Carta 75: Sobre as Doenças da Alma

Na carta 75, Sêneca foca na questão do progresso moral usando ricas metáforas com a medicina. O estudante de filosofia é um doente, e seu professor um médico. Inicia explicando seu estilo de escrita, dizendo que o importante é o conteúdo e não quão rebuscado é o texto e alertando que mais importante do que o que falamos é o que fazemos:

“…devo contentar-me em lhe transmitir meus sentimentos sem os ter embelezado nem reduzido sua dignidade… digamos o que sentimos, e sintamos o que dizemos; que a fala se harmonize com a vida.” (LXXV, 2-4)

Toda a carta segue com analogias, comparando o filósofo com o médico. O estudante de filosofia é um doente, que precisa de tratamento duro, não de divertimento:

“Um doente não chama um médico por que é eloquente; mas se acontecer que o médico que pode curá-lo também discorra elegantemente sobre o tratamento a ser seguido, o paciente vai levá-lo em bom crédito.” (LXXV, 6)

O cerne da carta é a classificação dos aprendizes em três classes, de acordo com a evolução atingida. Conclui o texto definindo o que é liberdade:

Significa não temer nem homens nem deuses; significa não desejar a maldade ou o excesso; significa possuir poder supremo sobre si mesmo e é um bem inestimável ser mestre de si mesmo

(Imagem: Erasístrato descobre a causa da doença de Antíoco, por Jacques-Louis David


LXXV. Sobre as Doenças da Alma

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

1. Você tem se queixado de que minhas cartas são escritas de forma descuidada. Agora, quem fala cuidadosamente, a menos que também deseje falar de forma afetada? Prefiro que minhas cartas sejam exatamente o que seria a minha conversa, se você e eu estivéssemos sentados na companhia um do outro ou caminhando juntos, espontâneos e tranquilos; pois minhas cartas não têm nada de tenso ou artificial nelas.

2. Se fosse possível, eu preferiria mostrar, em vez de falar, meus sentimentos. Mesmo que eu estivesse discutindo um ponto, eu não deveria bater meu pé, nem atirar os braços, ou levantar a voz; mas devo deixar esse tipo de coisa ao orador, e devo contentar-me em lhe transmitir meus sentimentos sem os ter embelezado nem reduzido sua dignidade.

3. Eu gostaria de convencê-lo inteiramente deste fato, – que eu sinto o que quer que eu digo, que eu não o sinto apenas, mas sou ligado profundamente a ele. Um é o tipo de beijo que um homem dá a sua amante e outro que ele dá a seus filhos; ainda no abraço do pai, sagrado e refreado como é, a abundância de afeto é revelada. Contudo, prefiro que nossa conversa sobre assuntos tão importantes não seja escassa e seca; pois mesmo a filosofia não renuncia à companhia da inteligência. Não se deve, no entanto, dar muita atenção às meras palavras.

4. Seja este o cerne da minha ideia: digamos o que sentimos, e sintamos o que dizemos; que a fala se harmonize com a vida. Esse homem cumpriu sua promessa, pois é a mesma pessoa, tanto ao vê-lo como ao ouvi-lo.

5. Nós não deixaremos de ver que tipo de homem é e quão grande é, se somente for um e sempre o mesmo. Nossas palavras devem ter como objetivo não agradar, mas ajudar. Se, no entanto, você pode alcançar a eloquência sem grande esforço, e se você é naturalmente dotado ou pode ganhar eloquência a um custo baixo, aproveite ao máximo e aplique este dom a usos mais nobres. Mas que seja de tal natureza que exiba fatos mais do que a si mesmo. Esta e as outras artes são inteiramente interessadas em inteligência; mas o nosso negócio aqui é a alma.

6. Um doente não chama um médico por que é eloquente; mas se acontecer que o médico que pode curá-lo também discorra elegantemente sobre o tratamento a ser seguido, o paciente vai levá-lo em bom crédito. Por tudo isso, não encontrará motivo para se congratular por ter descoberto um médico eloquente. Não é diferente de um piloto hábil que também é bonito.

7. Por que você faz cócegas em meus ouvidos? Por que você me diverte? Há outros negócios à mão; eu estou aqui para ser cauterizado, operado ou colocado em uma dieta. É por isso que você foi convocado para me tratar! Você é obrigado a curar uma doença que é crônica e grave, – que afeta o bem-estar geral. Você tem um negócio tão sério na mão como um médico tem durante uma praga. Você está preocupado com as palavras? Regozije neste instante se conseguir lidar com as coisas. Quando você aprenderá tudo o que há para aprender? Quando você plantará em sua mente o que aprendeu, que não pode escapar? Quando você deverá colocar tudo em prática? Pois não basta apenas enviar essas coisas à memória, como outras coisas; elas devem ser praticamente testadas. Não é feliz quem só as conhece, mas sim aquele que as faz.

8. Você responde: “Não há graus de felicidade abaixo de seu homem feliz”? Existe uma descida pura imediatamente abaixo da sabedoria?” Eu acho que não. Pois, embora aquele que progride ainda é contado junto aos tolos, mas está separado deles por um longo intervalo. Entre as próprias pessoas que estão progredindo há também grandes espaços. Elas caem em três classes, como certos filósofos acreditam.

9. Primeiramente vêm aqueles que ainda não alcançaram a sabedoria, mas já ganharam um lugar próximo. No entanto, mesmo o que não está longe está ainda lá fora. Estes, se você me perguntar, são homens que já deixaram de lado todas as paixões e vícios, que aprenderam quais coisas devem ser abraçadas; mas sua certeza ainda não foi testada. Eles ainda não puseram em prática o seu bem, mas de agora em diante eles não podem escorregar de volta para as falhas das quais escaparam. Eles já chegaram a um ponto do qual não há retrocesso, mas eles ainda não estão cientes do fato; como eu me lembro de ter escrito em outra carta, “Eles são ignorantes de seu conhecimento.[1]” Agora lhes foi concedido gozar do seu bem, mas ainda não ter certeza disso.

10. Alguns definem esta classe, de que tenho falado, – uma classe de homens que estão progredindo, – como tendo escapado das doenças da mente, mas ainda não das paixões, e como ainda em pé sobre terreno escorregadio; porque ninguém está além dos perigos do mal, exceto aquele que se livrou inteiramente dele. Mas ninguém se desvencilhou, exceto o homem que adotou a sabedoria em seu lugar.

11. Muitas vezes, já expliquei a diferença entre as doenças da mente e suas paixões. E vou lembrá-lo mais uma vez: as doenças são endurecidas e vícios crônicos, como a ganância e ambição; eles envolvem a mente em um aperto muito próximo, e começam a ser seus males permanentes. Para dar uma definição breve: por “doença” queremos dizer uma perversão persistente do julgamento, de modo que as coisas que são levemente desejáveis são consideradas altamente desejáveis. Ou, se você preferir, podemos defini-la assim: ser muito zeloso em lutar por coisas que são apenas ligeiramente desejáveis ou não desejáveis de todo, ou valorizar as coisas que devem ser valorizadas apenas ligeiramente.

12. “Paixões” são impulsos indesejáveis do espírito, repentinas e veementes; elas vêm tão frequentemente, e tão pouca atenção tem sido dada a elas, que causam um estado de doença; assim como um catarro, quando há apenas um caso e o catarro ainda não se tornou habitual, produz apenas tosse, mas, quando se torna regular e crônico provoca a tuberculose. Portanto, podemos dizer que aqueles que fizeram o maior progresso estão além do alcance das “doenças”; mas eles ainda sentem as “paixões”, mesmo quando muito perto da perfeição.

13. A segunda classe é composta por aqueles que deixaram de lado os maiores males da mente e suas paixões, mas ainda não estão em posse garantida de imunidade. Pois eles ainda podem escorregar para trás em seu estado anterior.

14. A terceira classe está fora do alcance de muitos dos vícios e particularmente dos grandes vícios, mas não fora do alcance de todos. Eles escaparam à avareza, por exemplo, mas ainda sentem raiva; eles não são mais perturbados pela luxúria, mas ainda estão perturbados pela ambição; eles não têm mais desejo, mas eles ainda têm medo. E apenas porque temem, embora sejam fortes o suficiente para resistir a certas coisas, há certas coisas às quais eles cedem; desprezam a morte, mas estão aterrorizados pela dor.

15. Vamos refletir um momento sobre este tema. Estaremos bem conosco se formos admitidos nesta primeira classe. A segunda categoria é obtida por grande sorte em relação aos nossos dons naturais e pela elevada e incessante aplicação ao estudo. Mas nem mesmo o terceiro tipo deve ser desprezado. Pense no exército de males que vê sobre você; eis como não há crime que não seja exemplificado, até que ponto a maldade avança todos os dias e quão prevalentes são os pecados em casa e na comunidade. Você verá, portanto, que estamos em vantagem considerável, se não estamos contados entre os mais baixos.

16. “Mas quanto a mim”, você diz: “Espero que esteja apto a subir para um grau mais elevado do que isso!” Eu deveria orar, em vez de prometer, que possamos alcançar isto; nós fomos prevenidos. Nós corremos para a virtude enquanto obstruídos por vícios. Tenho vergonha de dizê-lo; mas adoramos o que é honroso somente na medida em que temos tempo livre. Mas que recompensa rica nos espera se apenas afastarmos os assuntos que nos obstruem e os males que se agarram a nós com total tenacidade!

17. Então nem o desejo nem o medo nos derrubarão. Não perturbados pelos medos, intocados pelos prazeres, não teremos medo nem da morte nem dos deuses; saberemos que a morte não é um mal e que os deuses não são poderes do mal. O que prejudica não tem poder maior do que aquele que recebe dano, e as coisas que são totalmente boas não têm poder algum em causar dano. Lá esperam-nos, se alguma vez escaparmos dessas escórias baixas para aquela altura sublime e elevada, paz de espírito e, quando todo o erro for expulso, a liberdade perfeita. Você pergunta o que é essa liberdade? Significa não temer nem homens nem deuses; significa não desejar a maldade ou o excesso; significa possuir poder supremo sobre si mesmo e é um bem inestimável ser mestre de si mesmo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Carta LXXI – 4.