonado!) a vários jurados, para completar sua recompensa ele concedeu o gozo de certas mulheres e encontros com jovens nobres”.[3]

5. É supérfluo ficar chocado com o suborno pois as adições ao suborno foram piores. “Você tem interesse na esposa desse indivíduo austero, A.? Muito bom. Ou de B., o milionário? Eu garantirei que você possa se deitar com ela. Se você não cometeu adultério, condene Clódio. Essa beldade que você deseja deve visitá-lo. Garanto-lhe uma noite em companhia dessa mulher sem demora, minha promessa deve ser realizada fielmente dentro do prazo legal de pagamento”. É mais grave distribuir esses crimes do que os cometer; significa chantagear matronas dignas.

6. Estes jurados no julgamento de Clódio pediram ao Senado uma guarda – um favor que só seria necessário para um júri prestes a condenar o acusado; e seu pedido foi concedido. Daí a observação espirituosa de Cátulo depois que o réu ter sido absolvido: “Por que nos pediram a guarda? Tiveram medo de ter seu dinheiro roubado?” E, no entanto, em meio a gracejos como estes, ele ficou impune, ele que antes do julgamento era um adúltero, durante o julgamento, um gigolô e que escapou da condenação mais vilmente do que merecia.

7. Você acredita que qualquer coisa poderia ser mais vergonhosa do que esses padrões morais – quando a luxúria não pode se manter afastada nem do culto religioso, nem dos tribunais? No próprio inquérito realizado em sessão especial por ordem do Senado mais crimes foram cometidos do que investigados. A questão em debate era se alguém poderia estar seguro depois de cometer adultério, foi demonstrado que não se poderia estar seguro sem cometer adultério!

8. Toda essa negociata ocorreu na presença de Pompeu e César, de Cícero e Catão, sim, esse próprio Catão cuja presença, segundo dizia, fazia com que as pessoas se abstivessem de exigir as provocações e caprichos usuais de atrizes nuas na Florália,[4] – se você puder acreditar que os homens eram mais rigorosos em sua conduta em um carnaval do que em um tribunal! Tais coisas serão feitas no futuro, como já foram feitas no passado; e a licenciosidade das cidades às vezes diminuirá através da disciplina e do medo, nunca por si mesma.

9. Portanto, você não precisa acreditar que somos nós quem mais nos entregamos para a luxúria e menos para a lei. Pois os homens jovens de hoje vivem vidas muito mais simples do que as de uma época em que um réu se declararia não culpado de uma acusação de adultério perante os juízes, e os juízes confessariam perante o arguido. Época quando foi praticada a devassidão para garantir um veredicto, e quando Clódio, favorecido pelos próprios vícios dos quais ele era culpado, fez o papel de gigolô durante a audiência do caso. Poderíamos acreditar nisso? Aquele a quem um adultério levou a um inquérito foi absolvido por causa de muitos.

10. Todas as eras produzirão homens como Clódio, mas nem todas as eras, homens como Catão. Degeneramos facilmente porque não nos falta mentores nem associados em nossa maldade, e a perversidade continua por si mesma, mesmo sem mentores ou associados. O caminho para o vício não é apenas morro abaixo, mas em declive acentuado. Muitos homens são tornados incorrigíveis pelo fato de que enquanto que em todos os erros no artesanato trazem vergonha aos bons artesãos e causam vergonha para aqueles que se desviaram, os erros da vida são uma fonte positiva de prazer.

11. O piloto não está contente quando seu navio emborca; o médico não está contente quando enterra seu paciente; o advogado não está contente quando o réu perde um caso por sua culpa; mas, por outro lado, cada homem goza de seus próprios crimes. A. se deleita em uma intriga,  pois era a dificuldade que o atraía a ela. B. Delicia-se em falsificação e roubo e só está descontente com o pecado quando seu pecado não atinge o alvo. E tudo isso é o resultado de hábitos pervertidos.

12. Por outro lado, no entanto, para que você possa saber que há uma ideia de boa conduta presente subconscientemente em almas que foram conduzidas até mesmo nas formas mais depravadas e que os homens não são ignorantes do que o mal é, mas indiferentes, eu digo que todos os homens escondem seus pecados e mesmo que o caso seja bem-sucedido aproveita os resultados enquanto esconde os próprios pecados. Uma boa consciência, no entanto, deseja sair e ser vista pelos homens, já a maldade teme a própria sombra.

13. Por isso, considero Epicuro o mais adequado: “Um criminoso pode ter a sorte de conservar-se oculto, mas não pode estar seguro de assim permanecer”,[5] ou, se você acha que o significado pode ser mais claro desta forma: “A razão pela qual não é nenhuma vantagem para os transgressores permanecerem ocultos é que, embora tenham a fortuna, eles não têm a certeza de permanecer em segurança”. É o que quero dizer: os crimes podem ser bem guardados, estar livre da ansiedade, não é possível.

14. Esta visão, eu mantenho, não está em desacordo com os princípios da nossa escola, se assim for explicado. E porque? Porque a primeira e a pior penalidade do pecador é ter cometido o pecado. E o crime, embora a Fortuna se divirta com seus favores, embora ela o proteja e o tome sob sua guarda, nunca pode ficar impune, uma vez que a punição do crime reside no próprio crime. Mas, no entanto, essas segundas penalidades seguem de perto as primeiras: medo constante, terror constante e desconfiança na própria segurança. Por que, então, eu deveria colocar a perversidade livre de tal punição? Porque não hei-de deixá-la sempre em suspenso?

15. Deixe-nos discordar de Epicuro em um único ponto, quando ele declara que não existe uma justiça natural e que o crime deve ser evitado porque não se pode escapar do medo que resulta dele; deixe-nos concordar com ele do outro ponto, que as más ações são açoitadas pelo chicote da consciência e essa consciência é torturada em maior grau porque a ansiedade interminável a impulsiona e chicoteia, e não pode confiar nos fiadores de sua própria paz mental. Por isso, Epicuro é a própria prova de que somos, por natureza, relutantes em cometer crimes, porque mesmo em circunstâncias de segurança, não há quem não sinta medo.

16. Boa fortuna libera muitos homens do castigo, mas nenhum homem do medo. E por que seria assim, se não fosse enraizado em nós uma aversão por aquilo que a natureza condenou? Daí mesmo os homens que escondem seus pecados nunca podem contar com o fato de ficarem ocultos; pois suas consciências os convencem e revelam os crimes a si mesmo. Mas é propriedade da culpa ter medo. Ela nos faz doentes devido aos muitos crimes que escapam à vingança da lei e às punições prescritas para que as graves ofensas contra a natureza sejam pagas em dinheiro vivo e porque, em lugar de sofrer a punição, sofremos com o medo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] NT: Públio Clódio Pulcro (Publius Clodius Pulcher), mais conhecido apenas como Clódio, foi um político da República Romana conhecido por suas táticas populistas.

[2] NT: Os ritos de Bona Dea (“Boa Deusa”) eram realizados em dezembro na casa de um importante magistrados de Roma. Em 62 a.C., a cerimônia seria realizada na residência oficial de Júlio César, o pontífice máximo, em Régia. As anfitriãs foram sua esposa, Pompeia, e sua mãe, Aurélia, com a supervisão das virgens vestais. Este era um culto do qual os homens não tinham permissão para falar ou mesmo de saber o nome da deusa, que era chamada de “Boa Deusa”. Clódio se intrometeu nos ritos disfarçado de mulher, supostamente com o objetivo de seduzir Pompeia, mas foi descoberto. O crime de Clódio era, portanto, duplamente grave: adultério e violação religiosa

[3] Ver Cícero, Cartas a Ático.

[4] A Floralia era um festival romano, em honra à deusa Flora, ocorrido no mês de maio e ligado ao ciclo agrário com objetivo de consagrar as florações da primavera. Haviam representações teatrais, solturas de animais associados à fertilidade e divertimentos realizados no Circo Máximo.

[5] Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

Carta 92: Sobre a vida feliz

Sêneca escreveu sobre este tópico em maior extensão ao seu irmão Gálio no livro “A Vida Feliz – De Vita Beata”. Essa carta é um excelente resumo de suas ideias sobre o que torna uma vida feliz: Viver segundo a natureza, em virtude.

Após dezenas de citações elogiosas a Epicuro, Sêneca bate pesado nos epicuristas ao categoricamente afirmar que prazeres e sua busca são ineficazes (e muita vezes contrários) a uma vida feliz:

A parte irracional da alma é dupla: uma parte é animada, ambiciosa, descontrolada; seu lugar está nas paixões; a outra é rasteira, indolente e dedicada ao prazer. Os filósofos epicuristas negligenciaram a primeira, que, ainda que desenfreada, ainda é melhor, e certamente é mais corajosa e mais digna de um homem, e consideraram a última, que é inútil e ignóbil, como indispensável para a vida feliz.” (XCII, 8)

Sêneca, como de costume, usa excelentes analogias para defender suas tesas. Para os estoicos, questões sensoriais (dor, doença, prazer, etc) não tem capacidade de influenciar a felicidade (positiva ou negativamente) e são como uma nuvem que encobrem o sol:

Desastres, e portanto, perdas e ofensas, têm apenas o mesmo poder sobre a virtude que uma nuvem tem sobre o sol.” (XCII, 18)

O segredo para a felicidade então é uma vida virtuosa, e uma busca a se tornar semelhantes aos deuses. Sêneca acreditava que nossa alma vinha de Deus, e com a morte, retornaria a Deus:

Seria uma grande tarefa abrir caminho para o céu; a alma, apenas retorna para lá. (…) A alma, afirmo, sabe que as riquezas são armazenadas em outro lugar do que nos cofres dos homens; é a alma que deve ser preenchida, e não o cofre.” (XCII,31)

(Imagem “Ulysses and the Sirens”, por Draper Herbert James)


XCII. Sobre a vida feliz

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você e eu concordaremos, penso eu, que as coisas externas são buscadas para a satisfação do corpo, que o corpo é apreciado por respeito à alma, e que na alma existem certas partes que nos auxiliam, permitindo-nos a mover e manter a vida, concedida a nós apenas para o proveito da nossa parte principal[2]. Nesta parte primária, há algo irracional e algo racional. A primeira obedece a última, esta não tem qualquer ponto de referência além de si própria, pelo contrário, serve ela de ponto de referência a tudo. Pois a razão divina também está em comando supremo de todas as coisas, e não está sujeita a nada; e até mesmo a razão que possuímos é assim, porque é derivada da razão divina.

2. Agora, se concordarmos neste ponto, é natural que também possamos concordar com o seguinte: a vida feliz depende disso e só disso: da obtenção da razão perfeita. Pois não é nada além disso, que impede a alma de se rebaixar, que luta firme contra a fortuna; seja qual for a condição de seus negócios, ela mantém os homens sem problemas. E ela sozinha é um bem que nunca está sujeito a deficiências. Esse homem, eu declaro, é feliz, já que nada o faz menos forte; ele se mantém nas alturas, não se apoiando em ninguém senão em si mesmo; pois quem se sustenta por qualquer suporte pode cair. Se o caso for contrário, então as coisas que não dizem respeito a nós começarão a ter uma grande influência sobre nós. Mas quem deseja que a fortuna tenha vantagem, ou que homem sensato se orgulha do que não é dele próprio?

3. O que é a vida feliz? É paz de espírito e tranquilidade duradoura. Isto será seu se você possuir grandeza de alma; será seu se você possuir a firmeza que se apega resolutamente a um bom julgamento recém atingido. Como um homem atinge essa condição? Ao obter uma visão completa da verdade, mantendo, em tudo o que faz, ordem, medida, aptidão e vontade que é inofensiva e gentil, que é atenta a razão e nunca se afasta dela, que conduz ao mesmo tempo ao amor e à admiração. Em suma, para lhe dar o princípio resumidamente, a alma do sábio deve ser tal como seria apropriada a um deus.

4. O que mais pode desejar alguém que possua todas as coisas honrosas? Pois, se coisas desonestas podem contribuir para um maior patrimônio, então haverá a possibilidade de uma vida feliz em condições que não incluam uma vida digna. E o que é mais vil ou tolo do que conectar o bem de uma alma racional com coisas irracionais?

5. Contudo, existem certos filósofos que afirmam que o Bem Supremo admite aumento, porque não está completo quando as dádivas da fortuna são adversas. Mesmo Antípatro, um dos grandes líderes da nossa escola, admite que atribui alguma influência aos extrínsecos, embora apenas uma influência muito pequena. Você vê, no entanto, que absurdo é em não se contentar com a luz do dia, a menos que seja aumentada por um pequeno fogo. Qual a importância de uma faísca no meio desta luz solar intensa?

6. Se você não está satisfeito com o que é honrado, terá forçosamente de lhe pôr ao lado ou o sossego como dizem os gregos(aokhlêsia), ou o prazer. Mas o primeiro pode ser alcançado em qualquer caso. Pois a mente está livre de distúrbios quando é totalmente livre para contemplar o universo, e nada a distrai da contemplação da natureza. O segundo, o prazer, é simplesmente o bem dos animais. Nós somos apenas o adicionado do irracional ao racional, o desonroso ao honrado. Uma sensação física agradável afeta essa nossa vida;

7. Por que, portanto, você hesita em dizer que tudo está bem com um homem, só porque tudo está bem com seu apetite? E você classifica, não vou dizer entre os heróis, mas entre os homens, a pessoa cujo Bem Supremo é uma questão de sabores, cores e sons? Não, deixe-o retirar-se destas fileiras, da classe mais nobre de seres vivos, segunda apenas aos deuses; deixe-o viver em rebanho com as bestas – um animal cujo prazer está na forragem!

8. A parte irracional da alma é dupla: uma parte é animada, ambiciosa, descontrolada; seu lugar está nas paixões; a outra é rasteira, indolente e dedicada ao prazer. Os filósofos epicuristas negligenciaram a primeira, que, ainda que desenfreada, ainda é melhor, e certamente é mais corajosa e mais digna de um homem, e consideraram a última, que é inútil e ignóbil, como indispensável para a vida feliz.

9. Eles ordenaram a razão a servir esta última; eles fizeram o Bem Supremo da vida mais nobre ser um assunto abjeto e mesquinho, e um híbrido monstruoso, também, composto de vários membros que harmonizam, mas estão doentes. Pois, como nosso Virgílio, descrevendo Cila,[3] diz:

“tem forma humana o seu corpo, donzela de peito formoso até à cinta, depois torna-se monstro gigantesco unindo caudas de golfinho ao ventre eriçado de lobos!”Prima hominis facies et pulchro pectore virgo Pube tenus, postrema inmani corpore pistrix Delphinum caudas utero commissa luporum.[4]
Eneida, de Virgílio.

E ainda assim, esta Cila é alinhavada nas formas de animais selvagens, terrível e rápida; mas a partir de que formas monstruosas esses pedantes epicuristas compuseram sabedoria!

10. A arte principal do homem é a própria virtude; há, unida a ela uma carne inútil e fugaz, apta apenas para a recepção de alimentos, como observa Posidônio. Esta virtude divina termina em impureza, e nas partes superiores, que são adoráveis e celestiais, está preso um animal lento e flácido. Quanto ao segundo desiderato, calmo, embora, de fato, não seja de si mesmo benéfico para a alma, mas aliviaria a alma dos obstáculos; prazer, pelo contrário, realmente destrói a alma e afrouxa todo o seu vigor. Quais elementos tão desarmoniosos como estes podem ser encontrados unidos? Aquilo que é mais vigoroso é unido ao que é mais lento, ao que é austero o que está longe de ser sério, ao que é mais sagrado com o que é destemperado até o ponto da impureza por incesto.

11. O que, então”, vem a réplica, “se a boa saúde, o descanso e a imunidade à dor não prejudicam a virtude, você não deve procurar tudo isso?” É claro que eu os procurarei, mas não porque sejam bens, eu os procurarei porque estão de acordo com a natureza e porque serão adquiridos por meio do exercício do bom juízo de minha parte. O que, então, será bom neles? Só isso – é bom escolhe-los. Pois, quando eu coloco um vestuário adequado, ou ando como devo, ou janto como devo jantar, não é o meu jantar, nem a minha caminhada, nem o meu traje que são bens, mas a escolha deliberada que mostro em relação a eles, como observo, em cada coisa que faço, um meio que está em conformidade com a razão.

12. Permita-me também acrescentar que a escolha de roupas limpas é um objeto apropriado dos esforços de um homem; pois o homem é, por natureza, um animal elegante e bem preparado. Daí a escolha de um traje limpo, e não um traje elegante em si mesmo, é um bem; uma vez que o bem não está no item selecionado, mas na qualidade da seleção. A moralidade está na nossa forma de agir, mas não as coisas reais que fazemos.

13. E você pode assumir que o que eu disse sobre vestes se aplica também ao corpo. Pois a natureza cercou nossa alma com o corpo como com uma espécie de roupa; o corpo é o seu manto. Mas quem computa o valor das roupas pelo guarda-roupa que as contem? A bainha não faz a espada boa ou ruim. Portanto, no que diz respeito ao corpo, devolver-lhe-ei a mesma resposta,  se eu escolher, escolherei saúde e força, mas o bem envolvido será o meu juízo sobre essas coisas, e não as próprias coisas.

14. Outra réplica é: “Admitindo que o sábio é feliz, no entanto, ele não alcança o bem supremo que definimos, a não ser que os meios que a natureza oferece para a sua realização estiverem a seu alcance. Então, quem possui a virtude não pode ser infeliz, mas não se pode ser perfeitamente feliz quem não possui as dádivas naturais como a saúde ou a integridade dos membros”.

15. Mas, ao dizer isso, você epicurista admite a alternativa que parece mais difícil de acreditar – que o homem que está em meio a uma dor incessante e extrema não é miserável, ou melhor, é feliz; E você nega o que é muito menos crítico, – que ele é completamente feliz. E, no entanto, se a virtude pode evitar que um homem seja miserável, será uma tarefa mais fácil para ela torná-lo completamente feliz. Pois a diferença entre felicidade e felicidade completa é menor do que entre miséria e felicidade. Pode ser possível que uma coisa que seja tão poderosa que retire um homem do desastre e o coloque entre os felizes, também não possa realizar o que falta e torná-lo extremamente feliz? A sua força falha no fim da subida?

16. Há coisas da vida que são vantajosas e desvantajosas, ambas além do nosso controle. Se um bom homem, apesar de ser castigado por todos os tipos de desvantagens, não é miserável, como não é extremamente feliz, não importa se não possui certas vantagens? Pois, como não é levado à miséria por seu fardo de desvantagens, então não é afastado da suprema felicidade por falta de vantagens; não, ele é tão supremamente feliz sem as vantagens, assim como ele está isento da miséria, apesar da carga de suas desvantagens. Caso contrário, se o seu bem pode ser reduzido, pode também ser retirado completamente.

17. Num trecho acima, observei que um pequeno fogo não aumenta a luz do sol. Pois, devido ao brilho do sol, qualquer outra luz que não seja a luz solar é apagada. “Mas,” pode-se dizer, “há certos objetos que bloqueiam o caminho mesmo da luz solar”. O sol, no entanto, não é prejudicado mesmo em meio a obstáculos, e, embora um objeto possa intervir e cortar nossa visão, o sol adere-se ao seu trabalho e segue seu curso. Sempre que ele brilha de entre as nuvens, não é menor, nem menos pontual, do que quando está livre de nuvens; uma vez que faz uma grande diferença se existe apenas algo no caminho de sua luz ou algo que interfira com o seu brilho.

18. Da mesma forma, os obstáculos não retiram nada da virtude; não fica menor, mas simplesmente brilha com menos esplendor. Em nossos olhos, talvez seja menos visível e menos luminosa do que antes; mas, no que se refere a si mesma, é inalterada e, assim como o sol quando está eclipsado, ainda continua produzindo sua força, embora em segredo. Desastres, e portanto, perdas e ofensas, têm apenas o mesmo poder sobre a virtude que uma nuvem tem sobre o sol.

19. Encontramos com uma pessoa que sustenta que um homem sábio que se encontre com infortúnio corporal não é nem miserável nem feliz. Mas ele também está errado, pois está colocando os resultados do acaso em uma paridade com as virtudes e atribui a mesma influência tanto a coisas que são honrosas quanto a coisas desprovidas de honra. Mas o que é mais detestável e mais indigno do que colocar coisas desprezíveis na mesma classe de coisas dignas de reverência! Pois reverência é devida à justiça, dever, lealdade, bravura e prudência; pelo contrário, esses atributos são inúteis pois homens mais desprezíveis são muitas vezes abençoados com os quais em maior medida, como uma perna robusta, ombros fortes, bons dentes e músculos saudáveis e sólidos.

20. Novamente, se um homem sábio de corpo enfermo não for considerado nem miserável nem feliz, mas deixado em uma espécie de posição a meio caminho, sua vida também não será desejável nem indesejável. Mas o que é tão tolo quanto dizer que a vida do homem sábio não é desejável? E o que está tão além dos limites da credibilidade quanto a opinião de que qualquer vida não é desejável nem indesejável? Novamente, se os males corporais não tornam um homem miserável, eles, consequentemente, permitem que ele seja feliz. Pois coisas que não têm poder para mudar sua condição para pior, também não têm o poder de perturbar essa condição quando está no seu auge.

21. “Mas”, alguém vai dizer, “sabemos o que é frio e o que é quente, uma temperatura morna se encontra no meio. Da mesma forma, A é feliz e B é miserável, e C não é nem feliz nem miserável”. Desejo examinar esta ilustração, que é colocada em jogo contra nós. Se eu adicionar a sua água morna uma quantidade maior de água fria, o resultado será água fria. Mas se derramar uma quantidade maior de água quente, a água finalmente ficará quente. No caso, no entanto, do seu homem que não é miserável nem feliz, não importa o quanto eu adicione aos seus problemas, ele não será infeliz, de acordo com sua argumentação; daí que sua ilustração não oferece analogia.

22. Mais uma vez, suponha que eu coloque diante de você um homem que não é miserável nem feliz. Eu acrescento cegueira a seus infortúnios; ele não está ficando infeliz. Eu o mutilo; ele não está ficando infeliz. Eu acrescento aflições que são incessantes e severas; ele não está ficando infeliz. Portanto, aquele cuja vida não se torna miserável por todos esses males também não é arrastado da vida feliz por eles.

23. Então, se, como você diz, o sábio não pode cair da felicidade para a miséria, ele não pode cair na falta de felicidade. Pois, alguém que começou a escorregar, consegue parar em qualquer lugar particular? O que o impede de escorregar para o fundo, o mantém em pé. Por que, você insiste, uma vida feliz não pode ser destruída? Nem sequer pode ser desarticulada; e por isso a própria virtude é suficiente para a vida feliz.

24. “Mas”, é dito, “o homem sábio não é mais feliz se viver mais tempo sem ser importunado por qualquer dor, do que alguém que sempre foi obrigado a lidar com a má fortuna?” Me responda agora, este é melhor ou mais honrado? Se não é, então também não é feliz. Para viver mais felizmente, ele deve viver com mais justiça; se não pode fazer isso, então também não pode viver mais feliz. A virtude não pode ser mais forte e, portanto, assim também a vida feliz, que depende da virtude. Pois a virtude é um bem tão forte que não é afetada por assaltos tão insignificantes como a vida curta, a dor e as várias vexações corporais. Pois o prazer não é coisa para que a virtude se digne sequer olhar.

25. Agora, qual a coisa principal na virtude? É a qualidade de não precisar de um único dia além do presente, e de não contar os dias que são nossos; no menor momento possível, a virtude completa uma eternidade de bem. Esses bens nos parecem incríveis e transcendem a natureza do homem; pois medimos sua grandeza pelo padrão de nossa própria fraqueza, e chamamos nossos vícios pelo nome da virtude. Além disso, não parece tão incrível que qualquer homem em meio ao sofrimento extremo possa dizer: “Eu estou feliz!”? E, no entanto, essa expressão foi ouvida no próprio laboratório do prazer[5], quando Epicuro disse: “Este é o meu dia mais feliz, o meu último dia, também!” Embora em um caso ele fosse torturado estrangúria[6] e, no outro, pela dor incurável de um estômago ulcerado.

26. Por que, então, os bens que a virtude nos concede são incríveis à nossa vista, que cultivamos a virtude, quando são encontrados mesmo naqueles que reconhecem o prazer como sua amante? Estes também, ignóbeis e rasteiros, como são, declaram que, mesmo no meio de dor excessiva e infortúnio, o sábio não será nem miserável nem feliz. E, no entanto, isso também é incrível, o que é ainda mais incrível do que o outro caso. Pois não entendo como, se a virtude cai de suas alturas, ela pode impedir de ser levada até o fundo. Ela deve ou preservar alguém na felicidade, ou, se expulsa dessa posição, não conseguirá impedir que nos tornemos infelizes. Se a virtude se mantem firme, ela não pode ser expulsa do campo; ela deve conquistar ou ser conquistada.

27. Mas alguns dizem: “Somente para os deuses imortais é dada virtude e a vida feliz, podemos alcançar apenas a sombra e a semelhança de bens como os deles. Nós nos aproximamos deles, mas nunca os alcançamos”. A razão, no entanto, é um atributo comum de deuses e homens; nos deuses já está aperfeiçoada, em nós é capaz de ser aperfeiçoada.

28. Mas são os nossos vícios que nos deixam desesperados; pois a segunda classe dos seres racionais, o homem, é de ordem inferior – um guardião, por assim dizer, que é muito instável para manter o que é melhor, seu julgamento ainda é vacilante e incerto. Ele pode exigir as faculdades de visão e audição, boa saúde, um exterior corporal que não seja repugnante e, além disso, maior duração de dias ungidos de saúde intacta.

29. Embora, por meio da razão, possa levar uma vida que não traga arrependimentos, ainda reside nesta criatura imperfeita, o homem, um certo poder que faz mal, porque ele possui uma mente que se move facilmente para a perversidade. Suponha, no entanto, que a maldade que está em plena visão, seja removida; o homem ainda não é um bom homem, mas ele está sendo moldado para o bem. Alguém, no entanto, em quem falte qualquer qualidade que traga a bondade, é mau.

30. Mas

Aquele em cujo corpo a virtude está presente em corpo e espírito,Sed Si cui virtus animusque in corpore praesens,[7]
Eneida, de Virgílio.

é igual aos deuses; consciente de sua origem, ele se esforça para voltar para lá. Nenhum homem erra ao tentar recuperar as alturas das quais ele desceu. E por que você não deve acreditar que existe algo de divino em alguém que faz parte de Deus? Todo esse universo que nos engloba é um, e é Deus; somos associados de Deus; nós somos seus membros. Nossa alma tem capacidades e é transportada para lá, se os vícios não a impedem. Assim como a natureza dos nossos corpos é se manter ereto e olhar para o céu, então a alma, que pode alcançar o máximo que desejar, foi moldada pela natureza para esse fim, que desejasse a igualdade com os deuses. E se faz uso de seus poderes e se estende a cima em sua própria região, não é por nenhum caminho desconhecido que luta em direção às alturas.

31. Seria uma grande tarefa abrir caminho para o céu; a alma, apenas retorna para lá. Quando uma vez encontra a estrada, ela marcha com audácia, desdenhosa de todas as coisas. Ela se lança, sem olhar para a riqueza; ouro e prata – coisas que são totalmente dignas da escuridão de onde saíram – não valem pelo brilho que ferem os olhos dos ignorantes, mas pela lama dos dias passados, de onde a nossa ganância primeiro os destacou e cavou. A alma, afirmo, sabe que as riquezas são armazenadas em outro lugar do que nos cofres dos homens; é a alma que deve ser preenchida, e não o cofre.

32. É a alma que os homens podem colocar em domínio de todas as coisas, e podem empossar como dona do universo, para que eles limitem suas riquezas somente pelos limites do Oriente e do Ocidente e, como os deuses, possam possuir todas coisas; e que, com seus próprios recursos vastos, olhe para os ricos, nenhum dos quais se alegra tanto em sua própria riqueza como se ressente da riqueza de outro.

33. Quando a alma se transporta para este alto sublime, também considera o corpo, uma vez que é um fardo que deve ser suportado, não como algo para amar, mas como uma coisa para supervisionar; nem é subserviente àquilo sobre o qual está configurado em seu domínio. Pois nenhum homem é livre, se é escravo do seu corpo. Na verdade, excluindo todos os outros mestres que são trazidos devido ao cuidado excessivo pelo corpo, o poder que o próprio corpo exerce é capcioso e enfadonho.

34. Por este corpo, a alma emerge, agora com espírito imperturbável, agora com exultação, e, uma vez que surgiu, não pergunta qual será o fim do dia desperto. Não; assim como não pensamos nas aparas de cabelo e da barba, da mesma forma que a alma divina, quando está a ponto de emergir do homem mortal, considera o destino de seu vaso terrestre – quer seja consumido pelo fogo, ou fechado por uma pedra, ou enterrado na terra, ou rasgado por bestas selvagens – como não sendo mais preocupante para si mesmo do que as secundinas[8] para uma criança que nasceu. E se este corpo deve ser jogado fora e picado em pedaços por pássaros, ou devorado quando

Dado aos cães marinhos como presa,Canibus data praeda marinis,[9]
Eneida, de Virgílio.

Como isso diz respeito a quem não é nada?

35. Nem mesmo quando está entre os vivos, a alma não teme nada que possa acontecer ao corpo após a morte; pois, embora tais coisas possam ter sido ameaças, não foram suficientes para aterrorizar a alma antes do momento da morte. Ela diz; “Não estou assustada com a espada do carrasco, nem com a mutilação revoltante do cadáver que estará exposto ao desprezo daqueles que testemunharão o espetáculo. Não peço a nenhum homem que realize os últimos ritos para mim, confio meus restos mortais a ninguém. A natureza providenciou para que ninguém fosse deixado sem um enterro. O tempo vai consumir aquele corpo que a crueldade gerou”. Estas foram palavras eloquentes que Mecenas[10] pronunciou:

Eu não quero tumba; Pois a natureza irá prover,Nec tumulum curo. Sepelit natura relictos.
Eneida, de Virgílio

Você imaginaria que este foi o ditado de um homem de princípios rígidos e pronto para a luta[11]. Ele era realmente um homem de nobres e robustos dons, mas em prosperidade ele comprometeu esses dons por permissividade[12].

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sêneca escreveu sobre este tópico tratado em maior extensão ao seu irmão Gálio no livro “A Vida Feliz – De Vita Beata”.

[2]ou seja, a alma. Veja Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1. 13: “É afirmado que a alma tem duas partes, uma irracional e outra dotada de razão.” Aristóteles subdivide a parte irracional em (1) o que faz crescer e aumentar, e (2) desejo (que irá, no entanto, obedecer a razão). Nesta passagem, Sêneca usa “alma” em seu sentido mais amplo.

[3] Cila (em grego: Σκύλλα, transl.: Skýlla), na mitologia grega, conforme Homero e Ovídio, era uma bela ninfa que se transformou em um monstro marinho.

[4] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[5] Sêneca se refere ao Jardim de Epicuro com “laboratório do prazer”. 

[6] Estrangúria é a eliminação lenta e dolorosa de urina em consequência de espasmo uretral ou vesical. Veja também carta LXVI.

[7] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[8] Placenta e membranas da mulher expelidas na fase terminal do parto;

[9] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[10] Mais sobre Mecenas nas cartas XIX e CXX

[11] Literalmente. “um homem que tem o cinto bem apertado’” de modo a erguer as roupas e facilitar os movimentos, para a corrida ou para a luta (alte cinctum).

[12] A mesma imagem, literalmente: “lhe tivesse desapertado o cinto” deixando, portanto, que as vestes soltas o incapacitassem de lutar.

Carta 89: Sobre as Partes da Filosofia

Esta carta é uma das mais voltadas para o debate teórico da filosofia, em contraste com a maioria das cartas que têm cunho mais prático. Sêneca inicia fazendo uma diferenciação entre sabedoria e filosofia:

A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou.” (LXXXIX, 4) Ou, de forma mais condensada: “A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.“(LXXXIX, 6).

A carta cita e comenta posições de Epicuro, Cícero, da escola peripatética e cirenaica sobre as partes da filosofia, chegando ao defendido pelos estoicos, que os principais ramos são ética, física e lógica: A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. (LXXXIX, 9).

Imagem: Mosaico Academia de Platão na vila de Siminius Stephanus em Pompeia.


LXXXIX. Sobre as Partes da Filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. É um fato útil que deseje saber, o que é essencial para aquele que busca a sabedoria – mais precisamente, as partes da filosofia e a divisão de seu todo em membros separados. Pois, ao estudar as partes, podemos ser trazidos com mais facilidade a entender o todo. Só desejo que a filosofia possa estar diante de nossos olhos em toda a sua plenitude, assim como toda a extensão do firmamento se mostra para que o possamos contemplar! Seria uma visão muito parecida com a do firmamento. Pois, certamente, a filosofia arrebataria todos os mortais pelo amor por ela; devemos abandonar todas aquelas coisas que, na nossa ignorância do que é excelente, acreditamos ser excelentes. No entanto, como isso não nos é dado graciosamente, devemos ver a filosofia exatamente como os homens contemplam os segredos do firmamento.

2. A mente do sábio, com certeza, abraça toda a estrutura da filosofia, examinando-a com um olhar não menos rápido do que nossos olhos mortais examinam os céus; nós, no entanto, que devemos atravessar a escuridão, nós, cuja visão falha mesmo para o que está próximo, podemos ser apresentados com maior facilidade a cada objeto em separado, apesar de ainda não sermos capazes de compreender o universo. Portanto, cumpro suas exigências e dividirei a filosofia em partes, mas não em migalhas. Pois é útil que a filosofia seja dividida, mas não cortada em pedaços mínimos. Assim como é difícil compreender o que é demasiadamente grande, também é difícil compreender o que é demasiadamente pequeno.

3. As pessoas são divididas em tribos, o exército em centúrias[1]. Tudo o que cresceu a um tamanho maior é mais facilmente identificado se for dividido em partes; mas as partes, como observei, não devem ser incontáveis em número e em tamanho diminuto. Pois a análise excessiva é defeituosa exatamente da mesma forma que nenhuma análise; o que quer que você corte tão bem que se torne pó é tão bom quanto misturado em uma massa novamente.

4. Em primeiro lugar, portanto, se você aprovar, vou traçar a distinção entre sabedoria e filosofia. A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou. E é claro por que a filosofia[2] é assim chamada. Pois reconhece por seu próprio nome o objeto de seu amor.

5. Certas pessoas definem a sabedoria como o conhecimento das coisas divinas e das coisas humanas[3]. Outros ainda dizem: “A sabedoria é saber coisas divinas e coisas humanas, e suas causas também[4]”. Esta frase adicionada parece-me supérflua, uma vez que as causas das coisas divinas e as coisas humanas fazem parte do sistema divino. A filosofia também foi definida de várias maneiras; alguns a chamaram de “o estudo da virtude”, outros se referiram a ela como “um estudo sobre o modo de modificar a mente”, e alguns a chamaram de “busca da razão justa”.

6. Uma coisa está praticamente resolvida, que há alguma diferença entre filosofia e sabedoria. Também não é possível que o que é procurado e o que procura sejam idênticos. Como há uma grande diferença entre a avareza e a riqueza, sendo uma sujeito do desejo e a outra seu objeto, assim também entre filosofia e sabedoria. Pois uma é um resultado e uma recompensa da outra. A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.

7. A sabedoria é aquilo que os gregos chamam de σοφία[5]. Os romanos também costumavam usar essa palavra, sophia, no sentido em que eles agora usam a “filosofia” também. Isso é provado pelas nossas antigas peças de teatro de toga[6], bem como pelo epitáfio que está esculpido no túmulo de Dosseno: “Detenha-se, estranho, e leia de Dosseno a sofia”.[7]

8. Certos de nossa escola, embora a filosofia significasse para eles “o estudo da virtude”, e embora a virtude fosse o objeto buscado e a filosofia o buscador, sustentavam, no entanto, que as duas não podem ser separadas. Pois a filosofia não pode existir sem virtude, nem virtude sem filosofia. A filosofia é o estudo da virtude, por meio, no entanto, da própria virtude; mas a virtude não pode existir sem o estudo de si mesma, nem o estudo da virtude existe sem a própria virtude. Pois não é como tentar atingir um alvo em um longo ponto, onde o atirador e o objeto a ser atingido estão em diferentes lugares. Nem, como estradas que conduzem a uma cidade, nem são as abordagens da virtude situadas fora da própria virtude; o caminho pelo qual se alcança a virtude é por meio da própria virtude; a filosofia e a virtude se mantêm juntas.

9. Os maiores autores e o maior número de autores, sustentaram que existem três divisões de filosofia – moral, natural e lógica[8]. A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. Mas também houve aqueles que dividiram a filosofia, por um lado, em menos divisões, por outro lado, em mais.

10. Certos da escola peripatética adicionaram uma quarta divisão, “filosofia política”, porque aplica-se a uma esfera especial de atividade e está interessada em um assunto diferente. Alguns acrescentaram um departamento para o qual eles usam o termo grego “οικονομία” (economia), a ciência de gerenciar o próprio patrimônio. Ainda outros fizeram um título distinto para os vários tipos de vida. Não há nenhuma dessas subdivisões, no entanto, que não sejam encontradas sob o ramo “moral” da filosofia.

11. Os epicuristas sustentavam que a filosofia era dupla: natural e moral; eles acabaram com o ramo lógico. Então, quando foram compelidos pelos próprios fatos a distinguir entre ideias equívocas e a expor falácias escondidas sob a capa da verdade, eles também introduziram um título para o qual eles dão o nome “forense e reguladora[9]”, que é meramente “lógica” sob outro nome, embora considerem que esta seção é suplementar ao departamento de filosofia “natural”.

12. A Escola Cirenaica[10] aboliu o departamento natural e lógico, e estava contente com o lado moral sozinho; e, no entanto, esses filósofos também incluem sob outro título o que eles rejeitaram. Pois dividem a filosofia moral em cinco partes: (1) O que evitar e o que procurar, (2) As paixões, (3) Ações, (4) Causas, (5) Prova. Agora, as causas das coisas realmente pertencem à divisão “natural”, as provas a “lógica”.

13. Aristo de Quios[11] observou que o natural e a lógica não eram apenas supérfluos, mas também eram contraditórios. Ele até mesmo limitou a “moral”, que era tudo o que lhe restava; pois aboliu esse título que abraçou o conselho, sustentando que era o negócio do pedagogo e não do filósofo – como se o homem sábio fosse outra coisa senão o pedagogo da raça humana!

14. Uma vez que, portanto, a filosofia é tripla, primeiro comecemos a definir o lado moral. Foi acordado que esse deveria ser dividido em três partes. Primeiro, temos a parte reflexiva, que atribui a cada coisa sua função particular e pesa o valor de cada uma; é o mais alto em termos de utilidade. Pois o que é tão indispensável como dar a tudo seu valor adequado? O segundo tem que ver com impulso, o terceiro com ações. Pois o primeiro dever é determinar separadamente o que vale a pena; o segundo, conceber em relação a eles um impulso regulado e ordenado; o terceiro, fazer seu impulso e suas ações se harmonizar, de modo que sob todas essas condições você possa ser consistente consigo mesmo.

15. Se algum dos três estiver com defeito, há confusão no resto também. Pois que benefício há em ter todas as coisas avaliadas, cada uma em suas relações adequadas, se você ultrapassar seus impulsos? Qual o benefício que existe ao ter controlado seus impulsos e em ter seus desejos sob seu próprio controle, se, quando você chegar à ação, você desconhece os horários e as épocas adequadas, e se você não sabe quando, onde e como cada ação deve ser realizada? Uma coisa é entender os méritos e os valores dos fatos, outra coisa conhecer o momento preciso para a ação, e ainda outra refrear os impulsos e prosseguir, em vez de se precipitar, para o que está para ser feito. Por isso, a vida está em harmonia com ela mesma somente quando a ação não abandona o impulso, e quando o impulso para um objeto surge em cada caso do valor do objeto, sendo lânguido ou mais ansioso, conforme o caso, de acordo com os objetos que o despertam valem a pena procurar.

16. O lado natural da filosofia é duplo: corporal e não corporal. Cada um é dividido em seus próprios graus de importância, por assim dizer. O tópico sobre os corpos aborda, primeiro, com estas duas classes: o criativo e o criado; e as coisas criadas são os elementos. Agora, esse mesmo tópico dos elementos, de acordo com alguns escritores, é integral; com outros, é dividido em matéria, a causa que move todas as coisas e os elementos.

17. Resta para mim dividir a filosofia lógica em suas partes. Toda a fala é contínua ou dividida entre questionador e respondedor. Foi definido que a primeira deveria ser chamada de ῥητορικὴ (retórica), e a última διαλεκτική (dialética). A retórica trata de palavras, significados e arranjos. A dialética é dividida em duas partes: palavras e seus significados, isto é, nas coisas que são ditas, e as palavras em que são ditas. Então vem uma subdivisão de cada uma – e é de grande extensão. Portanto, eu vou parar neste ponto, e

Percorrer o clímax;Summa sequar fastigia rerum;[12]

Pois, se eu tivesse vontade de dar as subdivisões, minha carta se tornaria o manual de um debatedor!

18. Não estou tentando desencorajá-lo, excelente Lucílio, de ler sobre este assunto, desde que você esteja pronto para praticar tudo o que ler. É sua conduta que você deve manter em controle; você deve despertar o que está dormente em você, tencionar rapidamente o que se tornou relaxado, conquistar o que é obstinado, acossar seus apetites e os apetites da humanidade, tanto quanto você pode; e para aqueles que dizem: “Por quanto tempo essa conversa sem fim continuará?” Responda com as palavras:

19. “Eu é quem deveria estar perguntando: Por quanto tempo esses pecados sem fim continuarão?Você realmente deseja que meus remédios parem antes de seu vício? Mas devo falar mais de meus remédios, e apenas porque você oferece objeções, eu continuarei falando. A medicina começa a fazer o bem no momento em que um toque faz com que o corpo doente arda com dor. Devo pronunciar palavras que ajudarão os homens até mesmo contra a vontade deles. Às vezes, você deve permitir que outras palavras além de elogios atinjam seus ouvidos e se, como indivíduo, você não estiver disposto a ouvir a verdade, ouça coletivamente.

20. Quão longe você estenderá os limites de suas propriedades? Uma fazenda que mantenha uma nação é muito limitada para um único senhor. Até que ponto você avançará seus campos arados – você que não está contente em confinar a medida de suas fazendas mesmo dentro da amplitude das províncias? Você tem rios nobres que atravessam seus terrenos privados; você tem rios poderosos – fronteiras de nações poderosas – sob seu domínio do início ao fim. Isso também é muito pequeno para você, a menos que também envolva mares inteiros com seus estados, a menos que seu administrador mantenha influência do outro lado do mar Adriático, da Jônia e do mar Egeu, a menos que as ilhas, casas de chefes famosos, sejam contadas por você como o mais insignificante dos bens! Espalhe-os tão amplamente quanto você quiser, se puder ter como “fazenda” o que uma vez foi chamado de império; faça seu o que quiser, desde que seja mais do que o do seu vizinho!

21. E agora por uma palavra contigo, cujo luxo se espalha tão amplamente quanto a ganância daqueles a quem acabei de referir. Para você, eu digo: “Este costume continuará até que não haja lago sobre o qual os pináculos de suas casas de campo não atinjam? Até que não haja um rio cujas margens não sejam limitadas por suas estruturas senhoriais? Onde águas quentes possam surgir, onde as margens se curvem em uma baía, você estará pronto para estabelecer fundações e, não contente com nenhuma terra que não tenha sido trabalhada pela engenharia, você irá trazer o mar dentro de seus limites. De cada lado, deixará suas casas brilharem ao sol, agora colocadas em picos nas montanhas, onde elas procuram uma visão extensa sobre o mar e a terra, agora levantadas da planície até o alto das montanhas, construirá suas múltiplas estruturas, suas imensas pilhas, vocês são, no entanto, apenas indivíduos e insignificantes com isso! O que você ganha em ter várias camas? Você dorme em uma. Nenhum lugar é seu, onde você não esteja”.

22. “Em seguida, eu passo para você, você cuja boca insaciável e sem fundo explora, por um lado, os mares, do outro, a terra, com um enorme trabalho, caçando sua presa, agora com anzol, agora com armadilha, agora com redes de vários tipos, nenhum animal tem paz, exceto quando você está empanturrado dele. E quão pequena é uma parte desses banquetes, preparado para você por tantas mãos, que você prova com seu paladar fatigado de prazer! Quão pequena parte de toda essa carne de caça, cuja captura esteve repleta de perigo, o paladar doente e cheio de melindre chega ao estômago? Quão pequena porção de todos os peixes, importados de longe, escorrega para aquela insaciável garganta? Pobres desgraçados, vocês não sabem que seus apetites são maiores que suas barrigas?

23. Fale assim com outros homens, desde que você enquanto falar também escute; escreva assim, desde que, enquanto escreve, lê, lembrando que tudo o que você ouve ou lê, deve ser aplicado para conduzir e para aliviar a fúria da paixão. Estude, não para adicionar nada ao seu conhecimento, mas para melhorar seu conhecimento.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Centúria era uma unidade de infantaria do exército romano, que continha oitenta legionários, correspondendo a dez contubérnios (a unidade mínima do exército romano, constituída de oito a dez soldados).

[2] Pitágoras foi, segundo Diógenes de Laércio, o primeiro a utilizar a palavra «filosofia», que é decomposta em duas: filo (amizade) e sofia (saber); o filósofo é, portanto, o amigo ou o amante do saber – esta é a significação com que a palavra aparece também em Sócrates e Platão.

[3] “Θείων τε καὶ ἀνθρωπίνων ἐπιστήμη”, citado por Plutarco, De Plac. Phil. 874 E.

[4] Cicero, De Officiis, “Sobre os Deveres”, II,ii, 5.

[5]sofia” equivalente em grego (Σοφία)

[6] Fabula togata, comédia “de toga”, distingue-se da comédia de imitação grega, “fabula palliata” apenas na atuação, o local e os personagens são romanos, ao contrário do que sucede com a palliata, em que se conservam os nomes gregos e a acão ocorre em locais vários do mundo grego.

[7] Hospes resiste et sophian Dossenni lege.

[8] Também traduzido como ética, física e lógica.

[9] Sêneca usa o termo latino “de iudicio” traduzindo o adjetivo grego δικανικός, “aquilo que tem a ver com os tribunais”, e por “de regula” a palavra κανονικός, “aquilo que tem a ver com regras”, aqui as regras da lógica. Os Epicuristas usavam para a lógica κανονική, em contraste com Aristóteles e seus sucessores, que usaram λογική. No latim, racionalis é uma tradução deste último.

[10] Aristipo de Cirene foi o fundador da Escola Cirenaica de filosofia, assim denominada devido à cidade de Cirene na qual foi fundada, floresceu entre 400 a.C. e 300 a.C., e tinha como a sua característica distintiva principal o hedonismo, ou a doutrina de que o prazer é o bem supremo. Como os cínicos se desenvolveram para os estoicos, assim os cirenaicos se desenvolveram para os Epicuristas.

[11] Aríston ou Aristo de Quios foi um filósofo estoico e discípulo de Zenão de Cítio. Esboçou um sistema de filosofia estoica que esteve, em muitos aspectos, mais próximo da anterior filosofia cínica. Rejeitou o lado lógico e físico da filosofia aprovada por Zenão e enfatizou a ética.

[12] Eneida, I, 342,  de Virgílio.

Carta 88: Sobre estudos liberais e vocacionais

A carta 88 é bastante interessante, nela Sêneca critica os “estudo liberais“, o que poderia ser traduzido no nosso tempo como formação universitária. Para Sêneca o conhecimento técnico é apenas isso, uma ferramenta para o trabalho diário e venal, não um fim em si mesmo ou um certificado de excelência, inteligência ou sabedoria. A crítica e conclusão são atuais e podem ser aplicadas igualmente aos intelectuais contemporâneos.

“O intelectual se ocupa com investigações sobre o idioma, e se for seu desejo de ir mais longe, ele trabalha na história ou, se ele estender seu alcance para os limites mais distantes, sobre a poesia. Mas qual destes abre caminho à virtude? Pronunciando sílabas, investigando palavras, memorizando peças, ou fazendo regras para o exame crítico da poesia, o que existe em tudo isso que livra alguém do medo, refreia o desejo ou elimina as paixões?” (LXXXVIII, 3)

No texto Sêneca cita a Odisseia e Ilíada de Homero bem como vários filósofos e escolas filosóficas da antiguidade. Ao final do texto, Sêneca volta suas baterias contra alguns filósofos, mais uma vez se mostrando atual – ou comprovando que a natureza humana se manteve inalterada em 2000 anos:

“Tenho falado até agora de estudos liberais; mas pense quanto de matéria supérflua e pouco prática que os filósofos contêm! Por sua própria conta, eles também se rebaixam para estabelecer boas divisões de sílabas, para determinar o verdadeiro significado de conjunções e preposições; eles têm inveja dos estudiosos, inveja dos matemáticos. Eles passaram a usar em sua própria arte todas as superfluidades dessas outras artes; o resultado é que eles sabem mais sobre falar meticulosamente do que sobre uma vida meticulosa.” (LXXXVIII, 42)

Imagem: Ulisses e as Sereias, por John William Waterhouse.


LXXXVIII. Sobre estudos liberais e vocacionais

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você tem desejado conhecer os meus pontos de vista em relação aos estudos liberais[1]. A minha resposta é a seguinte: não admiro nenhum estudo e não considero um bom estudo, o que resulta na criação de dinheiro. Tais estudos são ocupações condutoras de lucro, úteis apenas na medida em que dão à mente uma preparação e não a ocupam permanentemente. Deve se demorar sobre eles apenas enquanto a mente não se ocupa com nada maior; eles são nosso aprendizado, não nosso trabalho real.

2. Então você vê por que os “estudos liberais” são chamados assim; é porque eles são estudos dignos de um cavalheiro nascido livre. Mas há apenas um estudo realmente liberal, o que dá a um homem sua liberdade. É o estudo da sabedoria, e isso é elevado, corajoso e de grande alma. Todos os outros estudos são insignificantes e pueris. Você certamente não acredita que exista algo bom em qualquer um dos assuntos cujos professores são, como você vê, os homens do selo mais ignóbil e vil? Não devemos estar aprendendo essas coisas; devíamos ter concluído com aprendê-las. Certas pessoas decidiram que o ponto em questão em relação aos estudos liberais é se eles fazem os homens bons; mas eles nem professam ou visam o conhecimento desse assunto em particular.

3. O intelectual[2] se ocupa com investigações sobre o idioma, e se for seu desejo de ir mais longe, ele trabalha na história ou, se ele estender seu alcance para os limites mais distantes, sobre a poesia. Mas qual destes abre caminho à virtude? Pronunciando sílabas, investigando palavras, memorizando peças, ou fazendo regras para o exame crítico da poesia, o que existe em tudo isso que livra alguém do medo, refreia o desejo ou elimina as paixões?

4. A questão é: tais homens ensinam a virtude, ou não? Se eles não ensinam, então nem sequer a transmitem. Se ensinam, são filósofos. Gostaria de saber como aconteceu que eles não tomaram a cátedra com o propósito de ensinar a virtude? Veja como é diferente de seus assuntos; e, no entanto, seus assuntos se assemelhariam se ensinassem a mesma coisa[3].

5. Pode ser, talvez, que eles façam você acreditar que Homero era um filósofo[4], embora refutem isso pelos argumentos através dos quais procuram provar isso. Pois às vezes fazem dele um estoico, que não aprova nada além de virtude, evita prazeres e se recusa a renunciar à honra mesmo ao preço da imortalidade[5]; às vezes o fazem um epicurista, louvando a condição de um estado de repouso, que passa seus dias em festa e canção[6]; às vezes um peripatético, classificando o bem de três maneiras[7]; às vezes um Acadêmico, afirmando que todas as coisas são incertas. É claro, no entanto, que nenhuma dessas doutrinas deve ser concebida sobre Homero, só porque estão todas lá; pois são irreconciliáveis umas com as outras. Podemos admitir a esses homens, de fato, que Homero era um filósofo; ainda assim ele se tornou um homem sábio antes de ter algum conhecimento de poesia. Então, vamos aprender as coisas particulares que fizeram Homero sábio.

6. Não é mais importante, claro, que eu investigue se Homero ou Hesíodo era o poeta mais velho, do que saber por que Hécuba[8], embora mais jovem do que Helena, mostrou seus anos tão lamentavelmente. O que, na sua opinião, eu pergunto, seria o ponto em tentar determinar as respectivas idades de Aquiles e Patroclos[9]?

7. Você levanta a questão: “Por quais regiões Ulysses se extraviou?” Em vez de tentar evitar que nos desviemos a todo momento? Não temos tempo para ouvir palestras sobre a questão de saber se ele se mantinha no mar entre a Itália e a Sicília, ou fora do nosso mundo conhecido (de fato, uma peregrinação tão longa não poderia ter ocorrido dentro de limites tão estreitos); Nós nos encontramos com tempestades do espírito, que nos perturbam diariamente, e nossa depravação nos leva a todos os males que perturbavam Ulysses. Para nós nunca falta a beleza para tentar nossos olhos, ou o inimigo para nos assaltar; desse lado estão monstros selvagens que se deleitam com o sangue humano, daquele lado os traiçoeiros encantos de orelha, e acolá está o naufrágio e toda variada categoria de infortúnios. Mostre-me, pelo exemplo de Ulysses, como eu amo meu país, minha esposa, meu pai e como, mesmo depois de sofrer um naufrágio, eu poderei singrar na via da honestidade.

8. Por que tentar descobrir se Penélope era um padrão de pureza, ou se ela era motivo de risada de seus contemporâneos? Ou se ela suspeitava que o homem em sua presença era Ulysses, antes que ela soubesse que era ele? Ensine-me, em vez disso, o que é a pureza e quão grande é o bem que temos nela e se está situada no corpo ou na alma.

9. Agora vou transferir minha atenção para o músico. Você, senhor, está me ensinando como os agudos e os graves estão de acordo um com o outro e como, embora as cordas produzam notas diferentes, o resultado é uma harmonia; em vez disso, coloque a minha alma em harmonia consigo mesmo, e não permita que meus propósitos estejam fora de sintonia. Você está me mostrando quais são as teclas lúgubres; mostre-me um pouco como, no meio da adversidade, eu posso evitar de pronunciar uma nota lúgubre.

10. O matemático ensina-me a definir as dimensões dos meus imóveis; mas eu prefiro aprender como descrever o que é suficiente para um homem possuir. Ele me ensina a contar, e adapta meus dedos para a avareza; mas eu deveria preferir que ele me ensine que não há nenhum sentido em tais cálculos, e alguém não é o mais feliz por cansar os contadores com seus bens – ou melhor, como é inútil a propriedade de qualquer homem que acharia a maior desgraça se fosse obrigado a calcular, por sua própria inteligência, o valor de suas participações.

11. O que é proveitoso para mim em saber como lotear um terreno, se eu não sei como dividi-lo com meu irmão? O que há de bom em calcular em minúcia as dimensões de um acre e na detecção do erro se uma pequena parte tiver escapado da minha régua de medição, se eu fico amargurado quando um vizinho mal-intencionado simplesmente arranca um pouco de minha terra? O matemático me ensina como eu não posso perder meus limites; no entanto, eu procuro aprender a perder todos com um coração leve.

12. “Mas”, vem a resposta: “Estou sendo expulso da fazenda que meu pai e meu avô foram donos!” Sim! Quem possuía a terra antes de seu avô? Você pode explicar que pessoas (eu não direi que pessoa) a mantinha originalmente? Você não entrou como proprietário, mas apenas como inquilino. E quem é seu inquilino? Se sua reivindicação for bem-sucedida, você é inquilino do herdeiro. Os juristas dizem que a propriedade pública não pode ser adquirida por particular por usucapião; ao que você se apega e chama de seu é propriedade pública – na verdade, ela pertence à humanidade em geral.

13. Oh, que habilidade maravilhosa! Você sabe como medir o círculo; você encontra a área de qualquer forma que esteja desenhada a sua frente; você calcula as distâncias entre as estrelas; não há nada que não chegue ao alcance de seus cálculos. Mas se você é um verdadeiro mestre de sua profissão, meça a mente do homem! Diga-me o quão grande é, ou o quão insignificante! Você sabe o que é uma linha reta; Mas como isso lhe beneficia se não sabe o que é reto na nossa vida?

14. Vamos agora para aquela pessoa que se vangloria de seu conhecimento dos corpos celestes, aquele que sabe

Aonde a esmerada estrela de Saturno esconde, E através de qual órbita Mercúrio se afasta.Frigida Saturni sese quo stella receptet, Quos ignis caeli Cyllenius erret in orbes.[10]

De que benefício será saber isso? Para que eu seja perturbado porque Saturno e Marte estão em oposição, ou quando Mercúrio se instala ao fim da tarde em vista de Saturno, ao invés de aprender que essas estrelas, onde quer que estejam, são benignas[11] e que não estão sujeitas a mudanças?

15. Elas são conduzidas por um ciclo infinito de destino, num curso do qual elas não podem se desviar. Elas retornam nas estações indicadas; elas se iniciam, ou marcam os intervalos do trabalho de todo o mundo. Mas se elas são responsáveis pelo que quer que aconteça, como isso ajudará você a conhecer os segredos do imutável? Ou se elas apenas dão indicações, o que há de bom em prever o que você não pode escapar? Se você conhece essas coisas ou não, elas acontecerão.

16. Veja o sol fugaz,

Se reparar as estrelas que seguem em seu trem, Nunca o amanhã nunca me engana, Ou é enganado por noites serenas.Si vero solem ad rapidum stellasque sequentes Ordine respicies, numquam te crastina fallet Hora nec insidiis noctis capiere serenae.[12]

Contudo, foi suficientemente e totalmente estabelecido que eu esteja a salvo de qualquer coisa que possa me enganar.

17. “O que”, você diz, “o amanhã nunca me enganará. O que acontece sem o meu conhecimento me deixa enganado.” Eu, pela minha parte, não sei o que será, mas sei o que pode acontecer. Não terei desconfiança sobre este assunto; aguardo o futuro na sua totalidade; e se houver qualquer redução em sua gravidade, eu aproveito ao máximo. Se o dia seguinte me tratar gentilmente, é uma espécie de decepção; mas não me engana mesmo nisso. Pois eu sei que todas as coisas podem acontecer, então eu sei, também, que elas não acontecerão em todos os casos. Estou pronto para eventos favoráveis, mas estou preparado para o pior.

18. Nesta discussão você deve me suportar se não seguir o curso normal. Pois não aceito admitir a pintura na lista de artes liberais, não mais do que escultura, marmoraria e outras ajudas para o luxo. Também excluo dos estudos liberais a luta livre e todo conhecimento que é composto de óleo e lama; caso contrário, eu seria compelido a admitir perfumistas também, e cozinheiros, e todos os outros que prestam sua inteligência ao serviço de nossos prazeres.

19. Qual elemento “liberal” existe nesses tomadores de eméticos[13] vorazes, cujos corpos são alimentados a gordura enquanto suas mentes são magras e estúpidas? Ou acreditamos realmente que o treinamento que eles dão é “liberal” para os jovens de Roma, que costumavam ser ensinados pelos nossos antepassados a ficarem retos e a arremessar um dardo, a empunhar uma lança, a guiar um cavalo e a lidar com armas? Nossos antepassados costumavam ensinar a seus filhos nada que pudesse ser aprendido enquanto em repouso. Mas nem o novo sistema nem o antigo ensina ou nutre a virtude. Por que qual bem nos faz montar um cavalo e controlar sua velocidade com a guia, e depois descobrir que nossas próprias paixões, totalmente descontroladas, se aferram a nós? Ou vencer muitos oponentes em luta ou boxe, e depois descobrir que nós mesmos somos espancados pela raiva?

20. “O que, então,” você diz, “os estudos liberais não contribuem com nosso bem-estar?” Muito em outros aspectos, mas nada em termos de virtude. Pois mesmo essas artes das quais eu falei, embora reconhecidamente de baixo grau – dependendo do trabalho feito – contribuem grandemente para a aparelhagem da vida, mas, no entanto, não têm nada a ver com a virtude. E se você perguntar: “Por que, então, educamos nossos filhos nos estudos liberais?” Não é porque eles podem conferir virtude, mas porque preparam a alma para receber a virtude. Assim com esse “curso primário”, como os anciãos o chamavam, na gramática, que dá aos meninos o seu treinamento elementar, não lhes ensina as artes liberais, mas prepara o terreno para a aquisição precoce dessas artes, então as artes liberais não conduzem a alma até a virtude, mas simplesmente aponta naquela direção.

21. Posidônio divide as artes em quatro classes: primeiro temos as que são comuns e baixas, então as que servem para diversão, depois as que se referem à educação dos meninos e, finalmente, às artes liberais. O tipo comum pertence aos trabalhadores e são meros trabalhos manuais; elas estão preocupadas em equipar a vida; não há pretensões de beleza ou honra.

22. As artes da diversão são aquelas que visam agradar os olhos e ouvidos. Para esta classe, você pode atribuir os engenheiros de palco, que inventam andaimes que se vão por conta própria, ou pisos que se elevam silenciosamente no ar e muitos outros dispositivos surpreendentes, como quando os objetos que se encaixam, depois se desmontam ou objetos que são separados, em seguida, juntam-se automaticamente, ou objetos que ficam eretos, em seguida, colapsam gradualmente. O olho dos inexperientes é surpreendido por essas coisas; pois tais pessoas se maravilham com tudo o que ocorre sem aviso prévio, porque elas não conhecem as causas.

23. As artes que pertencem à educação dos meninos, e são algo similar às artes liberais, são aquelas que os gregos chamam de “ciclo de estudos”, mas que nós, romanos, chamamos de “liberal[14]”. No entanto, as únicas que realmente são liberais – ou melhor, para dar-lhes um nome mais verdadeiro, “livre” – são aquelas cuja preocupação é a virtude.

24. “Mas,” dizemos, “assim como há uma parte da filosofia que tem a ver com a natureza, e uma parte que tem a ver com a ética, e uma parte que tem que ver com o raciocínio, então esse grupo de artes liberais também reivindicam por si mesmo um lugar na filosofia. Quando se aborda questões que lidam com a natureza, uma decisão é alcançada por meio de uma palavra do matemático. Portanto, a matemática é um departamento desse ramo que auxilia”.

25. Mas muitas coisas nos ajudam e ainda não são partes de nós mesmos. Não, se fossem, elas não nos ajudariam. A comida é um auxílio para o corpo, mas não é parte dele. Recebemos alguma ajuda do serviço que a matemática faz; e a matemática é tão indispensável para a filosofia quanto o carpinteiro é para o matemático. Mas o carpinteiro não faz parte da matemática, nem a matemática é parte da filosofia.

26. Além disso, cada um tem seus próprios limites; pois o sábio investiga e aprende as causas dos fenômenos naturais, enquanto o matemático segue e calcula seus números e suas medidas. O homem sábio conhece as leis pelas quais os corpos celestes persistem, quais poderes lhes pertencem e quais atributos; O astrônomo observa apenas as suas idas e vindas, as regras que regem seus nasceres e poentes, e os períodos ocasionais durante os quais parecem ficar imóveis, embora, de fato, nenhum corpo celestial possa ficar quieto.

27. O sábio saberá o que causa a reflexão no espelho; mas, o matemático pode simplesmente dizer-lhe o quão longe o corpo deve estar da reflexão, e que forma de espelho produzirá uma reflexão dada. O filósofo irá demonstrar que o Sol é um corpo grande, enquanto o astrônomo calcula o quão grande, progredindo no conhecimento por seu método de tentativa e experimentação; mas, para progredir, deve convocar certos princípios para ajudar. Nenhuma arte, no entanto, é suficiente para si mesmo, se o fundamento sobre o qual ela se baseia depende de um simples favor.

28. Agora a filosofia não pede favores de nenhuma outra fonte; ela constrói tudo em seu próprio solo; mas a ciência dos números é, por assim dizer, uma estrutura construída sobre a terra de outro homem – ela se baseia em tudo sobre o solo alheio[15]; aceita os primeiros princípios, e por seu favor chega a conclusões adicionais. Se pudesse marchar sem ajuda para a verdade, se pudesse entender a natureza do universo, devo dizer que isso proporcionaria muita ajuda às nossas mentes; pois a mente cresce pelo contato com as coisas celestiais e desenha em si algo de elevado. Há apenas uma coisa que traz a alma à perfeição – o conhecimento inalterável do bem e do mal. Mas não há outra arte que investigue o bem e o mal. Gostaria de passar em revista as várias virtudes.

29. A bravura é um escarnecedor de coisas que inspiram o medo; olha de cima, desafia e esmaga os poderes do terror e tudo que levaria nossa liberdade sob o jugo. Mas os “estudos liberais” fortalecem essa virtude? A lealdade é o bem mais sagrado do coração humano; é impossível ser forçada a traição, e é subornada por nenhuma recompensa. A lealdade clama: “Queime-me, mate-me, destrua-me! Não vou trair a minha confiança, e quanto mais a tortura procurar encontrar o segredo, mais profundo no meu coração, eu o enterrarei!” As “artes liberais” podem produzir esse espírito dentro de nós? Temperança controla nossos desejos; alguns odeia e espanta, outros rege e restaura a uma medida saudável, nem se aproxima de nossos desejos por seu próprio interesse. Temperança sabe que a melhor medida dos apetites não é o que você quer tomar, mas o que você deve tomar.

30. A bondade proíbe que você sobrecarregue seus associados, e ela proíbe que você seja prepotente. Em palavras e em ações e em sentimentos, ela se mostra gentil e atenciosa com todos os homens. Não contabiliza nenhum mal como outro apenas. E a razão pela qual ela ama o seu bem próprio é principalmente porque algum dia será o bem de outro. Os “estudos liberais” ensinam um caráter desse? Não; Não mais do que ensinam simplicidade, moderação e autocontrole, frugalidade e economia, e essa bondade que poupa a vida de um vizinho como se fosse própria e sabe que não é correto o homem desperdiçar o uso de seus semelhantes.

31. “Mas,” diz-se, “porque você declara que a virtude não pode ser alcançada sem os ‘estudos liberais’, como é que você nega que eles ofereçam alguma ajuda à virtude?” Porque você também não pode alcançar a virtude sem comida; e, no entanto, a comida não tem nada a ver com a virtude. A madeira não oferece assistência a um navio, embora um navio não possa ser construído sem madeira. Não há razão, eu digo, para que você pense que qualquer coisa é feita com a assistência daquilo com a qual não possa ser feita.

32. Podemos até mesmo afirmar que é possível alcançar a sabedoria sem os “estudos liberais”; pois, embora a virtude seja uma coisa que deva ser aprendida, não é aprendida por meio desses estudos. Que motivo tenho, no entanto, para supor que alguém que ignore as letras nunca será um homem sábio, já que a sabedoria não pode ser encontrada em letras? A sabedoria comunica fatos e não palavras; e pode ser verdade que a memória é mais confiável quando não tem suporte externo.

33. A sabedoria é uma coisa grande e espaçosa. É necessário muito espaço livre. É preciso aprender sobre coisas divinas e humanas, o passado e o futuro, o efêmero e o eterno; e é preciso aprender sobre o tempo. Veja quantas questões surgem somente sobre o tempo: em primeiro lugar, se é algo em si e por si só; em segundo lugar, se existe alguma coisa antes do tempo ou sem o tempo; e novamente, o tempo começou com o universo, ou, porque havia algo antes do início do universo, o tempo também já existia?

34. Há inúmeras questões sobre a alma: de onde vem, qual é a sua natureza, quando começa a existir e quanto tempo existe; se ela passa de um lugar para outro e muda sua habitação, sendo transferida sucessivamente de uma forma de animal para outra, ou se é escrava apenas uma vez, vagando pelo universo depois que é liberada; seja ela corpórea ou não; o que será dela quando deixar de nos usar como meio; como usará sua liberdade quando escapar da presente prisão; se esquecerá todo o seu passado, e nesse momento começa a se conhecer quando, liberada do corpo, se retira para o céu.

35. Assim, seja qual for a fase das coisas humanas e divinas que você tenha apreendido, você ficará cansado pelo grande número de coisas a serem respondidas e coisas a serem aprendidas. E para que esses sujeitos múltiplos e poderosos possam ter entretenimento gratuito em sua alma, você deve remover de lá todas as coisas supérfluas. A virtude não se renderá a esses limites estreitos; um grande assunto precisa de um amplo espaço para se mover. Deixe que todas as outras coisas sejam expulsas, e deixe o peito ser esvaziado para receber a virtude.

36. “Mas é um prazer estar familiarizado com muitas artes”. Portanto, deixe-nos manter apenas o essencial delas. Você considera culpado, o homem que coloca as coisas supérfluas no mesmo pé das coisas úteis, e em sua casa faz uma exibição pródiga de objetos caros, mas não considera errado quem se permitiu absorver o mobiliário do aprendizado inútil? Esse desejo de saber mais do que o suficiente é uma espécie de intemperança.

37. Por quê? Como essa busca indecorosa das artes liberais torna os homens maçantes, prolixos, sem tato, chatos auto-satisfeitos, que não conseguem aprender o essencial apenas porque aprenderam o não essencial. Dídimo Calcêntero[16], o erudito, escreveu quatro mil livros. Eu deveria sentir pena por ele se ele tivesse lido apenas o mesmo número de volumes supérfluos. Nesses livros, ele investiga o local de nascimento de Homero, quem era realmente a mãe de Eneias, se Anacreonte era mais um libertino ou mais um bêbado, se Safo era uma prostituta e outros problemas, as respostas para as quais, se encontradas, eram imediatamente esquecidas. Convenhamos, não me diga que a vida é longa!

38. Não, quando você considera nossos próprios compatriotas também, posso mostrar-lhe muitas obras que deveriam ser cortadas com o machado. É o custo de um vasto gasto de tempo e de grande desconforto para os ouvidos dos outros que ganhamos tanto elogio como este: “Que homem culto você é!” Deixe-nos contentar com esta recomendação, menos urbana que seja: “Que homem bom você é!

39. Quero realmente dizer isso? Bem, você teria que desenrolar os anais da história do mundo e tentar descobrir quem primeiro escreveu poesia. Ou, na ausência de registros escritos, devo fazer uma estimativa do número de anos entre Orfeu e Homero? Ou devo fazer um estudo sobre as escritas absurdas de Aristarco[17], onde ele plagiou o texto dos versos de outros homens e gastar minha vida nas sílabas? Deveria então revestir-me na poeira dos geómetras[18]? Até agora esqueci essa serra útil? Economizei seu tempo? Preciso saber essas coisas? E o que posso escolher para não saber?

40. Apião, o erudito, que atraiu multidões para suas palestras em toda a Grécia nos dias de Caio César e foi aclamado homérico por todos os estados, costumava defender que Homero, quando terminou seus dois poemas, a Ilíada e a Odisseia, acrescentou um poema preliminar ao seu trabalho, onde abraçou toda a guerra de Tróia. O argumento que Apião aduziu para provar esta afirmação foi que Homero introduziu intencionalmente na primeira linha duas letras que continham uma chave para o número de seus livros.

41. Um homem que deseja saber muitas coisas deve conhecer coisas como essas, e não deve pensar em todo o tempo que perde por saúde, deveres públicos, deveres privados, deveres diários e sono. Aplique a régua aos anos de sua vida; eles não têm espaço para todas essas coisas.

42. Tenho falado até agora de estudos liberais; mas pense quanto de matéria supérflua e pouco prática que os filósofos contêm! Por sua própria conta, eles também se rebaixam para estabelecer boas divisões de sílabas, para determinar o verdadeiro significado de conjunções e preposições; eles têm inveja dos estudiosos, inveja dos matemáticos. Eles passaram a usar em sua própria arte todas as superfluidades dessas outras artes; o resultado é que eles sabem mais sobre falar meticulosamente do que sobre uma vida meticulosa.

43. Deixe-me dizer-lhe quais males são devidos a uma exagerada exatidão, e que inimigo é da verdade! Protágoras declara que se pode tomar qualquer lado em qualquer questão e debatê-la com igual sucesso – mesmo nesta nossa questão, que qualquer assunto pode ser debatido de qualquer ponto de vista. Nausífanes[19] sustenta que, nas coisas que parecem existir, não há diferença entre existência e não-existência.

44. Parmênides sustenta que nada existe de tudo isso que parece existir, exceto o universo exclusivamente. Zenão de Eleia removeu todas as dificuldades removendo uma; pois ele declara que não existe nada. As escolas Pirrônica[20], Megárica[21], Eretrian[22] e Acadêmica estão empenhadas praticamente na mesma tarefa; elas introduziram um novo conhecimento, o não-conhecimento.

45. Você pode varrer todas essas teorias com as tropas supérfluas de estudos “liberais”; uma classe de homens me dá um conhecimento que não servirá de nada, a outra classe acabou com qualquer esperança de alcançar o conhecimento. É melhor, é claro, conhecer coisas inúteis do que não saber nada. Um conjunto de filósofos não oferece luz para que eu possa dirigir meu olhar para a verdade; o outro arranca meus próprios olhos e me deixa cego. Se eu seguir Protágoras, não há nada no esquema da natureza que não seja duvidoso; se eu me segurar com Nausífanes, tenho certeza apenas disso – de que tudo é incerto; se com Parmênides, não há nada exceto o Um; se com Zenão, não existe nem o Um.

46. O que somos, então? O que se torna de todas essas coisas que nos cercam, nos apoiam, nos sustentam? O universo inteiro é então uma sombra vã ou enganosa. Não posso prontamente dizer se estou mais contrariado com aqueles que querem que não conheçamos nada, ou com aqueles que não nos deixariam até mesmo esse privilégio.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] O círculo regular de educação, incluindo gramatica, música, geometria, aritmética, astrologia e certas fases de retórica e dialética, é colocado em contraste com estudos liberais – aqueles que têm como objeto a busca da virtude. Sêneca interpreta “studia liberalia” em um senso superior do que o esperado por seu contemporâneo.

[2] Grammaticus em grego clássico significa “um que está familiarizado com o alfabeto”; na era de Alexandre, um “aluno da literatura”; na era romana o equivalente a litteratus. Sêneca usa aqui como “especialista em ciência linguística”.

[3] Ou seja, a filosofia.

[4] Esta teoria foi aprovada por Demócrito, Hípias de Élis e os intérpretes alegóricos; Xenófanes, Heráclito e Platão condenaram Homero por suas supostas fabricações não filosóficas.

[5] Referência ao episódio em que Calipso oferece a Ulisses a imortalidade, que o herói rejeita. Ver (Odisseia, V, 206

[6] A ilha de Calipso seria um verdadeiro “jardim de Epicuro” (Odisseia, V, 63.); assim como a vida no palácio de Alcínoco (Odisseia, IX, 5.)

[7] “tripartição dos bens” é mencionada em Ilíada, XXIV, 376-7: entre bens do corpo, bens do espírito e bens externos.

[8] Hécuba, na mitologia grega e romana, é mulher de Príamo e mãe de dezenove filhos, entre os quais se contam Heitor, Páris e Cassandra.

[9] Patroclos ou Pátroklos (em grego: Πάτροκλος, “glória do pai”) é um dos personagens centrais da Ilíada, primo e às vezes considerado amante de Aquiles.

[10] Trecho de Georgicas, v. I, de Virgílio.

[11] Saturno e Marte eram consideradas estrelas desafortunadas. Astrologia, que remonta além de 3000 aC. na Babilônia, foi desenvolvida pelos gregos da era de Alexandre e conseguiu um ponto de apoio em Roma, floresceu no século II aC.

[12] Trecho de Georgicas, v. I, de Virgílio. “ignis caeli Cyllenius” é o planeta Mercúrio.

[13] Medicamento usado para provocar o vômito. Os eméticos servem para que o estômago se livre de venenos ou de alimentos que o estejam irritando. Eram usados após banquetes em Roma.

[14] Referidas por Sêneca no início da carta, ou seja, gramática, música, matemática e astronomia.

[15] De acordo com o direito romano, superficies solo cedit, “o prédio vai com o solo”.

[16] Dídimo Calcêntero ou Dídimo de Alexandria (em grego: Διδύμος χαλκέντερος) foi um gramático grego que viveu em Alexandria. Junto a outros quatro gramáticos de Alexandria, nomeadamente Aristônico, Seleuco e Filoxeno, dedicou-se ao estudo dos textos de Homero.

[17] Aristarco da Samotrácia (falecido ca. 144 a.C.) foi um gramático e filólogo Grécia Antiga, pertencente à escola alexandrina, O mais célebre dos seus gramáticos alexandrinos, autor de edições famosas de Homero, Hesíodo e outros poetas.

[18] Os geómetras resolviam os seus problemas desenhando numa superfície coberta de areia as figuras que estudavam

[19] Nausífanes (c. 325 a.C.), nativo de Téos, era ligado à filosofia de Demócrito e seguidor de Pirro de ÉlisTinha um grande número de seguidores, e foi particularmente famoso como retórico. Epicuro foi um dos seus ouvintes, mas insatisfeito com ele, teve uma posição hostil nos seus escritos.

[20] Pirronismo também conhecido como ceticismo pirrônico, foi uma tradição da corrente filosófica do ceticismo fundada por Enesidemo de Cnossos no século I d.C., e registrada por Sexto Empírico no século III. Toma o seu nome de Pirro de Élis, um cético que viveu cerca de 360 a 270 a.C. “Nada pode ser conhecido, nem mesmo isto”.

[21] Escola Megárica foi uma escola filosófica fundada por Euclides de Mégara, combinava as teorias do eleatas e dos socráticos.

[22] A escola de filosofia Eretriana era originalmente Escola de Elis, onde havia sido fundada por Fédon de Elis; Foi posteriormente transferida para Eretria por seu aluno Menedemus.

Carta 85: Sobre Silogismos Vazios

A carta 85 é longa, mas muito interessante e de difícil redução. Vale a pena ser lida integralmente. Responde ao pedido de Lucílio por explicações de silogismos da escola estoica e daqueles usados pelos oponentes. Sêneca reclama que não tem prazer ou vê utilidade nisso, e diz que “o resultado será um livro, em vez de uma carta!” (E com razão, a carta ficou com 41 parágrafos.)

Em resumo, trata-se de uma oposição à doutrina aristotélica do meio-termo também conhecida como “média áurea“. Esta doutrina dos peripatéticos defende que a felicidade seria atingida no meio termo desejável entre dois extremos, um de excesso e outro de deficiência. Sêneca discorda e afirma:

Eles não eliminam as paixões; eles apenas as moderam. Mas quão insignificante é a superioridade que atribuímos ao homem sábio, se ele é apenas mais corajoso do que o mais covarde, mais feliz do que o mais abatido, mais autocontrolado do que o mais desenfreado, e maior do que o mais baixo!” (LXXXV, 4)

Descreve e argumenta porque a escola estoica discorda dos seguidores de Artistóteles e aborda a firmeza de caráter do sábio estoico, assunto explorado em profundidade em “Sobre a Constância do Sábio“. A carta é concluída com um memorável parágrafo:

“Não era só de marfim que Fídias sabia fazer estátuas; ele também fez estátuas de bronze. Se você tivesse lhe dado mármore, ou um material ainda pior, ele teria feito dele a melhor estátua que o material permitiria. Assim, o sábio desenvolverá a virtude, se puder, no meio da riqueza ou, se não, no meio da pobreza; se possível, no seu próprio país – se não, no exílio; Se possível, como comandante – se não, como um soldado comum; se possível, em boa saúde – se não, enfraquecido.” (LVVVX, 40)

Imagem: Mural mostrando Aristóteles e Seus Discípulos. Universidade Nacional Kapodistriana de Atenas por Eduard Lebiedzki


LXXXV. Sobre Silogismos Vazios

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu estava inclinado a poupar você, e omitir qualquer problema intricado que ainda não tínhamos discutido; fiquei satisfeito em dar-lhe uma espécie de gosto das opiniões dos homens de nossa escola, que desejam provar que a virtude é por si só suficientemente capaz de obter a vida feliz. Mas agora você me mandou incluir todo o volume de nossos próprios silogismos ou daqueles que foram imaginados por outras escolas com a finalidade de nos menosprezar. Se eu estiver disposto a fazer isso, o resultado será um livro, em vez de uma carta! E declaro repetidas vezes que não tenho prazer em tais provas. Tenho vergonha de entrar na arena e empreender a batalha em nome dos deuses e dos homens armados apenas com uma sovela[1].

2. “Aquele que possui prudência é também contido, o que possui autocontenção também é inabalável, o inabalável é imperturbável, o imperturbável está livre da tristeza, o que está livre da tristeza é feliz. Portanto, o prudente é feliz, e a prudência é suficiente para constituir a vida feliz“.

3. Alguns dos peripatéticos[2] respondem a este silogismo interpretando “imperturbável”, “inabalável” e “livre da tristeza” de modo a tornar “imperturbável” quem raramente é perturbado e apenas um tanto moderado, e não aquele que nunca é perturbado. Da mesma forma, eles dizem que uma pessoa é dita “livre da tristeza” quando não está sujeita à tristeza, uma pessoa que raramente cai nesse estado censurável, e em um grau não muito grande. Não é, dizem eles, o natural humano que o espírito de um homem deva ser isento de tristeza, ou que o sábio não seja dominado pelo sofrimento, mas é apenas tocado por ele, e outros argumentos deste tipo, tudo de acordo com os ensinamentos de sua escola.

4. Eles não eliminam as paixões; eles apenas as moderam. Mas quão insignificante é a superioridade que atribuímos ao homem sábio, se ele é apenas mais corajoso do que o mais covarde, mais feliz do que o mais abatido, mais autocontrolado do que o mais desenfreado, e maior do que o mais baixo! Teria Ladas[3] orgulho de sua rapidez em correr, comparando-se com os coxos e os fracos?

Ela conseguia voar sobre a ponta das espigas de uma seara vi-rente sem na corrida atingir os tenros grãos; ou percorrer, suspensa, as grossas ondas do mar encapelado sem salpicar sequer os pés velozesIlla vel intactae segetis per summa volaret Gramina nec cursu teneras laesisset aristas, Vel mare per medium fluctu suspensa tumenti Ferret iter celeres nec tingueret aequore plantas.[4]

Esta é a velocidade estimada pelo seu próprio padrão, não do tipo que ganha elogios em comparação com o que é mais lento. Você chamaria de saudável um homem que tem um caso leve de febre? Não, pois uma boa saúde não significa doença moderada.

5. Dizem os peripatéticos: “O sábio é chamado imperturbável no sentido em que as romãs são chamadas maduras – não que não haja dureza em todas as suas sementes, mas que a dureza é menor do que era antes“. Essa visão é errada; pois não me refiro à eliminação gradual dos males em um homem bom, mas à completa ausência de males; não deveria haver nele nenhum mal, nem mesmo pequenos. Pois, se houver, crescerão e, à medida que crescerem, o estorvará. Assim como uma catarata completa cega totalmente os olhos, uma catarata de tamanho médio entorpece a visão.

6. Se por sua definição o homem sábio tem quaisquer paixões, sua razão não será nenhum adversário para elas e será carregada rapidamente, por assim dizer, em um córrego agitado. Particularmente se você atribuir a ele, não uma paixão contra qual deva lutar, mas todas as paixões. E uma multidão de tais, embora moderadas, podem afetá-lo mais do que a violência de uma poderosa paixão.

7. O sábio deles tem um desejo por dinheiro, embora em um grau moderado. Ele tem ambição, mas ainda não está totalmente despertada. Ele tem um temperamento quente, mas pode ser apaziguado. Ele tem inconstância, mas não o tipo que é muito caprichosa ou facilmente posta em movimento. Ele tem luxúria, mas não o tipo violento. Poderíamos lidar melhor com uma pessoa que possua um único vício pleno, do que com alguém que possua todos os vícios, mas nenhum deles em forma extrema.

8. Novamente, não faz diferença a grandeza da paixão; não importa qual seu tamanho possa ser, não reconhece nenhuma obediência, e não dá boas-vindas ao conselho. Assim como nenhum animal, selvagem ou domesticado, obedece à razão, já que natureza os fez surdos ao conselho; assim as paixões não seguem nem escutam, por mais que sejam moderadas. Tigres e leões nunca adiam a sua selvageria; eles às vezes a moderam, e então, quando você está menos preparado, sua ferocidade adormecida é despertada para a loucura. Vícios nunca são domesticados.

9. Novamente, se a razão prevalecer, as paixões nem sequer começarão; mas se elas se encaminharem contra a vontade da razão, elas se manterão contra a vontade da razão. Pois é mais fácil detê-las no começo do que controlá-las quando ganham força. Este meio caminho ( atenuação dos vícios, admitida pelos peripatéticos) é, portanto, enganoso e inútil; deve ser considerado como a declaração de que devemos ser moderadamente insanos ou moderadamente doentes.

10. A só a virtude possui moderação; os males que afligem a alma não admitem moderação. Você pode remove-los mais facilmente do que controlá-los. Pode-se duvidar de que os vícios da mente humana, quando se tornam crônicos e insensíveis (“doenças do espírito” nós os chamamos), estão fora de controle, como, por exemplo, a ganância, a crueldade e a indelicadeza? Portanto, as paixões também estão além do controle; porque é das paixões que passamos aos vícios.

11. Novamente, se você conceder quaisquer privilégios à tristeza, ao medo, ao desejo e a todos os outros impulsos errados, eles deixarão de estar sob nossa jurisdição. E porque? Simplesmente porque os meios de controlá-los estão fora do nosso próprio poder. Consequentemente, aumentarão proporcionalmente à medida que as causas pelas quais são agitados são maiores ou menores. O medo crescerá em proporções maiores, se o que causa o terror é visto como de maior magnitude ou em maior proximidade; e o desejo se tornará cada vez mais intenso na medida em que a esperança de um ganho maior o convoca à ação.

12. Se a existência das paixões não está no nosso próprio controle, nem está também a extensão de seu poder; pois se uma vez permitir que elas comecem, elas aumentarão juntamente com suas causas, e serão de qualquer tamanho que quiserem crescer. Além disso, não importa quão pequenos esses vícios são, eles crescem. O que é prejudicial nunca se mantém dentro dos limites. Não importa quão insignificantes sejam as doenças no começo, elas se arrastam rapidamente; e às vezes o menor aumento da doença derruba o corpo enfraquecido!

13. Mas que loucura é, quando o começo de certas coisas está situado fora de nosso controle, acreditar que seus fins estão sob nosso controle! Como terei eu o poder de trazer algo ao fim, quando eu não tive o poder de interromper isso no começo? Pois é mais fácil evitar uma coisa do que mantê-la sob controle após ela ter se estabelecido.

14. Alguns homens fazem uma distinção, dizendo: “Se um homem tem autocontrole e sabedoria, ele está de fato em paz quanto à atitude e ao hábito de sua mente, mas não quanto ao resultado, pois, no que se refere ao seu hábito mental, ele não está perturbado, triste ou temeroso, mas há muitas causas estranhas que o atingem e trazem perturbação a ele.”

15. O que eles querem dizer é isto: “Fulano não é de fato um homem de disposição irritada, mas ainda assim ele às vezes dá lugar à raiva“, e “ele não está, de fato, inclinado a temer, mas ainda assim às vezes tem medo“; em outras palavras, ele está livre da culpa, mas não está livre da paixão do medo. Se, no entanto, ao medo é dado uma entrada, irá pelo uso frequente passar a um vício; e a raiva, uma vez admitida na mente, irá alterar o hábito anterior de uma mente que antes estava livre de raiva.

16. Além disso, se o homem sábio, ao invés de desprezar todas as causas que vêm de fora, sempre teme alguma coisa, quando chegar o momento de ir bravamente de encontro as lanças ou chamas, em nome de seu país, suas leis, e sua liberdade, ele irá adiante relutantemente e com espírito enfraquecido. Tal inconsistência da alma, no entanto, não se adequa ao caráter de um homem sábio.

17. Então, novamente, devemos fazer com que dois princípios que devam ser demonstrados separadamente não devam ser confundidos. Pois a conclusão é alcançada independentemente de que só o que é bom que é honroso, e novamente independente a conclusão de que a virtude é suficiente para a vida feliz. Se só o que é bom que é honroso, todos concordam que a virtude é suficiente para o propósito de viver felizmente; mas, pelo contrário, se a virtude sozinha faz os homens felizes, não se admite que só o que é bom que é honroso.

18. Xenócrates[5] e Espeusipo[6] afirmam que um homem pode tornar-se feliz mesmo pela virtude sozinha, não, no entanto, que o que é honroso é o único bem[7]. Epicuro também decide que aquele que possui virtude é feliz, mas que a própria virtude não é suficiente para a vida feliz, porque o prazer que resulta da virtude, e não a própria virtude, torna-o feliz. Esta é uma distinção fútil. Pois o mesmo filósofo declara que a virtude nunca existe sem prazer; e portanto, se a virtude está sempre ligada ao prazer e sempre inseparável dela, a virtude é por si só suficiente. Pois a virtude mantém o prazer em sua companhia, e não existe sem ele, mesmo quando está sozinha.

19. Mas é absurdo dizer que um homem será feliz pela virtude sozinha, e ainda não absolutamente feliz. Eu não consigo descobrir como isso pode ser, uma vez que a vida feliz contém em si um bem que é perfeito e não pode ser melhorado, se um homem tem este bem, a vida é completamente feliz. Ora, se a vida dos deuses não contém nada maior ou melhor, e a vida feliz é divina, então não há mais altura para a qual um homem possa ser elevado.

20. Também, se à vida feliz não falta nada, então toda vida feliz é perfeita; é feliz e ao mesmo tempo a mais feliz. Você tem alguma dúvida de que a vida feliz é o Supremo Bem? Consequentemente, se ela possui o Bem Supremo, é supremamente feliz. Assim como o Bem Supremo não admite o aumento (pois o que será superior ao que é supremo?), exatamente assim a vida feliz também não pode ser aumentada; pois não existe sem o Bem Supremo. Se então você apresentar um homem que é “mais feliz” do que outro, você também vai apresentar alguém que é “muito mais feliz”; então você estará fazendo inúmeras distinções no Bem Supremo; embora eu entenda que o Bem Supremo seja aquele bem que não admite nenhum grau acima de si.

21. Se uma pessoa é menos feliz do que outra, segue-se que deseja ansiosamente a vida desse outro homem mais feliz do que a sua. Mas o homem feliz prefere a vida de nenhum outro homem a sua. Qualquer uma dessas duas coisas é incrível: que deva haver qualquer coisa faltando para um homem feliz desejar em preferência ao que é, ou que ele não deva preferir a coisa que é melhor do que o que já tem. Com certeza, quanto mais prudente ele for, tanto mais esforçara-se pelo melhor, e desejará alcançá-lo por todos os meios possíveis. Mas como se pode ser feliz quem ainda é capaz, ou melhor, quem ainda está obrigado a desejar algo mais?

22. Eu lhe direi qual é a origem desse erro: os homens não entendem que a vida feliz é uma unidade; pois é sua essência, e não sua extensão, que estabelece tal vida no mais nobre plano. Daí a completa igualdade entre a vida que é longa e a vida curta, entre aquilo que se estende e o que está confinado, entre aquilo cuja influência é sentida em muitos lugares e em muitas direções, e aquilo que se restringe a um interesse. Aqueles que contam a vida em número, ou por medida, ou por partes, roubam sua qualidade distintiva. Agora, na vida feliz, qual é a qualidade distintiva? É a sua plenitude.

23. Saciedade, penso eu, é o limite para o nosso comer ou beber. A come mais e B come menos; que diferença faz? Cada um está agora saciado. Ou A bebe mais e B bebe menos; que diferença faz? Cada um não está mais sedento, da mesma forma, A vive por muitos anos e B por menos; não importa, se os muitos anos de A trouxeram tanta felicidade quanto os poucos anos de B. Aquele que você diz ser “menos feliz” não é feliz; a palavra não admite nenhuma diminuição.

24. “Quem é valente não conhece o medo; quem não conhece o medo não conhece a tristeza; quem não conhece a tristeza é feliz.”. É a nossa própria escola que fabricou este silogismo; eles tentam refutá-lo com esta resposta, ou seja, que nós estoicos estamos assumindo uma premissa que é falsa e claramente controversa, – que o homem corajoso não sente medo. “O que!” Eles dirão: “Será que o homem corajoso não tem medo dos males que o ameaçam? Esta seria a condição de um louco, um lunático, em vez de um homem corajoso. O homem corajoso, é verdade, sentirá medo em apenas um leve grau, mas ele não está absolutamente livre de medo.”

25. Agora, aqueles que afirmam isso estão voltando a seu antigo argumento, na medida em que consideram os vícios de menor grau como equivalentes às virtudes. Pois, de fato, o homem que sente o medo, embora o sinta raramente e em menor grau, não está livre da maldade, mas está apenas perturbado por ela de uma forma suave. “Não é assim“, é a resposta, “porque eu considero que um homem é louco se ele não tem medo de males que pairam sobre sua cabeça.” O que você diz é perfeitamente verdadeiro, se as coisas que ameaçam são realmente males; mas se ele sabe que não são males e acredita que o único mal é a imoralidade, ele será compelido a enfrentar perigos sem ansiedade e desprezar as coisas que outros homens não podem deixar de temer. Ou, se é a característica de um tolo e um louco não temer males, então quanto mais sábio um homem for mais temerá tais coisas!

26. “É a doutrina de vocês estoicos, então,” eles respondem, “que um homem corajoso se exponha a perigos.” De jeito nenhum; ele simplesmente não os temerá, embora os evite. É bom para ele ter cuidado, mas não ter medo. “E então, não temerá a morte, o aprisionamento, o fogo, e todos os outros ataques da Fortuna?” De modo nenhum; pois ele sabe que eles não são males, mas só parecem ser. Ele considera todas essas coisas como espantalhos para assustar os homens.

27. Trace um quadro de escravidão, chicotes, correntes, carestia, mutilação por doença ou por tortura – ou qualquer outra coisa que possa querer mencionar; ele contará todas essas coisas como terrores causados pelo desarranjo da alma. Essas coisas só devem ser temidas por medrosos. Ou você considera como um mal algo que um dia poderemos ser obrigados a recorrer de nossa livre e espontânea vontade?

28. O que então, você pergunta, é um mal? É a submissão às coisas que se chamam males; é a entrega da própria liberdade ao seu controle, quando realmente devemos sofrer todas as coisas para preservar essa liberdade. A liberdade está perdida a menos que desprezemos as coisas que colocam o jugo[8] nos nossos pescoços. Se os homens soubessem o que é a bravura, eles não teriam dúvidas quanto ao que a conduta de um homem corajoso deveria ser. Pois a bravura não é imprudência, ou amor ao perigo, ou o cortejo de objetos inspiradores do medo; é o conhecimento que nos permite distinguir entre o que é o mal e o que não o é[9]. A bravura cuida de si mesmo, e também atura com a maior paciência todas as coisas que têm uma falsa aparência de serem más.

29. “O que então?” É a questão: “Se a espada é brandida sobre o pescoço do seu corajoso, se ele é perfurado neste lugar, se ele vê suas entranhas no colo, se ele for torturado novamente depois de ter descansado para que possa sentir a tortura com mais intensidade, e se o sangue corre novamente de seu intestino, onde há pouco deixou de fluir, ele não terá medo? Você diz que ele também não sente nenhuma dor?” Sim, ele sente dor; pois nenhuma virtude humana pode se livrar de sentidos. Mas ele não tem medo; sem abalo ele olha a baixo de uma altura elevada sobre seus sofrimentos. Você me pergunta que espírito o anima nessas circunstâncias? É o espírito de alguém que está confortando um amigo doente.

30. “Aquilo que é mau prejudica, o que prejudica piora o homem, mas a dor e a pobreza não pioram o homem, por isso não são males“. “Sua proposição,” diz o objetor, “é errada, pois o que prejudica não necessariamente faz alguém pior, a tempestade e a tormenta prejudicam o piloto, mas não fazem dele um piloto pior.”

31. Alguns estoicos respondem a este argumento da seguinte maneira: “O piloto torna-se um piloto pior por causa de tempestades ou rajadas, na medida em que não consegue cumprir o seu propósito e manter-se em seu curso; não se torna um piloto pior, mas em seu trabalho ele piora“. A isto, os peripatéticos retrucam: “Por isso, a pobreza tornará pior até mesmo o homem sábio, e assim também a dor, assim como qualquer outra coisa semelhante, pois, embora essas coisas não o roubem de sua virtude, elas irão prejudicar o trabalho da virtude“.

32. Esta seria uma afirmação correta, não fosse pelo fato de que o piloto e o sábio são dois tipos diferentes de pessoa. O propósito do homem sábio na condução de sua vida não é concluir todos os perigos que prova, mas fazer todas as coisas corretamente; O propósito do piloto, no entanto, é levar seu navio para o porto em todos os perigos. As artes são servas; elas devem realizar o que prometem fazer. Mas a sabedoria é senhora e governante. As artes rendem o serviço de escravo à vida; a sabedoria emite os comandos!

33. Para mim, eu sustento que uma resposta diferente deve ser dada: que a arte do piloto nunca é piorada pela tempestade, nem a aplicação de sua arte também. O piloto prometeu-lhe, não uma viagem próspera, mas um desempenho útil de sua tarefa – isto é, um conhecimento especializado de dirigir um navio. E quanto mais ele é dificultado pelo estresse da Fortuna, tanto mais seu conhecimento se torna aparente. Aquele que foi capaz de dizer: “Netuno, você nunca afundará este navio, exceto em um mar calmo[10]“, cumpriu os requisitos de sua arte; a tempestade não interfere com o trabalho do piloto, mas apenas com seu sucesso.

34. “O que, então”, você diz, “um piloto não é prejudicado por qualquer circunstância que não lhe permita fazer porto, frustre todos os seus esforços, e que o leva para o fundo, ou segura o navio em ferros ou remove seus mastros?” Não, não o prejudica como piloto, mas apenas como um viajante; caso contrário, ele não é um piloto. Na verdade, está longe de dificultar a arte do piloto, e até mesmo exibe a arte; pois qualquer um, nas palavras do provérbio, é um piloto em um mar calmo. Esses percalços obstruem a viagem, mas não o timoneiro na qualidade de timoneiro.

35. Um piloto tem um duplo papel: um que ele compartilha com todos os seus companheiros de viagem, pois ele também é um passageiro; o outro é peculiar a ele, pois ele é o piloto. A tempestade o prejudica como passageiro, mas não como piloto.

36. Mais uma vez, a arte do piloto é voltada ao exterior – diz respeito aos seus passageiros, assim como a arte de um médico diz respeito a seus pacientes. Mas o bem do sábio é um bem interno – pertence tanto àqueles em cuja companhia ele vive, como a ele também. Daí o nosso piloto pode ser prejudicado, uma vez que seus serviços, que foram prometidos aos outros, são prejudicados pela tempestade;

37. Mas o homem sábio não é prejudicado pela pobreza, pela dor ou por qualquer outra tempestade da vida. Pois todas as suas funções não são restringidas, mas apenas as que pertencem aos outros; ele mesmo está sempre em ação, e é maior em desempenho no momento em que a fortuna atrapalha seu caminho. Pois então ele está realmente envolvido no negócio da sabedoria; e esta sabedoria que já declarei ser, tanto o bem dos outros, como também de si próprio.

38. Além disso, ele não está impedido de ajudar os outros, mesmo no momento em que as circunstâncias restritivas o pressionam. Por causa de sua pobreza, ele é impedido de mostrar como o Estado deve ser governado; mas ele ensina, não obstante, como a pobreza deve ser governada. O seu trabalho continua durante toda a sua vida. Assim, nenhuma fortuna, nenhuma circunstância externa, pode isolar o sábio da ação. Pois a própria coisa que envolve sua atenção o impede de atender a outras coisas. Ele está pronto para qualquer resultado: se traz bens, ele os controla; se males, ele os conquista.

39. Tão profundamente, quero dizer, ele se treinou a demonstrar sua virtude tanto na prosperidade quanto na adversidade, e mantém seus olhos na própria virtude, não nos objetos com os quais a virtude trata. Daí que nem a pobreza, nem a dor, nem qualquer outra coisa que desvie os inexperientes e os conduz ao fracasso, o impede o sábio de seguir seu curso.

40. Você acha que ele está sobrecarregado por males? Ele faz uso deles. Não era só de marfim que Fídias[11] sabia fazer estátuas; ele também fez estátuas de bronze. Se você tivesse lhe dado mármore, ou um material ainda pior, ele teria feito dele a melhor estátua que o material permitiria. Assim, o sábio desenvolverá a virtude, se puder, no meio da riqueza ou, se não, no meio da pobreza; se possível, no seu próprio país – se não, no exílio; Se possível, como comandante – se não, como um soldado comum; se possível, em boa saúde – se não, enfraquecido. Qualquer que seja a fortuna que se encontre, conseguirá algo digno de nota.

41. Alguns dos domadores de animais são infalíveis; eles tomam os animais mais selvagens, que podem muito bem aterrorizar qualquer um que os encontrar, e subjuga-os à vontade do homem, não se contentando em expulsar a sua ferocidade, eles até os domam para que habitem a mesma casa. O treinador coloca a mão na boca do leão; o tigre é beijado por seu dono. O minúsculo etíope ordena o elefante afundar-se em seus joelhos, ou andar a corda. Da mesma forma, o sábio é uma mão qualificada para domar males. A dor, a carestia, a desgraça, a prisão, o exílio – estes são universalmente temíveis – mas quando eles encontram o homem sábio, são domesticados!

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sovela é uma ferramenta utilizada em curtumes e marcenarias que é usada para fazer um furo no couro, por onde, posteriormente uma linha com agulha será adentrada para costura. Alusão a arma não apropriada para a batalha em questão.

[2] Membros da Escola Peripatética, um círculo filosófico da Grécia Antiga que basicamente seguia os ensinamentos de Aristóteles, seu fundador. “Peripatético” (em grego, περιπατητικός), é a palavra grega para ‘ambulante’ ou ‘itinerante’. Peripatéticos (ou ‘os que passeiam’) eram assim chamados em razão do hábito do filósofo de ensinar ao ar livre, caminhando enquanto lia e dava preleções.

[3] Ladas de Aegio foi um antigo atleta grego listado por Eusébio de Cesaréia como vitorioso na corrida de estádios da 125ª Olimpíada (280 AC).

[4] Trecho de Eneida,VII, 808-811 de Virgílio. As linhas descrevem Camilla, a guerreira-caçadora dos Volscos.

[5] Xenócrates (406 a.C. — 314 a.C.) foi um filósofo grego discípulo de Platão, a quem acompanhou à Sicília, sucedendo Espeusipo, após o suicídio deste.

[6]Espeusipo (,408 a.C. — 339 a.C.) foi um filósofo grego, sobrinho de Platão, a quem sucedeu na direção da Academia.

[7] Ver carta LXXI, 18

[8] Jugo, parelha ou canga é uma peça de madeira encaixada sobre a cabeça dos bois para que possam ser atrelados a uma carroça ou a um arado.

[9] Além dessa definição (padrão estoico) da terceira virtude cardinal, também encontramos “conhecimento sobre o que escolher e o que evitar”, “saber suportar as coisas” e, finalmente, “a vontade de empreender grandes feitos”.

[10] A figura do piloto é frequente na filosofia, de Platão em diante. Veja Sêneca, Ep. XXX. O mesmo argumento, aplicado ao músico, é encontrado em Ep.LXXXVII.

[11] Fídias foi um célebre escultor da Grécia Antiga. Sua biografia é cheia de lacunas e incertezas, e o que se tem como certo é que ele foi o autor de duas das mais famosas estátuas da Antiguidade, a Atena Partenos e o Zeus Olímpico, e que sob a proteção de Péricles encarregou-se da supervisão de um vasto programa construtivo em Atenas, concentrado na reedificação da Acrópole, devastada pelos persas em 480 a.C.

Resenha: Sobre a Tranquilidade da Alma

O diálogo Sobre a Tranquilidade da Alma foi claramente escrito como um meio de orientação para todos aqueles que aspirassem a dedicar-se ao aperfeiçoamento moral. É dirigido ao amigo Aneu Sereno destinatário também das obras Sobre a Constância do Sábio e ainda de Sobre o Ócio. Foi um grande amigo de Sêneca, pertencente à ordem equestre, formada pelos cidadãos mais abastados. Sereno também tinha cargo na administração pública, tendo obtido, por influência de Sêneca, a função de praefectus, responsável por combate a incêndios, atividade importante na cidade de Roma.

No texto é dito que o amigo é seguidor de Epicuro, talvez por isso, Sêneca apresenta o estoicismo em termos muito claros e concentra em conselhos construtivos e práticos. Sêneca apresenta a resposta da doutrina estoica para nos ajudar a superar os tormentos causados pelos temores e desejos humanos e alcançar a tranquilidade, o estado ideal de serenidade vivenciado de forma plena e permanente pelo sábio estoico.

Para que a resenha não fique muito longa, está dividida em duas partes, segue a primeira, com meus comentários sobre os primeiros nove capítulos:

Sobre a Tranquilidade da Alma começa com uma carta de Sereno pedindo conselhos e dizendo que sente ter um bom domínio sobre alguns de seus vícios, mas não sobre outros, e,  como resultado disso, sua alma não tem tranquilidade. Diz “Eu não estou doente nem saudável” e percebe que seu julgamento sobre seus próprios assuntos é distorcido por preconceitos pessoais.

Estou bem ciente de que essas oscilações da alma não são perigosas e nem me ameaçam de nenhuma desordem séria. Para expressar aquilo de que me queixo por um simulacro exato, não estou sofrendo de uma tempestade, mas de enjoo do mar. Tire de mim, pois, esse mal, seja ele qual for, e ajude aquele que está em aflição mesmo ao avistar a terra“. (I, 17)

Sereno lista seus problemas:

  • hesitação diante do desejo de bens e de prazeres corporais (§5-9);
  • alternância entre desejo de atuação social e de recolhimento aos estudos (§10-12) ;
  • dilema ético e estético relativo a busca pela fama (§13-14).

Apresentados os sintomas, fazendo uso da imagem do paciente frente ao médico, Sereno pede o diagnóstico e o remédio: “Rogo, então, se tem algum remédio que possa deter esta minha vacilação e me faça digno de lhe dever a paz de espírito”.

A resposta de Sêneca toma os demais capítulos e começa com a descrição completa das características da doença. Informa a Sereno que ele busca a coisa mais importante da vida, um estado que chama de tranquilidade (tranquillitas) e que os gregos chamavam de euthymía(II,3). A definição de tranquilidade é fantastica, e deve ser colocada na íntegra:

“O que buscamos, então, é como a alma pode sempre seguir um rumo firme, sem percalços, pode estar satisfeita consigo mesma e olhar com prazer para o que a rodeia, e não experimentar nenhuma interrupção dessa alegria, mas permanecer em uma condição pacífica, sem nunca estar eufórica ou deprimida: isso será ‘tranquilidade’.” (II,4)

Ele então explica que há vários tipos de homens que não alcançam a tranquilidade da alma, por diferentes razões. Alguns sofrem de inconstância, mudando continuamente seus objetivos e mesmo assim sempre lamentando do que acabaram de desistir. Outros não são inconstantes, mas ficam numa posição infeliz por seu entorpecimento. Eles “continuam a viver não da maneira que desejam, mas da maneira que começaram a viver“, ou seja, por inércia (II,6). Outros ainda acreditam que a maneira de vencer a sua inconstância é viajando para longe, mas é claro que apenas carregam consigo seus próprios problemas: “Assim, cada um sempre foge de si mesmo” (II,14). Sêneca conclui seu preâmbulo sugerindo que nossos problemas não residem no lugar onde vivemos, mas em nós mesmos, e retoricamente pergunta: “Por quanto tempo vamos continuar fazendo a mesma coisa? (II,15)

A partir do capítulo III Sêneca apresenta uma série de conselhos específicos para Sereno sobre como alcançar a tranquilidade da alma. O primeiro vem de Atenodoro: “O melhor é ocupar-se dos negócios, da gestão dos assuntos do Estado e dos deveres de um cidadão“. Isso porque estar a serviço dos outros e do próprio país é, ao mesmo tempo, exercitar-se em uma atividade e fazer o bem. Mas também se pode fazer o bem e manter-se ocupado engajando-se na filosofia. Esse tipo de ocupação proporcionará satisfação e, portanto, tranquilidade de espírito e tornará nossas vidas diferentes daquelas de pessoas que não terão nada para mostrar ao final das suas: “Muitas vezes um homem de idade avançada não tem outro argumento com que comprove ter vivido longo tempo exceto seus anos.” Segue-se então com preceitos sobre atividades e sobre o ócio (negotia × otium).

Nos capítulos VI e VII Sêneca elucida como se auto avaliar e assim conseguir escolher um caminho onde é possível ter sucesso. Começa por advertir seu amigo que é comum as pessoas pensarem que podem conseguir mais do que realmente conseguem. A pessoa sábia, ao invés disso, está ciente das suas limitações. Também é preciso lembrar que algumas buscas simplesmente não valem o esforço e devemos nos afastar delas porque nosso tempo na vida é curto e precioso. E então, diz Sêneca, “apegue-se a algo que possa terminar, ou, pelo menos, que acredite poder terminar” (VI,4). Devemos também ter cuidado na escolha de nossos associados, dedicando partes de nossas vidas a pessoas que valham o esforço. Além disso, nossas buscas devem ser do tipo que nós realmente gostamos, se possível: “pois nenhum bem se faz forçando a alma a se engajar em um trabalho não apropriado: quando a Natureza resiste, o esforço é vão.“(VII,2)

Os capítulos VIII e IX tratam de preceitos sobre o patrimônio, “fonte mais fértil das dores humanas” (VIII,1). Sêneca adverte Sereno que, em sua experiência, os ricos não suportam perdas melhor do que os pobres, pois “dói aos carecas tanto quanto aos cabeludos terem seus cabelos arrancados” (VIII,3).

“Patrimônio, essa fonte mais fértil das dores humanas: se compararmos todos os outros males de que sofremos – mortes, enfermidades, medos, arrependimentos, dores e fadigas – com as misérias que o nosso dinheiro nos inflige, este último pesará muito mais do que todos os outros. Reflita, pois, quanto menos dor é nunca ter tido dinheiro do que tê-lo perdido. (VIII, 1-2)

É por isso que Diógenes não era dono de nada, para impossibilitar que alguém pudesse tirar algo dele: “Fortuna, não se intrometa: Diógenes não tem mais nada que lhe pertença“(VIII,7).

É claro que o próprio Sêneca não era nenhum Diógenes, e na verdade era um homem muito rico. Ele frequentemente foi atacado e acusado de hipocrisia por causa disso, mas seu ponto é que não se deve ter apego aos bens materiais. É possível ter bens, desde que não seja possuído por seu patrimônio. Ainda assim, na mesma seção ele aconselha a reduzir a quantidade de nossos bens, de modo a diminuir a probabilidade de nos apegarmos a eles de forma exagerada:

Nunca poderemos afastar a tão profunda e vasta diversidade da iniquidade com que somos ameaçados a ponto de não sentir o peso de muitas tempestades, se oferecermos largas velas ao vento do mar” (IX,3).

O capítulo IX termina com uma frase muito citada de Sêneca, porém citada de forma enganosa, pois ele critica homens que compram livros e não os estudam:

Você verá as obras de todos os oradores e historiadores empilhadas sobre estantes que chegam até o teto. Nos dias de hoje, uma biblioteca tornou-se tão necessária como um apêndice de uma casa como um banho quente e frio.” (IX,7)

Paramos por aqui. E alguns dias sigo com o restante da obra.


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Carta 81: Sobre Benefícios e sua Retribuição

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A carta 81 é outra excelente fonte de ensinamento estoico. Nela Sêneca resume magnificamente o livro de sua autoria Sobre os Benefícios (De Beneficiis) e explica porque doar e conceder benefícios é mais vantajoso para aquele que dá do que para quem os recebe.

Começa com uma discussão, que segundo ele faltou no livro: Como ponderar uma pessoa que nos concedeu um benefício e depois nos prejudicou. Sêneca diiz:

“…o homem bom será flexível em alcançar um equilíbrio; ele vai permitir que muito seja colocado contra o seu crédito. O lado em que ele se inclinará, a tendência que ele exibirá, é o desejo de estar sob as obrigações do favor, e o desejo de retribuir por isso. Pois qualquer um que receba um benefício mais alegremente do que o retribua está em erro. Tanto quanto aquele que paga é mais alegre do que aquele que pede emprestado, por tanto deve ser mais alegre aquele que se desembaraça da maior dívida – um benefício recebido – do que aquele que incorre nas maiores obrigações…. Um homem é um ingrato se paga um favor sem juros. Portanto, os juros também devem ser ponderados, quando comparar suas receitas e suas despesas.” (LXXXI, 17-18)

Resolvida a questão proposta, Sêneca discorre longamente sobre as vantagens obtidas pelo doador, lançando várias frases de efeito:

  • Não há um homem que, quando tenha beneficiado o seu próximo, não se tenha beneficiado; §19
  • o prêmio de uma boa ação é tê-la praticado. §19
  • A maldade torna os homens infelizes e a virtude torna os homens abençoados; §21
  • O próprio mal bebe a maior parte de seu próprio veneno: §22
  • O que é mais miserável do que um homem que esquece seus lucros e se apega a seus prejuízos? §23

Conclui a carta alertando do risco de se conceder benefícios para pessoas ingratas. Segundo Sêneca um ingrato sente-se humilhado por ter recebido benefício fará tudo para se eximir da retribuição:

“Nossa loucura é tão ampla que é uma coisa muito perigosa conferir grandes benefícios a uma pessoa; pois só porque ele pensa que é vergonhoso não pagar, então ele não deixará vivo ninguém a quem ele deva pagar. ” (LXXXI, 32)

A carta é longa mais vale a leitura integral!

Imagem: Afresco Festa familiar em Pompeia Museo Archeologico Nazionale di Napoli


LXXXI. Sobre Benefícios e sua Retribuição

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você se queixa de ter encontrado com uma pessoa ingrata. Se esta é a sua primeira experiência desse tipo, você deve agradecer a sua boa sorte ou a sua cautela. Neste caso, entretanto, o cuidado não pode fazer nada além de torná-lo pouco generoso. Pois se quiser evitar tal perigo, não vai conferir benefícios; e assim, que os benefícios não possam ser perdidos com outro homem, eles serão perdidos para si mesmo. É melhor, porém, obter nenhum retorno do que não conferir benefícios. Mesmo depois de uma colheita ruim deve-se semear de novo; pois muitas vezes as perdas devidas à aridez contínua de um solo improdutivo são compensadas por um ano de fertilidade.

2. Para descobrir uma pessoa grata, vale a pena testar muitos ingratos. Nenhum homem tem uma mão tão infalível quando confere benefícios que ele não seja frequentemente enganado; é bom para o viajante a vaguear, pois assim ele pode abrir novos caminhos. Depois de um naufrágio, os marinheiros tentam o mar novamente. O banqueiro não é espantado para longe do fórum pelo vigarista. Se alguém for obrigado a abandonar tudo o que causa problemas, a vida logo ficaria enfadonha em meio à ociosidade indolente; mas no seu caso esta situação pode levá-lo a se tornar mais caridoso. Pois quando o resultado de qualquer empreendimento é incerto, deve-se tentar novamente e novamente, a fim de se ter sucesso em última instância.

3. Contudo, discuti o assunto com suficiente plenitude nos volumes que escrevi, intitulados “Sobre os Benefícios[2]“. O que eu acho que deve, principalmente, ser investigado é isso: – um ponto que sinto não ter sido suficientemente claro: “Se aquele quem nos ajudou e quitou a conta e libertou-nos de nossa dívida, se ele nos faz mal mais tarde.” Você pode adicionar esta pergunta também, se quiser: “quando o dano feito mais tarde é maior do que a ajuda prestada anteriormente.”

4. Se você está procurando a decisão formal e justa de um juiz rigoroso, verá que ele examina um ato pelo outro, e declara: “Embora as lesões superam os benefícios, no entanto, devemos creditar aos benefícios qualquer coisa que resta mesmo depois da lesão”. O dano causado foi realmente maior, mas o ato útil foi feito primeiro. Daí o tempo também deve ser levado em conta.

5. Outros casos são tão claros que eu não preciso lembrá-lo que deve também olhar pontos como: De quão bom grado a ajuda foi oferecida, e como relutantemente o dano foi feito, – já que benefícios, bem como lesões, dependem do espírito. “Eu não queria conferir o benefício, mas fui conquistado pelo meu respeito ao homem, ou pela importunidade do seu pedido, ou pela esperança.”

6. Nosso sentimento sobre cada obrigação depende, em cada caso, do espírito no qual o benefício é conferido; Nós não pesamos a maior parte da oferta, mas a qualidade da boa vontade que a incitou. Então, vamos acabar com a adivinhação; a ação anterior era um benefício, e a última, que transcendia o benefício anterior, é uma lesão. O homem bom organiza assim os dois lados de seu livro de registro o qual ele voluntariamente se ilude, adicionando ao benefício e subtraindo da lesão. O mais indulgente magistrado, no entanto (e eu prefiro ser tal), vai nos pedir para esquecer a lesão e lembrar o benefício.

7. “Mas certamente”, diz você, “é o papel da justiça dar a cada um o que é seu devido: graças em troca de um benefício e castigo, ou ao menos má vontade, em troca de um prejuízo!” Isto, eu digo, será verdadeiro quando for um homem quem infligiu a injúria, e um homem diferente quem tenha conferido o benefício; pois se for o mesmo homem, a força da lesão é anulada pelo benefício conferido. Na verdade, um homem que deve ser perdoado, embora não tenha boas obras creditadas a ele no passado, deve receber algo mais do que mera clemência se comete um erro quando tem um benefício a seu crédito.

8. Eu não estabeleço um valor igual em benefícios e lesões. Eu considero um benefício com uma taxa mais alta do que uma lesão. Nem todas as pessoas gratas sabem o que implica estar em dívida por um benefício; mesmo um sujeito insensato, bruto, um da multidão comum, pode saber, especialmente logo após receber o beneficio; mas ele não sabe quão profundamente está em dívida por isso. Somente o sábio sabe exatamente que valor deve ser colocado em tudo; para o tolo que acabei de mencionar, não importa o quão boa as suas intenções possam ser, ou paga menos do que deve, ou paga no momento errado ou no lugar errado. Aquilo por que deveria retribuir, ele desperdiça e perde.

9. Há uma fraseologia maravilhosamente precisa aplicada a certos assuntos, uma terminologia estabelecida há muito tempo que indica certos atos por meio de símbolos que são mais eficientes e que servem para delinear os deveres dos homens. Nós, como você sabe, costumamos falar assim: “A. fez uma retribuição pelo favor concedido por B.” Fazer uma retribuição significa entregar por sua própria conta o que você deve. Não dizemos: “Ele reembolsou o favor”; pois “reembolsar” é usado para um homem sobre quem uma exigência de pagamento é feita, daqueles que pagam contra a sua vontade. Daqueles que pagam em circunstância qualquer, e daqueles que pagam através de um terceiro. Não dizemos: “Ele restaurou o benefício”, ou “acertou a conta”; nós nunca ficamos satisfeitos com uma palavra que se aplica adequadamente a uma dívida de dinheiro.

10. Fazer uma retribuição significa oferecer algo a quem havia lhe dado algo. A frase implica um retorno voluntário. O sábio investigará em sua mente todas as circunstâncias: quanto ele recebeu, de quem, quando, onde, como. E assim declaramos que ninguém, a não ser o sábio, sabe como retribuir por um favor; além disso, só o sábio sabe conferir um benefício, aquele homem, quero dizer, que goza do dar mais do que o destinatário goza do recebimento.

11. Agora, alguém considerará essa observação como uma das declarações geralmente surpreendentes, como nós, os estoicos, costumamos fazer e como os gregos chamam de “paradoxos”, e dirão: “Você sustenta, então, que só o sábio sabe como devolver um favor? Você sustenta que ninguém mais sabe como fazer a restauração de um credor para uma dívida? Ou, ao comprar uma mercadoria, para pagar o valor total para o vendedor? A fim de não trazer qualquer ódio sobre mim, deixe-me dizer-lhe que Epicuro diz a mesma coisa. De qualquer modo, Metrodoro observa que só o homem sábio sabe como devolver um favor.

12. Mais uma vez, o objetor mencionado acima pergunta: “Somente o homem sábio sabe amar, só o homem sábio é um verdadeiro amigo”. No entanto, é uma parte do amor e da amizade devolver favores; além disso, é um ato comum, e acontece com mais frequência do que a amizade real. Novamente, este mesmo objetor se pergunta ao nosso dizer: “Não há lealdade senão no homem sábio”, como se ele mesmo não dissesse a mesma coisa! Ou você acha que há alguma lealdade naquele que não sabe como devolver um favor?

13. Esses homens, portanto, devem deixar de nos desacreditar, como se estivéssemos proferindo uma vanglória impossível; eles devem entender que a essência da honra reside no homem sábio, enquanto entre a multidão encontramos apenas o espectro e a semelhança de honra. Ninguém exceto o homem sábio sabe como devolver um favor. Até um tolo pode devolvê-lo em proporção ao seu conhecimento e ao seu poder; sua falta seria uma falta de sabedoria e não uma falta da vontade ou do desejo. A vontade não vem pelo ensino.

14. O sábio comparará todas as coisas umas com as outras; pois o mesmo objeto se torna maior ou menor, de acordo com o tempo, o lugar e a causa. Muitas vezes, as riquezas que são gastas em profusão em um palácio podem não realizar tanto quanto mil denários dados no momento certo. Agora, faz muita diferença se você der sem qualquer reserva, ou vir à assistência de um homem, se a sua generosidade pode salva-lo, ou defini-lo na vida. Muitas vezes o donativo é pequeno, mas as consequências grandes. E que distinção você imagina que existe entre tomar algo de que alguém carece, – algo que foi oferecido, – e receber um benefício a fim de conferir outro em troca?

15. Mas não devemos voltar ao assunto que já investigamos suficientemente. Neste equilíbrio de benefícios e lesões, o bom homem, com certeza, julgará com o mais alto grau de justiça, mas inclinará para o lado do benefício; ele se voltará mais rapidamente nessa direção.

16. Além disso, em casos deste tipo, a pessoa em questão costuma contar muito. Os homens dizem: “Você me concedeu um benefício em relação ao escravo, mas você me feriu no caso de meu pai” ou “Você salvou meu filho, mas me roubou um pai”. Da mesma forma, ele vai acompanhar todos os outros assuntos em que as comparações podem ser feitas, e se a diferença é muito leve, ele vai fingir não a notar. Mesmo que a diferença seja grande, contudo, se a concessão pode ser feita sem prejuízo do dever e da lealdade, nosso bom homem ignorará isso, desde que a lesão afete exclusivamente o próprio homem bom.

17. Resumindo, a questão está assim: o homem bom será flexível em alcançar um equilíbrio; ele vai permitir que muito seja colocado contra o seu crédito. Ele não estará disposto a pagar um benefício contrabalanceando uma lesão. O lado em que ele se inclinará, a tendência que ele exibirá, é o desejo de estar sob as obrigações do favor, e o desejo de retribuir por isso. Pois qualquer um que receba um benefício mais alegremente do que o retribua está em erro. Tanto quanto aquele que paga é mais alegre do que aquele que pede emprestado, por tanto deve ser mais alegre aquele que se desembaraça da maior dívida – um benefício recebido – do que aquele que incorre nas maiores obrigações.

18. Pois os homens ingratos cometem erros também neste aspecto: eles têm de pagar aos seus credores capital e juros, mas eles pensam que benefícios são moeda que podem usar sem juros. Assim, as dívidas crescem através do adiamento, e quanto mais tarde a ação é adiada, mais permanece a ser pago. Um homem é um ingrato se paga um favor sem juros. Portanto, os juros também devem ser ponderados, quando comparar suas receitas e suas despesas.

19. Devemos tentar por todos os meios ser o mais grato possível. Pois a gratidão é uma coisa boa para nós mesmos, num sentido em que a justiça, que comumente é tida como preocupada com as outras pessoas, não é; A gratidão retorna em grande medida a si mesma. Não há um homem que, quando tenha beneficiado o seu próximo, não se tenha beneficiado, – não quero dizer que quem você ajudou desejará ajudá-lo, ou que aquele quem você defendeu desejará proteger você, ou que um exemplo de boa conduta retorne em círculo para beneficiar o executor, assim como exemplos de má conduta retrocedem sobre seus autores e como os homens não sentem piedade se sofrem injustiças que eles mesmos demonstraram a possibilidade de cometer; Mas que a recompensa por todas as virtudes está nas próprias virtudes. Pois elas não são praticadas com vista a recompensa; o prêmio de uma boa ação é tê-la praticado.

20. Sou grato, não para que meu vizinho, provocado pelo ato de bondade anterior, esteja mais pronto a me beneficiar, mas simplesmente para que eu possa realizar um ato muito agradável e belo; sinto-me grato, não porque me beneficie, mas porque me agrada. E, para provar a verdade disto a você, eu declaro que mesmo que eu não possa ser grato sem parecer ingrato, mesmo que eu possa manter um benefício somente por um ato que se assemelhe a uma ofensa; ainda assim, esforçar-me-ei na mais absoluta calma do espírito para o propósito que a honra exige, no meio da desgraça. Ninguém, eu penso, julga melhor a virtude ou é mais devotado à virtude do que aquele que perde a reputação de ser um bom homem para não perder a aprovação de sua consciência.

21. Assim, como eu disse, seu ser grato é mais propício ao seu próprio bem do que ao bem do seu próximo. Pois, enquanto o seu vizinho tem uma experiência cotidiana e banal, ou seja, receber de volta o presente que ele havia concedido, você teve uma grande experiência que é o resultado de uma condição de alma totalmente feliz, ter sentido gratidão. Pois se a maldade torna os homens infelizes e a virtude torna os homens abençoados, e se é uma virtude ser grato, então o retorno que você fizer é apenas o costume habitual, mas a coisa que você alcança é inestimável, a consciência da gratidão, que só vem à alma que é divina e abençoada. O sentimento oposto a isso, porém, é imediatamente acompanhado pela maior infelicidade; nenhum homem, se for ingrato, será infeliz só no futuro. Não lhe concedo nenhum dia de graça; ele será infeliz imediatamente.

22. Evitemos, portanto, sermos ingratos, não por causa dos outros, mas por nós mesmos. Quando fazemos o mal, somente a parcela menor e mais leve flui para o nosso próximo; o pior e, se eu posso usar o termo, a parte mais densa dele fica em casa e causa problemas para o proprietário. Meu mestre Átalo costumava dizer: “O próprio mal bebe a maior parte de seu próprio veneno”. O veneno que as serpentes carregam para a destruição de outros, e secretam sem dano a si mesmas, não é como este veneno; pois este tipo é ruinoso para o possuidor.

23. O homem ingrato tortura-se e atormenta-se; ele odeia os presentes que ele aceitou, porque ele deve fazer uma retribuição por eles, e ele tenta diminuir seu valor, mas ele realmente amplia e exagera as lesões que ele recebeu. E o que é mais miserável do que um homem que esquece seus lucros e se apega a seus prejuízos? A sabedoria, por outro lado, concede graça a todos os benefícios e, por sua própria vontade, recomenda-os a seu favor, e deleita sua alma pela lembrança contínua deles.

24. Os homens maus têm somente um prazer nos benefícios, e um prazer muito curto nisso; só dura enquanto os recebe. Mas o sábio deriva deles uma alegria permanente e eterna. Pois não se compraz tanto no presente como também em tê-lo recebido; e esta alegria nunca perece; ela permanece com ele sempre. Ele despreza os erros contra ele; ele os esquece, não acidentalmente, mas voluntariamente.

25. Ele não põe uma intenção maldosa sobre tudo, ou procura alguém que possa responsabilizar por cada acontecimento; ele atribui até mesmo os pecados dos homens ao acaso. Ele não interpretará mal uma palavra ou um olhar; ele faz a luz de todos os percalços, interpretando-os de uma forma generosa. Ele não se lembra de uma lesão em lugar de um serviço. Tanto quanto possível, ele deixa sua memória descansar sobre a ação anterior e melhor, nunca mudando sua atitude para com aqueles que quiseram o seu bem, exceto nas situações onde os maus atos distanciam muito do bem, e o espaço entre eles é óbvio até mesmo para aquele que fecha os olhos para ele; mesmo assim, até este ponto, em que ele se esforça, depois de ter recebido o dano preponderante, para retomar a atitude que manteve antes de receber o benefício. Pois quando a lesão simplesmente é igual ao benefício, uma certa quantidade de sentimento agradável resta.

26. Assim como um réu é absolvido quando os votos são iguais, e assim como o espírito de bondade sempre tenta dobrar todo caso duvidoso para a interpretação mais bondosa, assim também a mente do sábio, quando os méritos de outro meramente igualam seus maus atos, deixará, com certeza, de se sentir obrigado, mas não deixará de desejar senti-lo, e age precisamente como o homem que paga suas dívidas mesmo depois de terem sido legalmente canceladas.

27. Mas ninguém pode ser grato a menos que tenha aprendido a desprezar as coisas que levam a multidão comum à distração; se você deseja retribuir um favor, você deve estar disposto a ir para o exílio, – ou derramar seu sangue, ou sofrer a pobreza, ou – e isso vai acontecer com frequência, – até mesmo para deixar a sua própria inocência ser manchada e exposta a calúnias vergonhosas. Não é nenhum preço leve que um homem deve pagar para ser grato.

28. Nós não consideramos nada mais caro do que um benefício, enquanto estivermos buscando um; não consideramos nada mais barato depois que o recebemos. Você pergunta o que é que nos faz esquecer os benefícios recebidos? É a nossa cobiça extrema por receber outros. Consideramos não o que obtivemos, mas o que estamos a procurar. Somos desviados do curso certo por riquezas, títulos, poder e tudo o que é valioso em nossa opinião, mas desprezível quando avaliado em seu valor real.

29. Não sabemos como ponderar os assuntos; devemos nos aconselhar sobre eles, não por sua reputação, mas por sua natureza; essas coisas não possuem grandeza para encantar nossas mentes, exceto pelo fato de que nos acostumamos a maravilhar-se com elas. Pois não são louvadas porque devem ser desejadas, mas são desejadas porque foram louvadas; e quando o erro de indivíduos cria erro por parte do público, então o erro público continua a criar erro por parte dos indivíduos.

30. Mas, assim como assumimos cegamente tais estimativas de valor, então assumamos cegamente esta verdade de que nada é mais honrado do que um coração grato. Esta frase será ecoada por todas as cidades, e por todas as raças, mesmo por aqueles de países selvagens. Sobre este ponto – bons e maus concordam.

31. Alguns elogiam o prazer, alguns preferem o trabalho; alguns dizem que a dor é o maior dos males, alguns dizem que não é mal algum; alguns incluirão riquezas no Bem Supremo, outros dirão que sua descoberta significou dano à raça humana, e que ninguém é mais rico do que aquele a quem a Fortuna não encontrou nada para dar. Em meio a toda essa diversidade de opinião, todos os homens ainda com uma só voz, como diz o ditado, votam “sim” para a proposição de que devemos retribuir a aqueles que desejaram bem de nós. Sobre esta questão a multidão comum, rebelde como é, concorda integralmente, mas no presente continuamos a retribuir lesões em vez de benefícios, e a principal razão por que um homem é ingrato é que ele achou impossível ser suficientemente grato.

32. Nossa loucura é tão longa que é uma coisa muito perigosa conferir grandes benefícios a uma pessoa; pois só porque ele pensa que é vergonhoso não pagar, então ele não deixará vivo ninguém a quem ele deva pagar. “Guarde para si mesmo o que você recebeu, eu não o peço de volta – eu não o exijo, fique seguro de ter conferido um favor.” Não há pior ódio do que aquele que brota da vergonha da profanação de um benefício.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Na tradução para o inglês o título usado é “On Benefits“ (sobre benefícios)

[2] De Beneficiis é uma obra de Sêneca, composta de sete livros. É parte de uma série de tratados sobre fenômenos naturais e ensaios morais que exploram questões filosóficas como a providência, a perseverança, a raiva, lazer, tranquilidade, a brevidade da vida, o perdão, a felicidade e a troca de presentes.