Lançamento de livros impressos

Caros,

Depois de muitos pedidos, estamos lançando a versão impressa dos nossos livros de estoicismo, começando por 4 títulos.

Os livros estão sendo impressos e distribuídos pela Meta/Umlivro, gráfica que produz para grandes editoras como Zahar, Sextante, Penguin e muitas outras. A qualidade está excelente e preço competitivo.

Os títulos são:

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Carta 100: Sobre os escritos de Fabiano

A centésima carta é uma resposta de Sêneca a uma crítica de Lucílio de um texto de Papírio Fabiano. Fabiano foi professor de Sêneca quando jovem tendo sido um retórico e filósofo muito ativo nos tempos de Tibério e Calígula. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural.

A carta traz poucos ensinamentos filosóficos e foca em explicar qualidades do texto de Fabiano, que infelizmente, nos foi perdido. Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.

Nas cartas de Sêneca sempre estão presentes epigramas, isto é, textos curtos que expressam um pensamento de forma engenhosa. Geralmente tenho dificuldade em selecionar um, entre os vários, para ilustrar o artigo, mas a carta 100 não oferece nenhum. Contudo o exemplo do professor de Sêneca é um a ser seguido:

Percebe-se que ele agiu assim para o leitor saber o que agradava a ele, e não para ele agradar ao leitor. Todo o seu trabalho visa progresso moral e sabedoria, sem qualquer busca de aplausos.” (X, 11)

(Imagem Mosaico Virgílio no Museu Nacional Bardo, Tunísia)


C. Sobre os escritos de Fabiano

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você me escreve que leu com a maior disposição o trabalho de Papírio Fabiano[1] intitulado “Os deveres de um cidadão” e que não atingiu suas expectativas; então, esquecendo que você está lidando com um filósofo, você procede a criticar seu estilo de escrita. Suponha agora, que sua afirmação é verdadeira – que ele derrame, em lugar de colocar suas palavras. Deixe-me no entanto, desde o início, dizer-lhe que esta característica da qual você fala tem um charme peculiar e que é uma graça apropriada para um estilo de suave compreensão. Pois, eu mantenho, é importante se o texto tropeça ou flui. Além disso, há também uma certa deferência a este respeito, como eu deixarei claro para você:

2. Fabiano parece-me não “verter” palavras mas sim ter um “fluxo”, deixa as palavras fluírem. Tão abundante é, sem confusão, e ainda não sem velocidade.[2] Isto é, de fato, o que seu estilo declara e anuncia: que ele não passou muito tempo trabalhando o assunto e retocando-o. Mas mesmo supondo que os fatos sejam como você diz, o homem está construindo caráter ao invés de palavras e está escrevendo essas palavras mais para a mente do que para os ouvidos.

3. Além disso, se ouvisse ele lendo o próprio texto você não teria tido tempo para considerar os detalhes – todo o trabalho lhe teria entusiasmado. Por regra geral, o que satisfaz pela rapidez é de menor valor quando tomado em consideração para a leitura. No entanto, essa mesma qualidade, de atrair à primeira vista, é uma grande vantagem, não importa se uma investigação cuidadosa pode descobrir algo a criticar.

4. Se você me perguntar, devo dizer que aquele que arrebata a aprovação é maior do que aquele que a merece; e ainda sei que o último é mais seguro, eu sei que ele pode dar garantias mais confiantes para o futuro. Uma maneira meticulosa de escrever não se adequa ao filósofo, se ele é tímido quanto às palavras, quando será valente e firme? Quando realmente mostrará seu valor?

5. O estilo de Fabiano não era negligente, mas assegurado. É por isso que você não encontrará nada de qualidade inferior em seu trabalho: suas palavras são bem escolhidas e mesmo assim não são caçadas. Elas não são artificialmente inseridas e invertidas, de acordo com a moda atual, mas possuem distinção, mesmo que elas sejam distantes do discurso mais vulgar. Lá você tem ideias honestas e esplêndidas, não encadeadas em aforismos, mas faladas com maior liberdade. Devemos, naturalmente, notar passagens que não são suficientemente podadas, não construídas com cuidado suficiente e que não possuem o esmalte que está em voga hoje em dia. Mas depois de considerar o todo você verá que não encontraremos futilidades nem obscuridades resultantes do excesso de concisão.

6. Pode ser, sem dúvida, que não haja nenhuma variedade de mármores, nenhum abastecimento de água corrente de um apartamento para outro, nenhum “quarto pobre”,[3] ou qualquer outro dispositivo que o luxo acrescente quando insatisfeito com encantos simples; mas é sim, aquilo que chamamos de “uma boa casa para se viver”. Além disso, as opiniões variam em relação ao estilo. Alguns desejam que ele seja polido de toda aspereza e alguns tomam um grande prazer na maneira abrupta que intencionalmente qualquer passagem se rompe e então, se espalha mais suavemente, dispersando as palavras finais de tal forma que as frases possam soar inesperadas.

7. Leia Cícero: seu estilo tem unidade, ele se move com um ritmo modulado e é gentil sem ser efeminado. O estilo de Asínio Polião,[4] por outro lado, é “acidentado”, brusco, parando quando você menos espera.[5] E, finalmente, Cícero sempre termina de forma gradual; enquanto Polião se interrompe, exceto nos poucos casos em que ele cliva em um ritmo definido, aliás sempre de um único padrão.

8. Além disso, você diz que tudo em Fabiano parece-lhe comum e sem elevação, mas eu considero que ele é livre dessa culpa. Pois esse estilo seu não é comum, mas simplesmente calmo e ajustado à sua mente pacífica e bem ordenada – não em um nível baixo, mas em um plano uniforme. Falta a verve e os grandes rasgos de orador (os quais você está procurando) e um choque súbito de epigramas.[6] Mas olhe, por favor, em todo o trabalho, quão bem ordenado é: há uma distinção nele. Seu estilo talvez não possua, mas sugere, dignidade.

9. Mencione alguém a quem você possa classificar antes de Fabiano. Cícero, digamos, cujos livros sobre filosofia são quase tão numerosos como os de Fabiano. Concordo com este ponto, mas não é pouco ser menos do que o maior. Ou Asínio Polião, digamos. Eu vou me render novamente e me contento respondendo: “É uma distinção ser o terceiro em tão grande campo”. Você também pode incluir Tito Lívio,[7] pois Lívio escreveu os diálogos que devem ser classificados como história e obras que declaradamente lidam com a filosofia. Eu também cederei no caso de Lívio. Mas considere quantos escritores Fabiano ultrapassa, se ele é superado apenas por três, e esses três são os maiores mestres da eloquência!

10. Mas, pode-se dizer, ele não oferece tudo: embora seu estilo seja elevado, não é forte; embora ele venha em profusão, falta força e envergadura; não é translúcido, mas é lustroso. “Alguém iria falhar”, você insiste, “em encontrar nele qualquer crítica dura ao vício, quaisquer palavras corajosas diante do perigo, qualquer desafio orgulhoso da Fortuna, quaisquer ameaças desdenhosas contra o egoísmo. Desejo ver o luxo repreendido, a luxúria condenada, o capricho esmagado. Deixe-o nos mostrar o entusiasmo pela oratória, a beleza da tragédia, a sutileza da comédia”. Você deseja que ele confie naquela mais pequena das coisas, fraseologia; mas ele jurou fidelidade à grandeza de seu assunto e carrega a eloquência atrás dele como uma espécie de sombra, mas não como propósito primário.

11. Nosso autor, sem dúvida, não investigará todos os detalhes, nem submeterá a análise, nem inspecionará e enfatizará cada palavra separada. Isso eu admito. Muitas frases ficam aquém, ou deixam de atingir o alvo e, às vezes, o estilo é indolente; mas há muita luz ao longo do trabalho. Existem longos trechos que não cansam o leitor. E, finalmente, ele oferece essa qualidade de deixar claro o que ele quis dizer ao escrever, e o escreveu de coração. Percebe-se que ele agiu assim para o leitor saber o que agradava a ele, e não para ele agradar ao leitor. Todo o seu trabalho visa progresso moral e sabedoria, sem qualquer busca de aplausos.

12. Não duvido que seus escritos sejam do tipo que descrevi, embora eu esteja me recordando deles em vez de manter uma lembrança certa, e embora o tom geral de seus escritos permaneça na minha mente, não devido a leitura cuidadosa e recente, mas em esboço, como é natural de um conhecimento antigo. Contudo, certamente, sempre que o ouvi dar uma palestra pareceu-me o trabalho dele não apenas sólido, mas completo, o tipo que inspiraria os jovens de talento e despertaria a ambição de se tornarem como ele, sem fazê-los sem esperança de superá-lo; e esse método de encorajamento me parece o mais eficaz de todos. Pois é desanimador inspirar em um homem o desejo da emulação e tirar-lhe a esperança. De qualquer forma, sua escrita era fluente e, embora não fosse possível aprovar todos os detalhes, o efeito geral era nobre.

Adeus.


[1] NT: Papirio Fabiano foi um retórico e filósofo da Roma Antiga, ativo na última época de Augusto e nos tempos de Tibério e Calígula, na primeira metade do primeiro século. Foi professor de Sêneca. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural e Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.

[2] ou seja, seu estilo é como um rio em vez de uma corredeira.

[3] Os homens ricos às vezes instalavam em seus palácios uma imitação de “cabine de homem pobre”, por contraste com os outros quartos ou como um gesto para uma vida simples; Sêneca usa a frase figurativamente para determinados dispositivos em composição. Ver também carta XVIII (Volume I) e Marcial, III, 48: “Pauperis extruxit cellam, sed vendidit Olus; praedia; nunc cellam pauperis Olus habet.

[4] NT: Caio Asínio Polião (n. 65 a.C.–4 d.C.) foi um político da gente Asínia eleito cônsul em 40 a.C.. É conhecido por sua carreira como orador, poeta, autor teatral, crítico literário e, principalmente, como historiador, cuja obra, perdida, uma “História de Roma” até sua época, foi muito utilizada como fonte para as obras de Apiano e Plutarco. Polião foi ainda um patrono de Virgílio, amigo de Horácio e recebeu de ambos poemas dedicados a si.

[5] Ver Quintiliano, X, I;11: “multa in Asinio Pollione inventio, summa diligentia, adeo ut quibusdam etiam nimia videatur; et consilii et animi satis; a nitore et iucunditate Ciceronis ita longe abest, ut videri possit saeculo prior.

[6] A redação aqui se assemelha de forma impressionante à do Velho Sêneca em Controversias. II.

[7] NT: Tito Lívio, conhecido simplesmente como Lívio, é o autor da obra histórica intitulada Ab urbe condita (“Desde a fundação da cidade”), onde tenta relatar a história de Roma desde o momento tradicional da sua fundação 753 a.C. até ao início do século I da Era Cristã.

Extra: Carta 107: Espera por tudo / tradução de Aldo Dinucci

Temos uma excelente novidade! Um pouco de variação.
Quem acompanha o blog sabe que publicamos 99 cartas de Sêneca, traduzidas do inglês por Alexandre Vieira.

Recentemente o professor Aldo Dinucci lançou livro com tradução direto do latim de Cartas Selecionadas. Ao ler irão perceber estilo muito mais conciso e próximo do original de Sêneca. Não irei comentar a carta, mas trazer a pequena introdução que Aldo nos enviou:

Pessoal, pretendi fazer um manual de Sêneca com a minha tradução destas nove cartas do Latim. Sêneca me ajudou muito em um período muito difícil de minha vida. Esse livro é minha homenagem a quem considero um dos mais poderosos intelectuais (filósofo, dramaturgo, poeta, humorista, político) de todos os tempos. Meu objetivo é que seu pensamento continue ajudando quantas pessoas dele necessitarem. Saudações a todos.
Aldo Dinucci.

Professor Doutor em Logica & Filosofia – Universidade Federal de Sergipe

Cartas Selecionadas está disponível em papel e formato digital.

(imagem Boulanger Gustaveo mercado de escravos)


Carta CVII – Espera por tudo (Omnia Exspecta)

Sêneca saúda seu amigo Lucílio.

(1) Onde está aquela tua prudência? Onde está a sagacidade nas coisas que se devem discernir? Onde está a grandeza de alma? Já as pequenas coisas te afligem? Teus servos viram, em tuas ocupações, a oportunidade para a fuga. Se os amigos te enganaram, que tenham então este nome, o qual nosso erro lhes colocou de modo impensado. E que sejam assim chamados, para que seja mais vergonhoso não o serem. Pois bem, há algo a menos dentre as tuas coisas: aqueles amigos, que agora te faltam, são aqueles que destruíam a tua obra e te consideravam molesto aos demais.

(2) Nenhuma destas coisas é insólita, nenhuma inesperada. Ofender-te com estas coisas é tão ridículo quanto te queixares porque caíste em público ou porque te sujaste na lama. A mesma condição tem a vida, o banho público, a multidão, a viagem: algumas coisas serão atiradas em ti, algumas coisas acontecerão. Não é coisa delicada viver. A uma longa viagem vieste e é necessário que escorregues, que tropeces, que caias, que te canses e que exclames: “Ó Morte!”, isto é, é necessário que mintas. Num lugar, deixarás para trás um companheiro; noutro, sepultarás um; noutro ainda, terás medo; deste modo, por entre ferimentos, é necessário atravessar esta difícil viagem. (3) Deseja alguém morrer? Que seu espírito esteja preparado contra todas as coisas; que saiba, por si mesmo, que chegou onde estronda o trovão. Que saiba por si mesmo que chegou onde…

Perdas e Vingança estabeleceram seus quartéis de governo
E pálidas e tristes doenças e a velhice habitam[1].

Nesta morada, é necessário gastar a vida. Escapar dela não podes, desprezá-la podes. (4) Desprezarás, porém, se muitas vezes pensares e conjecturares as coisas futuras. Todos mais corajosamente atravessam aquilo para o que durante muito tempo se prepararam, e, do mesmo modo, resistem se previamente refletem sobre os obstáculos. Por outro lado, teme-se muito aquilo contra o que não se preparou, mesmo as coisas fúteis.  Isto é necessário fazer: que nada seja para nós inesperado. E, porque todas as coisas são mais graves por <serem> novidades, a reflexão constante te defenderá disso – assim, peço-te que, de modo algum, ajas como um mau recruta.

(5) “Os servos me deixaram”. A outro roubaram, a outro falsamente acusaram, a outro assassinaram, a outro traíram, a outro esmagaram, a outro envenenaram, a outro atingiram com falsa acusação: o que quer que digas, aconteceu a muitos. Em seguida, <é preciso que saibas que> muitos e variados dardos há e são dirigidos a nós. Alguns estão fixados em nós, alguns são lançados e chegam com força máxima, (6) alguns, que vão atingir outros, resvalam em nós.

(6) Em nada nos admiremos destes <dardos>, para os quais nascemos; os quais, por esta razão, de modo algum devem ser lamentados, porque são pátria para todos. Assim, digo que são iguais <para todos>, pois também se pode sofrer daquilo do que se escapa. Além disso, uma lei equitativa é o que é estabelecido para todos, não o que ocorre para todos. Que seja prescrita equidade ao espírito e que paguemos, sem queixas, os tributos de nossa condição mortal.

(7) O inverno faz vir o frio: é necessário gelar. O tempo traz de novo o calor: é necessário arder. A intempérie do céu provoca a saúde: é necessário adoecer. Uma fera em algum lugar se aproximará de nós, e também um homem mais pernicioso que todas as feras. Algo a água, algo o fogo retirar-nos-á. Esta condição das coisas não podemos mudar. Mas isto podemos <fazer>: adotar um espírito elevado e digno do homem nobre para (8) que corajosamente suportemos as coisas fortuitas e nos harmonizemos com a Natureza. A Natureza tempera este reino que vês com as mutações: o céu sereno sucede ao coberto de nuvens; agitam-se os mares com a condição de que se acalmem; parte do céu se ergue, parte imerge. A eternidade das coisas consiste nos contrários.

(9) É necessário que nosso espírito se adapte a esta lei; é necessário que siga esta lei, que a obedeça. E, o que quer que aconteça, é necessário que pense ter devido acontecer e que não deseje repreender a natureza, que siga a Divindade, da qual todas as coisas provêm.

Mau soldado é quem (10) segue gemendo o comandante. Portanto, cheios de ardor e diligentes, recebamos as ordens e não desertemos o curso desta belíssima obra à qual foi entrelaçada o que quer que teremos de suportar. E deste modo, exortemos a Júpiter, cujo governo é ornador dessa imensidade, da mesma maneira que nosso Cleantes o exorta através de versos mais que eloquentes, versos os quais me é permitido traduzir para o nosso idioma, a exemplo de Cícero, mais eloquente dos homens. Se te agradarem, aprová-los-á, se te desagradarem, saberás que aqui segui o exemplo de Cícero:

(11) Conduz-me, ó Pai Excelso e Senhor do Mundo,
Para onde quer que queiras, nenhum obstáculo impedir-me-á de seguir-te.
Diligente, estarei junto a ti. E, caso eu não o queira fazer
o que é possível ao intrépido, ainda assim seguir-te-ei, gemendo e infeliz.
O Destino conduz quem lhe obedece e arrasta a quem lhe opõe resistência.

(12) Que vivamos assim, que falemos assim; que o destino nos encontre prontos e diligentes. Eis o espírito elevado que confiou a si mesmo ao destino. E, em oposição a ele, o fraco e degenerado, que luta contra e julga mal a ordem do mundo e prefere corrigir os Deuses que a si mesmo.

Adeus.


[1] Virgílio, Eneida, vi, 274 ss.

Pensamento #72: Sofrimento, Honra e Prazer

Quando eu ainda era um menino na escola, ouvi dizer esse ditado grego, e como o sentimento é verdadeiro e marcante, bem como nítido e polido, eu fiquei muito feliz em memorizá-lo. “Caso alguém realize algo nobre embora com sofrimento, o sofrimento passa, mas a nobreza permanece; Caso faça algo desonroso com prazer, o prazer passa, mas a desonra permanece“.

Depois, li esse mesmo sentimento em um discurso de Catão, que foi proferido em Numantia. Embora se expresse de forma um pouco menos compacta e concisa, em comparação com o grego que citei, mas por ser anterior e mais antigo, pode parecer mais impressionante. As palavras de seu discurso são as seguintes: “Considere isto em seus corações: se você realizar algum bem acompanhado com trabalho, a labuta rapidamente deixará você; mas se você fizer algum mal acompanhado com prazer, o prazer passará rapidamente, mas a má ação permanecerá com você sempre“.

Fragmento 51 de Musonio RufoProfessor de Epicteto.

Carta 99: Sobre consolo a quem se encontra em luto

Na carta 99 Sêneca fala sobre a consolação estoica para aqueles que sofrem com a morte. É uma carta severa, na qual vemos que o estoicismo pode ser duro, mas oferece um caminho para o fim do luto.

Nesta carta, Sêneca é bastante firme em sua oposição ao Epicurismo, contudo quebra o mito de que o estoicismo e insensível ao sofrimento:

Quer dizer quer agora, neste momento, estaria eu aconselhando você a ter um coração duro, desejando que você mantenha seu semblante imóvel na cerimônia fúnebre e não permitindo que sua alma sinta mesmo uma pitada de dor? De modo algum! Isso significaria insensibilidade e não virtude – participar da cerimônia de enterro daqueles próximos e queridos com a mesma expressão que você vê suas formas vivas e não mostrar nenhuma emoção pela primeira privação de seus familiares. Ainda assim, suponha que eu proíba você de mostrar emoção, há certos sentimentos que reivindicam seus direitos próprios. As lágrimas caem, não importa como tentamos controla-las e, sendo derramadas, aliviam a alma.” (XCIX, 15)

Ou seja, o estoico sente emoções e sofre por elas, apenas tenta mante-las sob controle, ao invés de ficar sob controle delas.

Imagem: Morte tocando violino, por Frans Francken.


XCIX. Sobre consolo a quem se encontra em luto

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Anexei uma cópia da carta que escrevi a Marulo[1] na ocasião da perda de seu filho em tenra idade – morte que, fiquei sabendo, ele suportou com quase nula coragem, comportando-se de forma bastante afeminada em sua dor. Nesta carta não observei a forma habitual de condolências: pois não acreditava que ele deveria ser tratado suavemente já que, na minha opinião, ele merecia críticas e não consolação. Quando um homem é atingido e está achando difícil suportar um ferimento grave, devemos fazer sua vontade por um tempo: permitamos que ele satisfaça seu pesar ou, de qualquer forma, dissipe o primeiro choque, até que a dor vá esmorecendo e perca a violência inicial.

2. Mas aqueles que adotam indulgência no sofrimento devem ser repreendidos imediatamente e devem saber que existe alguma insensatez, mesmo nas lágrimas.[2] “É consolação que você procura? Deixe-me dar-lhe uma repreensão em vez disso! Você se comporta como uma mulher na maneira em que você encara a morte do seu filho, o que faria se tivesse perdido um amigo íntimo? Um filho, um filho pequeno de futuro incerto está morto, apenas um fragmento de tempo foi perdido!

3. Nós caçamos desculpas para o sofrimento, nós até mesmo proferimos queixas injustas sobre a Fortuna, como se a Fortuna nunca nos desse motivos para reclamar! Mas eu realmente acreditava que você possuísse espírito suficiente para lidar com problemas concretos, sem contar os problemas irreais sobre os quais os homens se lamentam por força do hábito. Se você tivesse perdido um amigo (o maior golpe de todos),[3] mesmo assim você deveria tentar se regozijar por tê-lo possuído em vez de lamentar sua perda.

4. Mas muitos homens não conseguem contar quão variados foram seus ganhos, quão ótimas foram as suas alegrias. Sofrimento como o seu tem isso entre outros males: não é apenas inútil, mas ingrato. Foi tudo em vão ter tido tantos amigos? Durante tantos anos, em meio a associações tão próximas, depois de uma comunhão tão íntima de interesses pessoais, nada foi realizado? Você enterra a amizade com um amigo? E por que lamentar-se por ter perdido, se não foi útil tê-lo tido? Acredite-me, grande parte daqueles que amamos, embora o acaso tenha removido suas pessoas, ainda permanecem conosco. O passado é nosso e não há nada mais seguro para nós do que aquilo que se foi.

5. Nós somos ingratos pelos ganhos passados porque esperamos o futuro, como se o futuro (na hipótese de lá chegarmos) não fosse ser rapidamente misturado com o passado. As pessoas estabelecem um limite estreito para suas alegrias se elas só as aproveitam no presente, tanto o futuro quanto o passado servem para nosso deleite: um pela antecipação e o outro pelas memórias, mas o primeiro é contingente e pode não acontecer, enquanto o segundo é certo. Que loucura é, portanto, perder o controle sobre o que é o mais certo de tudo? Vamos descansar contentes com os prazeres que nos foram dados a desfrutar, se no entanto, enquanto nós os desfrutamos, a alma não foi perfurada como uma peneira, apenas para perder novamente o que havia recebido.

6. Existem inúmeros casos de homens que, sem lágrimas, enterraram filhos no auge da vida – homens que voltaram da pira funerária para a câmara do Senado ou para quaisquer outros deveres oficiais e imediatamente se ocuparam de outra coisa. E com razão pois, em primeiro lugar, é inútil se afligir se não for receber ajuda da aflição. Em segundo lugar, é injusto se queixar sobre o que aconteceu com um homem, mas que está reservado a todos. Mais uma vez, é tolo lamentar a perda, quando existe um intervalo tão curto entre os perdidos e os perdedores. Portanto, devemos ser mais resignados em espírito, porque acompanharemos de perto aqueles que perdemos.

7. Observe a rapidez do Tempo – a mais rápida das coisas – considere a brevidade do curso ao longo do qual aceleramos à velocidade máxima, perceba essa multidão de humanos que se esforça para o mesmo ponto com breves intervalos entre eles – mesmo quando eles parecem mais longos, aquele que você conta como morto simplesmente se postou à frente.[4] E o que é mais irracional do que lamentar o seu antecessor, quando você mesmo deve viajar a mesma jornada?

8. Um homem lamenta um evento que ele sabe que irá acontecer? Ou, se não pensar que a morte está no futuro do homem, se enganou. Um homem lamenta um evento que admite ser inevitável? Quem se queixa da morte de alguém, está se queixando de que ele era humano. Todos estamos vinculados pelo mesmo termo: aquele que tem o privilégio de nascer, está destinado a morrer.

9. Períodos de tempo nos separam, a morte nos nivela. O período que se situa entre o nosso primeiro dia e o nosso último é inconstante e incerto: se você o contar pelos problemas, é longo até para um rapaz, se por sua velocidade, é escasso mesmo para um idoso. Tudo é instável, traiçoeiro e mais incerto do que qualquer clima. Todas as coisas são jogadas e se deslocam para os seus opostos ao comando da Fortuna, em meio a esta turbulência de assuntos mortais, nada além da morte está mais certamente reservado a qualquer um. E, no entanto, todos os homens se queixam da única coisa da qual nenhum deles é iludido.

10. “Mas ele morreu na infância”. Eu ainda não estou preparado para dizer que aquele que rapidamente chega ao fim de sua vida conseguiu o melhor da barganha, voltemos a considerar o caso daquele que atingiu a velhice. Quão exíguo é o tempo que ele tem de vantagem sobre a criança! Pondere a grande extensão do abismo do tempo e considere o universo e depois contraste nossa vida humana com o infinito, então você verá quão breve é aquilo pelo que oramos e que procuramos alongar.

11. Quanto deste tempo é desperdiçado com o choro, quanto com preocupação! Quanto com orações para a morte antes da chegada da morte, quanto com nossa saúde, quanto com nossos medos! Quanto é ocupado por nossos anos de inexperiência ou de esforço inútil! E metade de todo esse tempo é desperdiçado em dormir. Adicione, além disso, nossos problemas, nossas dores, nossos perigos e você compreenderá que, mesmo da vida mais longa, a vida real é a menor parcela.

12. No entanto, quem irá admitir algo como: “Não está em melhor condição um homem que tem permissão para voltar para casa rapidamente, cuja jornada é realizada antes que ele fique cansado”? A vida não é um bem nem um mal: é simplesmente o lugar onde o bem e o mal existem. Por isso, este menino não perdeu nada além de uma aposta onde a chance de perder era mais provável que a de ganhar. Ele poderia ter se tornado sóbrio e prudente, ele poderia, via educação cuidadosa, ter sido moldado ao melhor padrão, mas (e esse medo é mais razoável), ele poderia ter se tornado exatamente como muitos.

13. Observe os jovens da linhagem mais nobre cuja extravagância os jogou na arena[5], note aqueles homens escravos de suas paixões próprias e as de outros em luxúria mútua, cujos dias nunca passam sem embriaguez ou algum ato vergonhoso, assim será claro para você que havia mais a temer do que a esperar. Por esta razão, você não deve dar desculpas para o sofrimento ou exasperar os ligeiros revezes, indignando-se.

14. Eu não estou exortando você a fazer um esforço e se levantar a grandes alturas, pois a minha opinião sobre você não é tão baixa que me faça pensar que é necessário que invoque todos os seus poderes para enfrentar esse problema que não é dor, é uma mera picada – e é você mesmo quem está transformando isso em dor. Sem dúvida, a filosofia lhe fará bom serviço, se você puder suportar corajosamente a perda de um menino que ainda era melhor conhecido por sua babá do que por seu pai.

15. E então? Quer dizer quer agora, neste momento, estaria eu aconselhando você a ter um coração duro, desejando que você mantenha seu semblante imóvel na cerimônia fúnebre e não permitindo que sua alma sinta mesmo uma pitada de dor? De modo algum! Isso significaria insensibilidade e não virtude – participar da cerimônia de enterro daqueles próximos e queridos com a mesma expressão que você vê suas formas vivas e não mostrar nenhuma emoção pela primeira privação de seus familiares. Ainda assim, suponha que eu proíba você de mostrar emoção, há certos sentimentos que reivindicam seus direitos próprios. As lágrimas caem, não importa como tentamos controla-las e, sendo derramadas, aliviam a alma.

16. O que então devemos fazer? Deixe-nos permitir que caiam, mas não ordenemo-las a fazê-lo, deixe-as, de acordo com a emoção, inundar os nossos olhos, mas não como a mera atuação. Deixe-nos, de fato, não adicionar nada ao sofrimento natural, nem o aumentar seguindo o exemplo dos outros. A exibição do sofrimento faz mais demandas do que o próprio sofrimento. Como poucos homens estão tristes em sua própria companhia! Eles lamentam mais alto para serem ouvidos, pessoas, que reservadas e silenciosas quando sozinhas, são induzidas a novos acessos de lágrimas quando veem outras perto delas! Nessas ocasiões elas se debatem, embora pudessem fazer isso com mais facilidade se ninguém estivesse presente para controlá-las, nessas ocasiões elas rezam pela morte, nessas ocasiões elas se revolvem em seus leitos. Mas seu sofrimento afrouxa com a saída dos espectadores.

17. Neste assunto, como em outros também, estamos cometemos a falha de nos ajustar ao padrão dos muitos e de atuamos de acordo ao que é convencional e não ao que é certo. Nós abandonamos a natureza e nos rendemos à multidão, que nunca é boa conselheira em nada e, a este respeito, como em todos os outros, é modelo de inconstância. As pessoas veem um homem que sofre seu sofrimento com bravura: o chamam de desalmado e selvagem; elas veem um homem que colapsa e se agarra aos seus mortos: o chamam de efeminado e fraco.

18. Tudo, portanto, deve ser baseado na razão. Mas nada é mais tolo do que cortejar uma reputação de tristeza e sancionar lágrimas, pois eu acredito que, em um homem sábio, algumas lágrimas caem por consentimento, outras por sua própria força. Eu vou explicar a diferença da seguinte maneira: quando a primeira notícia de alguma grave perda nos choca, quando abraçamos o corpo que em breve passará de nossos braços para as chamas funerárias, então as lágrimas são expelidas de nós pela necessidade da natureza. E a força vital, ferida pelo golpe de tristeza, sacode o corpo inteiro e também os olhos que, pressionados, fazem fluir a umidade que neles se encontra.

19. Lágrimas como essas caem por um processo próprio, processo esse involuntário, mas diferentes são as lágrimas que permitimos escapar quando nós meditamos em memória daqueles que perdemos. E há nelas uma certa tristeza quando lembramos o som de uma voz agradável, uma conversa cordial e os afazeres de outrora, em tal momento os olhos se afrouxam, por assim dizer, com alegria. A esse tipo de lágrimas nos entregamos, já o primeiro tipo nos subjuga.

20. Não há portanto, somente porque um grupo de pessoas está em sua presença ou sentado ao seu lado, nenhum motivo para você segurar ou derramar suas lágrimas, sejam elas impedidas ou derramadas, elas nunca são tão vergonhosas como quando fingidas. Deixe-as fluir naturalmente. Mas é possível que as lágrimas fluam dos olhos daqueles que estão quietos e em paz. Elas costumam fluir sem prejudicar a influência do sábio, com tanta restrição que elas não mostram nenhuma carência de sentimento ou auto respeito.

21. Podemos, asseguro-lhe, obedecer à natureza e ainda manter a nossa dignidade. Vi homens dignos de reverência, durante o enterro daqueles próximos e queridos, com semblantes sobre os quais o amor foi escrito, claro, mesmo depois que todo o aparato do luto foi removido e que não mostrou outra conduta do que aquela de verdadeira emoção. Há uma graciosidade mesmo no sofrimento. Isso deve ser cultivado pelo sábio, mesmo em lágrimas; assim como em outros assuntos também, há uma certa suficiência, é com o imprudente que tanto as dores quanto as alegrias transbordam.

22. Aceite com um espírito sereno o que é inevitável. Por acaso lhe aconteceu algo inacreditável, extraordinário? Ou que seja inédito? Quantos homens neste momento estão fazendo arranjos para funerais! Quantos estão comprando roupas de luto! Quantos estão chorando, quando você mesmo encerrou seu luto! Tão frequentemente quanto você reflete sobre a perda de seu filho, reflita também sobre o homem, que não tem nenhuma promessa segura de nada, a quem a Fortuna não acompanha inevitavelmente os confins da velhice, mas deixa-o ir apenas até qualquer ponto que julga adequado.

23. Você pode, no entanto, falar com frequência sobre os falecidos e celebrar sua memória na medida do possível. Essa memória irá retornar a você com mais frequência se você receber sua chegada sem amarguras, pois ninguém gosta de conversar com alguém que é triste e muito menos com a própria tristeza. As conversas dele, as brincadeiras de infância que fazia, se você as escutava com prazer, relembre delas frequentemente, afirme com decisão que ele poderia ter realizado todas as esperanças que você concebeu em seu espírito paterno.

24. De fato, esquecer os amados mortos, enterrar a memória junto com seus corpos, encharcá-los com lágrimas e depois deixar de pensar neles: essa é a marca de uma alma inferior à do homem. Pois é assim que os pássaros e as bestas amam seus jovens, seu afeto é rapidamente despertado e quase atinge loucura, mas esfria totalmente quando seu objeto morre. Essa qualidade não beneficia um homem de bom senso. Este deve continuar a lembrar, mas deve deixar de lamentar.

25. E, em nenhum caso, aprovo a observação de Metrodoro, de que há um certo prazer inerente à tristeza e que se deve obter esse prazer em momentos como estes. Estou citando as palavras reais de Metrodoro em ‘Cartas de Metrodoro à irmã’: “Há um certo prazer que nasce simultaneamente com a dor e que é preciso captar no próprio momento”.[6]

26. Não tenho dúvidas sobre quais serão seus sentimentos nesses assuntos, pois o que é mais vil do que “perseguir” o prazer no meio do luto – sim, em luto – e mesmo entre as lágrimas de alguém perseguir o que dará prazer? Estes são os homens que nos acusam de um rigor muito grande, caluniando nossos preceitos por causa da suposta dureza – porque, dizem eles, declaramos que o sofrimento não deve ser colocado na alma, ou então deve ser descartado imediatamente. Mas qual é o mais incrível ou desumano: não sentir nenhum sofrimento pela perda de um amigo ou ir a procura do prazer no meio do sofrimento?

27. O que nós estoicos aconselhamos é honrável: quando a emoção provoca um fluxo moderado de lágrimas e, por assim dizer, deixa de efervescer, a alma não deve ser entregue ao sofrimento. Mas o que você quer dizer, Metrodoro, ao afirmar que na grande dor deveria haver uma mistura de prazer? Esse é o método doce para pacificar as crianças, essa é a maneira como acalmamos os gritos dos bebês, derramando leite em suas gargantas! Mesmo no momento em que o corpo do seu filho está na pira, ou seu amigo em seu último suspiro, você não sofrerá a suspensão do prazer, em vez de agradar seu próprio sofrimento com prazer? O que é o mais honrado:  remover o sofrimento de sua alma ou admitir o prazer até mesmo na companhia do sofrimento? Eu disse “admitir”? Não, eu quero dizer “perseguir” e também através do próprio sofrimento.

28. Metrodoro diz: “Há um certo prazer que nasce simultaneamente com a dor”. Nós, estoicos, podemos dizer isso, mas você não pode. O único bem que você reconhece é o prazer e o único mal, a dor. Que relação pode haver entre um bem e um mal? Mas suponha que tal relação exista; agora, a todo tempo, deveria ser descartada? Devemos examinar o sofrimento também e ver com que elementos de deleite e prazer está rodeado?

29. Certos remédios, que são benéficos para algumas partes do corpo, não podem ser aplicados a outras partes porque a estas são, de certa forma, irritantes e impróprios. O que, em certos casos, funcionaria para um bom propósito sem qualquer prejuízo ao respeito próprio, pode tornar-se impróprio por causa da situação da ferida. Você também não ficaria envergonhado de curar a tristeza com o prazer? Não, este ponto dolorido deve ser tratado de forma mais drástica. Isto é o que você deve recomendar de preferência: que nenhuma sensação de mal pode alcançar alguém que esteja morto, pois se pode alcançá-lo, ele não está morto.

30. E eu digo que nada pode machucar aquele que é tão insignificante, pois se um homem pode ser ferido, ele está vivo. Você acha que ele está mal porque ele não existe mais ou porque ele ainda existe como alguém? E, no entanto, nenhum tormento pode vir a ele pelo fato de não existir mais, pois que sentimento pode pertencer a alguém que não existe? Nem tampouco do fato de que ele existe, pois ele escapou da maior desvantagem que a morte tem em si, ou seja, a inexistência.

31. Digamos, portanto a um homem que chora com saudades de um filho arrebatado na primeira infância: no que concerne à brevidade da existência, todos nós, jovens ou velhos, em comparação com o universo, estamos em pé de igualdade. O que nos cabe de toda a sucessão dos tempos é menos que uma ínfima parte, porque uma parte, mesmo ínfima, é uma parte, enquanto o tempo da nossa vida é praticamente nada. E ainda assim, ó loucura humana, que planos grandiosos nós fazemos para esta nulidade que é a existência!

32. Estas palavras que eu escrevi para você, não com a ideia de que você deva esperar de mim uma cura em uma data tão tardia – pois é claro para mim que você se contou tudo o que você vai ler na minha carta – mas com a ideia de que eu deveria repreendê-lo, mesmo pelo leve atraso durante o qual você regrediu de seu verdadeiro ser e que eu deva encorajá-lo para o futuro, despertar seu espírito contra a Fortuna e ficar atento a todos os seus golpes, não como se eles fossem possíveis, mas como se fossem inevitáveis e certos de chegar.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Provavelmente Quinto Júnio Marulo que foi um senador romano da gente Júnia nomeado cônsul sufecto para o nundínio de setembro a dezembro de 62. Ver Tácito, Anais, XIV, 48.

[2] Como Lipsius assinalou, o restante da carta de Sêneca consiste na citada carta a Marulo.

[3] A visão romana difere da visão moderna, assim como esta carta é bastante mais severa do que a Carta LXIII (sobre a morte de Flaco).

[4] Linguagem quase idêntica às palavras finais da carta LXIII: “quem putamus perisse, praemissus est

[5] Na época de Nero muitos jovens de classe nobre passaram a participar dos jogos de arena e corridas de biga, seguindo o (mau) exemplo do imperador. Ver Francis Holland no livro “Sêneca, Vida e Filosofia”.

[6] Ver Diógenes Laércio, Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, livro X

Carta 98: Sobre a inconstância da fortuna

Na carta 98 Sêneca mais uma vez alerta contra a busca por felicidade e sobre a excessiva confiança na Fortuna, ou seja, não prever que eventos prejudiciais acontecerão conosco.

Devemos ter em mente que tudo que acreditamos possuir, desde bens materiais aos amigos e família, são apenas empréstimos temporários, que um dia deixaremos de ter:

Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.

(XCVIII, 2)

Sêneca apresenta exemplos que homens de virtude e diz que devemos segui-los sem medo: “As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio, crucificação por Régulo, veneno por Sócrates, exílio por Rutílio e espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”. (XCVIII,12)

(imagem Matthias Stomer, Múcio na presença de Lars Porsena)


XCVIII. Sobre a inconstância da fortuna

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você nunca deve acreditar que qualquer pessoa que dependa da felicidade esteja feliz! É um apoio frágil esse prazer em coisas forasteiras, a alegria que veio de fora partirá algum dia. Mas essa alegria que brota completamente de si próprio é leal e sólida, aumenta e nos atende até o fim enquanto todas as outras coisas que provocam a admiração da multidão são apenas bens temporários. Você pode responder: “O que você quer dizer? Não seria possível que essas coisas sirvam tanto para utilidade quanto para trazer satisfação?” Claro. Mas somente se elas dependerem de nós, e não nós delas.

2. Tudo o que a Fortuna tem sob sua alçada torna-se produtivo e agradável somente se aquele que o possui é também possuidor de si mesmo e não está no poder daquilo que lhe pertence. Pois os homens cometem um erro, meu querido Lucílio, se consideram que qualquer coisa boa, ou má também, é concedida pela Fortuna. Ela nos dá simplesmente a matéria-prima dos bens e males que, em nossa guarda, se tornarão bens e males. Pois a alma é mais poderosa do que qualquer tipo de Fortuna, por conta própria orienta seus assuntos em ambas direções e por si própria pode produzir uma vida feliz ou uma miserável.

3. Um homem ruim torna tudo ruim, mesmo coisas que vieram com a aparência do melhor. Mas o homem reto e honesto corrige os erros da Fortuna e suaviza dificuldades e amarguras porque sabe como suportá-las, ele também aceita prosperidade com apreciação e moderação e enfrenta problemas com firmeza e coragem. Embora um homem seja prudente, embora ele conduza todos os seus interesses com um julgamento bem equilibrado, embora ele não tente nada além de suas forças, ele não alcançará o bem, que está livre e fora do alcance das ameaças, a menos que tenha certeza de lidar com habilidade com aquilo que é incerto.

4. Se você prefere observar outros homens – pois é mais fácil chegar a uma conclusão ao julgar os assuntos dos outros – ou se você se observa, com todo o preconceito deixado de lado, você perceberá e reconhecerá que não há utilidade em todas essas coisas desejáveis e amadas a menos que você se equipe em oposição à inconstância do acaso e suas consequências e a menos que você repita com frequência e com indiferença, em cada transtorno, as palavras: “Os deuses decretaram o contrário”.[1]

5. Não, em vez disso, adote uma frase que seja mais corajosa e mais próxima da verdade – uma sobre a qual você possa suportar com segurança seu espírito. Diga a si mesmo, sempre que as coisas se revelem contrárias à sua expectativa: “Os deuses decretaram o melhor!” Se você estiver com essa disposição de espírito, nada irá afetá-lo. Esta disposição você conseguirá se refletir sobre os possíveis altos e baixos nos assuntos humanos antes de testar a força da Fortuna, se vier a considerar filhos ou esposa ou propriedade com a ideia de que não os possuirá necessariamente para sempre e que não será mais miserável apenas porque os tenha deixado de possuir.

6. É trágico que a alma esteja apreensiva pelo futuro e miserável em antecipação à miséria, consumada com um ansioso desejo de que os objetos que dão prazer permaneçam em sua posse até o fim. Pois tal alma nunca estará em repouso. Na espera do futuro, perderá as bênçãos presentes que poderia já desfrutar. E não há diferença entre o sofrimento por algo perdido e o medo de perdê-lo.

7. Mas, por isso, não aconselho você a ser indiferente. Em vez disso, se afaste do que pode causar medo. Certifique-se de prever tudo o que possa ser previsto no planejamento. Observe e evite, muito antes de acontecer, qualquer coisa que seja susceptível de causar prejuízo. Para realizar isso, sua melhor assistência será um espírito confiante e uma mente fortemente decidida a suportar todas as coisas. Aquele que pode suportar a Fortuna, também pode se precaver contra a Fortuna. De qualquer forma, não há turbilhão de ondas quando o mar está calmo. E não há nada mais miserável ou tolo do que o medo prematuro. Que loucura é antecipar os problemas!

8. Muito bem, para expressar meus pensamentos em passo rápido e retratar em uma frase aqueles homens intrometidos e autotorturadores que estão tão descontrolados em meio a seus problemas como estão antes dos problemas: “Sofre mais do que é necessário, quem sofre antes que seja necessário”. Tais homens não pesam a quantidade de seus sofrimentos, por causa da mesma deficiência que os impede de estarem prontos para isso e com a mesma falta de restrição imaginam ingenuamente que sua Fortuna durará para sempre e imaginam ingenuamente que seus ganhos devem aumentar, assim como simplesmente continuar. Eles esquecem esse trampolim sobre o qual as coisas mortais são jogadas e eles acreditam garantir a si mesmos uma continuação infinita das dádivas da chance.

9. Por esta razão, considero excelente a frase de Metrodoro,[2] em uma carta de consolo à sua irmã pela perda de seu filho, um menino de grande promessa: “Todo o bem relativo aos mortais é mortal”.[3] Ele está se referindo aos bens para os quais os homens se atiram em cardumes. Pois o bem real não perece, é certo e duradouro e consiste em sabedoria e virtude –  é a única coisa imortal que é concedida aos mortais.

10. Mas os homens são tão instáveis e tão esquecidos do seu objetivo e do ponto para onde todos os dias os empurram, que ficam surpresos com a perda de qualquer coisa, embora algum dia eles sejam obrigados a perder tudo. Qualquer coisa de que você tenha o título de proprietário está em sua posse, mas não é sua, pois não há força naquilo que é fraco, nem qualquer coisa duradoura e invencível naquilo que é frágil. Devemos perder nossas vidas tão seguramente quanto perderemos nossa propriedade e isso, se compreendemos a verdade, é em si mesmo um consolo. Perca então com serenidade, pois você deve perder sua vida também.

11. Que recurso encontramos, então, diante dessas perdas? Simplesmente isso: manter em memória as coisas que perdemos e não sofrer pela perda do gozo que derivamos delas. Pois “ter” pode ser tirado de nós, “ter tido”, nunca. Um homem é ingrato no mais alto grau se, depois de perder algo, ele não sinta nenhum agradecimento por tê-lo recebido. A Fortuna nos rouba a coisa, mas nos deixou a utilidade e prazer que tiramos dela – e perdemos isso se somos tão injustos a ponto de nos arrepender de tê-la tido ao mesmo tempo que exigimos continuar a possuí-la.

12. Apenas diga a si mesmo: “de todas essas experiências que parecem tão assustadoras, nenhuma delas é insuperável. As provações variadas foram superadas por muitos: fogo por Múcio[4], crucificação por Régulo, [5] veneno por Sócrates, exílio por Rutílio[6] e uma morte infligida pela espada por Catão, portanto, permitamo-nos também superar algo”.

13. Novamente, aqueles objetos que atraem a multidão sob a aparência de beleza e felicidade, foram desprezados por muitos homens e em muitas ocasiões. Fabrício, [7] quando era general, recusou riquezas e quando foi censor as marcava com desaprovação. Túbero considerou a pobreza digna de si mesmo e da divindade no Capitólio quando, ao usar pratos de barro em um festival público, mostrou que o homem deveria estar satisfeito com o que os deuses ainda podiam usar. O ancião Séxtio rejeitou as honras do cargo, ele nasceu com a obrigação de participar de assuntos públicos e, no entanto, não aceitou a faixa larga[8] mesmo quando o divino Júlio lhe ofereceu. Pois ele entendia que o que pode ser dado também pode ser retirado. Deixe-nos também, portanto, realizar algum ato corajoso por nossa própria iniciativa, deixe-nos ser incluídos entre os tipos ideais da história.

14. Por que ficamos negligentes? Por que desanimamos? O que poderia ser feito, pode ser feito se apenas purificarmos nossas almas e seguirmos a natureza; pois quando se afasta da natureza, se é obrigado a desejar e temer e ser escravo das coisas do acaso. Podemos retornar ao caminho verdadeiro, podemos ser restaurados ao nosso estado adequado. Deixe-nos então ser assim, para que possamos suportar a dor, sob qualquer forma que atacar nossos corpos, e dizer à Fortuna: “Você está lidando com um homem, procure alguém a quem você possa conquistar!”Ä [9]

15. Por essas palavras e palavras de um tipo semelhante, a malignidade da úlcera é acalmada; e espero que possa ser reduzida, e seja curada ou interrompida, e envelheça junto com o próprio paciente. No entanto, estou confortável em relação a ele. O que agora estamos discutindo é a nossa própria perda: a partida de um excelente homem velho. Pois ele viveu uma vida plena e qualquer coisa adicional pode ser desejada por ele, não por sua própria causa, mas por causa daqueles que precisam de seus serviços.

16. Ele continua cheio de vida, e se deseja que esta se prolongue não é por si mesmo, mas por aqueles a quem a sua presença é útil. Outra pessoa poderia ter acabado com esses sofrimentos, mas o nosso amigo considera não menos vil fugir da morte do que fugir para a morte. “Mas”, vem a resposta, “se as circunstâncias justificarem, ele não tomará a partida?” Claro, se ele não pode mais ser útil a ninguém, se todo o seu negócio passar a ser lidar com a dor.

17. Isto, meu querido Lucílio, é o que queremos dizer ao estudar filosofia enquanto a aplicamos, praticando-a na verdade – anote a coragem que um homem prudente possui contra a morte e contra a dor quando se vê assediado por uma e golpeado pela outra. O que devemos fazer deve ser aprendido com quem faz.

18. Até agora, lidamos com argumentos – se alguém pode resistir à dor, ou se a aproximação da morte pode abater até grandes almas. Por que discutir isso ainda mais? Aqui há um fato imediato para nós enfrentarmos – a morte não torna nosso amigo mais valioso para enfrentar a dor nem a dor para enfrentar a morte. Em vez disso, ele confia em si mesmo diante de ambas. Ele não sofre com resignação porque espera a morte, nem morre com prazer porque está cansado de sofrer. À dor ele resiste, a morte ele espera.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Ver Virgílio, Eneida, II, 428

[2] Metrodoro de Lâmpsaco foi um filósofo grego da escola epicurista. Embora um dos quatro principais defensores do epicurismo, apenas fragmentos de suas obras permanecem.

[3] Ver Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres – Livro X – Epicuro

[4] Ver outras referências a Múcio nas epístolas XXIV e LXVI.

[5]NT: Marco Atílio Régulo (299 a.C. – 246 a.C.). Conta a tradição que os cartagineses teriam enviado o ilustre prisioneiro a Roma para que ele convencesse seus concidadãos a cederem à paz. O combinado era que, se ele não conseguisse fazê-lo, deveria retornar a Cartago para ser executado. Régulo, ao invés de defender a paz, revelou aos romanos as condições político-econômicas dos inimigos exortando-os a tentarem um último esforço, pois Cartago não conseguiria resistir à pressão da guerra e seria derrotada. Ao término de seu discurso, honrando a sua palavra, retornou para Cartago e foi torturado e executado. Aparentemente, a tortura infligida a Régulo, que teve as pálpebras cortadas e, foi ser rolado morro abaixo dentro de um barril cheio de pregos

[6]NT: Públio Rutílio Rufo foi um político da gente Rutília da República Romana eleito cônsul em 104 a.C.

[7] NT: Caio Fabrício Luscino, dito Monocular, foi eleito cônsul por duas vezes, em 283 e 278 a.C. As histórias sobre Fabrício são os padrões de austeridade e incorruptibilidade, muito parecidas com as contadas sobre Cúrio Dentato.

[8] A faixa larga (de púrpura) ornava a toga dos senadores, por oposição à faixa estreita que decorava a toga dos equestres. Séxtio, portanto, recusou a oferta de ter seu nome na lista dos membros da classe senatorial. “Divino Júlio” é referência a Júlio Cesar.

[9] NT: Os filólogos estão de acordo em haver uma lacuna. Ao final do parágrafo 14. Hense defende que a carta 98 termina no §14 e que o texto a partir do §15 seria outra, cujo inicio se perdeu. Ignora-se quem seria este “excelente homem velho” referido a seguir.

Pensamento #71: Amor Fati

Crisipo, o terceiro escolarca da escola estoica criou uma metáfora poderosa: o cão atrelado a uma carroça:

Imagine um cão preso a uma carroça em movimento. A coleira é longa o suficiente para que o cão tenha duas opções:
1) ele pode seguir suavemente a direção da carroça, sobre a qual ele não tem controle e ao mesmo tempo aproveitar o passeio; ou
2)ele pode obstinadamente resistir a carroça com toda sua força e acabar sendo arrastado pela viagem.

Nós somos esse cachorro. Ou fazemos o melhor da viagem ou lutamos contra cada pequena decisão que o condutor faz. Nos escolhemos. Sejamos um cão sábio e aproveitemos o passeio. Mesmo que o condutor escolha uma estrada rica em obstáculos.

Mais tarde Epicteto coloca dessa maneira:

Não busques que os acontecimentos aconteçam como queres, mas quere que aconteçam como acontecem, e tua vida terá um curso sereno”. 

Manual de Epicteto [8.1]

Pensamento #70: Controle seu medo, parte 2


Sêneca continua a carta 13 dizendo:

Assim, algumas coisas nos atormentam mais do que deveriam; algumas nos atormentam antes do que deveriam; e algumas nos atormentam quando não deveriam nos atormentar. Temos o hábito de exagerar, imaginar, antecipar, a tristeza. A primeira dessas três faltas pode ser adiada no momento, porque o assunto está em discussão e o caso ainda está no tribunal, por assim dizer. O que eu chamo de insignificante, você considerará a ser mais grave; pois é claro que eu sei que alguns homens riem enquanto são açoitados, e que outros estremecem com um tapa orelha. Consideraremos mais tarde se esses males derivam seu poder de sua própria força ou de nossa própria fraqueza.” (XIII, 5)

Resenha: Seneca, Vida e Filosofia

Recentemente grupos de estoicismo em lingua inglesa estão debatendo o caráter de Sêneca, como vemos aqui e aqui. Creio que o filósofo, assim como São Paulo ou St. Agostinho de Hipona, descobriu o caminho da virtude e ética em uma etapa posterior de sua vida. Obviamente, como no caso dos santos, isto não mancha seus escritos e sua filosofia, muito pelo contrário, penso que acrescenta valor.

Em sua Carta 8 a Lucílio ele diz:

Há certos conselhos sadios, que podem ser comparados às prescrições de remédios, estes eu estou pondo por escrito pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas, que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.” (VIII, 2)
Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar.” (VIII, 3)

No tratado A vida feliz, Sêneca responde a acusações que lhe são feitas, onde ele é notavelmente franco. Ele está falando com seu irmão sobre todos os seus fracassos pessoais, das maneiras pelas quais ele não está à altura do ideal e, acima de tudo, do seu incrível luxo:  ele fala em ter árvores que são plantadas apenas para a sombra, de ter vinhos exclusivos, de ter tantos escravos que ele não sabe quais são seus nomes,  de ter tantos imóveis que nem sequer sabe onde todos ficam. Em outras palavras, ele é realmente uma pessoa de estupenda riqueza. Diz que teria muito mais a listar contra si próprio. Mas no momento quer afirmar apenas um ponto:

não sou um homem sábio, nem jamais serei. Por isso não exija de mim que eu seja igual ao melhor, mas que eu seja melhor do que os maus.” (A Vida Feliz, XVII, 3)

Sêneca sabe de suas falhas, mas afirma que está tentando. Ele está realmente tentando trabalhar seus vícios todos os dias e melhorar um pouco a cada dia que passa.

Um excelente livro para conhecer melhor a vida de Sêneca e sua filosodia foi escrito por Francis Holland. Originalmente destinada a servir de introdução para uma tradução das cartas de Sêneca que acabou não sendo publicada, o texto foi publicado independentemente, fez sucesso e atingiu público muito superior ao imaginado pelo próprio autor e editor.

A obra apresenta um relato atraente de Sêneca em relação à sua época e aos três imperadores com quem ele conviveu proximamente: Calígula, Cláudio e Nero. O relato vívido de Holland, usando muitas vezes citações do texto de Sêneca, descreve acontecimentos de sua vida que nos faz imaginar estarmos vivendo na corte do antigo império.

Acadêmicos da época da publicação criticaram alguns pontos do livro, afirmando não haver exatidão nos detalhes apresentados e erros históricos facilmente verificáveis. Por exemplo, Holland afirma que o pai de Sêneca escreveu cinco livros de Controvérsias (Controversiae), quando realmente foram dez. Outra crítica é que Holland faz declarações explicitas sem evidência: “a declaração explícita na p. 36 que Sêneca escreveu ‘após um intervalo de seis meses de sua chegada [na Córsega] a Consolação à sua mãe’ é, no que diz respeito à data, uma informação sem base evidencial, mas que toca um ponto controverso”.[1] Holland ignora muitas perguntas exasperantes ou as aborda apenas superficialmente. Não há uma boa discussão sobre a causa do banimento de Sêneca para Córsega, o suposto adultério de Sêneca com Júlia. Essa acusação afetaria fortemente seu caráter moral e deveria ser melhor explicada. Tão pouco o livro faz alusão à primeira esposa de Sêneca, apenas nos conta sobre Paulina, que é referida como segunda esposa.

O principal mérito do livro reside em sua simpatia entusiasta e cativante pelo assunto e em seus vivos olhares sobre a corte imperial em Roma. A falta de detalhes, omissões ou pequenas inexatidões são irrelevantes para aqueles que querem entender melhor a filosofia de Sêneca ao conhecer sua vida e época.

Se não conseguimos acordo nem sobre o caráter de políticos atuais, imagine então tentar julgar um estadista de 2000 anos atrás e, pior ainda, usando a moral vigente hoje! Devemos estudar e debater a filosofia de Sêneca pois a temos por escrito e podemos estuda-la objetivamente. Analisar o caráter do filósofo só polui e politiza o debate.

Nunca terei vergonha de citar um mau autor se a fala for boa” – Sêneca, Sobre a tranquilidade da Alma.


Disponível nas lojas: Amazon, Kobo, Apple e GooglePlay.

Também em versão impressa nas lojas Amazon, Mercado Livre, Bok2, Submarino, Americanas e Shoptime


Carta 97: Sobre a Degeneração da Época

Na Carta 97 Sêneca aborda um tema recorrente em todas as eras: pessoas maduras tendem a acreditar que o passado era melhor e mais íntegro, e que os jovens estão degenerados e equivocados. Mas Sêneca diz que não é nada disso pois essa negligência aos bons costumes são “vícios da humanidade e não dos tempos“.

Ele narra o caso de um político corrupto, Públio Cloto, que escapou da punição subornando e chantageando juízes com dinheiro e sexo, isso na presença de Catão, símbolo moral para Sêneca. Comparando com a política recente teremos mais uma prova da degeneração ser uma característica da humanidade, não dos tempos.

A carta é interessante também pois narra os rituais da Bona Dea (“Boa Deusa”) e da Floralia, em honra à deusa Flora. Cita máximas de Epicuro, concordando em pontos e discordando de alguns detalhes: “Um criminoso pode ter a sorte de conservar-se oculto, mas não pode estar seguro de assim permanecer“.

A conclusão é que o criminoso, mesmo que escape da lei, jamais poderá escapar da própria consciência, e saber que cometeu crime será punição suficiente devido a culpa e a ansiedade de ser pego:

Boa fortuna libera muitos homens do castigo, mas nenhum homem do medo. E por que seria assim, se não fosse enraizado em nós uma aversão por aquilo que a natureza condenou? Daí mesmo os homens que escondem seus pecados nunca podem contar com o fato de ficarem ocultos; pois suas consciências os convencem e revelam os crimes a si mesmo. Mas é propriedade da culpa ter medo. Ela nos faz doentes devido aos muitos crimes que escapam à vingança da lei e às punições prescritas para que as graves ofensas contra a natureza sejam pagas em dinheiro vivo e porque, em lugar de sofrer a punição, sofremos com o medo.” (XCVII, 16)

Imagem: O império da Flora por Giovanni Battista Tiepolo.


XCVII. Sobre a Degeneração da Época

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você está enganado, meu querido Lucílio, se você acha que o luxo, a negligência aos bons costumes e outros vícios são especialmente característicos de nossa época. Não, são os vícios da humanidade e não dos tempos. Nenhuma era na história esteve isenta de culpa. Além disso, se você começar a levar em conta as irregularidades típicas a qualquer época particular, você encontrará – para a vergonha do homem – que o pecado nunca foi mais explícito do que na própria presença de Catão.

2. Alguém acreditaria que dinheiro mudou de mão no julgamento quando Clódio[1] foi acusado de adultério com a esposa de César, quando ele violou o mistério ritual[2] daquele sacrifício que se é oferecido em nome do povo, quando todos os homens são tão rigorosamente removidos do recinto, tanto que até imagens de todas as criaturas masculinas estão cobertas? E, no entanto, o dinheiro foi dado ao júri e, mais vil do que essa pechincha, crimes sexuais foram exigidos de mulheres casadas e jovens rapazes como uma espécie de contribuição adicional.

3. O crime denunciado envolveu menos pecado do que sua absolvição, pois o réu por adultério parcelou os adultérios e não tinha certeza de sua própria absolvição até ter feito dos jurados criminosos como ele. Tudo isso foi feito no julgamento em que Catão deu testemunho, embora essa fosse sua única participação. Vou citar as reais palavras de Cicero, porque os fatos são tão ruins quanto inacreditáveis:

4. “Ele distribuiu cargos, promessas, súplicas e presentes. E mais do que isso (Céus misericordiosos, que estado de coisas abandonado!) a vários jurados, para completar sua recompensa ele concedeu o gozo de certas mulheres e encontros com jovens nobres”.[3]

5. É supérfluo ficar chocado com o suborno pois as adições ao suborno foram piores. “Você tem interesse na esposa desse indivíduo austero, A.? Muito bom. Ou de B., o milionário? Eu garantirei que você possa se deitar com ela. Se você não cometeu adultério, condene Clódio. Essa beldade que você deseja deve visitá-lo. Garanto-lhe uma noite em companhia dessa mulher sem demora, minha promessa deve ser realizada fielmente dentro do prazo legal de pagamento”. É mais grave distribuir esses crimes do que os cometer; significa chantagear matronas dignas.

6. Estes jurados no julgamento de Clódio pediram ao Senado uma guarda – um favor que só seria necessário para um júri prestes a condenar o acusado; e seu pedido foi concedido. Daí a observação espirituosa de Cátulo depois que o réu ter sido absolvido: “Por que nos pediram a guarda? Tiveram medo de ter seu dinheiro roubado?” E, no entanto, em meio a gracejos como estes, ele ficou impune, ele que antes do julgamento era um adúltero, durante o julgamento, um gigolô e que escapou da condenação mais vilmente do que merecia.

7. Você acredita que qualquer coisa poderia ser mais vergonhosa do que esses padrões morais – quando a luxúria não pode se manter afastada nem do culto religioso, nem dos tribunais? No próprio inquérito realizado em sessão especial por ordem do Senado mais crimes foram cometidos do que investigados. A questão em debate era se alguém poderia estar seguro depois de cometer adultério, foi demonstrado que não se poderia estar seguro sem cometer adultério!

8. Toda essa negociata ocorreu na presença de Pompeu e César, de Cícero e Catão, sim, esse próprio Catão cuja presença, segundo dizia, fazia com que as pessoas se abstivessem de exigir as provocações e caprichos usuais de atrizes nuas na Florália,[4] – se você puder acreditar que os homens eram mais rigorosos em sua conduta em um carnaval do que em um tribunal! Tais coisas serão feitas no futuro, como já foram feitas no passado; e a licenciosidade das cidades às vezes diminuirá através da disciplina e do medo, nunca por si mesma.

9. Portanto, você não precisa acreditar que somos nós quem mais nos entregamos para a luxúria e menos para a lei. Pois os homens jovens de hoje vivem vidas muito mais simples do que as de uma época em que um réu se declararia não culpado de uma acusação de adultério perante os juízes, e os juízes confessariam perante o arguido. Época quando foi praticada a devassidão para garantir um veredicto, e quando Clódio, favorecido pelos próprios vícios dos quais ele era culpado, fez o papel de gigolô durante a audiência do caso. Poderíamos acreditar nisso? Aquele a quem um adultério levou a um inquérito foi absolvido por causa de muitos.

10. Todas as eras produzirão homens como Clódio, mas nem todas as eras, homens como Catão. Degeneramos facilmente porque não nos falta mentores nem associados em nossa maldade, e a perversidade continua por si mesma, mesmo sem mentores ou associados. O caminho para o vício não é apenas morro abaixo, mas em declive acentuado. Muitos homens são tornados incorrigíveis pelo fato de que enquanto que em todos os erros no artesanato trazem vergonha aos bons artesãos e causam vergonha para aqueles que se desviaram, os erros da vida são uma fonte positiva de prazer.

11. O piloto não está contente quando seu navio emborca; o médico não está contente quando enterra seu paciente; o advogado não está contente quando o réu perde um caso por sua culpa; mas, por outro lado, cada homem goza de seus próprios crimes. A. se deleita em uma intriga,  pois era a dificuldade que o atraía a ela. B. Delicia-se em falsificação e roubo e só está descontente com o pecado quando seu pecado não atinge o alvo. E tudo isso é o resultado de hábitos pervertidos.

12. Por outro lado, no entanto, para que você possa saber que há uma ideia de boa conduta presente subconscientemente em almas que foram conduzidas até mesmo nas formas mais depravadas e que os homens não são ignorantes do que o mal é, mas indiferentes, eu digo que todos os homens escondem seus pecados e mesmo que o caso seja bem-sucedido aproveita os resultados enquanto esconde os próprios pecados. Uma boa consciência, no entanto, deseja sair e ser vista pelos homens, já a maldade teme a própria sombra.

13. Por isso, considero Epicuro o mais adequado: “Um criminoso pode ter a sorte de conservar-se oculto, mas não pode estar seguro de assim permanecer”,[5] ou, se você acha que o significado pode ser mais claro desta forma: “A razão pela qual não é nenhuma vantagem para os transgressores permanecerem ocultos é que, embora tenham a fortuna, eles não têm a certeza de permanecer em segurança”. É o que quero dizer: os crimes podem ser bem guardados, estar livre da ansiedade, não é possível.

14. Esta visão, eu mantenho, não está em desacordo com os princípios da nossa escola, se assim for explicado. E porque? Porque a primeira e a pior penalidade do pecador é ter cometido o pecado. E o crime, embora a Fortuna se divirta com seus favores, embora ela o proteja e o tome sob sua guarda, nunca pode ficar impune, uma vez que a punição do crime reside no próprio crime. Mas, no entanto, essas segundas penalidades seguem de perto as primeiras: medo constante, terror constante e desconfiança na própria segurança. Por que, então, eu deveria colocar a perversidade livre de tal punição? Porque não hei-de deixá-la sempre em suspenso?

15. Deixe-nos discordar de Epicuro em um único ponto, quando ele declara que não existe uma justiça natural e que o crime deve ser evitado porque não se pode escapar do medo que resulta dele; deixe-nos concordar com ele do outro ponto, que as más ações são açoitadas pelo chicote da consciência e essa consciência é torturada em maior grau porque a ansiedade interminável a impulsiona e chicoteia, e não pode confiar nos fiadores de sua própria paz mental. Por isso, Epicuro é a própria prova de que somos, por natureza, relutantes em cometer crimes, porque mesmo em circunstâncias de segurança, não há quem não sinta medo.

16. Boa fortuna libera muitos homens do castigo, mas nenhum homem do medo. E por que seria assim, se não fosse enraizado em nós uma aversão por aquilo que a natureza condenou? Daí mesmo os homens que escondem seus pecados nunca podem contar com o fato de ficarem ocultos; pois suas consciências os convencem e revelam os crimes a si mesmo. Mas é propriedade da culpa ter medo. Ela nos faz doentes devido aos muitos crimes que escapam à vingança da lei e às punições prescritas para que as graves ofensas contra a natureza sejam pagas em dinheiro vivo e porque, em lugar de sofrer a punição, sofremos com o medo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] NT: Públio Clódio Pulcro (Publius Clodius Pulcher), mais conhecido apenas como Clódio, foi um político da República Romana conhecido por suas táticas populistas.

[2] NT: Os ritos de Bona Dea (“Boa Deusa”) eram realizados em dezembro na casa de um importante magistrados de Roma. Em 62 a.C., a cerimônia seria realizada na residência oficial de Júlio César, o pontífice máximo, em Régia. As anfitriãs foram sua esposa, Pompeia, e sua mãe, Aurélia, com a supervisão das virgens vestais. Este era um culto do qual os homens não tinham permissão para falar ou mesmo de saber o nome da deusa, que era chamada de “Boa Deusa”. Clódio se intrometeu nos ritos disfarçado de mulher, supostamente com o objetivo de seduzir Pompeia, mas foi descoberto. O crime de Clódio era, portanto, duplamente grave: adultério e violação religiosa

[3] Ver Cícero, Cartas a Ático.

[4] A Floralia era um festival romano, em honra à deusa Flora, ocorrido no mês de maio e ligado ao ciclo agrário com objetivo de consagrar as florações da primavera. Haviam representações teatrais, solturas de animais associados à fertilidade e divertimentos realizados no Circo Máximo.

[5] Ver Epicuro, Cartas e Princípios.