Carta 88: Sobre estudos liberais e vocacionais

A carta 88 é bastante interessante, nela Sêneca critica os “estudo liberais“, o que poderia ser traduzido no nosso tempo como formação universitária. Para Sêneca o conhecimento técnico é apenas isso, uma ferramenta para o trabalho diário e venal, não um fim em si mesmo ou um certificado de excelência, inteligência ou sabedoria. A crítica e conclusão são atuais e podem ser aplicadas igualmente aos intelectuais contemporâneos.

“O intelectual se ocupa com investigações sobre o idioma, e se for seu desejo de ir mais longe, ele trabalha na história ou, se ele estender seu alcance para os limites mais distantes, sobre a poesia. Mas qual destes abre caminho à virtude? Pronunciando sílabas, investigando palavras, memorizando peças, ou fazendo regras para o exame crítico da poesia, o que existe em tudo isso que livra alguém do medo, refreia o desejo ou elimina as paixões?” (LXXXVIII, 3)

No texto Sêneca cita a Odisseia e Ilíada de Homero bem como vários filósofos e escolas filosóficas da antiguidade. Ao final do texto, Sêneca volta suas baterias contra alguns filósofos, mais uma vez se mostrando atual – ou comprovando que a natureza humana se manteve inalterada em 2000 anos:

“Tenho falado até agora de estudos liberais; mas pense quanto de matéria supérflua e pouco prática que os filósofos contêm! Por sua própria conta, eles também se rebaixam para estabelecer boas divisões de sílabas, para determinar o verdadeiro significado de conjunções e preposições; eles têm inveja dos estudiosos, inveja dos matemáticos. Eles passaram a usar em sua própria arte todas as superfluidades dessas outras artes; o resultado é que eles sabem mais sobre falar meticulosamente do que sobre uma vida meticulosa.” (LXXXVIII, 42)

Imagem: Ulisses e as Sereias, por John William Waterhouse.


LXXXVIII. Sobre estudos liberais e vocacionais

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você tem desejado conhecer os meus pontos de vista em relação aos estudos liberais[1]. A minha resposta é a seguinte: não admiro nenhum estudo e não considero um bom estudo, o que resulta na criação de dinheiro. Tais estudos são ocupações condutoras de lucro, úteis apenas na medida em que dão à mente uma preparação e não a ocupam permanentemente. Deve se demorar sobre eles apenas enquanto a mente não se ocupa com nada maior; eles são nosso aprendizado, não nosso trabalho real.

2. Então você vê por que os “estudos liberais” são chamados assim; é porque eles são estudos dignos de um cavalheiro nascido livre. Mas há apenas um estudo realmente liberal, o que dá a um homem sua liberdade. É o estudo da sabedoria, e isso é elevado, corajoso e de grande alma. Todos os outros estudos são insignificantes e pueris. Você certamente não acredita que exista algo bom em qualquer um dos assuntos cujos professores são, como você vê, os homens do selo mais ignóbil e vil? Não devemos estar aprendendo essas coisas; devíamos ter concluído com aprendê-las. Certas pessoas decidiram que o ponto em questão em relação aos estudos liberais é se eles fazem os homens bons; mas eles nem professam ou visam o conhecimento desse assunto em particular.

3. O intelectual[2] se ocupa com investigações sobre o idioma, e se for seu desejo de ir mais longe, ele trabalha na história ou, se ele estender seu alcance para os limites mais distantes, sobre a poesia. Mas qual destes abre caminho à virtude? Pronunciando sílabas, investigando palavras, memorizando peças, ou fazendo regras para o exame crítico da poesia, o que existe em tudo isso que livra alguém do medo, refreia o desejo ou elimina as paixões?

4. A questão é: tais homens ensinam a virtude, ou não? Se eles não ensinam, então nem sequer a transmitem. Se ensinam, são filósofos. Gostaria de saber como aconteceu que eles não tomaram a cátedra com o propósito de ensinar a virtude? Veja como é diferente de seus assuntos; e, no entanto, seus assuntos se assemelhariam se ensinassem a mesma coisa[3].

5. Pode ser, talvez, que eles façam você acreditar que Homero era um filósofo[4], embora refutem isso pelos argumentos através dos quais procuram provar isso. Pois às vezes fazem dele um estoico, que não aprova nada além de virtude, evita prazeres e se recusa a renunciar à honra mesmo ao preço da imortalidade[5]; às vezes o fazem um epicurista, louvando a condição de um estado de repouso, que passa seus dias em festa e canção[6]; às vezes um peripatético, classificando o bem de três maneiras[7]; às vezes um Acadêmico, afirmando que todas as coisas são incertas. É claro, no entanto, que nenhuma dessas doutrinas deve ser concebida sobre Homero, só porque estão todas lá; pois são irreconciliáveis umas com as outras. Podemos admitir a esses homens, de fato, que Homero era um filósofo; ainda assim ele se tornou um homem sábio antes de ter algum conhecimento de poesia. Então, vamos aprender as coisas particulares que fizeram Homero sábio.

6. Não é mais importante, claro, que eu investigue se Homero ou Hesíodo era o poeta mais velho, do que saber por que Hécuba[8], embora mais jovem do que Helena, mostrou seus anos tão lamentavelmente. O que, na sua opinião, eu pergunto, seria o ponto em tentar determinar as respectivas idades de Aquiles e Patroclos[9]?

7. Você levanta a questão: “Por quais regiões Ulysses se extraviou?” Em vez de tentar evitar que nos desviemos a todo momento? Não temos tempo para ouvir palestras sobre a questão de saber se ele se mantinha no mar entre a Itália e a Sicília, ou fora do nosso mundo conhecido (de fato, uma peregrinação tão longa não poderia ter ocorrido dentro de limites tão estreitos); Nós nos encontramos com tempestades do espírito, que nos perturbam diariamente, e nossa depravação nos leva a todos os males que perturbavam Ulysses. Para nós nunca falta a beleza para tentar nossos olhos, ou o inimigo para nos assaltar; desse lado estão monstros selvagens que se deleitam com o sangue humano, daquele lado os traiçoeiros encantos de orelha, e acolá está o naufrágio e toda variada categoria de infortúnios. Mostre-me, pelo exemplo de Ulysses, como eu amo meu país, minha esposa, meu pai e como, mesmo depois de sofrer um naufrágio, eu poderei singrar na via da honestidade.

8. Por que tentar descobrir se Penélope era um padrão de pureza, ou se ela era motivo de risada de seus contemporâneos? Ou se ela suspeitava que o homem em sua presença era Ulysses, antes que ela soubesse que era ele? Ensine-me, em vez disso, o que é a pureza e quão grande é o bem que temos nela e se está situada no corpo ou na alma.

9. Agora vou transferir minha atenção para o músico. Você, senhor, está me ensinando como os agudos e os graves estão de acordo um com o outro e como, embora as cordas produzam notas diferentes, o resultado é uma harmonia; em vez disso, coloque a minha alma em harmonia consigo mesmo, e não permita que meus propósitos estejam fora de sintonia. Você está me mostrando quais são as teclas lúgubres; mostre-me um pouco como, no meio da adversidade, eu posso evitar de pronunciar uma nota lúgubre.

10. O matemático ensina-me a definir as dimensões dos meus imóveis; mas eu prefiro aprender como descrever o que é suficiente para um homem possuir. Ele me ensina a contar, e adapta meus dedos para a avareza; mas eu deveria preferir que ele me ensine que não há nenhum sentido em tais cálculos, e alguém não é o mais feliz por cansar os contadores com seus bens – ou melhor, como é inútil a propriedade de qualquer homem que acharia a maior desgraça se fosse obrigado a calcular, por sua própria inteligência, o valor de suas participações.

11. O que é proveitoso para mim em saber como lotear um terreno, se eu não sei como dividi-lo com meu irmão? O que há de bom em calcular em minúcia as dimensões de um acre e na detecção do erro se uma pequena parte tiver escapado da minha régua de medição, se eu fico amargurado quando um vizinho mal-intencionado simplesmente arranca um pouco de minha terra? O matemático me ensina como eu não posso perder meus limites; no entanto, eu procuro aprender a perder todos com um coração leve.

12. “Mas”, vem a resposta: “Estou sendo expulso da fazenda que meu pai e meu avô foram donos!” Sim! Quem possuía a terra antes de seu avô? Você pode explicar que pessoas (eu não direi que pessoa) a mantinha originalmente? Você não entrou como proprietário, mas apenas como inquilino. E quem é seu inquilino? Se sua reivindicação for bem-sucedida, você é inquilino do herdeiro. Os juristas dizem que a propriedade pública não pode ser adquirida por particular por usucapião; ao que você se apega e chama de seu é propriedade pública – na verdade, ela pertence à humanidade em geral.

13. Oh, que habilidade maravilhosa! Você sabe como medir o círculo; você encontra a área de qualquer forma que esteja desenhada a sua frente; você calcula as distâncias entre as estrelas; não há nada que não chegue ao alcance de seus cálculos. Mas se você é um verdadeiro mestre de sua profissão, meça a mente do homem! Diga-me o quão grande é, ou o quão insignificante! Você sabe o que é uma linha reta; Mas como isso lhe beneficia se não sabe o que é reto na nossa vida?

14. Vamos agora para aquela pessoa que se vangloria de seu conhecimento dos corpos celestes, aquele que sabe

Aonde a esmerada estrela de Saturno esconde, E através de qual órbita Mercúrio se afasta.Frigida Saturni sese quo stella receptet, Quos ignis caeli Cyllenius erret in orbes.[10]

De que benefício será saber isso? Para que eu seja perturbado porque Saturno e Marte estão em oposição, ou quando Mercúrio se instala ao fim da tarde em vista de Saturno, ao invés de aprender que essas estrelas, onde quer que estejam, são benignas[11] e que não estão sujeitas a mudanças?

15. Elas são conduzidas por um ciclo infinito de destino, num curso do qual elas não podem se desviar. Elas retornam nas estações indicadas; elas se iniciam, ou marcam os intervalos do trabalho de todo o mundo. Mas se elas são responsáveis pelo que quer que aconteça, como isso ajudará você a conhecer os segredos do imutável? Ou se elas apenas dão indicações, o que há de bom em prever o que você não pode escapar? Se você conhece essas coisas ou não, elas acontecerão.

16. Veja o sol fugaz,

Se reparar as estrelas que seguem em seu trem, Nunca o amanhã nunca me engana, Ou é enganado por noites serenas.Si vero solem ad rapidum stellasque sequentes Ordine respicies, numquam te crastina fallet Hora nec insidiis noctis capiere serenae.[12]

Contudo, foi suficientemente e totalmente estabelecido que eu esteja a salvo de qualquer coisa que possa me enganar.

17. “O que”, você diz, “o amanhã nunca me enganará. O que acontece sem o meu conhecimento me deixa enganado.” Eu, pela minha parte, não sei o que será, mas sei o que pode acontecer. Não terei desconfiança sobre este assunto; aguardo o futuro na sua totalidade; e se houver qualquer redução em sua gravidade, eu aproveito ao máximo. Se o dia seguinte me tratar gentilmente, é uma espécie de decepção; mas não me engana mesmo nisso. Pois eu sei que todas as coisas podem acontecer, então eu sei, também, que elas não acontecerão em todos os casos. Estou pronto para eventos favoráveis, mas estou preparado para o pior.

18. Nesta discussão você deve me suportar se não seguir o curso normal. Pois não aceito admitir a pintura na lista de artes liberais, não mais do que escultura, marmoraria e outras ajudas para o luxo. Também excluo dos estudos liberais a luta livre e todo conhecimento que é composto de óleo e lama; caso contrário, eu seria compelido a admitir perfumistas também, e cozinheiros, e todos os outros que prestam sua inteligência ao serviço de nossos prazeres.

19. Qual elemento “liberal” existe nesses tomadores de eméticos[13] vorazes, cujos corpos são alimentados a gordura enquanto suas mentes são magras e estúpidas? Ou acreditamos realmente que o treinamento que eles dão é “liberal” para os jovens de Roma, que costumavam ser ensinados pelos nossos antepassados a ficarem retos e a arremessar um dardo, a empunhar uma lança, a guiar um cavalo e a lidar com armas? Nossos antepassados costumavam ensinar a seus filhos nada que pudesse ser aprendido enquanto em repouso. Mas nem o novo sistema nem o antigo ensina ou nutre a virtude. Por que qual bem nos faz montar um cavalo e controlar sua velocidade com a guia, e depois descobrir que nossas próprias paixões, totalmente descontroladas, se aferram a nós? Ou vencer muitos oponentes em luta ou boxe, e depois descobrir que nós mesmos somos espancados pela raiva?

20. “O que, então,” você diz, “os estudos liberais não contribuem com nosso bem-estar?” Muito em outros aspectos, mas nada em termos de virtude. Pois mesmo essas artes das quais eu falei, embora reconhecidamente de baixo grau – dependendo do trabalho feito – contribuem grandemente para a aparelhagem da vida, mas, no entanto, não têm nada a ver com a virtude. E se você perguntar: “Por que, então, educamos nossos filhos nos estudos liberais?” Não é porque eles podem conferir virtude, mas porque preparam a alma para receber a virtude. Assim com esse “curso primário”, como os anciãos o chamavam, na gramática, que dá aos meninos o seu treinamento elementar, não lhes ensina as artes liberais, mas prepara o terreno para a aquisição precoce dessas artes, então as artes liberais não conduzem a alma até a virtude, mas simplesmente aponta naquela direção.

21. Posidônio divide as artes em quatro classes: primeiro temos as que são comuns e baixas, então as que servem para diversão, depois as que se referem à educação dos meninos e, finalmente, às artes liberais. O tipo comum pertence aos trabalhadores e são meros trabalhos manuais; elas estão preocupadas em equipar a vida; não há pretensões de beleza ou honra.

22. As artes da diversão são aquelas que visam agradar os olhos e ouvidos. Para esta classe, você pode atribuir os engenheiros de palco, que inventam andaimes que se vão por conta própria, ou pisos que se elevam silenciosamente no ar e muitos outros dispositivos surpreendentes, como quando os objetos que se encaixam, depois se desmontam ou objetos que são separados, em seguida, juntam-se automaticamente, ou objetos que ficam eretos, em seguida, colapsam gradualmente. O olho dos inexperientes é surpreendido por essas coisas; pois tais pessoas se maravilham com tudo o que ocorre sem aviso prévio, porque elas não conhecem as causas.

23. As artes que pertencem à educação dos meninos, e são algo similar às artes liberais, são aquelas que os gregos chamam de “ciclo de estudos”, mas que nós, romanos, chamamos de “liberal[14]”. No entanto, as únicas que realmente são liberais – ou melhor, para dar-lhes um nome mais verdadeiro, “livre” – são aquelas cuja preocupação é a virtude.

24. “Mas,” dizemos, “assim como há uma parte da filosofia que tem a ver com a natureza, e uma parte que tem a ver com a ética, e uma parte que tem que ver com o raciocínio, então esse grupo de artes liberais também reivindicam por si mesmo um lugar na filosofia. Quando se aborda questões que lidam com a natureza, uma decisão é alcançada por meio de uma palavra do matemático. Portanto, a matemática é um departamento desse ramo que auxilia”.

25. Mas muitas coisas nos ajudam e ainda não são partes de nós mesmos. Não, se fossem, elas não nos ajudariam. A comida é um auxílio para o corpo, mas não é parte dele. Recebemos alguma ajuda do serviço que a matemática faz; e a matemática é tão indispensável para a filosofia quanto o carpinteiro é para o matemático. Mas o carpinteiro não faz parte da matemática, nem a matemática é parte da filosofia.

26. Além disso, cada um tem seus próprios limites; pois o sábio investiga e aprende as causas dos fenômenos naturais, enquanto o matemático segue e calcula seus números e suas medidas. O homem sábio conhece as leis pelas quais os corpos celestes persistem, quais poderes lhes pertencem e quais atributos; O astrônomo observa apenas as suas idas e vindas, as regras que regem seus nasceres e poentes, e os períodos ocasionais durante os quais parecem ficar imóveis, embora, de fato, nenhum corpo celestial possa ficar quieto.

27. O sábio saberá o que causa a reflexão no espelho; mas, o matemático pode simplesmente dizer-lhe o quão longe o corpo deve estar da reflexão, e que forma de espelho produzirá uma reflexão dada. O filósofo irá demonstrar que o Sol é um corpo grande, enquanto o astrônomo calcula o quão grande, progredindo no conhecimento por seu método de tentativa e experimentação; mas, para progredir, deve convocar certos princípios para ajudar. Nenhuma arte, no entanto, é suficiente para si mesmo, se o fundamento sobre o qual ela se baseia depende de um simples favor.

28. Agora a filosofia não pede favores de nenhuma outra fonte; ela constrói tudo em seu próprio solo; mas a ciência dos números é, por assim dizer, uma estrutura construída sobre a terra de outro homem – ela se baseia em tudo sobre o solo alheio[15]; aceita os primeiros princípios, e por seu favor chega a conclusões adicionais. Se pudesse marchar sem ajuda para a verdade, se pudesse entender a natureza do universo, devo dizer que isso proporcionaria muita ajuda às nossas mentes; pois a mente cresce pelo contato com as coisas celestiais e desenha em si algo de elevado. Há apenas uma coisa que traz a alma à perfeição – o conhecimento inalterável do bem e do mal. Mas não há outra arte que investigue o bem e o mal. Gostaria de passar em revista as várias virtudes.

29. A bravura é um escarnecedor de coisas que inspiram o medo; olha de cima, desafia e esmaga os poderes do terror e tudo que levaria nossa liberdade sob o jugo. Mas os “estudos liberais” fortalecem essa virtude? A lealdade é o bem mais sagrado do coração humano; é impossível ser forçada a traição, e é subornada por nenhuma recompensa. A lealdade clama: “Queime-me, mate-me, destrua-me! Não vou trair a minha confiança, e quanto mais a tortura procurar encontrar o segredo, mais profundo no meu coração, eu o enterrarei!” As “artes liberais” podem produzir esse espírito dentro de nós? Temperança controla nossos desejos; alguns odeia e espanta, outros rege e restaura a uma medida saudável, nem se aproxima de nossos desejos por seu próprio interesse. Temperança sabe que a melhor medida dos apetites não é o que você quer tomar, mas o que você deve tomar.

30. A bondade proíbe que você sobrecarregue seus associados, e ela proíbe que você seja prepotente. Em palavras e em ações e em sentimentos, ela se mostra gentil e atenciosa com todos os homens. Não contabiliza nenhum mal como outro apenas. E a razão pela qual ela ama o seu bem próprio é principalmente porque algum dia será o bem de outro. Os “estudos liberais” ensinam um caráter desse? Não; Não mais do que ensinam simplicidade, moderação e autocontrole, frugalidade e economia, e essa bondade que poupa a vida de um vizinho como se fosse própria e sabe que não é correto o homem desperdiçar o uso de seus semelhantes.

31. “Mas,” diz-se, “porque você declara que a virtude não pode ser alcançada sem os ‘estudos liberais’, como é que você nega que eles ofereçam alguma ajuda à virtude?” Porque você também não pode alcançar a virtude sem comida; e, no entanto, a comida não tem nada a ver com a virtude. A madeira não oferece assistência a um navio, embora um navio não possa ser construído sem madeira. Não há razão, eu digo, para que você pense que qualquer coisa é feita com a assistência daquilo com a qual não possa ser feita.

32. Podemos até mesmo afirmar que é possível alcançar a sabedoria sem os “estudos liberais”; pois, embora a virtude seja uma coisa que deva ser aprendida, não é aprendida por meio desses estudos. Que motivo tenho, no entanto, para supor que alguém que ignore as letras nunca será um homem sábio, já que a sabedoria não pode ser encontrada em letras? A sabedoria comunica fatos e não palavras; e pode ser verdade que a memória é mais confiável quando não tem suporte externo.

33. A sabedoria é uma coisa grande e espaçosa. É necessário muito espaço livre. É preciso aprender sobre coisas divinas e humanas, o passado e o futuro, o efêmero e o eterno; e é preciso aprender sobre o tempo. Veja quantas questões surgem somente sobre o tempo: em primeiro lugar, se é algo em si e por si só; em segundo lugar, se existe alguma coisa antes do tempo ou sem o tempo; e novamente, o tempo começou com o universo, ou, porque havia algo antes do início do universo, o tempo também já existia?

34. Há inúmeras questões sobre a alma: de onde vem, qual é a sua natureza, quando começa a existir e quanto tempo existe; se ela passa de um lugar para outro e muda sua habitação, sendo transferida sucessivamente de uma forma de animal para outra, ou se é escrava apenas uma vez, vagando pelo universo depois que é liberada; seja ela corpórea ou não; o que será dela quando deixar de nos usar como meio; como usará sua liberdade quando escapar da presente prisão; se esquecerá todo o seu passado, e nesse momento começa a se conhecer quando, liberada do corpo, se retira para o céu.

35. Assim, seja qual for a fase das coisas humanas e divinas que você tenha apreendido, você ficará cansado pelo grande número de coisas a serem respondidas e coisas a serem aprendidas. E para que esses sujeitos múltiplos e poderosos possam ter entretenimento gratuito em sua alma, você deve remover de lá todas as coisas supérfluas. A virtude não se renderá a esses limites estreitos; um grande assunto precisa de um amplo espaço para se mover. Deixe que todas as outras coisas sejam expulsas, e deixe o peito ser esvaziado para receber a virtude.

36. “Mas é um prazer estar familiarizado com muitas artes”. Portanto, deixe-nos manter apenas o essencial delas. Você considera culpado, o homem que coloca as coisas supérfluas no mesmo pé das coisas úteis, e em sua casa faz uma exibição pródiga de objetos caros, mas não considera errado quem se permitiu absorver o mobiliário do aprendizado inútil? Esse desejo de saber mais do que o suficiente é uma espécie de intemperança.

37. Por quê? Como essa busca indecorosa das artes liberais torna os homens maçantes, prolixos, sem tato, chatos auto-satisfeitos, que não conseguem aprender o essencial apenas porque aprenderam o não essencial. Dídimo Calcêntero[16], o erudito, escreveu quatro mil livros. Eu deveria sentir pena por ele se ele tivesse lido apenas o mesmo número de volumes supérfluos. Nesses livros, ele investiga o local de nascimento de Homero, quem era realmente a mãe de Eneias, se Anacreonte era mais um libertino ou mais um bêbado, se Safo era uma prostituta e outros problemas, as respostas para as quais, se encontradas, eram imediatamente esquecidas. Convenhamos, não me diga que a vida é longa!

38. Não, quando você considera nossos próprios compatriotas também, posso mostrar-lhe muitas obras que deveriam ser cortadas com o machado. É o custo de um vasto gasto de tempo e de grande desconforto para os ouvidos dos outros que ganhamos tanto elogio como este: “Que homem culto você é!” Deixe-nos contentar com esta recomendação, menos urbana que seja: “Que homem bom você é!

39. Quero realmente dizer isso? Bem, você teria que desenrolar os anais da história do mundo e tentar descobrir quem primeiro escreveu poesia. Ou, na ausência de registros escritos, devo fazer uma estimativa do número de anos entre Orfeu e Homero? Ou devo fazer um estudo sobre as escritas absurdas de Aristarco[17], onde ele plagiou o texto dos versos de outros homens e gastar minha vida nas sílabas? Deveria então revestir-me na poeira dos geómetras[18]? Até agora esqueci essa serra útil? Economizei seu tempo? Preciso saber essas coisas? E o que posso escolher para não saber?

40. Apião, o erudito, que atraiu multidões para suas palestras em toda a Grécia nos dias de Caio César e foi aclamado homérico por todos os estados, costumava defender que Homero, quando terminou seus dois poemas, a Ilíada e a Odisseia, acrescentou um poema preliminar ao seu trabalho, onde abraçou toda a guerra de Tróia. O argumento que Apião aduziu para provar esta afirmação foi que Homero introduziu intencionalmente na primeira linha duas letras que continham uma chave para o número de seus livros.

41. Um homem que deseja saber muitas coisas deve conhecer coisas como essas, e não deve pensar em todo o tempo que perde por saúde, deveres públicos, deveres privados, deveres diários e sono. Aplique a régua aos anos de sua vida; eles não têm espaço para todas essas coisas.

42. Tenho falado até agora de estudos liberais; mas pense quanto de matéria supérflua e pouco prática que os filósofos contêm! Por sua própria conta, eles também se rebaixam para estabelecer boas divisões de sílabas, para determinar o verdadeiro significado de conjunções e preposições; eles têm inveja dos estudiosos, inveja dos matemáticos. Eles passaram a usar em sua própria arte todas as superfluidades dessas outras artes; o resultado é que eles sabem mais sobre falar meticulosamente do que sobre uma vida meticulosa.

43. Deixe-me dizer-lhe quais males são devidos a uma exagerada exatidão, e que inimigo é da verdade! Protágoras declara que se pode tomar qualquer lado em qualquer questão e debatê-la com igual sucesso – mesmo nesta nossa questão, que qualquer assunto pode ser debatido de qualquer ponto de vista. Nausífanes[19] sustenta que, nas coisas que parecem existir, não há diferença entre existência e não-existência.

44. Parmênides sustenta que nada existe de tudo isso que parece existir, exceto o universo exclusivamente. Zenão de Eleia removeu todas as dificuldades removendo uma; pois ele declara que não existe nada. As escolas Pirrônica[20], Megárica[21], Eretrian[22] e Acadêmica estão empenhadas praticamente na mesma tarefa; elas introduziram um novo conhecimento, o não-conhecimento.

45. Você pode varrer todas essas teorias com as tropas supérfluas de estudos “liberais”; uma classe de homens me dá um conhecimento que não servirá de nada, a outra classe acabou com qualquer esperança de alcançar o conhecimento. É melhor, é claro, conhecer coisas inúteis do que não saber nada. Um conjunto de filósofos não oferece luz para que eu possa dirigir meu olhar para a verdade; o outro arranca meus próprios olhos e me deixa cego. Se eu seguir Protágoras, não há nada no esquema da natureza que não seja duvidoso; se eu me segurar com Nausífanes, tenho certeza apenas disso – de que tudo é incerto; se com Parmênides, não há nada exceto o Um; se com Zenão, não existe nem o Um.

46. O que somos, então? O que se torna de todas essas coisas que nos cercam, nos apoiam, nos sustentam? O universo inteiro é então uma sombra vã ou enganosa. Não posso prontamente dizer se estou mais contrariado com aqueles que querem que não conheçamos nada, ou com aqueles que não nos deixariam até mesmo esse privilégio.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] O círculo regular de educação, incluindo gramatica, música, geometria, aritmética, astrologia e certas fases de retórica e dialética, é colocado em contraste com estudos liberais – aqueles que têm como objeto a busca da virtude. Sêneca interpreta “studia liberalia” em um senso superior do que o esperado por seu contemporâneo.

[2] Grammaticus em grego clássico significa “um que está familiarizado com o alfabeto”; na era de Alexandre, um “aluno da literatura”; na era romana o equivalente a litteratus. Sêneca usa aqui como “especialista em ciência linguística”.

[3] Ou seja, a filosofia.

[4] Esta teoria foi aprovada por Demócrito, Hípias de Élis e os intérpretes alegóricos; Xenófanes, Heráclito e Platão condenaram Homero por suas supostas fabricações não filosóficas.

[5] Referência ao episódio em que Calipso oferece a Ulisses a imortalidade, que o herói rejeita. Ver (Odisseia, V, 206

[6] A ilha de Calipso seria um verdadeiro “jardim de Epicuro” (Odisseia, V, 63.); assim como a vida no palácio de Alcínoco (Odisseia, IX, 5.)

[7] “tripartição dos bens” é mencionada em Ilíada, XXIV, 376-7: entre bens do corpo, bens do espírito e bens externos.

[8] Hécuba, na mitologia grega e romana, é mulher de Príamo e mãe de dezenove filhos, entre os quais se contam Heitor, Páris e Cassandra.

[9] Patroclos ou Pátroklos (em grego: Πάτροκλος, “glória do pai”) é um dos personagens centrais da Ilíada, primo e às vezes considerado amante de Aquiles.

[10] Trecho de Georgicas, v. I, de Virgílio.

[11] Saturno e Marte eram consideradas estrelas desafortunadas. Astrologia, que remonta além de 3000 aC. na Babilônia, foi desenvolvida pelos gregos da era de Alexandre e conseguiu um ponto de apoio em Roma, floresceu no século II aC.

[12] Trecho de Georgicas, v. I, de Virgílio. “ignis caeli Cyllenius” é o planeta Mercúrio.

[13] Medicamento usado para provocar o vômito. Os eméticos servem para que o estômago se livre de venenos ou de alimentos que o estejam irritando. Eram usados após banquetes em Roma.

[14] Referidas por Sêneca no início da carta, ou seja, gramática, música, matemática e astronomia.

[15] De acordo com o direito romano, superficies solo cedit, “o prédio vai com o solo”.

[16] Dídimo Calcêntero ou Dídimo de Alexandria (em grego: Διδύμος χαλκέντερος) foi um gramático grego que viveu em Alexandria. Junto a outros quatro gramáticos de Alexandria, nomeadamente Aristônico, Seleuco e Filoxeno, dedicou-se ao estudo dos textos de Homero.

[17] Aristarco da Samotrácia (falecido ca. 144 a.C.) foi um gramático e filólogo Grécia Antiga, pertencente à escola alexandrina, O mais célebre dos seus gramáticos alexandrinos, autor de edições famosas de Homero, Hesíodo e outros poetas.

[18] Os geómetras resolviam os seus problemas desenhando numa superfície coberta de areia as figuras que estudavam

[19] Nausífanes (c. 325 a.C.), nativo de Téos, era ligado à filosofia de Demócrito e seguidor de Pirro de ÉlisTinha um grande número de seguidores, e foi particularmente famoso como retórico. Epicuro foi um dos seus ouvintes, mas insatisfeito com ele, teve uma posição hostil nos seus escritos.

[20] Pirronismo também conhecido como ceticismo pirrônico, foi uma tradição da corrente filosófica do ceticismo fundada por Enesidemo de Cnossos no século I d.C., e registrada por Sexto Empírico no século III. Toma o seu nome de Pirro de Élis, um cético que viveu cerca de 360 a 270 a.C. “Nada pode ser conhecido, nem mesmo isto”.

[21] Escola Megárica foi uma escola filosófica fundada por Euclides de Mégara, combinava as teorias do eleatas e dos socráticos.

[22] A escola de filosofia Eretriana era originalmente Escola de Elis, onde havia sido fundada por Fédon de Elis; Foi posteriormente transferida para Eretria por seu aluno Menedemus.

Carta 85: Sobre Silogismos Vazios

A carta 85 é longa, mas muito interessante e de difícil redução. Vale a pena ser lida integralmente. Responde ao pedido de Lucílio por explicações de silogismos da escola estoica e daqueles usados pelos oponentes. Sêneca reclama que não tem prazer ou vê utilidade nisso, e diz que “o resultado será um livro, em vez de uma carta!” (E com razão, a carta ficou com 41 parágrafos.)

Em resumo, trata-se de uma oposição à doutrina aristotélica do meio-termo também conhecida como “média áurea“. Esta doutrina dos peripatéticos defende que a felicidade seria atingida no meio termo desejável entre dois extremos, um de excesso e outro de deficiência. Sêneca discorda e afirma:

Eles não eliminam as paixões; eles apenas as moderam. Mas quão insignificante é a superioridade que atribuímos ao homem sábio, se ele é apenas mais corajoso do que o mais covarde, mais feliz do que o mais abatido, mais autocontrolado do que o mais desenfreado, e maior do que o mais baixo!” (LXXXV, 4)

Descreve e argumenta porque a escola estoica discorda dos seguidores de Artistóteles e aborda a firmeza de caráter do sábio estoico, assunto explorado em profundidade em “Sobre a Constância do Sábio“. A carta é concluída com um memorável parágrafo:

“Não era só de marfim que Fídias sabia fazer estátuas; ele também fez estátuas de bronze. Se você tivesse lhe dado mármore, ou um material ainda pior, ele teria feito dele a melhor estátua que o material permitiria. Assim, o sábio desenvolverá a virtude, se puder, no meio da riqueza ou, se não, no meio da pobreza; se possível, no seu próprio país – se não, no exílio; Se possível, como comandante – se não, como um soldado comum; se possível, em boa saúde – se não, enfraquecido.” (LVVVX, 40)

Imagem: Mural mostrando Aristóteles e Seus Discípulos. Universidade Nacional Kapodistriana de Atenas por Eduard Lebiedzki


LXXXV. Sobre Silogismos Vazios

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu estava inclinado a poupar você, e omitir qualquer problema intricado que ainda não tínhamos discutido; fiquei satisfeito em dar-lhe uma espécie de gosto das opiniões dos homens de nossa escola, que desejam provar que a virtude é por si só suficientemente capaz de obter a vida feliz. Mas agora você me mandou incluir todo o volume de nossos próprios silogismos ou daqueles que foram imaginados por outras escolas com a finalidade de nos menosprezar. Se eu estiver disposto a fazer isso, o resultado será um livro, em vez de uma carta! E declaro repetidas vezes que não tenho prazer em tais provas. Tenho vergonha de entrar na arena e empreender a batalha em nome dos deuses e dos homens armados apenas com uma sovela[1].

2. “Aquele que possui prudência é também contido, o que possui autocontenção também é inabalável, o inabalável é imperturbável, o imperturbável está livre da tristeza, o que está livre da tristeza é feliz. Portanto, o prudente é feliz, e a prudência é suficiente para constituir a vida feliz“.

3. Alguns dos peripatéticos[2] respondem a este silogismo interpretando “imperturbável”, “inabalável” e “livre da tristeza” de modo a tornar “imperturbável” quem raramente é perturbado e apenas um tanto moderado, e não aquele que nunca é perturbado. Da mesma forma, eles dizem que uma pessoa é dita “livre da tristeza” quando não está sujeita à tristeza, uma pessoa que raramente cai nesse estado censurável, e em um grau não muito grande. Não é, dizem eles, o natural humano que o espírito de um homem deva ser isento de tristeza, ou que o sábio não seja dominado pelo sofrimento, mas é apenas tocado por ele, e outros argumentos deste tipo, tudo de acordo com os ensinamentos de sua escola.

4. Eles não eliminam as paixões; eles apenas as moderam. Mas quão insignificante é a superioridade que atribuímos ao homem sábio, se ele é apenas mais corajoso do que o mais covarde, mais feliz do que o mais abatido, mais autocontrolado do que o mais desenfreado, e maior do que o mais baixo! Teria Ladas[3] orgulho de sua rapidez em correr, comparando-se com os coxos e os fracos?

Ela conseguia voar sobre a ponta das espigas de uma seara vi-rente sem na corrida atingir os tenros grãos; ou percorrer, suspensa, as grossas ondas do mar encapelado sem salpicar sequer os pés velozesIlla vel intactae segetis per summa volaret Gramina nec cursu teneras laesisset aristas, Vel mare per medium fluctu suspensa tumenti Ferret iter celeres nec tingueret aequore plantas.[4]

Esta é a velocidade estimada pelo seu próprio padrão, não do tipo que ganha elogios em comparação com o que é mais lento. Você chamaria de saudável um homem que tem um caso leve de febre? Não, pois uma boa saúde não significa doença moderada.

5. Dizem os peripatéticos: “O sábio é chamado imperturbável no sentido em que as romãs são chamadas maduras – não que não haja dureza em todas as suas sementes, mas que a dureza é menor do que era antes“. Essa visão é errada; pois não me refiro à eliminação gradual dos males em um homem bom, mas à completa ausência de males; não deveria haver nele nenhum mal, nem mesmo pequenos. Pois, se houver, crescerão e, à medida que crescerem, o estorvará. Assim como uma catarata completa cega totalmente os olhos, uma catarata de tamanho médio entorpece a visão.

6. Se por sua definição o homem sábio tem quaisquer paixões, sua razão não será nenhum adversário para elas e será carregada rapidamente, por assim dizer, em um córrego agitado. Particularmente se você atribuir a ele, não uma paixão contra qual deva lutar, mas todas as paixões. E uma multidão de tais, embora moderadas, podem afetá-lo mais do que a violência de uma poderosa paixão.

7. O sábio deles tem um desejo por dinheiro, embora em um grau moderado. Ele tem ambição, mas ainda não está totalmente despertada. Ele tem um temperamento quente, mas pode ser apaziguado. Ele tem inconstância, mas não o tipo que é muito caprichosa ou facilmente posta em movimento. Ele tem luxúria, mas não o tipo violento. Poderíamos lidar melhor com uma pessoa que possua um único vício pleno, do que com alguém que possua todos os vícios, mas nenhum deles em forma extrema.

8. Novamente, não faz diferença a grandeza da paixão; não importa qual seu tamanho possa ser, não reconhece nenhuma obediência, e não dá boas-vindas ao conselho. Assim como nenhum animal, selvagem ou domesticado, obedece à razão, já que natureza os fez surdos ao conselho; assim as paixões não seguem nem escutam, por mais que sejam moderadas. Tigres e leões nunca adiam a sua selvageria; eles às vezes a moderam, e então, quando você está menos preparado, sua ferocidade adormecida é despertada para a loucura. Vícios nunca são domesticados.

9. Novamente, se a razão prevalecer, as paixões nem sequer começarão; mas se elas se encaminharem contra a vontade da razão, elas se manterão contra a vontade da razão. Pois é mais fácil detê-las no começo do que controlá-las quando ganham força. Este meio caminho ( atenuação dos vícios, admitida pelos peripatéticos) é, portanto, enganoso e inútil; deve ser considerado como a declaração de que devemos ser moderadamente insanos ou moderadamente doentes.

10. A só a virtude possui moderação; os males que afligem a alma não admitem moderação. Você pode remove-los mais facilmente do que controlá-los. Pode-se duvidar de que os vícios da mente humana, quando se tornam crônicos e insensíveis (“doenças do espírito” nós os chamamos), estão fora de controle, como, por exemplo, a ganância, a crueldade e a indelicadeza? Portanto, as paixões também estão além do controle; porque é das paixões que passamos aos vícios.

11. Novamente, se você conceder quaisquer privilégios à tristeza, ao medo, ao desejo e a todos os outros impulsos errados, eles deixarão de estar sob nossa jurisdição. E porque? Simplesmente porque os meios de controlá-los estão fora do nosso próprio poder. Consequentemente, aumentarão proporcionalmente à medida que as causas pelas quais são agitados são maiores ou menores. O medo crescerá em proporções maiores, se o que causa o terror é visto como de maior magnitude ou em maior proximidade; e o desejo se tornará cada vez mais intenso na medida em que a esperança de um ganho maior o convoca à ação.

12. Se a existência das paixões não está no nosso próprio controle, nem está também a extensão de seu poder; pois se uma vez permitir que elas comecem, elas aumentarão juntamente com suas causas, e serão de qualquer tamanho que quiserem crescer. Além disso, não importa quão pequenos esses vícios são, eles crescem. O que é prejudicial nunca se mantém dentro dos limites. Não importa quão insignificantes sejam as doenças no começo, elas se arrastam rapidamente; e às vezes o menor aumento da doença derruba o corpo enfraquecido!

13. Mas que loucura é, quando o começo de certas coisas está situado fora de nosso controle, acreditar que seus fins estão sob nosso controle! Como terei eu o poder de trazer algo ao fim, quando eu não tive o poder de interromper isso no começo? Pois é mais fácil evitar uma coisa do que mantê-la sob controle após ela ter se estabelecido.

14. Alguns homens fazem uma distinção, dizendo: “Se um homem tem autocontrole e sabedoria, ele está de fato em paz quanto à atitude e ao hábito de sua mente, mas não quanto ao resultado, pois, no que se refere ao seu hábito mental, ele não está perturbado, triste ou temeroso, mas há muitas causas estranhas que o atingem e trazem perturbação a ele.”

15. O que eles querem dizer é isto: “Fulano não é de fato um homem de disposição irritada, mas ainda assim ele às vezes dá lugar à raiva“, e “ele não está, de fato, inclinado a temer, mas ainda assim às vezes tem medo“; em outras palavras, ele está livre da culpa, mas não está livre da paixão do medo. Se, no entanto, ao medo é dado uma entrada, irá pelo uso frequente passar a um vício; e a raiva, uma vez admitida na mente, irá alterar o hábito anterior de uma mente que antes estava livre de raiva.

16. Além disso, se o homem sábio, ao invés de desprezar todas as causas que vêm de fora, sempre teme alguma coisa, quando chegar o momento de ir bravamente de encontro as lanças ou chamas, em nome de seu país, suas leis, e sua liberdade, ele irá adiante relutantemente e com espírito enfraquecido. Tal inconsistência da alma, no entanto, não se adequa ao caráter de um homem sábio.

17. Então, novamente, devemos fazer com que dois princípios que devam ser demonstrados separadamente não devam ser confundidos. Pois a conclusão é alcançada independentemente de que só o que é bom que é honroso, e novamente independente a conclusão de que a virtude é suficiente para a vida feliz. Se só o que é bom que é honroso, todos concordam que a virtude é suficiente para o propósito de viver felizmente; mas, pelo contrário, se a virtude sozinha faz os homens felizes, não se admite que só o que é bom que é honroso.

18. Xenócrates[5] e Espeusipo[6] afirmam que um homem pode tornar-se feliz mesmo pela virtude sozinha, não, no entanto, que o que é honroso é o único bem[7]. Epicuro também decide que aquele que possui virtude é feliz, mas que a própria virtude não é suficiente para a vida feliz, porque o prazer que resulta da virtude, e não a própria virtude, torna-o feliz. Esta é uma distinção fútil. Pois o mesmo filósofo declara que a virtude nunca existe sem prazer; e portanto, se a virtude está sempre ligada ao prazer e sempre inseparável dela, a virtude é por si só suficiente. Pois a virtude mantém o prazer em sua companhia, e não existe sem ele, mesmo quando está sozinha.

19. Mas é absurdo dizer que um homem será feliz pela virtude sozinha, e ainda não absolutamente feliz. Eu não consigo descobrir como isso pode ser, uma vez que a vida feliz contém em si um bem que é perfeito e não pode ser melhorado, se um homem tem este bem, a vida é completamente feliz. Ora, se a vida dos deuses não contém nada maior ou melhor, e a vida feliz é divina, então não há mais altura para a qual um homem possa ser elevado.

20. Também, se à vida feliz não falta nada, então toda vida feliz é perfeita; é feliz e ao mesmo tempo a mais feliz. Você tem alguma dúvida de que a vida feliz é o Supremo Bem? Consequentemente, se ela possui o Bem Supremo, é supremamente feliz. Assim como o Bem Supremo não admite o aumento (pois o que será superior ao que é supremo?), exatamente assim a vida feliz também não pode ser aumentada; pois não existe sem o Bem Supremo. Se então você apresentar um homem que é “mais feliz” do que outro, você também vai apresentar alguém que é “muito mais feliz”; então você estará fazendo inúmeras distinções no Bem Supremo; embora eu entenda que o Bem Supremo seja aquele bem que não admite nenhum grau acima de si.

21. Se uma pessoa é menos feliz do que outra, segue-se que deseja ansiosamente a vida desse outro homem mais feliz do que a sua. Mas o homem feliz prefere a vida de nenhum outro homem a sua. Qualquer uma dessas duas coisas é incrível: que deva haver qualquer coisa faltando para um homem feliz desejar em preferência ao que é, ou que ele não deva preferir a coisa que é melhor do que o que já tem. Com certeza, quanto mais prudente ele for, tanto mais esforçara-se pelo melhor, e desejará alcançá-lo por todos os meios possíveis. Mas como se pode ser feliz quem ainda é capaz, ou melhor, quem ainda está obrigado a desejar algo mais?

22. Eu lhe direi qual é a origem desse erro: os homens não entendem que a vida feliz é uma unidade; pois é sua essência, e não sua extensão, que estabelece tal vida no mais nobre plano. Daí a completa igualdade entre a vida que é longa e a vida curta, entre aquilo que se estende e o que está confinado, entre aquilo cuja influência é sentida em muitos lugares e em muitas direções, e aquilo que se restringe a um interesse. Aqueles que contam a vida em número, ou por medida, ou por partes, roubam sua qualidade distintiva. Agora, na vida feliz, qual é a qualidade distintiva? É a sua plenitude.

23. Saciedade, penso eu, é o limite para o nosso comer ou beber. A come mais e B come menos; que diferença faz? Cada um está agora saciado. Ou A bebe mais e B bebe menos; que diferença faz? Cada um não está mais sedento, da mesma forma, A vive por muitos anos e B por menos; não importa, se os muitos anos de A trouxeram tanta felicidade quanto os poucos anos de B. Aquele que você diz ser “menos feliz” não é feliz; a palavra não admite nenhuma diminuição.

24. “Quem é valente não conhece o medo; quem não conhece o medo não conhece a tristeza; quem não conhece a tristeza é feliz.”. É a nossa própria escola que fabricou este silogismo; eles tentam refutá-lo com esta resposta, ou seja, que nós estoicos estamos assumindo uma premissa que é falsa e claramente controversa, – que o homem corajoso não sente medo. “O que!” Eles dirão: “Será que o homem corajoso não tem medo dos males que o ameaçam? Esta seria a condição de um louco, um lunático, em vez de um homem corajoso. O homem corajoso, é verdade, sentirá medo em apenas um leve grau, mas ele não está absolutamente livre de medo.”

25. Agora, aqueles que afirmam isso estão voltando a seu antigo argumento, na medida em que consideram os vícios de menor grau como equivalentes às virtudes. Pois, de fato, o homem que sente o medo, embora o sinta raramente e em menor grau, não está livre da maldade, mas está apenas perturbado por ela de uma forma suave. “Não é assim“, é a resposta, “porque eu considero que um homem é louco se ele não tem medo de males que pairam sobre sua cabeça.” O que você diz é perfeitamente verdadeiro, se as coisas que ameaçam são realmente males; mas se ele sabe que não são males e acredita que o único mal é a imoralidade, ele será compelido a enfrentar perigos sem ansiedade e desprezar as coisas que outros homens não podem deixar de temer. Ou, se é a característica de um tolo e um louco não temer males, então quanto mais sábio um homem for mais temerá tais coisas!

26. “É a doutrina de vocês estoicos, então,” eles respondem, “que um homem corajoso se exponha a perigos.” De jeito nenhum; ele simplesmente não os temerá, embora os evite. É bom para ele ter cuidado, mas não ter medo. “E então, não temerá a morte, o aprisionamento, o fogo, e todos os outros ataques da Fortuna?” De modo nenhum; pois ele sabe que eles não são males, mas só parecem ser. Ele considera todas essas coisas como espantalhos para assustar os homens.

27. Trace um quadro de escravidão, chicotes, correntes, carestia, mutilação por doença ou por tortura – ou qualquer outra coisa que possa querer mencionar; ele contará todas essas coisas como terrores causados pelo desarranjo da alma. Essas coisas só devem ser temidas por medrosos. Ou você considera como um mal algo que um dia poderemos ser obrigados a recorrer de nossa livre e espontânea vontade?

28. O que então, você pergunta, é um mal? É a submissão às coisas que se chamam males; é a entrega da própria liberdade ao seu controle, quando realmente devemos sofrer todas as coisas para preservar essa liberdade. A liberdade está perdida a menos que desprezemos as coisas que colocam o jugo[8] nos nossos pescoços. Se os homens soubessem o que é a bravura, eles não teriam dúvidas quanto ao que a conduta de um homem corajoso deveria ser. Pois a bravura não é imprudência, ou amor ao perigo, ou o cortejo de objetos inspiradores do medo; é o conhecimento que nos permite distinguir entre o que é o mal e o que não o é[9]. A bravura cuida de si mesmo, e também atura com a maior paciência todas as coisas que têm uma falsa aparência de serem más.

29. “O que então?” É a questão: “Se a espada é brandida sobre o pescoço do seu corajoso, se ele é perfurado neste lugar, se ele vê suas entranhas no colo, se ele for torturado novamente depois de ter descansado para que possa sentir a tortura com mais intensidade, e se o sangue corre novamente de seu intestino, onde há pouco deixou de fluir, ele não terá medo? Você diz que ele também não sente nenhuma dor?” Sim, ele sente dor; pois nenhuma virtude humana pode se livrar de sentidos. Mas ele não tem medo; sem abalo ele olha a baixo de uma altura elevada sobre seus sofrimentos. Você me pergunta que espírito o anima nessas circunstâncias? É o espírito de alguém que está confortando um amigo doente.

30. “Aquilo que é mau prejudica, o que prejudica piora o homem, mas a dor e a pobreza não pioram o homem, por isso não são males“. “Sua proposição,” diz o objetor, “é errada, pois o que prejudica não necessariamente faz alguém pior, a tempestade e a tormenta prejudicam o piloto, mas não fazem dele um piloto pior.”

31. Alguns estoicos respondem a este argumento da seguinte maneira: “O piloto torna-se um piloto pior por causa de tempestades ou rajadas, na medida em que não consegue cumprir o seu propósito e manter-se em seu curso; não se torna um piloto pior, mas em seu trabalho ele piora“. A isto, os peripatéticos retrucam: “Por isso, a pobreza tornará pior até mesmo o homem sábio, e assim também a dor, assim como qualquer outra coisa semelhante, pois, embora essas coisas não o roubem de sua virtude, elas irão prejudicar o trabalho da virtude“.

32. Esta seria uma afirmação correta, não fosse pelo fato de que o piloto e o sábio são dois tipos diferentes de pessoa. O propósito do homem sábio na condução de sua vida não é concluir todos os perigos que prova, mas fazer todas as coisas corretamente; O propósito do piloto, no entanto, é levar seu navio para o porto em todos os perigos. As artes são servas; elas devem realizar o que prometem fazer. Mas a sabedoria é senhora e governante. As artes rendem o serviço de escravo à vida; a sabedoria emite os comandos!

33. Para mim, eu sustento que uma resposta diferente deve ser dada: que a arte do piloto nunca é piorada pela tempestade, nem a aplicação de sua arte também. O piloto prometeu-lhe, não uma viagem próspera, mas um desempenho útil de sua tarefa – isto é, um conhecimento especializado de dirigir um navio. E quanto mais ele é dificultado pelo estresse da Fortuna, tanto mais seu conhecimento se torna aparente. Aquele que foi capaz de dizer: “Netuno, você nunca afundará este navio, exceto em um mar calmo[10]“, cumpriu os requisitos de sua arte; a tempestade não interfere com o trabalho do piloto, mas apenas com seu sucesso.

34. “O que, então”, você diz, “um piloto não é prejudicado por qualquer circunstância que não lhe permita fazer porto, frustre todos os seus esforços, e que o leva para o fundo, ou segura o navio em ferros ou remove seus mastros?” Não, não o prejudica como piloto, mas apenas como um viajante; caso contrário, ele não é um piloto. Na verdade, está longe de dificultar a arte do piloto, e até mesmo exibe a arte; pois qualquer um, nas palavras do provérbio, é um piloto em um mar calmo. Esses percalços obstruem a viagem, mas não o timoneiro na qualidade de timoneiro.

35. Um piloto tem um duplo papel: um que ele compartilha com todos os seus companheiros de viagem, pois ele também é um passageiro; o outro é peculiar a ele, pois ele é o piloto. A tempestade o prejudica como passageiro, mas não como piloto.

36. Mais uma vez, a arte do piloto é voltada ao exterior – diz respeito aos seus passageiros, assim como a arte de um médico diz respeito a seus pacientes. Mas o bem do sábio é um bem interno – pertence tanto àqueles em cuja companhia ele vive, como a ele também. Daí o nosso piloto pode ser prejudicado, uma vez que seus serviços, que foram prometidos aos outros, são prejudicados pela tempestade;

37. Mas o homem sábio não é prejudicado pela pobreza, pela dor ou por qualquer outra tempestade da vida. Pois todas as suas funções não são restringidas, mas apenas as que pertencem aos outros; ele mesmo está sempre em ação, e é maior em desempenho no momento em que a fortuna atrapalha seu caminho. Pois então ele está realmente envolvido no negócio da sabedoria; e esta sabedoria que já declarei ser, tanto o bem dos outros, como também de si próprio.

38. Além disso, ele não está impedido de ajudar os outros, mesmo no momento em que as circunstâncias restritivas o pressionam. Por causa de sua pobreza, ele é impedido de mostrar como o Estado deve ser governado; mas ele ensina, não obstante, como a pobreza deve ser governada. O seu trabalho continua durante toda a sua vida. Assim, nenhuma fortuna, nenhuma circunstância externa, pode isolar o sábio da ação. Pois a própria coisa que envolve sua atenção o impede de atender a outras coisas. Ele está pronto para qualquer resultado: se traz bens, ele os controla; se males, ele os conquista.

39. Tão profundamente, quero dizer, ele se treinou a demonstrar sua virtude tanto na prosperidade quanto na adversidade, e mantém seus olhos na própria virtude, não nos objetos com os quais a virtude trata. Daí que nem a pobreza, nem a dor, nem qualquer outra coisa que desvie os inexperientes e os conduz ao fracasso, o impede o sábio de seguir seu curso.

40. Você acha que ele está sobrecarregado por males? Ele faz uso deles. Não era só de marfim que Fídias[11] sabia fazer estátuas; ele também fez estátuas de bronze. Se você tivesse lhe dado mármore, ou um material ainda pior, ele teria feito dele a melhor estátua que o material permitiria. Assim, o sábio desenvolverá a virtude, se puder, no meio da riqueza ou, se não, no meio da pobreza; se possível, no seu próprio país – se não, no exílio; Se possível, como comandante – se não, como um soldado comum; se possível, em boa saúde – se não, enfraquecido. Qualquer que seja a fortuna que se encontre, conseguirá algo digno de nota.

41. Alguns dos domadores de animais são infalíveis; eles tomam os animais mais selvagens, que podem muito bem aterrorizar qualquer um que os encontrar, e subjuga-os à vontade do homem, não se contentando em expulsar a sua ferocidade, eles até os domam para que habitem a mesma casa. O treinador coloca a mão na boca do leão; o tigre é beijado por seu dono. O minúsculo etíope ordena o elefante afundar-se em seus joelhos, ou andar a corda. Da mesma forma, o sábio é uma mão qualificada para domar males. A dor, a carestia, a desgraça, a prisão, o exílio – estes são universalmente temíveis – mas quando eles encontram o homem sábio, são domesticados!

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sovela é uma ferramenta utilizada em curtumes e marcenarias que é usada para fazer um furo no couro, por onde, posteriormente uma linha com agulha será adentrada para costura. Alusão a arma não apropriada para a batalha em questão.

[2] Membros da Escola Peripatética, um círculo filosófico da Grécia Antiga que basicamente seguia os ensinamentos de Aristóteles, seu fundador. “Peripatético” (em grego, περιπατητικός), é a palavra grega para ‘ambulante’ ou ‘itinerante’. Peripatéticos (ou ‘os que passeiam’) eram assim chamados em razão do hábito do filósofo de ensinar ao ar livre, caminhando enquanto lia e dava preleções.

[3] Ladas de Aegio foi um antigo atleta grego listado por Eusébio de Cesaréia como vitorioso na corrida de estádios da 125ª Olimpíada (280 AC).

[4] Trecho de Eneida,VII, 808-811 de Virgílio. As linhas descrevem Camilla, a guerreira-caçadora dos Volscos.

[5] Xenócrates (406 a.C. — 314 a.C.) foi um filósofo grego discípulo de Platão, a quem acompanhou à Sicília, sucedendo Espeusipo, após o suicídio deste.

[6]Espeusipo (,408 a.C. — 339 a.C.) foi um filósofo grego, sobrinho de Platão, a quem sucedeu na direção da Academia.

[7] Ver carta LXXI, 18

[8] Jugo, parelha ou canga é uma peça de madeira encaixada sobre a cabeça dos bois para que possam ser atrelados a uma carroça ou a um arado.

[9] Além dessa definição (padrão estoico) da terceira virtude cardinal, também encontramos “conhecimento sobre o que escolher e o que evitar”, “saber suportar as coisas” e, finalmente, “a vontade de empreender grandes feitos”.

[10] A figura do piloto é frequente na filosofia, de Platão em diante. Veja Sêneca, Ep. XXX. O mesmo argumento, aplicado ao músico, é encontrado em Ep.LXXXVII.

[11] Fídias foi um célebre escultor da Grécia Antiga. Sua biografia é cheia de lacunas e incertezas, e o que se tem como certo é que ele foi o autor de duas das mais famosas estátuas da Antiguidade, a Atena Partenos e o Zeus Olímpico, e que sob a proteção de Péricles encarregou-se da supervisão de um vasto programa construtivo em Atenas, concentrado na reedificação da Acrópole, devastada pelos persas em 480 a.C.

Resenha: Sobre a Tranquilidade da Alma

O diálogo Sobre a Tranquilidade da Alma foi claramente escrito como um meio de orientação para todos aqueles que aspirassem a dedicar-se ao aperfeiçoamento moral. É dirigido ao amigo Aneu Sereno destinatário também das obras Sobre a Constância do Sábio e ainda de Sobre o Ócio. Foi um grande amigo de Sêneca, pertencente à ordem equestre, formada pelos cidadãos mais abastados. Sereno também tinha cargo na administração pública, tendo obtido, por influência de Sêneca, a função de praefectus, responsável por combate a incêndios, atividade importante na cidade de Roma.

No texto é dito que o amigo é seguidor de Epicuro, talvez por isso, Sêneca apresenta o estoicismo em termos muito claros e concentra em conselhos construtivos e práticos. Sêneca apresenta a resposta da doutrina estoica para nos ajudar a superar os tormentos causados pelos temores e desejos humanos e alcançar a tranquilidade, o estado ideal de serenidade vivenciado de forma plena e permanente pelo sábio estoico.

Para que a resenha não fique muito longa, está dividida em duas partes, segue a primeira, com meus comentários sobre os primeiros nove capítulos:

Sobre a Tranquilidade da Alma começa com uma carta de Sereno pedindo conselhos e dizendo que sente ter um bom domínio sobre alguns de seus vícios, mas não sobre outros, e,  como resultado disso, sua alma não tem tranquilidade. Diz “Eu não estou doente nem saudável” e percebe que seu julgamento sobre seus próprios assuntos é distorcido por preconceitos pessoais.

Estou bem ciente de que essas oscilações da alma não são perigosas e nem me ameaçam de nenhuma desordem séria. Para expressar aquilo de que me queixo por um simulacro exato, não estou sofrendo de uma tempestade, mas de enjoo do mar. Tire de mim, pois, esse mal, seja ele qual for, e ajude aquele que está em aflição mesmo ao avistar a terra“. (I, 17)

Sereno lista seus problemas:

  • hesitação diante do desejo de bens e de prazeres corporais (§5-9);
  • alternância entre desejo de atuação social e de recolhimento aos estudos (§10-12) ;
  • dilema ético e estético relativo a busca pela fama (§13-14).

Apresentados os sintomas, fazendo uso da imagem do paciente frente ao médico, Sereno pede o diagnóstico e o remédio: “Rogo, então, se tem algum remédio que possa deter esta minha vacilação e me faça digno de lhe dever a paz de espírito”.

A resposta de Sêneca toma os demais capítulos e começa com a descrição completa das características da doença. Informa a Sereno que ele busca a coisa mais importante da vida, um estado que chama de tranquilidade (tranquillitas) e que os gregos chamavam de euthymía(II,3). A definição de tranquilidade é fantastica, e deve ser colocada na íntegra:

“O que buscamos, então, é como a alma pode sempre seguir um rumo firme, sem percalços, pode estar satisfeita consigo mesma e olhar com prazer para o que a rodeia, e não experimentar nenhuma interrupção dessa alegria, mas permanecer em uma condição pacífica, sem nunca estar eufórica ou deprimida: isso será ‘tranquilidade’.” (II,4)

Ele então explica que há vários tipos de homens que não alcançam a tranquilidade da alma, por diferentes razões. Alguns sofrem de inconstância, mudando continuamente seus objetivos e mesmo assim sempre lamentando do que acabaram de desistir. Outros não são inconstantes, mas ficam numa posição infeliz por seu entorpecimento. Eles “continuam a viver não da maneira que desejam, mas da maneira que começaram a viver“, ou seja, por inércia (II,6). Outros ainda acreditam que a maneira de vencer a sua inconstância é viajando para longe, mas é claro que apenas carregam consigo seus próprios problemas: “Assim, cada um sempre foge de si mesmo” (II,14). Sêneca conclui seu preâmbulo sugerindo que nossos problemas não residem no lugar onde vivemos, mas em nós mesmos, e retoricamente pergunta: “Por quanto tempo vamos continuar fazendo a mesma coisa? (II,15)

A partir do capítulo III Sêneca apresenta uma série de conselhos específicos para Sereno sobre como alcançar a tranquilidade da alma. O primeiro vem de Atenodoro: “O melhor é ocupar-se dos negócios, da gestão dos assuntos do Estado e dos deveres de um cidadão“. Isso porque estar a serviço dos outros e do próprio país é, ao mesmo tempo, exercitar-se em uma atividade e fazer o bem. Mas também se pode fazer o bem e manter-se ocupado engajando-se na filosofia. Esse tipo de ocupação proporcionará satisfação e, portanto, tranquilidade de espírito e tornará nossas vidas diferentes daquelas de pessoas que não terão nada para mostrar ao final das suas: “Muitas vezes um homem de idade avançada não tem outro argumento com que comprove ter vivido longo tempo exceto seus anos.” Segue-se então com preceitos sobre atividades e sobre o ócio (negotia × otium).

Nos capítulos VI e VII Sêneca elucida como se auto avaliar e assim conseguir escolher um caminho onde é possível ter sucesso. Começa por advertir seu amigo que é comum as pessoas pensarem que podem conseguir mais do que realmente conseguem. A pessoa sábia, ao invés disso, está ciente das suas limitações. Também é preciso lembrar que algumas buscas simplesmente não valem o esforço e devemos nos afastar delas porque nosso tempo na vida é curto e precioso. E então, diz Sêneca, “apegue-se a algo que possa terminar, ou, pelo menos, que acredite poder terminar” (VI,4). Devemos também ter cuidado na escolha de nossos associados, dedicando partes de nossas vidas a pessoas que valham o esforço. Além disso, nossas buscas devem ser do tipo que nós realmente gostamos, se possível: “pois nenhum bem se faz forçando a alma a se engajar em um trabalho não apropriado: quando a Natureza resiste, o esforço é vão.“(VII,2)

Os capítulos VIII e IX tratam de preceitos sobre o patrimônio, “fonte mais fértil das dores humanas” (VIII,1). Sêneca adverte Sereno que, em sua experiência, os ricos não suportam perdas melhor do que os pobres, pois “dói aos carecas tanto quanto aos cabeludos terem seus cabelos arrancados” (VIII,3).

“Patrimônio, essa fonte mais fértil das dores humanas: se compararmos todos os outros males de que sofremos – mortes, enfermidades, medos, arrependimentos, dores e fadigas – com as misérias que o nosso dinheiro nos inflige, este último pesará muito mais do que todos os outros. Reflita, pois, quanto menos dor é nunca ter tido dinheiro do que tê-lo perdido. (VIII, 1-2)

É por isso que Diógenes não era dono de nada, para impossibilitar que alguém pudesse tirar algo dele: “Fortuna, não se intrometa: Diógenes não tem mais nada que lhe pertença“(VIII,7).

É claro que o próprio Sêneca não era nenhum Diógenes, e na verdade era um homem muito rico. Ele frequentemente foi atacado e acusado de hipocrisia por causa disso, mas seu ponto é que não se deve ter apego aos bens materiais. É possível ter bens, desde que não seja possuído por seu patrimônio. Ainda assim, na mesma seção ele aconselha a reduzir a quantidade de nossos bens, de modo a diminuir a probabilidade de nos apegarmos a eles de forma exagerada:

Nunca poderemos afastar a tão profunda e vasta diversidade da iniquidade com que somos ameaçados a ponto de não sentir o peso de muitas tempestades, se oferecermos largas velas ao vento do mar” (IX,3).

O capítulo IX termina com uma frase muito citada de Sêneca, porém citada de forma enganosa, pois ele critica homens que compram livros e não os estudam:

Você verá as obras de todos os oradores e historiadores empilhadas sobre estantes que chegam até o teto. Nos dias de hoje, uma biblioteca tornou-se tão necessária como um apêndice de uma casa como um banho quente e frio.” (IX,7)

Paramos por aqui. E alguns dias sigo com o restante da obra.


Disponível nas lojas:  Amazon, Kobo, Apple e GooglePlay.

Carta 81: Sobre Benefícios e sua Retribuição

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A carta 81 é outra excelente fonte de ensinamento estoico. Nela Sêneca resume magnificamente o livro de sua autoria Sobre os Benefícios (De Beneficiis) e explica porque doar e conceder benefícios é mais vantajoso para aquele que dá do que para quem os recebe.

Começa com uma discussão, que segundo ele faltou no livro: Como ponderar uma pessoa que nos concedeu um benefício e depois nos prejudicou. Sêneca diiz:

“…o homem bom será flexível em alcançar um equilíbrio; ele vai permitir que muito seja colocado contra o seu crédito. O lado em que ele se inclinará, a tendência que ele exibirá, é o desejo de estar sob as obrigações do favor, e o desejo de retribuir por isso. Pois qualquer um que receba um benefício mais alegremente do que o retribua está em erro. Tanto quanto aquele que paga é mais alegre do que aquele que pede emprestado, por tanto deve ser mais alegre aquele que se desembaraça da maior dívida – um benefício recebido – do que aquele que incorre nas maiores obrigações…. Um homem é um ingrato se paga um favor sem juros. Portanto, os juros também devem ser ponderados, quando comparar suas receitas e suas despesas.” (LXXXI, 17-18)

Resolvida a questão proposta, Sêneca discorre longamente sobre as vantagens obtidas pelo doador, lançando várias frases de efeito:

  • Não há um homem que, quando tenha beneficiado o seu próximo, não se tenha beneficiado; §19
  • o prêmio de uma boa ação é tê-la praticado. §19
  • A maldade torna os homens infelizes e a virtude torna os homens abençoados; §21
  • O próprio mal bebe a maior parte de seu próprio veneno: §22
  • O que é mais miserável do que um homem que esquece seus lucros e se apega a seus prejuízos? §23

Conclui a carta alertando do risco de se conceder benefícios para pessoas ingratas. Segundo Sêneca um ingrato sente-se humilhado por ter recebido benefício fará tudo para se eximir da retribuição:

“Nossa loucura é tão ampla que é uma coisa muito perigosa conferir grandes benefícios a uma pessoa; pois só porque ele pensa que é vergonhoso não pagar, então ele não deixará vivo ninguém a quem ele deva pagar. ” (LXXXI, 32)

A carta é longa mais vale a leitura integral!

Imagem: Afresco Festa familiar em Pompeia Museo Archeologico Nazionale di Napoli


LXXXI. Sobre Benefícios e sua Retribuição

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você se queixa de ter encontrado com uma pessoa ingrata. Se esta é a sua primeira experiência desse tipo, você deve agradecer a sua boa sorte ou a sua cautela. Neste caso, entretanto, o cuidado não pode fazer nada além de torná-lo pouco generoso. Pois se quiser evitar tal perigo, não vai conferir benefícios; e assim, que os benefícios não possam ser perdidos com outro homem, eles serão perdidos para si mesmo. É melhor, porém, obter nenhum retorno do que não conferir benefícios. Mesmo depois de uma colheita ruim deve-se semear de novo; pois muitas vezes as perdas devidas à aridez contínua de um solo improdutivo são compensadas por um ano de fertilidade.

2. Para descobrir uma pessoa grata, vale a pena testar muitos ingratos. Nenhum homem tem uma mão tão infalível quando confere benefícios que ele não seja frequentemente enganado; é bom para o viajante a vaguear, pois assim ele pode abrir novos caminhos. Depois de um naufrágio, os marinheiros tentam o mar novamente. O banqueiro não é espantado para longe do fórum pelo vigarista. Se alguém for obrigado a abandonar tudo o que causa problemas, a vida logo ficaria enfadonha em meio à ociosidade indolente; mas no seu caso esta situação pode levá-lo a se tornar mais caridoso. Pois quando o resultado de qualquer empreendimento é incerto, deve-se tentar novamente e novamente, a fim de se ter sucesso em última instância.

3. Contudo, discuti o assunto com suficiente plenitude nos volumes que escrevi, intitulados “Sobre os Benefícios[2]“. O que eu acho que deve, principalmente, ser investigado é isso: – um ponto que sinto não ter sido suficientemente claro: “Se aquele quem nos ajudou e quitou a conta e libertou-nos de nossa dívida, se ele nos faz mal mais tarde.” Você pode adicionar esta pergunta também, se quiser: “quando o dano feito mais tarde é maior do que a ajuda prestada anteriormente.”

4. Se você está procurando a decisão formal e justa de um juiz rigoroso, verá que ele examina um ato pelo outro, e declara: “Embora as lesões superam os benefícios, no entanto, devemos creditar aos benefícios qualquer coisa que resta mesmo depois da lesão”. O dano causado foi realmente maior, mas o ato útil foi feito primeiro. Daí o tempo também deve ser levado em conta.

5. Outros casos são tão claros que eu não preciso lembrá-lo que deve também olhar pontos como: De quão bom grado a ajuda foi oferecida, e como relutantemente o dano foi feito, – já que benefícios, bem como lesões, dependem do espírito. “Eu não queria conferir o benefício, mas fui conquistado pelo meu respeito ao homem, ou pela importunidade do seu pedido, ou pela esperança.”

6. Nosso sentimento sobre cada obrigação depende, em cada caso, do espírito no qual o benefício é conferido; Nós não pesamos a maior parte da oferta, mas a qualidade da boa vontade que a incitou. Então, vamos acabar com a adivinhação; a ação anterior era um benefício, e a última, que transcendia o benefício anterior, é uma lesão. O homem bom organiza assim os dois lados de seu livro de registro o qual ele voluntariamente se ilude, adicionando ao benefício e subtraindo da lesão. O mais indulgente magistrado, no entanto (e eu prefiro ser tal), vai nos pedir para esquecer a lesão e lembrar o benefício.

7. “Mas certamente”, diz você, “é o papel da justiça dar a cada um o que é seu devido: graças em troca de um benefício e castigo, ou ao menos má vontade, em troca de um prejuízo!” Isto, eu digo, será verdadeiro quando for um homem quem infligiu a injúria, e um homem diferente quem tenha conferido o benefício; pois se for o mesmo homem, a força da lesão é anulada pelo benefício conferido. Na verdade, um homem que deve ser perdoado, embora não tenha boas obras creditadas a ele no passado, deve receber algo mais do que mera clemência se comete um erro quando tem um benefício a seu crédito.

8. Eu não estabeleço um valor igual em benefícios e lesões. Eu considero um benefício com uma taxa mais alta do que uma lesão. Nem todas as pessoas gratas sabem o que implica estar em dívida por um benefício; mesmo um sujeito insensato, bruto, um da multidão comum, pode saber, especialmente logo após receber o beneficio; mas ele não sabe quão profundamente está em dívida por isso. Somente o sábio sabe exatamente que valor deve ser colocado em tudo; para o tolo que acabei de mencionar, não importa o quão boa as suas intenções possam ser, ou paga menos do que deve, ou paga no momento errado ou no lugar errado. Aquilo por que deveria retribuir, ele desperdiça e perde.

9. Há uma fraseologia maravilhosamente precisa aplicada a certos assuntos, uma terminologia estabelecida há muito tempo que indica certos atos por meio de símbolos que são mais eficientes e que servem para delinear os deveres dos homens. Nós, como você sabe, costumamos falar assim: “A. fez uma retribuição pelo favor concedido por B.” Fazer uma retribuição significa entregar por sua própria conta o que você deve. Não dizemos: “Ele reembolsou o favor”; pois “reembolsar” é usado para um homem sobre quem uma exigência de pagamento é feita, daqueles que pagam contra a sua vontade. Daqueles que pagam em circunstância qualquer, e daqueles que pagam através de um terceiro. Não dizemos: “Ele restaurou o benefício”, ou “acertou a conta”; nós nunca ficamos satisfeitos com uma palavra que se aplica adequadamente a uma dívida de dinheiro.

10. Fazer uma retribuição significa oferecer algo a quem havia lhe dado algo. A frase implica um retorno voluntário. O sábio investigará em sua mente todas as circunstâncias: quanto ele recebeu, de quem, quando, onde, como. E assim declaramos que ninguém, a não ser o sábio, sabe como retribuir por um favor; além disso, só o sábio sabe conferir um benefício, aquele homem, quero dizer, que goza do dar mais do que o destinatário goza do recebimento.

11. Agora, alguém considerará essa observação como uma das declarações geralmente surpreendentes, como nós, os estoicos, costumamos fazer e como os gregos chamam de “paradoxos”, e dirão: “Você sustenta, então, que só o sábio sabe como devolver um favor? Você sustenta que ninguém mais sabe como fazer a restauração de um credor para uma dívida? Ou, ao comprar uma mercadoria, para pagar o valor total para o vendedor? A fim de não trazer qualquer ódio sobre mim, deixe-me dizer-lhe que Epicuro diz a mesma coisa. De qualquer modo, Metrodoro observa que só o homem sábio sabe como devolver um favor.

12. Mais uma vez, o objetor mencionado acima pergunta: “Somente o homem sábio sabe amar, só o homem sábio é um verdadeiro amigo”. No entanto, é uma parte do amor e da amizade devolver favores; além disso, é um ato comum, e acontece com mais frequência do que a amizade real. Novamente, este mesmo objetor se pergunta ao nosso dizer: “Não há lealdade senão no homem sábio”, como se ele mesmo não dissesse a mesma coisa! Ou você acha que há alguma lealdade naquele que não sabe como devolver um favor?

13. Esses homens, portanto, devem deixar de nos desacreditar, como se estivéssemos proferindo uma vanglória impossível; eles devem entender que a essência da honra reside no homem sábio, enquanto entre a multidão encontramos apenas o espectro e a semelhança de honra. Ninguém exceto o homem sábio sabe como devolver um favor. Até um tolo pode devolvê-lo em proporção ao seu conhecimento e ao seu poder; sua falta seria uma falta de sabedoria e não uma falta da vontade ou do desejo. A vontade não vem pelo ensino.

14. O sábio comparará todas as coisas umas com as outras; pois o mesmo objeto se torna maior ou menor, de acordo com o tempo, o lugar e a causa. Muitas vezes, as riquezas que são gastas em profusão em um palácio podem não realizar tanto quanto mil denários dados no momento certo. Agora, faz muita diferença se você der sem qualquer reserva, ou vir à assistência de um homem, se a sua generosidade pode salva-lo, ou defini-lo na vida. Muitas vezes o donativo é pequeno, mas as consequências grandes. E que distinção você imagina que existe entre tomar algo de que alguém carece, – algo que foi oferecido, – e receber um benefício a fim de conferir outro em troca?

15. Mas não devemos voltar ao assunto que já investigamos suficientemente. Neste equilíbrio de benefícios e lesões, o bom homem, com certeza, julgará com o mais alto grau de justiça, mas inclinará para o lado do benefício; ele se voltará mais rapidamente nessa direção.

16. Além disso, em casos deste tipo, a pessoa em questão costuma contar muito. Os homens dizem: “Você me concedeu um benefício em relação ao escravo, mas você me feriu no caso de meu pai” ou “Você salvou meu filho, mas me roubou um pai”. Da mesma forma, ele vai acompanhar todos os outros assuntos em que as comparações podem ser feitas, e se a diferença é muito leve, ele vai fingir não a notar. Mesmo que a diferença seja grande, contudo, se a concessão pode ser feita sem prejuízo do dever e da lealdade, nosso bom homem ignorará isso, desde que a lesão afete exclusivamente o próprio homem bom.

17. Resumindo, a questão está assim: o homem bom será flexível em alcançar um equilíbrio; ele vai permitir que muito seja colocado contra o seu crédito. Ele não estará disposto a pagar um benefício contrabalanceando uma lesão. O lado em que ele se inclinará, a tendência que ele exibirá, é o desejo de estar sob as obrigações do favor, e o desejo de retribuir por isso. Pois qualquer um que receba um benefício mais alegremente do que o retribua está em erro. Tanto quanto aquele que paga é mais alegre do que aquele que pede emprestado, por tanto deve ser mais alegre aquele que se desembaraça da maior dívida – um benefício recebido – do que aquele que incorre nas maiores obrigações.

18. Pois os homens ingratos cometem erros também neste aspecto: eles têm de pagar aos seus credores capital e juros, mas eles pensam que benefícios são moeda que podem usar sem juros. Assim, as dívidas crescem através do adiamento, e quanto mais tarde a ação é adiada, mais permanece a ser pago. Um homem é um ingrato se paga um favor sem juros. Portanto, os juros também devem ser ponderados, quando comparar suas receitas e suas despesas.

19. Devemos tentar por todos os meios ser o mais grato possível. Pois a gratidão é uma coisa boa para nós mesmos, num sentido em que a justiça, que comumente é tida como preocupada com as outras pessoas, não é; A gratidão retorna em grande medida a si mesma. Não há um homem que, quando tenha beneficiado o seu próximo, não se tenha beneficiado, – não quero dizer que quem você ajudou desejará ajudá-lo, ou que aquele quem você defendeu desejará proteger você, ou que um exemplo de boa conduta retorne em círculo para beneficiar o executor, assim como exemplos de má conduta retrocedem sobre seus autores e como os homens não sentem piedade se sofrem injustiças que eles mesmos demonstraram a possibilidade de cometer; Mas que a recompensa por todas as virtudes está nas próprias virtudes. Pois elas não são praticadas com vista a recompensa; o prêmio de uma boa ação é tê-la praticado.

20. Sou grato, não para que meu vizinho, provocado pelo ato de bondade anterior, esteja mais pronto a me beneficiar, mas simplesmente para que eu possa realizar um ato muito agradável e belo; sinto-me grato, não porque me beneficie, mas porque me agrada. E, para provar a verdade disto a você, eu declaro que mesmo que eu não possa ser grato sem parecer ingrato, mesmo que eu possa manter um benefício somente por um ato que se assemelhe a uma ofensa; ainda assim, esforçar-me-ei na mais absoluta calma do espírito para o propósito que a honra exige, no meio da desgraça. Ninguém, eu penso, julga melhor a virtude ou é mais devotado à virtude do que aquele que perde a reputação de ser um bom homem para não perder a aprovação de sua consciência.

21. Assim, como eu disse, seu ser grato é mais propício ao seu próprio bem do que ao bem do seu próximo. Pois, enquanto o seu vizinho tem uma experiência cotidiana e banal, ou seja, receber de volta o presente que ele havia concedido, você teve uma grande experiência que é o resultado de uma condição de alma totalmente feliz, ter sentido gratidão. Pois se a maldade torna os homens infelizes e a virtude torna os homens abençoados, e se é uma virtude ser grato, então o retorno que você fizer é apenas o costume habitual, mas a coisa que você alcança é inestimável, a consciência da gratidão, que só vem à alma que é divina e abençoada. O sentimento oposto a isso, porém, é imediatamente acompanhado pela maior infelicidade; nenhum homem, se for ingrato, será infeliz só no futuro. Não lhe concedo nenhum dia de graça; ele será infeliz imediatamente.

22. Evitemos, portanto, sermos ingratos, não por causa dos outros, mas por nós mesmos. Quando fazemos o mal, somente a parcela menor e mais leve flui para o nosso próximo; o pior e, se eu posso usar o termo, a parte mais densa dele fica em casa e causa problemas para o proprietário. Meu mestre Átalo costumava dizer: “O próprio mal bebe a maior parte de seu próprio veneno”. O veneno que as serpentes carregam para a destruição de outros, e secretam sem dano a si mesmas, não é como este veneno; pois este tipo é ruinoso para o possuidor.

23. O homem ingrato tortura-se e atormenta-se; ele odeia os presentes que ele aceitou, porque ele deve fazer uma retribuição por eles, e ele tenta diminuir seu valor, mas ele realmente amplia e exagera as lesões que ele recebeu. E o que é mais miserável do que um homem que esquece seus lucros e se apega a seus prejuízos? A sabedoria, por outro lado, concede graça a todos os benefícios e, por sua própria vontade, recomenda-os a seu favor, e deleita sua alma pela lembrança contínua deles.

24. Os homens maus têm somente um prazer nos benefícios, e um prazer muito curto nisso; só dura enquanto os recebe. Mas o sábio deriva deles uma alegria permanente e eterna. Pois não se compraz tanto no presente como também em tê-lo recebido; e esta alegria nunca perece; ela permanece com ele sempre. Ele despreza os erros contra ele; ele os esquece, não acidentalmente, mas voluntariamente.

25. Ele não põe uma intenção maldosa sobre tudo, ou procura alguém que possa responsabilizar por cada acontecimento; ele atribui até mesmo os pecados dos homens ao acaso. Ele não interpretará mal uma palavra ou um olhar; ele faz a luz de todos os percalços, interpretando-os de uma forma generosa. Ele não se lembra de uma lesão em lugar de um serviço. Tanto quanto possível, ele deixa sua memória descansar sobre a ação anterior e melhor, nunca mudando sua atitude para com aqueles que quiseram o seu bem, exceto nas situações onde os maus atos distanciam muito do bem, e o espaço entre eles é óbvio até mesmo para aquele que fecha os olhos para ele; mesmo assim, até este ponto, em que ele se esforça, depois de ter recebido o dano preponderante, para retomar a atitude que manteve antes de receber o benefício. Pois quando a lesão simplesmente é igual ao benefício, uma certa quantidade de sentimento agradável resta.

26. Assim como um réu é absolvido quando os votos são iguais, e assim como o espírito de bondade sempre tenta dobrar todo caso duvidoso para a interpretação mais bondosa, assim também a mente do sábio, quando os méritos de outro meramente igualam seus maus atos, deixará, com certeza, de se sentir obrigado, mas não deixará de desejar senti-lo, e age precisamente como o homem que paga suas dívidas mesmo depois de terem sido legalmente canceladas.

27. Mas ninguém pode ser grato a menos que tenha aprendido a desprezar as coisas que levam a multidão comum à distração; se você deseja retribuir um favor, você deve estar disposto a ir para o exílio, – ou derramar seu sangue, ou sofrer a pobreza, ou – e isso vai acontecer com frequência, – até mesmo para deixar a sua própria inocência ser manchada e exposta a calúnias vergonhosas. Não é nenhum preço leve que um homem deve pagar para ser grato.

28. Nós não consideramos nada mais caro do que um benefício, enquanto estivermos buscando um; não consideramos nada mais barato depois que o recebemos. Você pergunta o que é que nos faz esquecer os benefícios recebidos? É a nossa cobiça extrema por receber outros. Consideramos não o que obtivemos, mas o que estamos a procurar. Somos desviados do curso certo por riquezas, títulos, poder e tudo o que é valioso em nossa opinião, mas desprezível quando avaliado em seu valor real.

29. Não sabemos como ponderar os assuntos; devemos nos aconselhar sobre eles, não por sua reputação, mas por sua natureza; essas coisas não possuem grandeza para encantar nossas mentes, exceto pelo fato de que nos acostumamos a maravilhar-se com elas. Pois não são louvadas porque devem ser desejadas, mas são desejadas porque foram louvadas; e quando o erro de indivíduos cria erro por parte do público, então o erro público continua a criar erro por parte dos indivíduos.

30. Mas, assim como assumimos cegamente tais estimativas de valor, então assumamos cegamente esta verdade de que nada é mais honrado do que um coração grato. Esta frase será ecoada por todas as cidades, e por todas as raças, mesmo por aqueles de países selvagens. Sobre este ponto – bons e maus concordam.

31. Alguns elogiam o prazer, alguns preferem o trabalho; alguns dizem que a dor é o maior dos males, alguns dizem que não é mal algum; alguns incluirão riquezas no Bem Supremo, outros dirão que sua descoberta significou dano à raça humana, e que ninguém é mais rico do que aquele a quem a Fortuna não encontrou nada para dar. Em meio a toda essa diversidade de opinião, todos os homens ainda com uma só voz, como diz o ditado, votam “sim” para a proposição de que devemos retribuir a aqueles que desejaram bem de nós. Sobre esta questão a multidão comum, rebelde como é, concorda integralmente, mas no presente continuamos a retribuir lesões em vez de benefícios, e a principal razão por que um homem é ingrato é que ele achou impossível ser suficientemente grato.

32. Nossa loucura é tão longa que é uma coisa muito perigosa conferir grandes benefícios a uma pessoa; pois só porque ele pensa que é vergonhoso não pagar, então ele não deixará vivo ninguém a quem ele deva pagar. “Guarde para si mesmo o que você recebeu, eu não o peço de volta – eu não o exijo, fique seguro de ter conferido um favor.” Não há pior ódio do que aquele que brota da vergonha da profanação de um benefício.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Na tradução para o inglês o título usado é “On Benefits“ (sobre benefícios)

[2] De Beneficiis é uma obra de Sêneca, composta de sete livros. É parte de uma série de tratados sobre fenômenos naturais e ensaios morais que exploram questões filosóficas como a providência, a perseverança, a raiva, lazer, tranquilidade, a brevidade da vida, o perdão, a felicidade e a troca de presentes.

Carta 79: Sobre as Recompensas da Pesquisa Científica

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Na carta 79 Sêneca discorre sobre o dever do estudioso de conhecer a natureza, via pesquisa cientifica. Sabendo que Lucílio faria uma viagem à ilha da Sicília, recomenda que estude o mar no caminho e que estude e escreva sobre o vulcão Etna:

“…terei a ousadia de pedir-lhe para executar outra tarefa, – também para subir o Etna[3], a meu pedido especial. Certos naturalistas inferiram que a montanha está se esgotando e gradualmente diminuindo, porque os marinheiros costumavam vê-la a partir de uma maior distância.” (LXXIX, 2)

Sêneca defende o conhecimento é domínio público e é propriedade comum a todos, sendo válido o uso dos trabalhos de cientistas anteriores: “já à mão as palavras que, quando empacotadas de uma maneira diferente, mostram um novo rosto. E não os está roubando, como se pertencessem a outra pessoa, quando os usa, porque são propriedades comum a todos.(LXXIX, 6)

Para Sêneca, devemos desvendar a natureza para o bem da humanidade, pois “milhares de anos e milhares de povos virão após você; é a estes que você deve ter consideração.” (LXXIX, 17)

Nesta carta cita novamente Epicuro e diz que o cientista , assim como o sábio, não é suplantado por outro: quando descobrem algo e desvendam um mistério da natureza todos estão no topo, igualmente virtuosos:

A sabedoria tem esta vantagem, entre outras, – que nenhum homem pode ser superado por outro, exceto durante a escalada. Mas quando você chega ao topo, é um empate; não há espaço para mais subida, o jogo acabou. (LXXIX, 8)

Imagem: Etna visto de Taormina por Thomas Cole.


LXXIX. Sobre as Recompensas da Pesquisa Científica

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Tenho aguardado uma carta de você, em que me informasse da novidade revelada durante a sua viagem ao redor da Sicília, e sobretudo para me dar mais informações sobre a própria Caríbdis[1]. Eu sei muito bem que Cila é uma rocha – e de fato uma rocha não temida pelos marinheiros; mas no que diz respeito a Caríbdis, gostaria de ter uma descrição completa, para ver se ela concorda com os relatos da mitologia; e, se você tem por acaso investigado (pois é realmente digno de sua investigação), por favor me esclareça sobre o seguinte: É açoitada em um redemoinho constante causado por vento de uma única direção, ou todas as tempestades servem para perturbar a sua profundidade? É verdade que os objetos arrastados para baixo pelo redemoinho nesse estreito são transportados por muitos quilômetros debaixo de água, e então chegam à superfície na praia perto de Taormina[2]?

2. Se você me escrever um relato completo desses assuntos, então terei a ousadia de pedir-lhe para executar outra tarefa, – também para subir o Etna[3], a meu pedido especial. Certos naturalistas inferiram que a montanha está se esgotando e gradualmente diminuindo, porque os marinheiros costumavam vê-la a partir de uma maior distância. A razão para isto pode ser, não que a altura da montanha esteja diminuindo, mas porque as chamas se tornaram mais fracas e as erupções menos fortes e copiosas, e porque, pela mesma razão, a fumaça também é menos ativa durante o dia. Entretanto, qualquer uma destas duas coisas é possível acreditar: que por um lado a montanha está decrescendo porque é consumida dia a dia, e que, por outro lado, permanece do mesmo tamanho porque a montanha não está se devorando, mas, em vez disso, a matéria que que a faz ferver se reúne em algum vale subterrâneo e é alimentada por outro material, encontrando na montanha não o alimento que ela requer, mas simplesmente uma passagem.

3. Há um lugar bem conhecido na Lícia[4] – chamado pelos habitantes “Heféstion” – onde o chão está cheio de buracos em muitos lugares e é cercado por um fogo inofensivo, que não prejudica as plantas que crescem lá. Daí que o lugar seja fértil e exuberante em crescimento, porque as chamas não queimam, mas simplesmente brilham com uma força suave e fraca.

4. Mas adiemos esta discussão, e examine o assunto quando você me der uma descrição de quão distante a neve está da cratera, – quero dizer, a neve que não derrete mesmo no verão, tão segura que está do fogo adjacente. Mas não há motivo para que você cobre este trabalho em minha conta; pois você está prestes a satisfazer sua própria mania de escrever bem, sem incumbência de ninguém.

5. Não, o que posso oferecer-lhe senão apenas descrever o Etna em seu poema, e tocar ligeiramente em um tópico que é uma questão de ritual para todos os poetas? Ovídio não pôde ser impedido de usar este tema simplesmente porque Virgílio já o havia coberto inteiramente; nem nenhum desses escritores assustou Cornélio Severo. Além disso, o tema tem servido a todos com resultados felizes, e aqueles que foram antes me parecem não ter antecipado tudo o que poderia ser dito, mas apenas ter aberto o caminho.

6. Faz muita diferença se você se aproxima de um assunto que foi esgotado, ou um que o terreno foi simplesmente quebrado; neste último caso, o tópico cresce dia a dia, e o que já foi descoberto não impede novas descobertas. Além disso, quem escreve o último tem o melhor do negócio; ele encontra já à mão as palavras que, quando empacotadas de uma maneira diferente, mostram um novo rosto. E não os está roubando, como se pertencessem a outra pessoa, quando os usa, porque são propriedades comum a todos.

7. Agora, se o Etna não faz a sua boca salivar, eu estou equivocado com você. Há algum tempo que você deseja escrever algo no estilo grandioso e no nível da velha escola. Pois a sua modéstia não lhe permite elevar suas esperanças; essa sua qualidade é tão pronunciada que, para mim, é provável que reduza a força de sua capacidade natural, como se houvesse qualquer perigo superar os outros; é assim que você reverência os antigos mestres.

8. A sabedoria tem esta vantagem, entre outras, – que nenhum homem pode ser superado por outro, exceto durante a escalada. Mas quando você chega ao topo, é um empate; não há espaço para mais subida, o jogo acabou. Pode o sol adicionar ao seu tamanho? A lua pode avançar além de sua plenitude habitual? Os mares não aumentam a granel. O universo mantém o mesmo caráter, os mesmos limites.

9. As coisas que atingiram a sua plena estatura não podem crescer mais. Os homens que alcançaram a sabedoria serão, portanto, iguais e em pé de igualdade. Cada um deles possuirá seus próprios dons peculiares – um será mais afável, outro mais fácil, outro mais pronto de fala, um quarto mais eloquente; mas no que diz respeito à qualidade em discussão, – o elemento que produz felicidade, – é igual em todos eles.

10. Não sei se este Etna seu pode desabar e cair em ruínas, se sua cúpula elevada, visível por muitos quilômetros do alto mar, é desgastado pelo poder incessante das chamas; mas sei que a virtude não será reduzida a um plano inferior por chamas ou por ruínas. Sua é a única grandeza que não conhece rebaixamento; não pode haver para ela mais crescimento ou redução. Sua estatura, como a das estrelas no céu, é fixa. Por isso, esforçamo-nos por elevar-nos a esta altitude.

11. Já grande parte da tarefa foi cumprida; ou melhor, se eu puder confessar a verdade, não muito. Pois o bem não significa meramente ser melhor do que o mais baixo. Quem que pudesse pegar senão um mero vislumbre da luz do dia teria orgulho de seus poderes de visão? Quem vê o sol brilhar através de uma névoa pode estar contente que tenha escapado das trevas, mas ainda não desfruta a bênção da luz.

12. Nossas almas não terão razão para se regozijar de sua sorte, até que, libertadas desta escuridão em que elas tateiam, não tenham apenas vislumbrado o brilho com a visão fraca, mas tenham absorvido a plena luz do dia e tenham sido restauradas em seu lugar no céu, – até que, de fato, elas recuperem o lugar que ocuparam na atribuição de seu nascimento. A alma é convocada a cima pela sua própria origem. E alcançará esse objetivo antes mesmo de ser libertada da prisão aqui embaixo, assim que tiver rejeitado o pecado e, com pureza e leveza, ter saltado para os reinos celestiais do pensamento.

13. Alegra-me, amado Lucílio, que este ideal nos ocupa, que o persigamos com todas as nossas forças, ainda que poucos o saibam ou até ninguém. A fama é a sombra da virtude; ela atenderá à virtude mesmo contra sua vontade. Porém, como a sombra às vezes precede e às vezes segue ou até mesmo se atrasa, a fama algumas vezes nos precede e se mostra à vista, e às vezes está na retaguarda, e é tanto maior quanto mais tarde chegar, uma vez que a inveja bater em um retiro.

14. Por quanto tempo os homens acreditavam que Demócrito estava louco? A glória mal chegou a Sócrates. E quanto tempo permanecemos ignorando Catão! Eles o rejeitaram e não conheceram o seu valor até o perderem. Se Rutílio não se tivesse resignado a errar, sua inocência e virtude teriam escapado notícia; a hora de seu sofrimento foi a hora de seu triunfo. Ele não deu graças por sua fortuna, e acolheu seu exílio com os braços abertos? Já mencionei até agora aqueles a quem a Fortuna trouxe renome no próprio momento da perseguição; mas quantos são aqueles cujo progresso em direção à virtude veio à luz somente após sua morte! E quantos foram arruinados, não resgatados, por sua reputação?

15. Há Epicuro, por exemplo; como é admirado, não só pelos mais cultos, mas também por esta turba ignorante. Este homem, entretanto, era desconhecido por Atenas. E assim, quando já havia sobrevivido por muitos anos seu amigo Metrodoro, acrescentou em uma carta estas últimas palavras, proclamando com gratidão a amizade que havia existido entre eles: “Tão grandiosamente abençoados fomos Metrodoro e eu que não houve nenhum prejuízo para nós sermos desconhecidos e quase não percebidos, nesta famosa terra da Grécia”.

16. Não é verdade, então, que os homens os descobriram depois de terem cessado de ser? Por acaso a sua fama não brilhou? Metrodoro também admite esse fato em uma de suas cartas: que Epicuro e ele não eram bem conhecidos do público; mas ele declara que, após a vida de Epicuro e de sua própria, qualquer homem que pudesse querer seguir seus passos ganharia grande e pronto renome.

17. Virtude nunca é perdida de vista; e ainda ter sido despercebida não é perda. Chegará um dia que a revelará, mesmo escondida ou reprimida pelo despeito de seus contemporâneos. Esse homem nasce apenas para alguns, que só pensa nas pessoas de sua própria geração. Muitos milhares de anos e milhares de povos virão após você; é a estes que você deve ter consideração. Maldade pode ter imposto silêncio sobre a boca de todos os que estavam vivos em sua época; mas haverá homens que o julgarão sem preconceitos e sem favores. Se há alguma recompensa que a virtude recebe das mãos da fama, nem mesmo isso pode expirar. Nós mesmos, de fato, não seremos afetados pela conversa da posteridade; todavia, a posteridade nos acalentará e nos celebrará, embora não poderemos ter consciência disso.

18. A virtude nunca falhou em recompensar um homem, tanto durante a sua vida como depois da sua morte, desde que a tenha seguido fielmente, desde que não se tenha enfeitado ou pintado a si próprio, mas tenha sido sempre o mesmo, quer tenha aparecido perante os olhos dos homens depois de ser anunciada, ou de repente e sem preparação. O fingimento não realiza nada. Poucos são enganados por uma máscara que é facilmente retirada do rosto. A verdade é a mesma em cada parte. As coisas que nos enganam não têm substância real. Mentiras são coisas franzinas; elas são transparentes, se você as examinar com cuidado.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.     


[1] Caríbdis, era uma criatura marinha protetora de limites territoriais no mar. Em outra tradição, seria um turbilhão criado por Poseidon. Homero posicionou-a como entidade mitológica. Na tradição mitológica grega, Caríbdis era habitualmente relacionada a Cila, outro monstro marinho. Os dois moravam nos lados opostos do estreito de Messina, que separa a penínsnula Itálica da Sicília, e personificavam os perigos da navegação perto de rochas e redemoinhos. Três vezes por dia, sorvia as águas do mar e três vezes por dia tornava a cuspi-las.

[2] Taormina é uma cidade no topo da colina na costa leste da Sicília. Fica perto do Monte Etna, um vulcão ativo com trilhos até ao cume. A cidade é conhecida pelo Teatro Antico di Taormina, um antigo teatro greco-romano que ainda está em funcionamento. Perto do teatro, os penhascos debruçam-se sobre o mar e formam grutas com praias arenosas.

[3] O Etna é um vulcão ativo situado na parte oriental da Sicília, entre as províncias de Messina e Catânia. É o mais alto vulcão da Europa e um dos mais altos do mundo, atingindo aproximadamente 3350 metros de altitude, variando devido às frequentes erupções.

[4] Lícia era o nome de uma região da antiga Ásia Menor (Anatólia) onde hoje estão localizadas as províncias de Antália e Muğla, na costa sul da moderna Turquia,

Apatheia e Ataraxia: conceito e diferenças

Apatheia e Ataraxia: conceito e diferenças

Ataraxia (em grego: Ἀταραξία) traduz-se por “ausência de inquietude/preocupação“, “tranquilidade de ânimo”. É um conceito epicurista.

Apatheia (em grego: ἀπάθεια, (a)- “ausência” e  (pathos) – “sofrimento” ou “paixão”) é um estado de espírito alcançado quando uma pessoa está livre de perturbações emocionais. É um conceito estoico.

Os estoicos e os epicuristas frequentemente travavam disputa uns com os outros. Epicteto explica em várias passagens onde a Estoa difere do Jardim (“Contra Epicuro”, Discursos 1.23), já Sêneca diz a seu amigo Lucílio que toma emprestado alegremente de Epicuro quando faz sentido, dado que é seu “porque eu sou acostumado a entrar até mesmo no campo do inimigo, – não como um desertor, mas como um observador.” (Carta 2: Sobre a falta de foco no Estudo).

A grande diferença entre as duas escolas, como sabemos, é que os estoicos acreditavam que a coisa crucial na vida era a virtude e o seu desenvolvimento, enquanto os epicuristas defendiam que o propósito seria buscar o prazer e evitar o dor.

Não obstante, as duas escolas defendiam que um componente crucial da eudaimonia (vida boa) era algo muito similar, ao que os estoicos se referiam como apatheia (literalmente, estar sem paixões) e os epicuristas, como ataraxia (literalmente, “tranquilidade”). Há, no entanto, algumas diferenças entre os dois conceitos na maneira como as duas escolas ensinavam como se atingir estes respectivos estados de espírito.

No que diz respeito aos estoicos, é bom lembrar que “paixão” não significava o que agora queremos dizer pelo termo, e de fato não significava sequer “emoção” no sentido moderno do termo. É por isso que é incorreto dizer que os estoicos visavam a uma vida desapaixonada, ou à supressão das emoções.

De fato, eles dividem as “paixões” em insalubres e salubres. O primeiro grupo incluía a dor, o medo, a ânsia e o prazer. O segundo, a cautela, a vontade e a alegria/deleite. Os últimos três eram o oposto do primeiro grupo, com a exceção da dor, que não tem uma contraparte positiva. Eis um diagrama sumário:

Pathê
paixões insalubres
Eupatheiai
Paixões saudáveis
Dor (ou sofrimento): falha em evitar algo ruim /(não há dor emocional racional)
Medo: expectativa irracional de algo nocivo xCautela: aversão racional ao vício e coisas nocivas
Ânsia (ou Luxúria): busca irracional por algo considerado bom por erro. x Desejo/vontade: busca racional pelo que é virtuoso
Prazer: euforia irracional por algo que não vale ser perseguido xAlegria/deleite: gozo racional pelo virtuoso (o que é bom)

No que diz respeito aos estoicos, é bom lembrar que “paixão” não tinha o significado atual, e na verdade nem sequer significava “emoção” no sentido moderno do termo. Assim, é completamente incorreto dizer que os estoicos visavam uma vida sem paixão, ou a supressão da emoção. Na verdade, eles dividiram as “paixões” em paixões insalubres e saudáveis. O primeiro grupo incluiu o medo, o desejo, o prazer/luxúria e a dor. O segundo, “cautela“, “vontade” e “deleite“. Para a “dor” não havia uma contraparte positva.

Assim, para os estoicos, as “paixões” não são reações automáticas, instintivas, que não podemos evitar sentir. Pelo contrário, são o resultado de um julgamento, de um consentimento a uma sensação. Portanto, ao ler a palavra “medo”, não pense na resposta automática que é de fato inevitável quando nos é apresentado algo perigoso (mesmo que apenas aparentemente). O que os estoicos queriam dizer com “medo” era o que vem depois: a nossa opinião ponderada sobre o que causou a reação instintiva. A psicologia estoica é sutil: eles sabiam que nós temos respostas automáticas que não estão sob nosso controle. Por isso eles se concentraram no que está sob nosso controle: o julgamento feito sobre as causas prováveis de nossas reações instintivas, um julgamento feito pelo que Marco Aurélio chamava de faculdade dominante (raciocínio).

Os estoicos também usam em seu vocabulário ataraxia, não apenas apatheia. Uma maneira de pensar sobre a relação entre os dois é que a apatheia, uma mudança de emoções negativas para positivas, que por sua vez produz ataraxia, uma sensação de tranquilidade que vem de ter desenvolvido uma atitude de equanimidade em relação ao que quer que o mundo nos lance.

A diferença crucial entre as duas escolas é que chegam até a eudaimonia a por caminhos bem diferentes. Os epicuristas buscaram acima de tudo evitar a dor, o que significava especialmente privar-se da vida social e política. Era bom, para Epicuro, cultivar suas amizades íntimas, mas tentar ter um papel pleno na política era uma maneira segura de sofrer (física e mentalmente) e portanto deveria ser evitado. Os estoicos, ao contrário, abraçavam a vida social. Marco Aurélio escreve constantemente nas Meditações que precisamos levantar de manhã e fazer o trabalho de um ser humano, que significa sermos úteis para a sociedade. Para os estoicos, o sábio poderia ser feliz até na ruína e passando por enorme sofrimento, contanto que esteja exercendo a sua virtude e agindo para o benefício da humanidade. Isso seria inconcebível para um epicurista.

Leia também:

Carta 72: Sobre os negócios como inimigo da filosofia

Na carta 72 Sêneca diz que, ao invés do usualmente feito,  devemos priorizar o estudo da filosofia, deixando os negócios em segundo plano, ou melhor ainda, abandonado completamente.

Segundo ele, a preocupação com negócios é sinal de uma sabedoria imperfeita, sinal de preocupação com bens materiais externos:

“São aqueles que ainda estão aquém da perfeição cuja felicidade pode ser quebrada; a alegria de um homem sábio, por outro lado, é um tecido entrelaçado, quebrada por nenhum acontecimento casual e ou mudança de sorte; em todos os momentos e em todos os lugares ele está em paz. Pois a sua alegria não depende de nada externo e não busca nenhuma bênção do homem ou da fortuna. Sua felicidade é algo dentro de si mesmo.” (LXXII, 4)

Precisamos ter em mente que Sêneca estava falando da alta classe romana, pessoas de muitas posses que não precisavam “cuidar dos negócios” para manterem um alto padrão material de vida. Ele próprio, sempre atarefado e comprometido com negócios (como afirma no início da carta) ainda está se esforçando para atingir a sabedoria.

O importante é saber se contentar com o suficiente e lembrar que “a fortuna não nos dá nada que possamos realmente possuir.” Ao final da carta cita uma analogia de seu professor de estoicismo, Átalo:

“Você alguma vez já viu um cachorro que pula com mandíbulas abertas em pedaços de pão ou carne que seu mestre atira a ele? Seja o que for que pegar, imediatamente engolirá tudo e sempre abre suas mandíbulas na esperança de algo mais, assim é com nós mesmos, ficamos expectantes, e tudo o que a Fortuna nos lança, abocanhamos imediatamente sem nenhum prazer real, e logo ficamos atentos e frenéticos por algo mais a arrebatar”. (LXXII, 8)

Sêneca diz que não é assim com o sábio; ele está satisfeito. Mesmo que lhe seja oferecido algo, ele simplesmente o aceita e o deixa de lado.

Imagem: Detalhe de David de Michelangelo.


LXXII. Sobre os negócios como inimigo da filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. O assunto sobre o qual você me pergunta já estava claro em minha mente, e não exigiu nenhum pensamento, tão completamente eu o tinha dominado. Mas não testei a minha memória por algum tempo, e, portanto, não o tinha de prontidão. Sinto que sofri o destino de um livro cujas páginas estão presas por desuso; minha mente precisa ser desenrolada, e tudo o que foi armazenado lá deve ser examinado de vez em quando, para que possa estar pronto para uso quando a ocasião exigir. Vamos, portanto, colocar este assunto para o presente; pois exige muito trabalho e muito cuidado. Assim que eu puder esperar permanecer por algum tempo no mesmo lugar, eu então tomarei sua pergunta à mão.
  2. Pois há certos assuntos sobre os quais você pode escrever, mesmo quando viaja em uma biga, e há também assuntos que precisam de uma cadeira de estudo, calma e reclusão. No entanto, eu deveria concluir algo mesmo em dias como estes, – dias que são totalmente empregados, e de fato de manhã até à noite. Pois nunca há um momento em que novas ocupações não surjam; nós as semeamos, e por esta razão várias germinam. Então, continuamos adiando nossos próprios casos, dizendo: “Assim que eu terminar com isso, eu estabelecerei um trabalho árduo”, ou: “Se eu conseguir colocar este assunto problemático em ordem, deverei dedicar-me ao estudo.”
  3. Mas o estudo da filosofia não deve ser adiado até que você tenha tempo livre; tudo o mais deve ser negligenciado para que possamos atender à filosofia, pois não há tempo suficiente para isso, mesmo que nossas vidas sejam prolongadas desde a infância até os limites extremos do tempo alocado ao homem. Faz pouca diferença se você abandona completamente a filosofia ou a estuda intermitentemente; porque ela não permanece como estava quando você a deixou, mas, porque sua continuidade foi quebrada, ela volta para a posição em que estava no início, como coisas que se despedaçam quando são tensionadas. Devemos resistir aos assuntos que ocupam nosso tempo; eles não devem ser desembaraçados, mas sim colocados fora do caminho. Na verdade, não há tempo que seja inadequado para estudos úteis; e ainda assim muitos homens falham em estudar em meio às circunstâncias que tornam necessário o estudo.
  4. Ele diz: “Algo acontecerá para me atrasar.” Não, não no caso do homem cujo espírito, não importa qual seja o seu negócio, está feliz e alerta. São aqueles que ainda estão aquém da perfeição cuja felicidade pode ser quebrada; a alegria de um homem sábio, por outro lado, é um tecido entrelaçado, quebrada por nenhum acontecimento casual e ou mudança de sorte; em todos os momentos e em todos os lugares ele está em paz. Pois a sua alegria não depende de nada externo e não busca nenhuma bênção do homem ou da fortuna. Sua felicidade é algo dentro de si mesmo; ele se afastaria de sua própria alma se ela tivesse vindo de fora; contudo ela nasce dentro.
  5. Às vezes, um acontecimento externo lembra sua mortalidade, mas é um golpe leve, e apenas roça a superfície de sua pele. Alguns problemas, repito, podem tocá-lo como um sopro de vento, mas esse Bem Supremo dele é inabalável. Isto é o que quero dizer: há desvantagens externas, como espinhas e furúnculos que irrompem sobre um corpo que é normalmente forte e sadio; mas não há uma doença profunda.
  6. A diferença, digamos, entre um homem de sabedoria perfeita e outro que está progredindo em sabedoria é a mesma diferença entre um homem saudável e um que está convalescente de uma doença grave e prolongada, para quem a “saúde” significa apenas um ataque mais leve de sua doença. Se este não toma cuidado, há uma recaída imediata e um retorno ao mesmo velho problema; mas o homem sábio não pode escorregar para trás, ou escorregar em qualquer doença. Pois a saúde do corpo é uma questão temporária que o médico não pode garantir, mesmo que tenha restaurado; e, muitas vezes, é retirado de sua cama para visitar o mesmo paciente que o convocou antes. A mente, entretanto, uma vez curada, é curada para sempre.
  7. Vou dizer-lhe o que quero dizer com saúde: se a mente está contente com seu próprio eu; se tiver confiança em si mesmo; se compreender que todas as coisas pelas quais os homens oram, todos os benefícios que são concedidos e pedidos, não são importantes em relação a uma vida de felicidade; Pois qualquer coisa que pode ser acrescida é imperfeita; qualquer coisa que possa sofrer perda não é duradoura; mas deixe o homem cuja felicidade é duradoura regozijar-se no que é verdadeiramente seu[1]. Agora tudo o que a multidão se embasbaca, mais tarde decai e escoa. A fortuna não nos dá nada que possamos realmente possuir. Mas mesmo esses presentes da Fortuna nos satisfazem quando a razão os tem temperado e misturado a nosso gosto; pois é a razão que nos torna aceitáveis até mesmo bens externos que são desagradáveis usar se os absorvemos com avidez.
  8. Átalo costumava empregar a seguinte analogia: “Você alguma vez já viu um cachorro que pula com mandíbulas abertas em pedaços de pão ou carne que seu mestre atira a ele? Seja o que for que pegar, imediatamente engolirá tudo e sempre abre suas mandíbulas na esperança de algo mais, assim é com nós mesmos, ficamos expectantes, e tudo o que a Fortuna nos lança, abocanhamos imediatamente sem nenhum prazer real, e logo ficamos atentos e frenéticos por algo mais a arrebatar”. Mas não é assim com o sábio; ele está satisfeito. Mesmo que lhe seja oferecido algo, ele simplesmente o aceita descuidadamente e o deixa de lado.
  9. A felicidade que ele desfruta é supremamente grande, é duradoura, é sua própria. Suponha que um homem tenha boas intenções e faça progressos, mas ainda esteja longe das alturas; o resultado é uma série de altos e baixos; ele agora é elevado ao céu, agora trazido à terra. Para aqueles que não têm experiência e treinamento, não há limite para o curso de decadência; tal cair no Caos de Epicuro[2], – vazio e ilimitado.
  10. Há ainda uma terceira classe de homens, aqueles que brincam com sabedoria, eles ainda não a tocaram, mas a têm a vista, e a têm, por assim dizer, a uma distância razoável. Eles não são precipitados, tampouco derrapam; eles não estão em terra firme, mas já estão no porto.
  11. Portanto, considerando a grande diferença entre as alturas e as profundezas, e vendo que mesmo aqueles no meio são perseguidos por um fluxo e refluxo peculiar ao seu estado e perseguido também por um enorme risco de retornar aos seus degenerados costumes, não devemos nos entregar a assuntos que ocupam nosso tempo. Eles devem ser excluídos; se uma vez ganharem entrada, eles trarão outros ainda para tomar seus lugares. Vamos resistir a eles em seus estágios iniciais. É melhor que eles nunca comecem do que tenham que ser eliminados.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Nossas vidas são meramente emprestadas para nós; A natureza retém o dominium. Compare também a figura frequente por Sêneca de que a vida é como uma pousada, em contraste com uma casa sobre a qual se é proprietário.

[2] O vazio (oco), ou espaço infinito, em contraste com os átomos que formam novos mundos em sucessão contínua.

Resenha: A Vida Feliz (De Vita Beata)

Depois da Leitura da Carta de Epicuro sobre a Felicidade, retomamos o estoicismo com uma nova leitura de Vita Beata,  Sobre a Felicidade de Sêneca.

Sêneca faz grande oposição ao epicurismo, corrente filosófica que valoriza o prazer como fonte de felicidade. Talvez este diálogo tenha sido escrito como um contraponto à Carta a Meneceu:Você se dedica aos prazeres, eu os controlo; você se entrega ao prazer, eu o uso; você pensa que é o bem maior, eu nem penso que seja bom: por prazer não faço nada, você faz tudo.”  (X, 3 ).

A principal coisa a entender sobre o texto é o próprio título: ‘Feliz‘ aqui não tem a conotação moderna de se sentir bem, mas é o equivalente da palavra grega eudaimonia, que é melhor compreendida como uma vida digna de ser vivida, um estado de plenitude do ser. Para Sêneca e para os estoicos, a única vida que vale a pena ser vivida é aquela de retidão moral, o tipo de existência à qual olhamos no final e podemos dizer honestamente que não nos envergonhamos.

Logo no primeiro parágrafo Sêneca dá a linha da argumentação estoica: Não devemos ter a felicidade como objetivo: “não é fácil alcançar a felicidade já que quanto mais avidamente um homem se esforça para alcançá-la mais ele se afasta”.(I,1) a conclusão é que A solução é ter como objetivo a virtude, a felicidade será consequência.

No capítulo XV, Sêneca explica por que não se pode simplesmente associar a virtude ao prazer. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, o prazer o levará a territórios não virtuosos:

Quem, por outro lado, forma uma aliança, entre a virtude e o prazer, obstrui qualquer força que uma possa possuir pela fraqueza da outra, e envia liberdade sob o jugo, pois a liberdade só pode permanece inconquistável enquanto não sabe nada mais valioso do que ela mesma: pois começa a precisar da ajuda da Fortuna, o que é a mais completa escravidão: sua vida torna-se ansiosa, cheia de suspeitas, tímida, temerosa de acidentes, esperando em agonia por momentos críticos. Você não oferece à virtude uma base sólida e imóvel se você a colocar sobre o que é instável: e o que pode ser tão instável quanto a dependência do mero acaso e as vicissitudes do corpo e daquelas coisas que agem sobre o corpo?”. (XV, 3 )

O livro fornece uma lista de regras pelas quais Sêneca está tentando viver. Vale a pena considerá-las na íntegra:

• Eu vou encarar a morte ou a vida a mesma expressão de semblante;
• Eu desprezarei as riquezas quando as tiver tanto quanto quando não as tiver;
• Verei todas as terras como se pertencessem a mim, e as minhas terras como se pertencessem a toda a humanidade;
• Seja o que for que eu possua, eu não vou acumulá-lo avidamente nem o desperdiçar de forma imprudente;
• Não farei nada por causa da opinião pública, mas tudo por causa da consciência;
• Ao comer e beber, meu objetivo é extinguir os desejos da natureza, não encher e esvaziar minha barriga;
• Eu serei agradável com meus amigos, gentil e suave com meus inimigos;
• Sempre que a Natureza exigir minha vida, ou a razão me pedir que a rejeite, vou desistir desta vida, chamando a todos para testemunhar que amei uma boa consciência e boas atividades;

(imagem  Herbert James DraperUlises e as Sereias)


Livro disponível na lojas:

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Livro: Carta a Meneceu sobre a felicidade

Com muito cuidado e desconfiança, O Estoico,  seguindo o conselho de Sêneca, resolveu entrar no campo do inimigo!

“A reflexão para hoje é uma que eu descobri em Epicuro; porque eu sou acostumado a entrar até mesmo no campo do inimigo, – não como um desertor, mas como um observador.” (II,2)

Em suas Cartas a Lucílio, Sêneca usa o nome “Epicuro” 78 vezes.  Além das referências explícitas, usa em diversas ocasiões utiliza os termos “jardim“(8x) e “antagonista / oponente“(6x) sempre em alusão ao epicurismo.

Obviamente vale a pena estudar e conhecer mais do epicurismo, para que possamos fazer uma oposição justa e ponderada. Vamos a resenha:

A busca pela felicidade é o tema central da Carta a Meneceu, e os caminhos para se chegar a ela são dois: a saúde do corpo e a serenidade do espírito. O controle sobre o desejo também é visto como um importante meio para a felicidade e que o homem sábio consegue ser feliz só com o que é estritamente necessário. Aborda também o medo da morte, e sua futilidade.

Pelos pontos abordados, vemos que a preocupação de Epicuro é a mesma dos estoicos, ou seja,  como viver uma boa vida.

“Não existe nada de terrível na vida para quem está perfeitamente convencido de que não há nada de terrível em deixar de viver. É tolo, portanto, quem diz ter medo da morte, não porque a chegada desta lhe trará sofrimento, mas porque o aflige a própria espera: aquilo que não nos perturba quando presente não deveria afligir-nos enquanto está sendo esperado.”

O parágrafo acima não tem conflito algum com a teoria estoica.  Poderia estar num livro do Sêneca. (pensando bem,  está! consultem “Sobre a Brevidade da Vida“)

Depois escorrega feio e diz algo completamente oposto ao estoicismo:

“É por essa razão que afirmamos que o prazer é o início e o fim de uma vida feliz. Com efeito, nós o identificamos como o bem primeiro e inerente ao ser humano, em razão dele praticamos toda escolha e toda recusa, e a ele chegamos escolhendo todo bem de acordo com a distinção entre prazer e dor.”

Mas depois dessa decaída ao hedonismo, Epicuro tenta colocar ordem na casa, colocando limites ao prazer: “Habituar-se às coisas simples, a um modo de vida não luxuoso, portanto, não só é conveniente para a saúde, como ainda proporciona ao homem os meios para enfrentar corajosamente as adversidades da vida“.

Recomendo a leitura,  é interessante para conhecer, perceber as semelhanças e traçar as diferenças do Epicurismo e Estoicismo, os arquirrivais da filosofia.


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Carta 52: Escolhendo nossos professores

Sêneca diz que raros  homens acham seu caminho para a verdade sem a ajuda de ninguém, talhando sua própria passagem, e que a maioria precisa de professores, dividindo essa classe entre aqueles com aptidão para aprender e os demais que precisam lutar contra sua natureza.

considero mais afortunado o homem que nunca teve problemas com ele mesmo; mas o outro, eu sinto, é mais merecedor de si mesmo, pois ganhou uma vitória sobre a mesquinhez de sua própria natureza e não se conduziu suavemente, mas lutou seu caminho até a sabedoria.“(LII, 6)

O tema da carta é como escolher professores.

Escolha como um guia quem você vai admirar mais ao vê-lo agir do que ao ouvi-lo falar.”(LII, 8)

Diz que um guia não deve procurar aplausos:

Pois o que é mais ordinário do que a filosofia que busca aplausos? O doente elogia o cirurgião enquanto está sendo operado? …
Quão estupido é aquele que sai da sala de aula num feliz estado de espírito simplesmente por causa dos aplausos dos ignorantes! Por que você tem prazer em ser louvado por homens que você mesmo não pode elogiar?” (LII, 9-11)

Imagem: Escultura “Self made man” por Bobbie Carlile


LII. Escolhendo nossos professores

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. O que é esta tendência, Lucílio, que nos arrasta em uma direção quando estamos mirando em outra, nos incitando ao lugar exato do qual nós desejamos nos retirar? O que é que luta com o nosso espírito e não nos permite desejar nada de forma definitiva? Passamos de plano em plano, a deriva. Nenhum de nossos desejos é livre, nenhum é incondicional, nenhum é duradouro.
  2. Mas é o tolo”, você diz, “que é inconsistente, nada lhe convém por muito tempo.” Mas como, ou quando, podemos nos afastar dessa loucura? Nenhum homem por si só tem força suficiente para se elevar acima dela, ele precisa de uma mão amiga e alguém para desenredá-lo.
  3. Epicuro observa que certos homens têm trabalhado seu caminho para a verdade sem a ajuda de ninguém, talhando sua própria passagem. E ele dá louvor especial a estes, porque o seu impulso veio de dentro e eles têm avançado para a frente por si mesmos.[1] Novamente, diz ele, há outros que precisam de ajuda externa, que não prosseguirão a menos que alguém conduza o caminho, mas que irão seguir fielmente. Destes, diz ele, Metrodoro era um. Este tipo de homem também é excelente, mas pertence ao segundo grau. Nós também não somos dessa primeira classe, seremos bem tratados se formos admitidos no segundo. Nem preciso desprezar um homem que pode obter a salvação apenas com a ajuda de outro, a vontade de ser salvo significa muito também.
  4. Você encontrará ainda outra classe de homem, uma classe a não ser desprezada, que pode ser forçada e empurrada para a virtude, que não precisa só de um guia, mas também exige alguém para encorajar, por assim dizer, para forçá-lo. Esta é a terceira variedade. Se você me pedir um exemplo de homem deste padrão, Epicuro nos diz que Hermarco[2] era tal. E das duas últimas classes, ele está mais pronto para parabenizar a primeira, mas sente mais respeito pela outra: embora ambas tenham atingido o mesmo objetivo, é um crédito maior ter trazido ao mesmo resultado o material mais difícil sobre o qual trabalhar.
  5. Suponha que dois edifícios foram erguidos, diferentes em suas fundações, mas iguais em altura e em grandeza. Um é construído em terreno sem falhas e o processo de construção vai direto para a frente. No outro caso, as fundações esgotaram os materiais de construção, porque foram afundadas em terra macia e pouco firme e muito trabalho foi necessário para alcançar a rocha maciça. Quando se olha para ambos, vê-se claramente o progresso que o primeiro fez, mas a parte maior e mais difícil do segundo está oculta.
  6. Assim, também é com as disposições dos homens, alguns são flexíveis e fáceis de manejar, mas outros têm de ser trabalhados laboriosamente, por assim dizer, e são empregados totalmente na fabricação de seus próprios fundamentos. Por isso considero mais afortunado o homem que nunca teve problemas com ele mesmo; mas o outro, eu sinto, é mais merecedor de si mesmo, pois ganhou uma vitória sobre a mesquinhez de sua própria natureza e não se conduziu suavemente, mas lutou seu caminho até a sabedoria.
  7. Você pode ter certeza de que essa natureza refratária, que exige muito trabalho, é a que foi implantada em nós. Há obstáculos em nosso caminho, então vamos lutar e chamar ao nosso auxílio alguns ajudantes. “Quem,” você diz, “eu devo invocar? Será este ou aquele homem?” Há outra opção também aberta para você, você pode ir para os antigos, pois eles têm tempo para ajudá-lo. Podemos obter ajuda não só dos vivos, mas também daqueles do passado.
  8. Entretanto, entre os vivos, vamos escolher não os homens que derramam as suas palavras com a maior desenvoltura, revelando trivialidades e citações, por assim dizer, as suas próprias pequenas exposições particulares – não estes, digo eu, mas sim os homens que nos ensinam com suas vidas, os homens que nos dizem o que devemos fazer e depois provam pela prática, o que devemos evitar, e então nunca são pegos fazendo o que eles nos ordenaram evitar. Escolha como um guia quem você vai admirar mais ao vê-lo agir do que ao ouvi-lo falar.
  9. Naturalmente, não o impedirei de ouvir também aqueles filósofos que costumam fazer sessões e discussões públicas, desde que compareçam perante o povo com o propósito expresso de melhorar a si mesmos e aos outros e não pratiquem sua profissão por egoísmo. Pois o que é mais ordinário do que a filosofia que busca aplausos? O doente elogia o cirurgião enquanto está sendo operado?
  10. Em silêncio e com respeito reverente submetemo-nos à cura. Mesmo que você grite por aplausos, vou ouvir seus gritos como se você estivesse gemendo quando suas feridas são tocadas. Deseja dar testemunho de que está atento, de que está tocado pela grandeza do assunto? Você pode fazer isso no momento adequado, naturalmente, permitirei que você faça julgamento e que decida sobre o melhor curso. Pitágoras fazia seus alunos manterem-se em silêncio por cinco anos, você acha que eles tinham o direito de repentinamente entrar em aplausos?
  11. Quão estupido é aquele que sai da sala de aula num feliz estado de espírito simplesmente por causa dos aplausos dos ignorantes! Por que você tem prazer em ser louvado por homens que você mesmo não pode elogiar? Fabiano[3] costumava dar palestras populares, mas seu público ouvia com autocontrole. Ocasionalmente, um grande grito de louvor brotava, mas era provocado pela grandeza de seu assunto e não pelo som da oratória que deslizava agradável e suavemente.
  12. Deve haver uma diferença entre os aplausos do teatro e os aplausos da escola, e há certa decência mesmo em dar louvor. Se você os percebe cuidadosamente, todos os atos são sempre significativos e você pode avaliar o caráter até mesmo pelos sinais mais insignificantes. O homem lascivo é revelado pelo seu andar, por um movimento da mão, às vezes por uma única resposta, pelo toque de sua cabeça com um dedo,[4] pelo revirar de seus olhos. O patife é mostrado por sua risada, o louco pelo seu rosto e aparência geral. Essas qualidades tornam-se conhecidas por certas marcas, mas você pode determinar o caráter de cada homem quando vê como ele dá e recebe louvor.
  13. O público do filósofo deste e daquele canto estende as mãos admiradoras e às vezes a multidão adoradora quase paira sobre a cabeça do conferencista. Mas, se você realmente compreende, isso não é louvor, é apenas um aplauso. São autênticas carpideiras quem o está aplaudindo. Esses alaridos devem ser deixados para as artes que visam agradar a multidão, que a filosofia seja reverenciada em silêncio.
  14. Os jovens, na verdade, devem às vezes ter liberdade para seguir seus impulsos, mas só apenas em momentos em que eles agem de impulso e quando eles não podem forçar-se a ficar em silêncio. Tal elogio dá um certo tipo de incentivo para os próprios ouvintes e age como um estímulo para a mente jovem. Mas que eles sejam despertados para o assunto e não para o estilo, caso contrário, a eloquência os faz mal, tornando-os enamorados de si mesmos e não do assunto.
  15. Vou adiar este tema por enquanto, exige uma investigação longa e especial para apresentar como o público deve ser abordado, que indulgências devem ser permitidas a um orador em uma ocasião pública e o que deve ser permitido à própria multidão na presença do orador. Não pode haver dúvida de que a filosofia sofreu uma perda, agora que ela expôs seus encantos às massas. Mas ela ainda pode ser vista em seu santuário, se seu expositor for um sacerdote e não um vendilhão.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] NT: Ver Epicuro, Cartas e Princípios

[2] NT: Hermarco (grego: Ἕρμαρχoς, Hermarkhos; c. 325-c. 250 AC), era um filósofo epicurista. Ele foi discípulo e sucessor de Epicuro como chefe da escola. Nenhum de seus escritos sobrevive. Ele escreveu obras dirigidas contra Platão, Aristóteles e Empedócles.

[3] NT: Papirio Fabiano foi um retórico e filósofo da Roma Antiga, ativo na última época de Augusto e nos tempos de Tibério e Calígula, na primeira metade do primeiro século. Foi professor de Sêneca. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural e Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.

[4] O coçar da cabeça com um dedo era, por algum motivo, considerado uma marca de efeminação ou de vício; “scalpere caput digito”.