Afinal há algo errado em comer bifes de ouro segundo o Estoicismo e o Cinismo de Diógenes?

Professor Aldo Dinucci escreveu um interessante artigo sobre ostentação e estoicismo, inspirado na controvérsia do momento, o bife de ouro dos jogadores da copa.

Pessoalmente, não acho que o fato tenha muito significado, eu, jamais o comeria, não por virtude, mas por um defeito: Sou muito muquirana. Por mais dinheiro que tivesse, pagar milhares de reais por uma refeição ou vinho me será sempre inaceitável.

Aldo toca um ponto importante, o motivo que leva uma pessoa a pagar fortunas por algo efêmero:

Assim, você pode até comer seu bife de ouro, mas isso obviamente contraria as recomendações de simplicidade do estoicismo e do cinismo, para os quais a genuína felicidade não advém da luxúria. Além disso, se você comer o tal bife de ouro para se exibir, mostrará que vive em função das opiniões alheias, deixando a si mesmo de lado e vivendo em função dos outros. No primeiro caso, você tornará sua vida mais difícil por se fazer dependente de coisas caras e inúteis. No segundo, será infeliz por fazer sua própria felicidade depender de opiniões alheias e não de seus próprios anseios decorrentes de sua natureza.”

Sêneca aparentemente consideraria a iguaria algo indiferente, ele diz que é sinal de uma alma instável não poder tolerar riquezas:

Os homens descobrirão que somos diferentes do rebanho comum se olharem de perto. Se eles nos visitam em casa, eles devem nos admirar, ao invés de admirar nossas mobílias. É um grande homem quem usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa prataria como se de barro fosse. É o sinal de uma alma instável não poder tolerar riquezas.”

Carta 5: Sobre a virtude do Filósofo, §6

Artigo publicado originalmente VIVA VOX ESTOICISMO em 10 de dezembro de 2022.


Afinal há algo errado em comer bifes de ouro segundo o Estoicismo e o Cinismo de Diógenes?

Ultimamente chamou nossa atenção o restaurante no Qatar no qual peças de carne assada cobertas de ouro são servidas com grande estardalhaço. Mas afinal o que há de errado com bifes cobertos de ouro? Quem tem dinheiro de sobra não tem o direito de ir ao tal restaurante e gastar o quanto quiser? O que diriam os estoicos antigos sobre isso? O que diria o cínico Diógenes, o cão, sobre o caso dos bifes de ouro do Qatar?

O primeiro ponto que eu destaco é a ligação entre o estoicismo e o cinismo que se revela primeiramente pela busca por simplicidade e descomplicação na vida. Diógenes pode ser visto como um Sócrates levado aos extremos, que busca a felicidade apostando literalmente na pobreza. É possível ser feliz com pouco, seria um dos lemas da filosofia de Diógenes. Assim, segundo uma anedota que nos chegou, Diógenes, ao ver um menino tomando água na fonte com as mãos em concha, jogou fora seu copo dizendo que um simples garoto lhe ensinaraque mesmo ele, Diógenes, tinha coisas supérfluas. E coisa semelhante ocorreu ao ver um menino comendo lentilhas sobre um pão ázimo, o que fez o Cão lançar fora seu prato.

O estoico etrusco Musônio Rufo reflete a partir dessas mesmas premissas. Para este filósofo, o luxo nas residências é desprovido de sentido, significando recursos desperdiçados e não representando qualquer ganho seja para o proprietário da casa seja para a comunidade em que vive:

Já que, em razão da proteção, também fazemos as casas, <Musônio> disse que é preciso construí-las tendo em vista a necessidade do uso, como prevenir o frio, o excesso de calor; ser, para os que precisam, proteção contra o sol e contra os ventos. Em geral, é preciso que a casa nos supra o mesmo que uma caverna natural que possua abrigo adequado ao homem pode suprir. E se efetivamente possui <espaço> extra, [19.35] este será uma conveniente dispensa para o alimento próprio aos seres humanos. Para que o peristilo no pátio? Para que as paredes douradas? Para que as abóbadas cobertas de ouro? Para que pedras dispendiosas, umas combinando-se no chão, outras pressionadas nos muros, outras ainda trazidas de bem longe e a grandes expensas? [19.40] Não são todas essas coisas extravagantes e desnecessárias, <coisas> sem as quais se pode tanto viver quanto ser saudável? E que dão muito trabalho, sendo obtidas com muito dinheiro, com o qual alguém poderia ser benfeitor de muitos homens, tanto pública quanto particularmente? (Musônio, Diatribe 19)[1]

Essa reflexão se estende aos utensílios domésticos, que devem também tão somente cumprir as funções para as quais foram originalmente concebidos:

Também consoante e congênere ao caráter dispendioso da casa se figuram as coisas relativas ao mobiliário dela – leitos, mesas, tapeçarias, taças e coisas de tal qualidade, que ultrapassam por completo a precisão e vão além da necessidade. Leitos de marfim e prata ou, por Zeus, dourados; mesas de material semelhante; cobertores de cor púrpura e de outras cores difíceis de achar; taças feitas de ouro e prata, de pedra ou de materiais semelhantes à pedra, que competem quanto ao custo com as feitas de prata e ouro. E todas essas coisas obtidas com esforço! Uma pequena cama não nos oferece <algo> pior do que um leito inclinado de prata ou um leito de marfim. E é mais do que suficiente cobrir-se com um casaco de pele de cabra, de modo que não se precisa de um casaco de cor púrpura ou escarlate. E como não deixar de desejar uma mesa de prata quando nos é possível comer, sem risco, em uma mesa de madeira? E, certamente, por Zeus, é possível beber em copos de barro, pois naturalmente mata-se a sede com eles do mesmo modo que com os de ouro. O vinho nos copos de barro não tem sabor contaminado e possui aroma mais prazeroso que nos copos de ouro ou de prata. (Musônio, Diatribe 20)[2]

Epicteto também fala em termos semelhantes no Manual, ao afirmar que:

A medida das posses para cada um é o corpo, assim como o pé é a medida para a sandália. Se te fixares sobre essa regra, observarás a <justa> medida. Mas, se a violares, serás no fim necessariamente conduzido ao abismo. Do mesmo modo também em relação à sandália: se violares a regra para além do que pede o pé, tornando dourada a sandália, depois púrpura, depois adornada. Pois não há limite para o que uma única vez ultrapassa a medida. (Epicteto, Manual, 39. Excerto de Epicteto, Manual Edição original de 2007 – Tradução dos originais em grego: Aldo Dinucci)

Mas qual limite é ultrapassado aqui? Por que uma vida mais simples seria melhor que uma existência luxuriosa e de ostentação? Por que uma casa ou um utensílio não podem ser adornados indo além daquilo para o que foram originalmente pensados? Não seriam os estoicos e os cínicos muito chatos e sem graça com suas recomendações sobre simplicidade de vida? Por que afinal não seria bom e louvável sair por aí ostentando riqueza, beleza, poder[3]?

Podemos refletir sobre isso a partir do sentido da palavra ostentação, que vem do latim ostentare, que significa expor à vista, exibir, mostrar. Ora, podemos dizer que quem ostenta quer obter algum tipo de felicidade por meio da ostentanção, fazendo sua felicidade depender dos juízos alheios sobre sua pessoa. Quem ostenta pensa algo como: Mostrarei minha riqueza e todos me admirarão! E essa admiração me fará feliz! O que Diógenes e os estoicos percebem é que essa ideia é equivocada e parte de uma concepção igualmente equivocada sobre o que é o ser humano, segundo a qual a felicidade dos humanos depende de poder, beleza, riqueza, coisas que, para esses filósofos, são indiferentes, porque podem ser bem ou mal usadas. Assim, a riqueza mal usada trará infelicidade. E o mesmo vale para os outros indiferentes, que nada mais são que materiais a partir dos quais podemos construir nossa felicidade ou nossa infelicidade. Para Diógenes e os estoicos, o que distingue um ser humano dos demais é uma certa sabedoria, sabedoria esta que permite fazer bom uso das coisas indiferentes. Assim, o erro de quem ostenta é achar que será feliz ostentando, que os demais o admirarão, quando, na verdade, colherá em geral inveja e se fará dependente dos juízos alheios, dependência que é, na verdade, a fonte suprema ae infelicidade, pois leva o humano a agir de acordo com o que ele acha que irá agradar os outros e não fazer aquilo que em seu íntimo ele intui que o fará feliz.

Assim, você pode até comer seu bife de ouro, mas isso obviamente contraria as recomendações de simplicidade do estoicismo e do cinismo, para os quais a genuína felicidade não advém da luxúria. Além disso, se você comer o tal bife de ouro para se exibir, mostrará que vive em função das opiniões alheias, deixando a si mesmo de lado e vivendo em função dos outros. No primeiro caso, você tornará sua vida mais difícil por se fazer dependente de coisas caras e inúteis. No segundo, será infeliz por fazer sua própria felicidade depender de opiniões alheias e não de seus próprios anseios decorrentes de sua natureza.

Creio que Diógenes, o Cão, sintetiza magistralmente essa minha reflexão em uma performance cuja notícia nos chegou e que parafraseio assim: Um dia, Diógenes foi convidado para ir à mansão de um homem rico, que ia lhe mostrando os caríssimos objetos de sua residência à medida em que atravessavam os corredores. “Vês essa estátua”, disse o ricaço, “é um bronze de Corinto, não cuspas nela”. “Vês esse tapete”, observou o nababo, “é de confecção caríssima, não cuspas nele”. “Vês esse jarro”, acrescentou o ostentador, “é raro  e antiquíssimo. Não cuspas nele por favor”. Então, Diógenes juntou bastante cuspe em sua boca, e quando já tinha uma boa quantidade do pegajoso líquido, cuspiu-o todo bem no meio da cara do milionário, que, estupefato, lhe indagou por que cargas d´água fizera tal coisa. E Diógenes lhe respondeu: “Sua cara foi o lugar mais ordinário que encontrei em sua casa”. Moral da estória: aquele que busca validação exibindo seu poder e sua riqueza mostra que não tem realmente nada de bom em termos humanos a oferecer, tornando-se uma pessoa fútil e patética e perdendo todo o valor para si mesmo e para os demais enquanto ser humano. 

Entretanto, há um ponto adicional que deve ser observado e que para mim é o mais importante. Uma coisa é ostentar em um sociedade na qual as pessoas possuem o mínimo para viver. Outra bem diferente é ostentar diante de miseráveis e famintos, como muitos brasileiros abastados fazem costumeiramente no Brasil e alhures. Um dos temas fundamentais do estoicismo é a questão do afeto e da empatia em relação aos demais seres humanos: Hiérocles de Rodes observa que um dos objetivos dessa filosofia é fazer com que o afeto natural que temos por nós mesmos e por nossos familiares e pessoas próximas se estenda aos demais cidadãos de nossa cidade e de nosso país, alcançando em última análise a todos os humanos de modo a serem reconhecidos então como nossos irmãos e irmãs em humanidade[4].  Assim, banquetear-se às vistas de pessoas famintas e ostentar luxúria diante de miseráveis é uma demonstração clara de falta de empatia, de sensibilidade e de humanidade –enfim, em termos estoicos, uma evidente demonstração de profunda ignorância. E alguém poderia indagar: o tanto de dinheiro gasto em um banquete resolveria o problema da fome e da miséria em nosso país? Certamente que não, mas pelo menos quem deixasse de lado essas demonstrações de ostentação, extravagância e luxúria, empregando esses recursos para matar a fome mesmo que fosse de umas poucas pessoas, mostraria que não é totalmente insensível ao sofrimento humano. Essa pessoa mostraria a si mesma e aos demais que a sobrevivência digna daqueles que o circundam também lhe diz respeito e o afeta, e que é capaz de amá-los e vê-los como seus irmãos e irmãs.


Pensamento 95: As coisas não inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas.

Pensamento de Epicteto, para o pós eleição:

As coisas não inquietam os homens, mas as opiniões sobre as coisas.[1] Por exemplo: a morte nada tem de terrível ou também a Sócrates teria se afigurado assim, mas é terrível a opinião sobre a morte, segundo a qual ela é terrível.[2] Então, quando formos obstacularizados ou nos inquietarmos ou nos afligirmos, jamais consideremos outra coisa a causa senão nós mesmos, isto é, nossas próprias opiniões. É ação do ignorante acusar os outros pelas coisas que ele mesmo faz erradamente. É do que começou a se educar acusar-se. É do homem educado não acusar os outros nem se acusar.


[1] A denúncia dos enganos da opinião que se apoia no ouvir dizer sem reflexão é comum a todo o Socratismo. Tal denúncia é acompanhada pela afirmação do caráter terapêutico da crítica à opinião, que se traduz pela eliminação dos sofrimentos e dos medos que têm sua origem na ignorância. Encontramos expressão formidável disso, por exemplo, em Lucrécio:
Pois assim como as crianças têm medo de tudo no escuro, assim nós, em plena luz, tememos coisas que não são mais de temer que aquelas que nas trevas apavoram as imaginações infantis. Esses terrores do espírito, essas trevas da alma não os podem espantar os raios de sol ou a claridade do dia, mas tão somente a luz da razão e o estudo da natureza. (De Rerum Natura, II, v, 1 a 60)
Marco Aurélio (XI, 23), citando Sócrates, nos diz que este “chamava as crenças populares de monstros que assustam as crianças”.

[2] Um tema central do Estoicismo é a reflexão sobre a morte. Tal reflexão tem como objetivos: (1) tornar-nos cientes de nosso caráter efêmero, para que vivamos mais intensamente e não deixemos as coisas importantes para depois, um depois que pode não haver (Cf. LI); (2) mostrar que a morte não é um mal e que não nos é preciso temê-la. Há todo um tesouro de reflexões sobre esse tema no pensamento dos socráticos ao qual remetemos o leitor. Contentar-me-ei aqui em citar Sócrates, que, segundo Platão (Apologia de Sócrates), teria dito em sua defesa não temer a morte, pois ou ela é o termo da vida após o qual não há nem bem nem mal (não sendo, assim, preciso temê-la) ou, após a morte, por ter vivido de modo digno, ele iria para um lugar no qual encontraria as almas de outros homens dignos (não sendo, de novo, preciso temê-la).

Tradução de Aldo Dinucci, também disponível em audio.

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Audiolivro: O Manual de Epicteto

O Manual de Epicteto, também conhecido por Encheirídion, é um curto guia com conselhos éticos estoicos compilado por Flávio Arriano, aluno de Epicteto. Encheirídion — termo grego que significa “punhal” ou livro portátil, manual — consiste em um conjunto de aforismos que o filósofo deve ter sempre à mão, para ajudá-lo a enfrentar e vencer as dificuldades da vida: para lembra-lo, conforme ensinava Epicteto, que não devemos considerar como nossas aquelas coisas que não estão sob o nosso controle — os acontecimentos que não dependem de nós, os reveses da sorte e a opinião alheia  pois assim nos tornaríamos escravos delas, mas devemos, sim, concentrar nossos esforços naquilo que está sob o nosso controle.

O Manual de Epicteto foi traduzido diretamente do grego pelo doutor Aldo Dinucci, professor do departamento de filosofia antiga da universidade federal de Sergipe e pesquisador honorário da Universidade de Kent no Reino Unido.

Nesta série iremos compartilhar a cada poucos dias um capitulo do manual.
Audiolivro disponível na Tocalivros e Ubook. Em breve também no Googleplay e Applestore

I.

Das coisas, algumas estão sob nosso controle, outras não. Estão sob nosso controle o juízo, o impulso, o desejo, a repulsa– em suma: o quanto for ação nossa. Mas não estão sob nosso controle o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos – em suma: o quanto não for ação nossa. As coisas que estão sob nosso controle são por natureza livres, desimpedidas, desobstruídas. As que não estão sob nosso controle são fracas, escravas, obstruídas, de outros. Lembra, então, que, se pensares livres as coisas que são por natureza escravas, e tuas as que são de outro, tu te farás obstáculo, chorarás, te inquietarás, censurarás tanto os Deuses quanto os homens. Mas se pensares teu unicamente o que é teu, e o que é de outro, como o é, de outro, ninguém jamais te forçará, ninguém te impedirá, não censurarás ninguém, não acusarás ninguém, nem, uma vez que seja, agirás constrangido, não terás inimigos, ninguém te causará dano, pois não sofrerás nada prejudicial. Então, almejando coisas tão importantes, lembra que é preciso não te empenhares de modo comedido, mas abandonar completamente algumas coisas e, por hora, deixar outras para depois. Porém, se queres tanto as coisas importantes quanto comandar e enriquecer, talvez não obterás nenhuma destas coisas, porque almejas também as importantes, e não atingirás de modo algum aquelas coisas em razão das quais unicamente resultam a liberdade e a felicidade. Então, pratica dizer prontamente a toda impressão em estado bruto que “És impressão e de modo algum és o que se apresenta”. Em seguida, examina-a e julga-a por essas regras que possuis, em primeiro lugar e principalmente se está ou não sob nosso controle. E, caso esteja entre as que não estão sob nosso controle, tem à mão que “Nada és em relação a mim”.

Livro impresso:

Eis nossa Luta: Enlouquecer ou não.

Mais um excelente artigo de Aldo Dinucci, falando da industria cultural e como garimpar joias culturais na imensidão de banalidades da internet. Critica também o modismo do estoicismo como autoajuda voltado ao sucesso pessoal.

Para se tornar produto vendável e caber na diminuta caixinha de papelão do mercado, foi preciso amputar boa parte de sua proposta filosófica original. Pior: deixou de ser uma filosofia, lançou-se no lixo sua lógica, sua metafísica, sua crítica aos costumes, seu pensamento político, e foi reduzido a um prontuário de prescrições para indivíduos vitimados pela falta de perspectivas da atualidade, para os quais já se produz a literatura de autoajuda em geral. 

Se não é possível mudar o mundo em larga escala, é sempre possível mudar o mundo no nosso entorno imediato e em nossa cabeça. 

Artigo publicado originalmente VIVA VOX ESTOICISMO em 04 de maio de 2022.


Eu, os Estoicos e a Indústria Cultural

Por Aldo Dinucci

Tive o privilégio de viver parte de minha infância e de minha adolescência em Petrópolis, entre os anos 70 e 80. Na época, era uma cidade ainda pacata, mas com tradição cultural. Havia vários sebos pela Rua do Imperador, nos quais excelentes bibliotecas de falecidos intelectuais petropolitanos podiam ser compradas a retalho. Graças a esse fato, tive acesso à grandes obra da literatura ocidental e brasileira: boas edições de obras de Homero, Virgílio, Dante, Kaváfis, Gide, Exupéry, Graciliano, Mário de Andrade, Vinicius, Jung, Platão, Lucrécio, entre outros, podiam ser compradas por uns trocados. Tive acesso assim à boa literatura, evidentemente fundamental para a minha formação. A atmosfera bucólica da cidade, o clima ameno, o casario antigo e suas montanhas repletas de florestas da Mata Atlântica de Altitude colaboraram para que eu pudesse ler e absorver essas obras.

Não havia internet, mas, pelo rádio, podíamos ouvir uma programação musical de qualidade. Havia, por exemplo, a JB FM, que transmitia músicas clássicas pela noite, em uma programação que enviavam pelo correio em um folheto aos que o requisitassem por carta. Havia também a Rádio Mec, que apresentava sempre o melhor da MPB. Por esses meios, conheci Rachmaninoff, Prokofiev, Jobim, Vinicius (de novo!), Dick Farney, Chopin, Debussy, Cartola, entre tantos outros, responsáveis por constituir, nota por nota, diversos platôs de minha alma.

Os estoicos, na Antiguidade, viviam imersos culturalmente no que havia de melhor em sua época: conheciam profundamente os poetas trágicos, sabiam de cor miríades de versos de Homero e Virgílio, além, é claro, de todo o tesouro cultural filosófico da Antiguidade. Eram intelectuais, incluindo polímatas, como Possidônio; lógicos, como Crisipo, Carnéades e Antípatro; astrônomos, como Gêmino de Rodes e Cleomedes; intelectuais multifacetados, como Sêneca. 

Naqueles tempos, como em todos os tempos, havia uma cultura popular. Entre os ingredientes nada apetecíveis da cultura popular romana, estavam os jogos de gladiadores, que envolviam, como bem se sabe, grande carnificina, e eram assistidos por multidões ensandecidas. Assim, não é de estranhar que filósofos como Sêneca e Marco Aurélio repudiassem essas manifestações culturais.

Os estoicos partem da tese socrática segundo a qual a humanidade é fundamentalmente insana, porque mergulhada na ignorância. A filosofia estoica, nesse sentido, consiste em reeducar o indivíduo para que ele possa se livrar dessa herança má do senso comum, o qual está sempre repleto de equívocos sobre o que é o humano e qual é sua relação com o Cosmos. Então, não é de surpreender que os estoicos fossem críticos ferrenhos dos costumes, não tentando corrigi-los diretamente, pois isso era algo que viam como ao mesmo tempo impossível e imoral, já que eles mesmos não se viam como detentores da verdade capazes de reeducar a humanidade, transmitindo suas reflexões somente àqueles que iam às escolas de filosofia em busca de esclarecimento. Epicteto resume, em um fragmento, a missão da filosofia estoica: 

Eis nossa Luta: Enlouquecer ou não. 

Passemos, agora, à nossa época. Podemos dizer que hoje temos o predomínio da indústria cultural [1], que tem, como critério principal, além da ideologia que tentam nos impingir, o lucro. Some-se a isso que, no Brasil, atravessamos um verdadeiro processo de invasão cultural norte-americana, via internet, tv, literatura etc desde os anos 80 [2]. Isso poderia até ser bom em alguma medida se não fosse acompanhado pela destruição de nossa cultura nacional e se o que eles nos enviam fosse cultura de qualidade. Mas, claro, não é. São filmes, música e literatura sem qualquer senso estético ou autenticidade. E sequer podemos criticar essas subculturas abertamente, pois logo somos tachados de elitistas.

Coloquei em itálico no parágrafo anterior o termo critério: de fato, já se sabe que não temos mais critérios estéticos nos dias de hoje, e como poderíamos tê-los se o critério passou a ser precipuamente o lucro? Assim, vivemos o predomínio absoluto, nas artes e na mídia, do que vende mais. Isso atinge todas as áreas da cultura: música, literatura, cinema, religião e… agora também filosofia. 

Como é sabido, a religião se tornou também um produto da indústria cultural, sobretudo através da teologia da prosperidade [3], que está de pleno acordo com o capitalismo e o consumismo atuais, o que explica seu grande sucesso de vendas.

Lamentavelmente, o estoicismo também virou um produto a mais da indústria cultural, vendido como panaceia contra os sofrimentos impostos pelo capitalismo tardio, enfatizando a resiliência e a luta contra o sofrimento. Para se tornar produto vendável e caber na diminuta caixinha de papelão do mercado, foi preciso amputar boa parte de sua proposta filosófica original. Pior: deixou de ser uma filosofia, lançou-se no lixo sua lógica, sua metafísica, sua crítica aos costumes, seu pensamento político, e foi reduzido a um prontuário de prescrições para indivíduos vitimados pela falta de perspectivas da atualidade, para os quais já se produz a literatura de autoajuda em geral. 

Não é preciso dizer que esse tal estoicismo, produto da cultura industrial, está em completa contradição com o estoicismo originário, que se constituía como escola filosófica, investigando em detalhe todas as partes da filosofia e criando laços de amizade e amor fraternal entre seus membros.

Finalmente chego ao ponto que almejei ao começar a escrever este texto. O que fazer diante desse cenário? Ou melhor, como um estoico antigo agiria diante de uma situação como a que vivemos? Primeiro, como observei em texto anterior, um estoico antigo não tentaria mudar o mundo sozinho, pois nem se vê com tal estatura moral, nem vê isso como possível. Segundo, creio eu, buscaria selecionar cultura de qualidade para si, como de fato o faziam. Aceitar que esta seja a situação do mundo não implica que aceitemos esta situação para nós mesmos. Se não é possível mudar o mundo em larga escala, é sempre possível mudar o mundo no nosso entorno imediato e em nossa cabeça. 

Assim, se a indústria cultural se me é imposta pela TV, desligo a TV. Se o jornal passa a ser suspeitoso quanto a me empurrar ideologia barata, evito lê-lo. Se a TV a cabo passa a me bombardear com filmes comerciais ruins, cancelo minha inscrição. Entrementes, me volto para os textos e para as culturas autênticas que formaram nossa civilização, como as dos gregos, dos romanos, dos orientais, dos africanos. Esses objetos culturais autênticos ainda existem e se escondem (ou antes foram abandonados) nas bibliotecas e nos museus, reais ou virtuais. Portanto, se não há mais critério de qualidade no mundo em que vivo senão aquele que a cultura industrial quer me impor, crio eu mesmo meus critérios e deixo o que a indústria cultural produz a quem interessar possa.

Efetivamente, não mudarei o mundo em larga escala com ações assim, e não o pretendo. Mas farei aquilo que os estoicos antigos almejavam: buscarei minha felicidade através de critérios escolhidos por mim mesmo, selecionando as coisas externas (que incluem livros, músicas, lugares, viagens, pessoas) de acordo com meus próprios critérios e gostos. Tenho praticado isso e isso tem me trazido grande alegria e felicidade. Afinal, a indústria cultural, apesar de poderosa financeiramente e espalhafatosa, entra em minha casa pelas estreitas portas das telas de TV, de computador e de celular. E posso fechar essas portas com apenas um dedo      

P.S. Este texto é resultado de conversas minhas com Marcos Vinícios Pereira de Almeida, mestrando em filosofia pela UFG, a quem agradeço pelas conversas inspiradoras.


[1] Que se pode definir como “ramo de negócios… que se apropriou dos meios tecnológicos surgidos na virada do século XIX para o XX com objetivos não apenas de lucrar com a produção e a venda de mercadorias culturais, mas também de direcionar… o comportamento das massas…” (Rodrigo Duarte, Indústria cultural e meios de comunicação. São Paulo: Martins Fontes, 2014, p. 28-9). 

[2] Quanto a isso, ver Júlia Falivene Alves, A invasão cultural norte-americana. São Paulo: Moderna, 2004.   

[3] “Teologia da prosperidade (também conhecida como Evangelho da prosperidade) é uma doutrina religiosa cristã que defende que a bênção financeira é o desejo de Deus para os cristãos e que a fé, o discurso positivo e as doações para os ministérios cristãos irão sempre aumentar a riqueza material do fiel. Baseada em interpretações não-tradicionais da Bíblia, geralmente com ênfase no Livro de Malaquias, a doutrina interpreta a Bíblia como um contrato entre Deus e os humanos; se os humanos tiverem fé em Deus, Ele irá cumprir suas promessas de segurança e prosperidade. Reconhecer tais promessas como verdadeiras é percebido como um ato de fé, o que Deus irá honrar.” (Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Teologia_da_prosperidade)

Eram os estoicos reformadores morais?

No artigo “Eram os estoicos reformadores morais?” Aldo Dinucci explica que os estoicos entendem que o progresso através da filosofia deve ser buscado espontaneamente. Eles faziam sim propaganda de seus ensinamentos, mas os ensinavam apenas para aqueles que por sua própria vontade os buscavam. 

“Portanto, um estoico não ficará por aí importunando quem quer que seja com sua filosofia, buscando convencimento e aceitação, mas cumprirá bem os papéis que lhe foram atribuídos. Se, por acaso, é político, proporá leis equitativas e justas e buscará implementar na medida do possível o bem comum, sem, entretanto, se iludir com utopias. Os estoicos sabem que um mundo perfeito requer humanos perfeitos, como a República de Zenão, na qual todos são igualmente sábios e livres. Mas sabem também que o mundo humano é o mundo das imperfeições e das paixões e que o sábio estoico perfeito é só um ideal.”

Aldo Dinucci

Artigo publicado originalmente em Estoicismo Artesanal em 06 de fevereiro de 2022.

https://aldodinucci.blogspot.com/2022/02/eram-os-estoicos-paladinos-da-moralidade.html

Sêneca escreveu uma carta sobre isso:

“não se deve falar com um homem a menos que ele esteja disposto a ouvir.”

Sêneca, carta XXIX, 1

E também que não devemos imaginar que a filosofia possa atrair a maioria:

“Eu nunca quis atender à multidão, pois o que eu sei, eles não aprovam, e o que eles aprovam, eu não sei.”

Sêneca, carta XXIX, 10

Suspensão de juízo no estoicismo

No artigo “Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações 2.1?” Aldo Dinucci explica o que é “suspensão de juízo” e como conciliar ensinamentos aparentemente contraditórios de Epicteto e Marco Aurélio.

Suspensão de juízo é em resumo entender antes de adjetivar, só dar nossa opinião sobre fatos ou atos depois de entender profundamente seus motivos. Muito relevante nessa época de cancelamentos sumários.

Os atos de julgar e adjetivar, mais uma vez, nos afastam da realidade, razão pela qual nos tornamos incapazes de compreender os demais justamente quando pensamos compreender suas ações. Prova disso é que nos tornamos intolerantes e agressivos com elas.

Artigo publicado originalmente em Estoicismo Artesanal em 29 de outubro de 2021.


Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações 2.1?

Aldo Dinucci

Danilo Gavião, que conheci em um grupo de estudos de estoicismo dirigido por Donato Ferrara, me fez uma pergunta relacionada àquela que me foi feita recentemente por Selmo Gliksman, meu colega dos tempos de pós na PUC/RJ, e que respondi em um post anterior

Danilo indaga: Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações: 

Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Prediga a si mesmo na alvorada: encontrarei um inquisitivo, um ingrato, um insolente, um traiçoeiro, um caluniador, um indivíduo antissocial.  (Tradução: Aldo Dinucci)

Isso parece se contrapôr ao que Epicteto diz no Manual:

Epicteto, Manual, XLV: Alguém se banha de modo apressado: não digas que ele se banha de modo ruim, mas de modo apressado. Alguém bebe muito vinho: não digas que ele bebe de modo ruim, mas muito. Pois, antes que compreendas a opinião [dele], por que pensas que ele o faz de modo ruim? Assim, não te acontecerá, <ao> apreenderes as impressões compreensivas de algumas coisas, dares assentimento a outras. (IN: Epicteto, Manual Edição original de 2007,  Tradução dos originais em grego: Aldo Dinucci) 

Epicteto nos ensina que não devemos qualificar pessoas e suas ações como boas ou más sem sabermos por qual razão agem assim. Isso lembra o que Jesus Cristo teria dito sobre não julgarmos para não sermos julgados, mas em Epicteto o sentido é outro. O que Epicteto está dizendo é que estas palavras ‘bem’ ou ‘mal’ são usadas de forma inapropriada e acabam nos impedindo acesso à realidade (a ‘impressão compreensiva’ que podemos ter das coisas), pois seu uso nos faz crer possuir um conhecimento que efetivamente não temos sobre ações e pessoas.

Assim, o ‘banho ruim’ de alguém pode ser sido feito por uma série de razões que nos escapam e que fariam do banho rápido um ato adequado. Da mesma forma, o ‘beber mal’ pode estar associado da mesma forma a estados mentais de um indivíduo que podem tornar compreensível e justificável o seu modo de beber.

Epicteto está dizendo que usar essas palavras não nos confere nenhum conhecimento sobre a realidade, só evidenciando, de fato, nossa ignorância sobre a ação e a pessoa. Assim, ao invés de usarmos adjetivos tais como ‘bom, ótimo, excelente, péssimo, ruim’ etc, devemos procurar entender o que está acontecendo, descrevendo da melhor forma possível a ação e a pessoa e, ao mesmo tempo, estabelecendo os limites de nosso conhecimento do caso, suspendendo o juízo sobre o que não sabemos. Exemplos:

Fulano banhou-se rápido e saiu. Não compreendo por qual razão ele agiu assim. É possível que estivesse apressado para outro compromisso. 

Fulano bebeu muito na festa de ontem. Estará ele comemorando alguma vitória? Estará ele triste com algum fato? Não sei a razão pela qual ele agiu assim. No momento, só posso fazer conjecturas.  

Isso pode ser aplicado também ao modo como falamos aos nossos alunos sobre seus trabalhos e provas. Ao invés de um mero ‘excelente’, devemos descrever o trabalho e suas qualidades. Exemplo:

Seu trabalho foi escrito de acordo com as normas ortográficas e de forma escorreita, demonstrando conhecimento da linguagem culta. Você tratou o tema com precisão e senso crítico etc.

E o mesmo vale para os defeitos dos trabalhos. Voltemo-nos agora à passagem de Marco, que é um exemplo de praemeditatio malorum, do que falamos no outro post. Marco começa a passagem adjetivando um série de indivíduos que encontraria pela frente durante o seu dia. No entanto, na linha seguinte, ele mesmo rechaça essas adjetivações, afirmando uma causa comum para agirem de modo inadequado:

Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Prediga a si mesmo na alvorada: encontrarei um inquisitivo, um ingrato, um insolente, um traiçoeiro, um caluniador, um indivíduo antissocial. Todas essas coisas lhes ocorrem pela ignorância dos bens e dos males. (Tradução: Aldo Dinucci)

Marco, mais à frente, na mesma citação, afirma um preceito básico do estoicismo e do socratismo: a ação inadequada é fruto da ignorância. Para Sócrates e para os estoicos, não há algo como pessoas naturalmente malignas. O que há são pessoas ignorantes ou mentalmente enfermas (os limites entre a loucura epistêmica e a psíquica são, para estoicos, imprecisos, e muitas vezes uma implica a outra):   

Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Mas eu teorizei a natureza do bem e do mal… e que a natureza do que erra é da minha mesma estirpe, não segundo o sangue ou o mesmo esperma, mas que partilho o mesmo espírito e a mesma porção divina… Nascemos, pois, para agir conjuntamente como os pés, como as mãos, como as pálpebras… estarmos em conflito uns contra os outros é contra a natureza: entrar em conflito e irritar-se é, portanto,  opôr~se <à natureza>. (Tradução: Aldo Dinucci)

Marco Aurélio, portanto, substitui os adjetivos que usara no princípio de sua reflexão pela compreensão de que tais pessoas agem inadequadamente por ignorância. E acrescenta que, na verdade, os que erram são de nossa mesma estirpe, razão pela qual devemos não nos opor a eles, mas tentar colaborar com eles apesar dos defeitos que venham a ter.

O movimento, aqui, é essencialmente o mesmo que vemos no Manual de Epicteto: partimos de adjetivações que pretendem descrever a realidade, mas que só escondem nossa incompreensão dos fatos, das ações e das pessoas, nos afastando e nos pondo em oposição a elas, e rumamos para uma compreensão real das pessoas e de seus possíveis erros, não mais nos opondo ou julgando, mas, através de uma atitude verdadeiramente compreensiva, buscando agir conjuntamente com elas.

Os atos de julgar e adjetivar, mais uma vez, nos afastam da realidade, razão pela qual nos tornamos incapazes de compreender os demais justamente quando pensamos compreender suas ações. Prova disso é que nos tornamos intolerantes e agressivos com elas. Pois se os compreendêssemos realmente, jamais o seríamos.

Aldo Dinucci

Foto de Anastasia Zhenina no Pexels

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RedPill, Anti-feminismo e Estoicismo

No artigo “Guerreiros estoicos, Red Pill, Resiliência e Juventude Abandonada” Aldo Dinucci explica o movimento RedPill e sua tentativa de associação com o estoicismo, mostrando os equívocos de tal ligação e abordando hipóteses de sua origem.

Artigo publicado originalmente em Estoicismo Artesanal em 12 de junho de 2021.


Guerreiros estoicos, Red Pill, Resiliência e Juventude Abandonada

Todos já devem ter ouvido falar do Red Pill, que é um grupo de homens jovens que lançam mão de estoicismo, entre outras filosofias antigas e modernas, com uma visão bastante negativa do feminismo e dividindo os homens (sexo masculino) em dois grupos principais, os alfas e os betas. Os alfas seriam aqueles com os quais todas as mulheres gostariam de relações sexuais. Os betas, entre os quais esses rapazes se incluem, seriam desprovidos de tal encanto sexual, e as mulheres os buscariam somente por interesse financeiro. Donde concluem que os beta devem seguir um caminho solitário, que a relação com as mulheres não é lucrativa nem benéfica sob nenhum aspecto. Isso é, claro, uma simplificação do que pensam (há canais inteiros no Youtube consagrados ao tema).

Esse pessoal costuma também associar ao estoicismo uma certa ideia de Guerreiro Estoico. Seus vídeos, em geral, têm, ao fundo, músicas de guerra e cenas de filmes sobre os romanos (gostam muito do filme Gladiador). 

Seguindo a onda popular de retomada do estoicismo, enfatizam palavras como resiliência, perseverança.

Já li algumas matérias condenando-os moralmente. Não é o caminho que seguirei aqui. Fiel a Epicteto (Manual, capítulo 45), que nos alerta quanto a emitir juízos de valor sem esforço prévio de compreensão, procurarei lançar alguma luz sobre as condições sociais que levariam à gênese e à proliferação de tais ideários. É claro, o texto é apenas um esboço que representa meu esforço inicial de tentar compreender tal fenômeno. 

Primeiro, entendo que a vida não é nada fácil para a juventude atual: falta de empregos formais (quantos não são os entregadores de comida, os motoristas de Uber), condições terríveis de vida para os pobres (sem saneamento básico, sem lazer, sem educação, sem saúde, sem perspectiva), condições de isolamento para os mais abastados. 

Não é difícil imaginar por qual razão um jovem pobre de periferia se sentiria um beta: na TV e na tela do computador veem os corpos esculturais de mulheres consideradas super-atraentes. Veem também os milionários, com seus super-carros e lanchas, acompanhados sempre de mulheres como aquelas. Os jovens dos condomínios de classe média, por outro lado, têm acesso à mesma realidade virtual. Ambos os grupos não se sentem à altura de se engajarem em uma relação amorosa correspondida, seja com as mulheres idealizadas pela mídia, seja com as que espelham essas idealizações da sociedade de consumo. Assim, saindo à rua e tendo na memória a lembrança das imagens do mundo virtual, não é difícil que um destes conclua que ‘Não sou nada, Jamais serei nada, Não posso sonhar em ser nada’. E efetivamente é esta a mensagem que veiculam em muitos de seus vídeos.

É óbvio que nada disso tem relação essencial com o estoicismo antigo. Epicteto, por exemplo, deixa bem claro que somos filhos de Zeus, que somos parte crucial do Cosmos (Diatribe 1.3). 

Além disso, Musônio, em sua diatribe sobre o casamento, nos diz que homem e mulher devem compor uma unidade, que o ideal da relação amorosa é a amizade entre ambos, que cada um deve velar pela felicidade do outro. 

Quanto à vida militar, os estoicos eram, via de regra,  professores e intelectuais. Tirando Flávio Arriano e Marco Aurélio, não me lembro de outros que tenham ingressado nesta carreira. Flávio comandou legiões para defender as fronteiras romanas contra os alanos em uma situação específica, mas dedicou-se intensamente à literatura e à política. Marco defendeu as margens do Danúbio contra uma multidão de invasores e nunca escondeu de ninguém que gostaria, na verdade, de estar estudando filosofia (como o fez em Atenas) ao invés de guerrear.

Musônio Rufo, por outro lado, tentou deter as tropas de Marco Antonio Primo, que invadiam Roma em 20 de dezembro de 69. 

Mesmo nosso estoico contemporâneo, Stockdale, militar de profissão, se anunciava como filósofo,  e sua grande missão como guerreiro foi coordenar uma resistência pacífica em sua prisão de sete anos e meio no Vietnã.

Vem-nos à memória a metáfora  da missão militar a que Sócrates se refere na Apologia de Platão, que, da mesma forma que ele cumpriria a ordem do estratego em uma batalha, ele não abandonaria sua missão de filósofo. Sócrates foi um grande guerreiro. E Xenofonte também. Mas ambos se apresentavam como filósofos em primeiro lugar.

Este endeusamento do militarismo e da guerra de hoje parece corresponder mais uma vez à triste realidade dos jovens que vivem diante da tela de computadores. Como sabem os que têm um pouco de experiência em conflitos bélicos, não há nada de bom em uma guerra. Meu avô que o diga, que, tendo lutado na maldita guerra dos italianos contra os abissínios, teve, por seus traumas adquiridos em campo de batalha, pesadelos terríveis até o fim da vida. E ele teve sorte, pois não foi ferido, não perdeu algum de seus membros ou a visão, nem algum de seus familiares. Mas o que viu lhe bastou. Fugiu com a minha avó para o Brasil em 39, razão pela qual acabei por nascer no Brasil. Guerras são como operações cardíacas, só devem ser feitas por necessidade. Não são atraentes senão pelas lentes de Hollywood, que, propagando sem cessar a ideia de que a visão do sangue derramado de pessoas sendo estraçalhadas por armas de fogo é não só tolerável, mas um espetáculo belo e moralmente edificante, nos vende o belicismo norte-americano  há décadas. 

Essa triste realidade também explica o afastamento das mulheres. Quando eu era criança, tínhamos, por exemplo, os encontros de jovens católicos, que resultavam em ótima oportunidades para flertes e conversas fora do ambiente escolar. Havia também as colônias de férias do SESC e os bailes de matinês. E, hoje, o que há, no Brasil, para que os jovens com menos de 18 anos possam se encontrar em um ambiente minimamente seguro? 

Além disso, todos nós nos exercitávamos bastante ao ar livre, jogando bola, fazendo caminhadas, razão pela qual éramos bem mais confiantes para interações românticas com jovens de nossa idade. E qual espaço há para os jovens praticarem esportes hoje em dia?

Nos dias de hoje, as periferias foram declaradas oficialmente zonas de guerra. E os jovens abastados vivem literalmente encarcerados, em condomínios, diante dos já mencionados computadores.

Por fim, uma realidade tão dura explica também a ênfase na resiliência. Os estoicos eram (ao contrário da crença comum que hoje se tem) joviais e alegres. Segundo consta, Crisipo morreu de rir. Há inúmeras tiradas de humor em Epicteto. Sêneca escreveu o texto mais cômico que li em minha vida: A ascensão do Cabeça de Abóbora (Apokolokintosis), obra na qual satiriza implacavelmente o então recém-falecido imperador Cláudio. Isso sem mencionar o humor que perpassa muitas das cartas a Lucílio. E a razão do humor deles era evidente: experienciavam a paz interior, razão pela qual Epicteto dizia que o sábio atravessa as dificuldades como se não fossem dificuldades. 

Enfim, há, claro, no estoicismo, recomendações de como suportar as dificuldades, e essa não  é parte desprezível de seu pensamento. Eu mesmo me beneficiei muito disso, como evidencio na introdução de minha seleção de cartas de Sêneca a Lucílio

Essas breves reflexões lançam, ao menos para mim, alguma luz sobre a ascensão dos ideários mencionados, embora obviamente não os justifiquem. Entretanto, a partir do que foi dito, penso que as autoridades (políticos, pais, educadores, meios de comunicação etc.) deveriam começar a pensar em como tornar a vida de nossos jovens mais saudável e menos desgraçada. A vida deles não tem que ser uma guerra. Uma vida com saúde, lazer, educação, infraestrutura e interação saudável entre os jovens é possível. Ainda é possível.      

Pensamento #83: Foque no que é seu encargo

“Das coisas existentes, algumas são encargos nossos; outras não. São encargos nossos o juízo, o desejo, a repulsa –em suma: tudo quanto seja ação nossa. Não são encargos nossos o corpo, as posses, a reputação, os cargos públicos –em suma: tudo quanto não seja ação nossa. ” Manual de Epicteto [1.2]

Devemos distinguir cuidadosamente o que é “nosso encargo“, ou seja, algo sob nosso próprio poder, e o que não é. São nosso encargo nossas escolhas voluntárias, a saber, nossas ações e julgamentos, enquanto todo o resto não está sob nosso controle. 

Ver mais em Princípio Estoico #3: Concentre-se no que pode controlar, aceite o que não pode

James Stockdale: Um Filósofo em ação no Vietnã

Abaixo artigo de Aldo Dinucci sobre o filósofo-militar James Stockdale. (Socrates também foi soldado). Artigo publicado originalmente em Estoicismo Artesanal.


STOCKDALE: UM FILÓSOFO EM AÇÃO NO VIETNÃ

James Bond Stockdale era já um experiente piloto de caça da Marinha Norte-Americana quando entrou em contato pela primeira vez com a filosofia e com Epicteto.  Tinha 42 anos, estudava relações internacionais em Stanford e acidentalmente se encontrou com o então decano do departamento de ciências humanas, Philip Rhinelander. Era o ano de 1962, e Rhinelander ministrava seu famoso curso intitulado “Os Problemas do Bem e do Mal”, para o qual o decano convidou Stockdale. Como o piloto iniciara o curso com atraso, Rhinelander encarregou-se de dar-lhe aulas particulares. Stockdale, então, descobriu uma inusitada vocação para a filosofia. Ao final do curso, Rhinelander presenteou-o com um livro que mudaria sua vida: O Manual de Epicteto. Como nos diz o próprio Stockdale: 

Rhinelander simplesmente pensou que Epicteto e eu poderíamos fazer um bom par, e ele estava certíssimo. Eu nunca tinha ouvido falar de Epicteto; de fato, hoje o reconhecimento de seu nome está no terceiro escalão dos filósofos. Mas sua mente é de primeiro escalão. (Stockdale, Tríade do Guerreiro estoico, p. 13-4)

Stockdale, devido ao seu treinamento de piloto, rapidamente leu e decorou os 52 capítulos do Manual de Epicteto. Três anos depois, o piloto teria a oportunidade de pôr à prova os ensinamentos do Manual: seu A4 foi abatido durante missão no Vietnã. Apesar de conseguir ejetar-se a tempo e chegar ao solo são e salvo, foi espancado pelos vietnamitas que o avistaram, o que lhe valeu um joelho permanentemente lesionado, e levado como prisioneiro. Stockdale passaria os próximos sete anos e meio como prisioneiro de guerra no Vietnã. 

As singulares circunstâncias que levaram Stockdale à filosofia e à sua prática fizeram dele um tipo de intelectual pouco frequente na pós-modernidade. Hoje, é dito filósofo o profissional que faz exegeses de textos filosóficos e que leciona ou escreve sobre suas exegeses. Entretanto, na Antiguidade, o termo “filósofo” tinha uma conotação mais ampla. Era dito filósofo: (1) o autor de reflexões, teorias e conceitos filosóficos que não escrevem obras visando a publicação (como Sócrates e Epicteto); (2) quem põe em prática concepções filosóficas, quer escreva sobre elas ou não (como Agripino e Catão); (3) quem escreve sobre filosofia, seja sobre suas ideias próprias e originais (como Platão e Aristóteles), seja transcrevendo concepções alheias (como Xenofonte e Flávio Arriano).  Isso porque, como observa Hadot (Forms of life and forms of discourse, p. 56-7), na Antiguidade, ser filósofo significava primariamente assumir um modo de vida radicalmente distinto do usual, o que levava o filósofo a uma ruptura com o senso comum. Assim, diante do simples cidadão, o filósofo se mostrava como átopos, não classificável, estranho (Hadot, ibidem, p. 57-8). De algum modo essa concepção do filósofo como “louco” ainda resiste no senso comum, embora, hoje, nossos filósofos nada sejam senão pacatos cidadãos de classe média, virtualmente indistinguíveis do homem comum. Na Antiguidade, por outro lado, ser filósofo significava ser e agir de modo diferenciado, isto é, vivificar um ethos da filosofia por ele abraçada. Em outros termos, era dito filósofo, na Antiguidade, o que, por escolha própria, adotava uma vida filosófica. Como nos diz Hadot:

Cada escola então representa uma forma de vida definida por um ideal de sabedoria. O resultado é que cada uma possui sua atitude inerente fundamental correspondente […] Acima de tudo cada escola pratica exercícios projetados para garantir progresso espiritual rumo ao estado ideal de sabedoria, exercícios da razão que serão, para a alma, análogos ao treinamento do atleta ou à aplicação da cura médica.      

(Hadot, ibidem, p. 59) 

Essa transformação através da adoção de um novo modo de vida, um modo de vida filosófico, é entusiasticamente percebida por Stockdale:

Eu pensava que era óbvio para meus amigos mais íntimos, como certamente o era para mim, que eu era um homem mudado, e digo mais, um homem melhor por ter sido introduzido à Filosofia e especialmente a Epicteto. Eu estava trilhando um caminho diferente […] Eu tinha me tornado um homem imparcial – não indiferente, mas imparcial – capaz de lançar fora o livro de normas sem a menor hesitação quando ele não mais fizesse frente às circunstancias externas […] Esse novo desapego e essa nova flexibilidade que eu adquirira me foram cobrados mais tarde, na prisão.

(Stockdale, Coragem sob fogo, p. 12) 

Assim, podemos dizer, Stockdale é primariamente filósofo no sentido de quem adota um estilo de vida filosófico. Mas também o é no sentido de quem escreve sobre suas reflexões filosóficas.

A tradução portuguesa do livro de Stockdale Coragem Sob fogo pode ser obtida aqui.

Pensamento #80: Epicteto, XLI – É sinal de incapacidade ocupar-se excessivamente com as coisas do corpo

Texto de Aldo Dinucci, publicado originalmente no blog Estoicismo Artesanal.

“É sinal de incapacidade ocupar-se excessivamente com as coisas do corpo, tal como se exercitar muito, correr muito, beber muito, sair constantemente para aliviar-se, fazer sexo em demasia. É preciso fazer essas coisas como algo secundário: que a atenção esteja toda voltada para o pensamento.”

Epicteto, Manual, capítulo XLI em Tradução Aldo Dinucci

Comentário:

Diz-nos Aulo Gélio (Noites Áticas, III, XIX, ii, 7-8): “Sócrates costumava dizer que os homens desejam viver para comer e beber, mas ele comia e bebia para viver”. O Estoicismo reafirma essa posição socrática, segundo a qual fazer do prazer a razão do viver é pôr-se sob o domínio da externalidade. Porém, não há aí uma condenação do prazer: ele será bom se o humano usufrui-lo mantendo-se senhor de si mesmo. Além disso, muitas vezes será bom evitar certos prazeres para que o humano, fortalecendo-se, possa suportar determinados sofrimentos. Por exemplo: quem se habituar a uma alimentação requintada terá problemas quando precisar servir-se de alimentos simples; quem se habituar a ser transportado de lá para cá terá problemas quando precisar caminhar. A função do prazer será, como nos diz Epicteto, secundária: um refrigério que nos ajudará a viver (e não algo em razão do que devamos viver). 

Cumpre notar que a própria razão nos diz que, às vezes, é preciso nos afastar dela. O ideal de homem do estoicismo não é um monge de pedra, não é monge algum, mas é um homem integralmente forte, um guerreiro que luta com as armas da razão buscando sua felicidade e, através dela, a felicidade dos demais. Mas o filósofo-guerreiro tem de descansar no intervalo das lutas. Sem isso, tornar-se-á um escravo da própria razão. E, como a sabedoria não admite ninguém como escravo, ela mesma nos ensina sobre a necessidade de buscarmos de quando em vez o devaneio e o descanso. Quanto a isso, diz-nos Sêneca (Da Tranquilidade da Alma, xvii):

[4]  Não se deve manter a mente igualmente na mesma intensidade (tensão), mas deve-se distrai-la com jogos e brincadeiras. Sócrates não enrubescia quando brincava com crianças…  [5] Deve-se dar descanso aos espíritos; repousados, se levantam melhores e mais agudos. Do mesmo modo que não se deve exigir fertilidade à terra —pois, nunca repousando, sua fecundidade rapidamente se exauriria ,— assim também o assíduo labor despedaça o ímpeto dos espíritos, que receberiam forças tendo relaxado e descansado; nasce da constância dos trabalhos dos espíritos um certo entorpecimento e langor… [8] Deve-se ser indulgente com o espírito e dar-lhe de vez em quando tempo livre que lhe conceda espaço para se alimentar e se fortalecer. E deve-se deixá-lo vagar em espaços abertos, para que o espírito se eleve e se estenda no céu aberto e no ar pleno;  [10] pois ou acreditamos no poeta grego Menandro, que nos diz que ‘De vez em quando é agradável enlouquecer,’ ou em Platão, que nos diz que  ‘Em vão bateu às portas da poesia quem estava senhor de si mesmo’ (Fedro, 222, 245 a), ou em Aristóteles, que nos diz que  ‘Não existe grande gênio sem mescla de loucura’. (Tradução do latim: Aldo Dinucci)