Carta 92: Sobre a vida feliz

Sêneca escreveu sobre este tópico em maior extensão ao seu irmão Gálio no livro “A Vida Feliz – De Vita Beata”. Essa carta é um excelente resumo de suas ideias sobre o que torna uma vida feliz: Viver segundo a natureza, em virtude.

Após dezenas de citações elogiosas a Epicuro, Sêneca bate pesado nos epicuristas ao categoricamente afirmar que prazeres e sua busca são ineficazes (e muita vezes contrários) a uma vida feliz:

A parte irracional da alma é dupla: uma parte é animada, ambiciosa, descontrolada; seu lugar está nas paixões; a outra é rasteira, indolente e dedicada ao prazer. Os filósofos epicuristas negligenciaram a primeira, que, ainda que desenfreada, ainda é melhor, e certamente é mais corajosa e mais digna de um homem, e consideraram a última, que é inútil e ignóbil, como indispensável para a vida feliz.” (XCII, 8)

Sêneca, como de costume, usa excelentes analogias para defender suas tesas. Para os estoicos, questões sensoriais (dor, doença, prazer, etc) não tem capacidade de influenciar a felicidade (positiva ou negativamente) e são como uma nuvem que encobrem o sol:

Desastres, e portanto, perdas e ofensas, têm apenas o mesmo poder sobre a virtude que uma nuvem tem sobre o sol.” (XCII, 18)

O segredo para a felicidade então é uma vida virtuosa, e uma busca a se tornar semelhantes aos deuses. Sêneca acreditava que nossa alma vinha de Deus, e com a morte, retornaria a Deus:

Seria uma grande tarefa abrir caminho para o céu; a alma, apenas retorna para lá. (…) A alma, afirmo, sabe que as riquezas são armazenadas em outro lugar do que nos cofres dos homens; é a alma que deve ser preenchida, e não o cofre.” (XCII,31)

(Imagem “Ulysses and the Sirens”, por Draper Herbert James)


XCII. Sobre a vida feliz

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você e eu concordaremos, penso eu, que as coisas externas são buscadas para a satisfação do corpo, que o corpo é apreciado por respeito à alma, e que na alma existem certas partes que nos auxiliam, permitindo-nos a mover e manter a vida, concedida a nós apenas para o proveito da nossa parte principal[2]. Nesta parte primária, há algo irracional e algo racional. A primeira obedece a última, esta não tem qualquer ponto de referência além de si própria, pelo contrário, serve ela de ponto de referência a tudo. Pois a razão divina também está em comando supremo de todas as coisas, e não está sujeita a nada; e até mesmo a razão que possuímos é assim, porque é derivada da razão divina.

2. Agora, se concordarmos neste ponto, é natural que também possamos concordar com o seguinte: a vida feliz depende disso e só disso: da obtenção da razão perfeita. Pois não é nada além disso, que impede a alma de se rebaixar, que luta firme contra a fortuna; seja qual for a condição de seus negócios, ela mantém os homens sem problemas. E ela sozinha é um bem que nunca está sujeito a deficiências. Esse homem, eu declaro, é feliz, já que nada o faz menos forte; ele se mantém nas alturas, não se apoiando em ninguém senão em si mesmo; pois quem se sustenta por qualquer suporte pode cair. Se o caso for contrário, então as coisas que não dizem respeito a nós começarão a ter uma grande influência sobre nós. Mas quem deseja que a fortuna tenha vantagem, ou que homem sensato se orgulha do que não é dele próprio?

3. O que é a vida feliz? É paz de espírito e tranquilidade duradoura. Isto será seu se você possuir grandeza de alma; será seu se você possuir a firmeza que se apega resolutamente a um bom julgamento recém atingido. Como um homem atinge essa condição? Ao obter uma visão completa da verdade, mantendo, em tudo o que faz, ordem, medida, aptidão e vontade que é inofensiva e gentil, que é atenta a razão e nunca se afasta dela, que conduz ao mesmo tempo ao amor e à admiração. Em suma, para lhe dar o princípio resumidamente, a alma do sábio deve ser tal como seria apropriada a um deus.

4. O que mais pode desejar alguém que possua todas as coisas honrosas? Pois, se coisas desonestas podem contribuir para um maior patrimônio, então haverá a possibilidade de uma vida feliz em condições que não incluam uma vida digna. E o que é mais vil ou tolo do que conectar o bem de uma alma racional com coisas irracionais?

5. Contudo, existem certos filósofos que afirmam que o Bem Supremo admite aumento, porque não está completo quando as dádivas da fortuna são adversas. Mesmo Antípatro, um dos grandes líderes da nossa escola, admite que atribui alguma influência aos extrínsecos, embora apenas uma influência muito pequena. Você vê, no entanto, que absurdo é em não se contentar com a luz do dia, a menos que seja aumentada por um pequeno fogo. Qual a importância de uma faísca no meio desta luz solar intensa?

6. Se você não está satisfeito com o que é honrado, terá forçosamente de lhe pôr ao lado ou o sossego como dizem os gregos(aokhlêsia), ou o prazer. Mas o primeiro pode ser alcançado em qualquer caso. Pois a mente está livre de distúrbios quando é totalmente livre para contemplar o universo, e nada a distrai da contemplação da natureza. O segundo, o prazer, é simplesmente o bem dos animais. Nós somos apenas o adicionado do irracional ao racional, o desonroso ao honrado. Uma sensação física agradável afeta essa nossa vida;

7. Por que, portanto, você hesita em dizer que tudo está bem com um homem, só porque tudo está bem com seu apetite? E você classifica, não vou dizer entre os heróis, mas entre os homens, a pessoa cujo Bem Supremo é uma questão de sabores, cores e sons? Não, deixe-o retirar-se destas fileiras, da classe mais nobre de seres vivos, segunda apenas aos deuses; deixe-o viver em rebanho com as bestas – um animal cujo prazer está na forragem!

8. A parte irracional da alma é dupla: uma parte é animada, ambiciosa, descontrolada; seu lugar está nas paixões; a outra é rasteira, indolente e dedicada ao prazer. Os filósofos epicuristas negligenciaram a primeira, que, ainda que desenfreada, ainda é melhor, e certamente é mais corajosa e mais digna de um homem, e consideraram a última, que é inútil e ignóbil, como indispensável para a vida feliz.

9. Eles ordenaram a razão a servir esta última; eles fizeram o Bem Supremo da vida mais nobre ser um assunto abjeto e mesquinho, e um híbrido monstruoso, também, composto de vários membros que harmonizam, mas estão doentes. Pois, como nosso Virgílio, descrevendo Cila,[3] diz:

“tem forma humana o seu corpo, donzela de peito formoso até à cinta, depois torna-se monstro gigantesco unindo caudas de golfinho ao ventre eriçado de lobos!”Prima hominis facies et pulchro pectore virgo Pube tenus, postrema inmani corpore pistrix Delphinum caudas utero commissa luporum.[4]
Eneida, de Virgílio.

E ainda assim, esta Cila é alinhavada nas formas de animais selvagens, terrível e rápida; mas a partir de que formas monstruosas esses pedantes epicuristas compuseram sabedoria!

10. A arte principal do homem é a própria virtude; há, unida a ela uma carne inútil e fugaz, apta apenas para a recepção de alimentos, como observa Posidônio. Esta virtude divina termina em impureza, e nas partes superiores, que são adoráveis e celestiais, está preso um animal lento e flácido. Quanto ao segundo desiderato, calmo, embora, de fato, não seja de si mesmo benéfico para a alma, mas aliviaria a alma dos obstáculos; prazer, pelo contrário, realmente destrói a alma e afrouxa todo o seu vigor. Quais elementos tão desarmoniosos como estes podem ser encontrados unidos? Aquilo que é mais vigoroso é unido ao que é mais lento, ao que é austero o que está longe de ser sério, ao que é mais sagrado com o que é destemperado até o ponto da impureza por incesto.

11. O que, então”, vem a réplica, “se a boa saúde, o descanso e a imunidade à dor não prejudicam a virtude, você não deve procurar tudo isso?” É claro que eu os procurarei, mas não porque sejam bens, eu os procurarei porque estão de acordo com a natureza e porque serão adquiridos por meio do exercício do bom juízo de minha parte. O que, então, será bom neles? Só isso – é bom escolhe-los. Pois, quando eu coloco um vestuário adequado, ou ando como devo, ou janto como devo jantar, não é o meu jantar, nem a minha caminhada, nem o meu traje que são bens, mas a escolha deliberada que mostro em relação a eles, como observo, em cada coisa que faço, um meio que está em conformidade com a razão.

12. Permita-me também acrescentar que a escolha de roupas limpas é um objeto apropriado dos esforços de um homem; pois o homem é, por natureza, um animal elegante e bem preparado. Daí a escolha de um traje limpo, e não um traje elegante em si mesmo, é um bem; uma vez que o bem não está no item selecionado, mas na qualidade da seleção. A moralidade está na nossa forma de agir, mas não as coisas reais que fazemos.

13. E você pode assumir que o que eu disse sobre vestes se aplica também ao corpo. Pois a natureza cercou nossa alma com o corpo como com uma espécie de roupa; o corpo é o seu manto. Mas quem computa o valor das roupas pelo guarda-roupa que as contem? A bainha não faz a espada boa ou ruim. Portanto, no que diz respeito ao corpo, devolver-lhe-ei a mesma resposta,  se eu escolher, escolherei saúde e força, mas o bem envolvido será o meu juízo sobre essas coisas, e não as próprias coisas.

14. Outra réplica é: “Admitindo que o sábio é feliz, no entanto, ele não alcança o bem supremo que definimos, a não ser que os meios que a natureza oferece para a sua realização estiverem a seu alcance. Então, quem possui a virtude não pode ser infeliz, mas não se pode ser perfeitamente feliz quem não possui as dádivas naturais como a saúde ou a integridade dos membros”.

15. Mas, ao dizer isso, você epicurista admite a alternativa que parece mais difícil de acreditar – que o homem que está em meio a uma dor incessante e extrema não é miserável, ou melhor, é feliz; E você nega o que é muito menos crítico, – que ele é completamente feliz. E, no entanto, se a virtude pode evitar que um homem seja miserável, será uma tarefa mais fácil para ela torná-lo completamente feliz. Pois a diferença entre felicidade e felicidade completa é menor do que entre miséria e felicidade. Pode ser possível que uma coisa que seja tão poderosa que retire um homem do desastre e o coloque entre os felizes, também não possa realizar o que falta e torná-lo extremamente feliz? A sua força falha no fim da subida?

16. Há coisas da vida que são vantajosas e desvantajosas, ambas além do nosso controle. Se um bom homem, apesar de ser castigado por todos os tipos de desvantagens, não é miserável, como não é extremamente feliz, não importa se não possui certas vantagens? Pois, como não é levado à miséria por seu fardo de desvantagens, então não é afastado da suprema felicidade por falta de vantagens; não, ele é tão supremamente feliz sem as vantagens, assim como ele está isento da miséria, apesar da carga de suas desvantagens. Caso contrário, se o seu bem pode ser reduzido, pode também ser retirado completamente.

17. Num trecho acima, observei que um pequeno fogo não aumenta a luz do sol. Pois, devido ao brilho do sol, qualquer outra luz que não seja a luz solar é apagada. “Mas,” pode-se dizer, “há certos objetos que bloqueiam o caminho mesmo da luz solar”. O sol, no entanto, não é prejudicado mesmo em meio a obstáculos, e, embora um objeto possa intervir e cortar nossa visão, o sol adere-se ao seu trabalho e segue seu curso. Sempre que ele brilha de entre as nuvens, não é menor, nem menos pontual, do que quando está livre de nuvens; uma vez que faz uma grande diferença se existe apenas algo no caminho de sua luz ou algo que interfira com o seu brilho.

18. Da mesma forma, os obstáculos não retiram nada da virtude; não fica menor, mas simplesmente brilha com menos esplendor. Em nossos olhos, talvez seja menos visível e menos luminosa do que antes; mas, no que se refere a si mesma, é inalterada e, assim como o sol quando está eclipsado, ainda continua produzindo sua força, embora em segredo. Desastres, e portanto, perdas e ofensas, têm apenas o mesmo poder sobre a virtude que uma nuvem tem sobre o sol.

19. Encontramos com uma pessoa que sustenta que um homem sábio que se encontre com infortúnio corporal não é nem miserável nem feliz. Mas ele também está errado, pois está colocando os resultados do acaso em uma paridade com as virtudes e atribui a mesma influência tanto a coisas que são honrosas quanto a coisas desprovidas de honra. Mas o que é mais detestável e mais indigno do que colocar coisas desprezíveis na mesma classe de coisas dignas de reverência! Pois reverência é devida à justiça, dever, lealdade, bravura e prudência; pelo contrário, esses atributos são inúteis pois homens mais desprezíveis são muitas vezes abençoados com os quais em maior medida, como uma perna robusta, ombros fortes, bons dentes e músculos saudáveis e sólidos.

20. Novamente, se um homem sábio de corpo enfermo não for considerado nem miserável nem feliz, mas deixado em uma espécie de posição a meio caminho, sua vida também não será desejável nem indesejável. Mas o que é tão tolo quanto dizer que a vida do homem sábio não é desejável? E o que está tão além dos limites da credibilidade quanto a opinião de que qualquer vida não é desejável nem indesejável? Novamente, se os males corporais não tornam um homem miserável, eles, consequentemente, permitem que ele seja feliz. Pois coisas que não têm poder para mudar sua condição para pior, também não têm o poder de perturbar essa condição quando está no seu auge.

21. “Mas”, alguém vai dizer, “sabemos o que é frio e o que é quente, uma temperatura morna se encontra no meio. Da mesma forma, A é feliz e B é miserável, e C não é nem feliz nem miserável”. Desejo examinar esta ilustração, que é colocada em jogo contra nós. Se eu adicionar a sua água morna uma quantidade maior de água fria, o resultado será água fria. Mas se derramar uma quantidade maior de água quente, a água finalmente ficará quente. No caso, no entanto, do seu homem que não é miserável nem feliz, não importa o quanto eu adicione aos seus problemas, ele não será infeliz, de acordo com sua argumentação; daí que sua ilustração não oferece analogia.

22. Mais uma vez, suponha que eu coloque diante de você um homem que não é miserável nem feliz. Eu acrescento cegueira a seus infortúnios; ele não está ficando infeliz. Eu o mutilo; ele não está ficando infeliz. Eu acrescento aflições que são incessantes e severas; ele não está ficando infeliz. Portanto, aquele cuja vida não se torna miserável por todos esses males também não é arrastado da vida feliz por eles.

23. Então, se, como você diz, o sábio não pode cair da felicidade para a miséria, ele não pode cair na falta de felicidade. Pois, alguém que começou a escorregar, consegue parar em qualquer lugar particular? O que o impede de escorregar para o fundo, o mantém em pé. Por que, você insiste, uma vida feliz não pode ser destruída? Nem sequer pode ser desarticulada; e por isso a própria virtude é suficiente para a vida feliz.

24. “Mas”, é dito, “o homem sábio não é mais feliz se viver mais tempo sem ser importunado por qualquer dor, do que alguém que sempre foi obrigado a lidar com a má fortuna?” Me responda agora, este é melhor ou mais honrado? Se não é, então também não é feliz. Para viver mais felizmente, ele deve viver com mais justiça; se não pode fazer isso, então também não pode viver mais feliz. A virtude não pode ser mais forte e, portanto, assim também a vida feliz, que depende da virtude. Pois a virtude é um bem tão forte que não é afetada por assaltos tão insignificantes como a vida curta, a dor e as várias vexações corporais. Pois o prazer não é coisa para que a virtude se digne sequer olhar.

25. Agora, qual a coisa principal na virtude? É a qualidade de não precisar de um único dia além do presente, e de não contar os dias que são nossos; no menor momento possível, a virtude completa uma eternidade de bem. Esses bens nos parecem incríveis e transcendem a natureza do homem; pois medimos sua grandeza pelo padrão de nossa própria fraqueza, e chamamos nossos vícios pelo nome da virtude. Além disso, não parece tão incrível que qualquer homem em meio ao sofrimento extremo possa dizer: “Eu estou feliz!”? E, no entanto, essa expressão foi ouvida no próprio laboratório do prazer[5], quando Epicuro disse: “Este é o meu dia mais feliz, o meu último dia, também!” Embora em um caso ele fosse torturado estrangúria[6] e, no outro, pela dor incurável de um estômago ulcerado.

26. Por que, então, os bens que a virtude nos concede são incríveis à nossa vista, que cultivamos a virtude, quando são encontrados mesmo naqueles que reconhecem o prazer como sua amante? Estes também, ignóbeis e rasteiros, como são, declaram que, mesmo no meio de dor excessiva e infortúnio, o sábio não será nem miserável nem feliz. E, no entanto, isso também é incrível, o que é ainda mais incrível do que o outro caso. Pois não entendo como, se a virtude cai de suas alturas, ela pode impedir de ser levada até o fundo. Ela deve ou preservar alguém na felicidade, ou, se expulsa dessa posição, não conseguirá impedir que nos tornemos infelizes. Se a virtude se mantem firme, ela não pode ser expulsa do campo; ela deve conquistar ou ser conquistada.

27. Mas alguns dizem: “Somente para os deuses imortais é dada virtude e a vida feliz, podemos alcançar apenas a sombra e a semelhança de bens como os deles. Nós nos aproximamos deles, mas nunca os alcançamos”. A razão, no entanto, é um atributo comum de deuses e homens; nos deuses já está aperfeiçoada, em nós é capaz de ser aperfeiçoada.

28. Mas são os nossos vícios que nos deixam desesperados; pois a segunda classe dos seres racionais, o homem, é de ordem inferior – um guardião, por assim dizer, que é muito instável para manter o que é melhor, seu julgamento ainda é vacilante e incerto. Ele pode exigir as faculdades de visão e audição, boa saúde, um exterior corporal que não seja repugnante e, além disso, maior duração de dias ungidos de saúde intacta.

29. Embora, por meio da razão, possa levar uma vida que não traga arrependimentos, ainda reside nesta criatura imperfeita, o homem, um certo poder que faz mal, porque ele possui uma mente que se move facilmente para a perversidade. Suponha, no entanto, que a maldade que está em plena visão, seja removida; o homem ainda não é um bom homem, mas ele está sendo moldado para o bem. Alguém, no entanto, em quem falte qualquer qualidade que traga a bondade, é mau.

30. Mas

Aquele em cujo corpo a virtude está presente em corpo e espírito,Sed Si cui virtus animusque in corpore praesens,[7]
Eneida, de Virgílio.

é igual aos deuses; consciente de sua origem, ele se esforça para voltar para lá. Nenhum homem erra ao tentar recuperar as alturas das quais ele desceu. E por que você não deve acreditar que existe algo de divino em alguém que faz parte de Deus? Todo esse universo que nos engloba é um, e é Deus; somos associados de Deus; nós somos seus membros. Nossa alma tem capacidades e é transportada para lá, se os vícios não a impedem. Assim como a natureza dos nossos corpos é se manter ereto e olhar para o céu, então a alma, que pode alcançar o máximo que desejar, foi moldada pela natureza para esse fim, que desejasse a igualdade com os deuses. E se faz uso de seus poderes e se estende a cima em sua própria região, não é por nenhum caminho desconhecido que luta em direção às alturas.

31. Seria uma grande tarefa abrir caminho para o céu; a alma, apenas retorna para lá. Quando uma vez encontra a estrada, ela marcha com audácia, desdenhosa de todas as coisas. Ela se lança, sem olhar para a riqueza; ouro e prata – coisas que são totalmente dignas da escuridão de onde saíram – não valem pelo brilho que ferem os olhos dos ignorantes, mas pela lama dos dias passados, de onde a nossa ganância primeiro os destacou e cavou. A alma, afirmo, sabe que as riquezas são armazenadas em outro lugar do que nos cofres dos homens; é a alma que deve ser preenchida, e não o cofre.

32. É a alma que os homens podem colocar em domínio de todas as coisas, e podem empossar como dona do universo, para que eles limitem suas riquezas somente pelos limites do Oriente e do Ocidente e, como os deuses, possam possuir todas coisas; e que, com seus próprios recursos vastos, olhe para os ricos, nenhum dos quais se alegra tanto em sua própria riqueza como se ressente da riqueza de outro.

33. Quando a alma se transporta para este alto sublime, também considera o corpo, uma vez que é um fardo que deve ser suportado, não como algo para amar, mas como uma coisa para supervisionar; nem é subserviente àquilo sobre o qual está configurado em seu domínio. Pois nenhum homem é livre, se é escravo do seu corpo. Na verdade, excluindo todos os outros mestres que são trazidos devido ao cuidado excessivo pelo corpo, o poder que o próprio corpo exerce é capcioso e enfadonho.

34. Por este corpo, a alma emerge, agora com espírito imperturbável, agora com exultação, e, uma vez que surgiu, não pergunta qual será o fim do dia desperto. Não; assim como não pensamos nas aparas de cabelo e da barba, da mesma forma que a alma divina, quando está a ponto de emergir do homem mortal, considera o destino de seu vaso terrestre – quer seja consumido pelo fogo, ou fechado por uma pedra, ou enterrado na terra, ou rasgado por bestas selvagens – como não sendo mais preocupante para si mesmo do que as secundinas[8] para uma criança que nasceu. E se este corpo deve ser jogado fora e picado em pedaços por pássaros, ou devorado quando

Dado aos cães marinhos como presa,Canibus data praeda marinis,[9]
Eneida, de Virgílio.

Como isso diz respeito a quem não é nada?

35. Nem mesmo quando está entre os vivos, a alma não teme nada que possa acontecer ao corpo após a morte; pois, embora tais coisas possam ter sido ameaças, não foram suficientes para aterrorizar a alma antes do momento da morte. Ela diz; “Não estou assustada com a espada do carrasco, nem com a mutilação revoltante do cadáver que estará exposto ao desprezo daqueles que testemunharão o espetáculo. Não peço a nenhum homem que realize os últimos ritos para mim, confio meus restos mortais a ninguém. A natureza providenciou para que ninguém fosse deixado sem um enterro. O tempo vai consumir aquele corpo que a crueldade gerou”. Estas foram palavras eloquentes que Mecenas[10] pronunciou:

Eu não quero tumba; Pois a natureza irá prover,Nec tumulum curo. Sepelit natura relictos.
Eneida, de Virgílio

Você imaginaria que este foi o ditado de um homem de princípios rígidos e pronto para a luta[11]. Ele era realmente um homem de nobres e robustos dons, mas em prosperidade ele comprometeu esses dons por permissividade[12].

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sêneca escreveu sobre este tópico tratado em maior extensão ao seu irmão Gálio no livro “A Vida Feliz – De Vita Beata”.

[2]ou seja, a alma. Veja Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1. 13: “É afirmado que a alma tem duas partes, uma irracional e outra dotada de razão.” Aristóteles subdivide a parte irracional em (1) o que faz crescer e aumentar, e (2) desejo (que irá, no entanto, obedecer a razão). Nesta passagem, Sêneca usa “alma” em seu sentido mais amplo.

[3] Cila (em grego: Σκύλλα, transl.: Skýlla), na mitologia grega, conforme Homero e Ovídio, era uma bela ninfa que se transformou em um monstro marinho.

[4] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[5] Sêneca se refere ao Jardim de Epicuro com “laboratório do prazer”. 

[6] Estrangúria é a eliminação lenta e dolorosa de urina em consequência de espasmo uretral ou vesical. Veja também carta LXVI.

[7] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[8] Placenta e membranas da mulher expelidas na fase terminal do parto;

[9] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[10] Mais sobre Mecenas nas cartas XIX e CXX

[11] Literalmente. “um homem que tem o cinto bem apertado’” de modo a erguer as roupas e facilitar os movimentos, para a corrida ou para a luta (alte cinctum).

[12] A mesma imagem, literalmente: “lhe tivesse desapertado o cinto” deixando, portanto, que as vestes soltas o incapacitassem de lutar.

Juiz inglês determina que estoicismo é crença protegida

Um juiz trabalhista decidiu que o estoicismo é legalmente protegido, ao considerar o caso de um ex-trabalhador que foi demitido após ofender os colegas. O juiz Simon Cheetham, de Londres, concordou que o estoicismo é uma crença protegida pela Lei de Igualdade de 2010, e permitiu que a alegação de discriminação do funcionário prosseguisse para a etapa seguinte.

S. Jackson foi demitido depois supostamente ter dito que “asiáticos são sebosos” e de não “pedir desculpas suficientes“. A notícia está fazendo sucesso na mídia local, como vemos nos artigos do Dailymail, The Times e outros.

O juiz não confirmou que a conduta do Sr. Jackson seria aceitável ou que a sua reclamação será bem sucedida. O que foi confirmado é que o “estoicismo é uma crença“. Isto coloca todos trabalhadores ingleses que afirmam serem “estoicos” como sendo protegidos de discriminação e preconceitos pelo ao fato de serem estoicos. Essa é a notícia que quero apontar e não esta conduta deste homem que, aparentemente, está longe de ser estoica, afinal, duvido que qualquer estoico antigo tenha alguma vez ensinado ser virtuoso andar por aí proferindo insultos racistas aos colegas.

Um ponto interessante da defesa, apresentada pessoalmente pelo autor da reclamação, é que ele se descreveu como não sendo um consequencialista, ou seja, que as possíveis repercussões do que ele diz ou faz não o impedem de dizer ou fazer aquela coisa. Disse ao juiz que “Nas relações interpessoais, não seria o possível potencial de ofensa que o impediria de dizer ou fazer algo“. Isso me parece ser uma atitude estoica.

Nas razões apresentadas pelo juiz Cheetham, ele demonstrou ser um conhecedor e apreciador do estoicismo:

“15. Como ponto de partida, não pode haver contestação de que o estoicismo como sistema de crenças filosóficas está conosco há cerca de 2.300 anos. O reclamante fez referência a seu fundador, Zeno do Citium, e houve muitos outros que escreveram sobre o estoicismo, tais como Aurélio e Sêneca. (…)

18. O estoicismo é uma das inúmeras escolas de pensamento que tentam responder às perguntas mais profundas que fazemos, e o reclamante demonstrou isso ainda mais através de sua contextualização do estoicismo ao lado das grandes religiões. (…)

23. Minha conclusão é, portanto, que a crença filosófica do Requerente no estoicismo se enquadra na definição estatutária sob o s.10 da Lei de Igualdade.

Texto completo da decisão preliminar pode ser encontrado aqui.


Carta 91: Sobre a lição a ser aprendida do incêndio de Lião

Após quase três semanas de férias, o Estoico volta às cartas de Sêneca.

Na carta 91 Sêneca aborda um tema frequentemente esquecido por nós: Precisamos estar preparados não só para “o que costuma acontecer, mas o que pode acontecer.” Ele usa como alegoria um incêndio que destruiu completamente Lião, capital da província romana da Gália.

Assim como a queda das torres gêmeas em 2001 ou a atual pandemia, o incêndio de tal capital veio inesperado e com resultado catastrófico:

“…apenas uma única noite se passou entre a cidade no seu auge e a cidade inexistente. Em suma, leva-me mais tempo para dizer que pereceu do que demorou para que perecesse. … pois é o inesperado que coloca a carga mais pesada sobre nós. O insólito aumenta o peso das calamidades e cada mortal sente dor maior como resultado daquilo que também traz surpresa. Portanto, nós, estoicos, nunca nos devemos deixar apanhar de improviso. Nossas mentes devem ser enviadas antecipadamente para atender a todos os problemas, e devemos considerar, não o que costuma acontecer, mas o que pode acontecer”. (XC, 2-4)

Sêneca, ensinando sobre o exercício estoico de praticar o infortúnio (premeditatio malorum) diz que, “devemos refletir sobre todas as contingências e fortalecer nossas mentes contra todas as eventualidades: Exílio, tortura por doenças, guerras, naufrágio, devemos pensar nisso.”

Quanto a tragédia em si, o conselho é manter a calma e tranquilidade, geralmente a realidade é menos severa que o imaginado à primeira notícia. Sêneca dá exemplo anedótico de um historiador da época:

Timágenes , que tinha rancor contra Roma e sua prosperidade, costumava dizer que a única razão pela qual se entristece quando incêndios ocorrem em Roma é devido ao seu conhecimento de que surgirão edifícios melhores no lugar daqueles que caem pelas chamas.

E, provavelmente, nesta cidade de Lião também, todos os seus cidadãos esforçar-se-ão para que tudo seja reconstruído melhor em tamanho e segurança do que o que perderam. Pode ser construído para prevalecer e, sob auspícios mais felizes, para uma existência mais longa!(XC, 13-14)

O que era verdade antes, continua verdade hoje. Em Nova Iorque as Torres Gêmeas foram substituídas por uma mais alta. Lião continua uma cidade próspera, a terceira maior da França. Logo o Covid será apenas mais um caso na história.

Imagem: Cole Thomas, O curso da destruição do império.


XCI. Sobre a lição a ser aprendida do incêndio de Lião

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Nosso amigo Liberal está agora abatido; pois ele acabou de ouvir do fogo que eliminou a colônia de Lião[1]. Tal calamidade pode chatear qualquer um, para não falar de um homem que ama muito seu país. Mas este incidente serviu para fazê-lo se perguntar sobre a força de seu próprio caráter, que ele treinou, suponho, apenas para encontrar situações que concebia como possíveis. Não me pergunto, no entanto, se ele estava preparado para o embate com um mal tão inesperado e praticamente inaudito como este, já que é sem precedentes. Pois o fogo já danificou muitas cidades, mas não aniquilou nenhuma. Mesmo quando o fogo é lançado contra os muros pela mão de um inimigo, a chama morre em muitos lugares, e embora continuamente renovada, raramente devora tão completamente que não deixa nada para a espada. Mesmo um terremoto quase nunca é tão violento e destrutivo que derrube cidades inteiras. Finalmente, nenhuma conflagração já resplandeceu tão selvagemente sobre uma cidade que nada tenha sobrado para uma segunda chance.

2. Tantos edifícios bonitos, um único dos quais faria uma cidade famosa, foram destruídos em uma noite. Em tempo de paz tão profunda, ocorreu um evento pior do que os homens poderiam temer mesmo em tempo de guerra. Quem pode acreditar? Quando as armas estão em repouso e quando a paz prevalece em todo o mundo, Lião, o orgulho da Gália, está desaparecida! A fortuna geralmente concede que todos os homens, quando os assalta coletivamente, tenham um pressentimento do que estavam destinados a sofrer. Toda grande criação concede um período de indulto antes da sua queda; mas neste caso, apenas uma única noite se passou entre a cidade no seu auge e a cidade inexistente. Em suma, leva-me mais tempo para dizer que pereceu do que demorou para que perecesse.

3. Tudo isso afetou nosso amigo Liberal, dobrando sua vontade, que geralmente é tão firme e ereta em face de suas próprias provações. E não sem razão foi abalado; pois é o inesperado que coloca a carga mais pesada sobre nós. O insólito aumenta o peso das calamidades e cada mortal sente dor maior como resultado daquilo que também traz surpresa.

4. Portanto, nós, estoicos, nunca nos devemos deixar apanhar de improviso. Nossas mentes devem ser enviadas antecipadamente para atender a todos os problemas, e devemos considerar, não o que costuma acontecer, mas o que pode acontecer. Pois o que há no mundo que a fortuna, quando ela quer, não derruba do alto da sua prosperidade? E o que é que ela não ataca mais violentamente quão mais brilhante é? O que é laborioso ou difícil para ela?

5. Ela nem sempre ataca da mesma maneira nem com a mesma força; as vezes, ela convoca nossas próprias mãos contra nós; em outro momento, contente com seus próprios poderes, ela não faz uso de nenhum agente para inventar perigos para nós. Nenhuma época está isenta; no meio de nossos próprios prazeres, brotam as causas do sofrimento. A guerra surge no meio da paz, e aquilo em que dependemos para proteção é transformado em causa de medo; O amigo se torna inimigo, o aliado se torna inimigo, a calma do verão é agitada por tempestades repentinas, mais selvagens do que as tempestades do inverno. Sem inimigos à vista, somos vítimas de destinos como os infligidos pelos inimigos, e se outras causas de desastre falham, a boa sorte excessiva os encontra por si só. Os mais comedidos são assolados pela doença, o mais forte por devastadora doença, o mais inocente pelo suplício, o mais isolado pela multidão barulhenta. A fortuna escolhe uma nova arma para levar sua força contra nós, principalmente quando esquecemos dela.

6. Qualquer que seja a estrutura criada por uma longa sequência de anos, ao custo do grande trabalho e pela grande bondade dos deuses, é espalhada e dispersa por um único dia. Não, aquele, que disse “um dia”, concedeu um adiamento muito longo ao infortúnio rápido; uma hora, um instante de tempo, basta para a derrubada dos impérios! Seria um consolo para a debilidade de nós mesmos e nossas obras, se todas as coisas perecessem tão devagar quanto demoram para surgir; mas, como é, os ganhos são de crescimento lento, mas o caminho para a ruína é rápido.

7. Nada, seja público ou privado, é estável; os destinos dos homens, nada menos que os das cidades, estão em um redemoinho. Em meio a maior calmaria o terror surge, e apesar de nenhuma agente externo agitar a baderna, ainda assim os males brotam de fontes de onde eram menos esperados. Os tronos que suportaram o choque de guerras civis e estrangeiras caíram ao chão, embora ninguém os tivessem feitos instáveis. Quão poucas cidades levaram a boa fortuna até o fim! Devemos, portanto, refletir sobre todas as contingências e fortalecer nossas mentes contra todas as eventualidades.

8. Exílio, tortura por doenças, guerras, naufrágio, devemos pensar nisso. O acaso pode retirá-lo de seu país ou seu país de você, ou pode exilá-lo ao deserto; este mesmo lugar, onde as multidões são sufocantes, pode se tornar um deserto. Posicionemos diante de nossos olhos em sua totalidade a natureza da fortuna do homem, e se não estivéssemos sobrecarregados, nem mesmo aturdidos, por esses males inusitados, como se fossem novos, convoquemos nossa mente de antemão, não um mal tão grande com às vezes acontece, mas o maior mal que possivelmente pode acontecer. Devemos refletir sobre a fortuna integralmente e completamente.

9. Com que frequência as cidades da Ásia Menor[2] ou na Acaia[3], cidades foram destruídas por um único choque de terremoto! Quantas cidades na Síria, quantas na Macedônia, foram engolidas! Quantas vezes esse tipo de devastação colocou Chipre em ruínas! Quantas vezes Pafos[4] entrou em colapso! Não raramente, as notícias nos são trazidas da destruição total de cidades inteiras; contudo, quão pequena parte do mundo somos, a quem essas novidades costumam vir! Levantemo-nos, portanto, para enfrentar as operações da Fortuna, e o que quer que aconteça, tenha a certeza de que não é tão grave como o rumor anuncia que seja.

10. Uma cidade rica foi posta em cinzas, a joia das províncias, contada como uma delas e ainda não incluída com elas; por mais rica que fosse, no entanto, estava situado em uma única colina, e essa não era muito grande. Mas de todas essas cidades, de cuja magnificência e grandeza você ouve hoje, os próprios vestígios serão apagados pelo tempo. Você não vê, na Acaia, que as fundações das cidades mais famosas já se desapareceram, de modo que não há nenhum indício para mostrar que elas um dia existiram?

11. Não só o que foi feito pelas mãos cai ao chão, não é só o que foi estabelecido pela arte e os esforços do homem que é derrubado pelos dias que passaram; Além deles, os picos das montanhas se dissolvem, áreas inteiras cedem e lugares que antes estavam longe da vista do mar estão agora cobertos pelas ondas. O poderoso poder das chamas comeu as colinas através de flancos resplandecentes, e aterrou picos que eram mais elevados – o consolo do marinheiro e seu farol. As próprias obras da própria natureza são acossadas; Portanto, devemos suportar com espírito tranquilo a destruição das cidades.

12. Elas estão em pé apenas para cair! Esta desgraça as espera, uma e todas; ou porque a força do ar violentamente comprimido no interior da terra, sob a pressão, faça um dia ir pelos ares o terreno que o comprime; ou porque uma torrente rebenta impetuosa do subsolo destruindo tudo o que encontra; ou porque a violência das chamas provoca largas fendas no solo; ou que a veemência das chamas estourará a armação da crosta terrestre; ou que o tempo, do qual nada está protegido, as reduzirá pouco a pouco; ou que um clima pestilento afaste seus habitantes e o bolor corroa seus muros desertos. Seria tedioso contar todas as maneiras pelas quais o destino pode vir; mas esta é uma coisa que eu sei: todas as obras do homem mortal são condenadas à mortalidade, e no meio das coisas que estão destinadas a morrer, nós vivemos!

13. Daí são pensamentos como esses, e desse tipo, que estou oferecendo como consolo para o nosso amigo Liberal, que queima com um amor por sua província que é incrível. Talvez a destruição tenha acontecido apenas para que possa ser levantada novamente a um destino melhor. Muitas vezes, um revés abre espaço para um futuro mais próspero. Muitas estruturas caíram apenas para subir mais alto. Timágenes[5], que tinha rancor contra Roma e sua prosperidade, costumava dizer que a única razão pela qual se entristece quando incêndios ocorrem em Roma é devido ao seu conhecimento de que surgirão edifícios melhores no lugar daqueles que caem pelas chamas.

14. E, provavelmente, nesta cidade de Lião também, todos os seus cidadãos esforçar-se-ão para que tudo seja reconstruído melhor em tamanho e segurança do que o que perderam. Pode ser construído para prevalecer e, sob auspícios mais felizes, para uma existência mais longa[6]! Este é, de fato, o centésimo ano desde que essa colônia foi fundada – nem mesmo o limite da vida de um homem. Instituida por Planco, as vantagens naturais de seu sítio tornaram-se fortes e atingiram os números que contém hoje; E ainda quantas calamidades da maior severidade sofreram no espaço da vida de um velho.

15. Portanto, mantenha a mente disciplinada para entender e suportar seu próprio destino, e deixar que ela tenha conhecimento de que não existe nada que a fortuna não se atreva – que ela tem a mesma jurisdição sobre os impérios que sobre os imperadores, o mesmo poder sobre as cidades quanto aos cidadãos que habitam nelas. Não devemos chorar em nenhuma dessas calamidades. Em tal mundo, entramos, e sob tais leis vivemos. Se você gosta, obedeça; se não, vá embora, se quiser. Grite com raiva se forem tomadas medidas injustas contra você individualmente; mas se essa lei inevitável é vinculativa do mais alto ao mais baixo, entre em harmonia com o destino, pelo qual todas as coisas são dissolvidas.

16. Você não deve estimar nosso valor por nossas tumbas fúnebres ou por esses monumentos de tamanho desigual que alinham na estrada; suas cinzas nivelam todos os homens! Somos desiguais no nascimento, mas somos iguais na morte. O que eu digo sobre cidades é o que eu também digo sobre seus habitantes. Árdea[7] foi capturada e também Roma. O grande criador da condição humana não fez distinções entre nós com base em linhagens altas ou de nomes ilustres, exceto enquanto vivemos. Quando, no entanto, chegamos ao fim que espera aos mortais, ele diz: “Saia, ambição! Pois sobre todas as criaturas que sobrecarregam a terra, aplique uma mesma lei”. Para suportar todas as coisas, somos iguais; ninguém é mais frágil do que outro, ninguém está mais seguro de sua própria vida no dia seguinte.

17. Alexandre, rei da Macedônia, começou a estudar a geometria; homem pequeno, porque ele assim saberia quão insignificante era aquela terra a qual ele havia capturado, apenas uma fração! Homem pequeno, repito, porque ele foi obrigado a entender que tinha um título falso. Pois quem pode ser Grande naquilo que é insignificante? As lições que lhe foram ensinadas eram intrincadas e só podiam ser aprendidas por dedicação assídua; elas não eram do tipo a ser entendidas por um tolo, que deixasse seus pensamentos ir além do oceano. “Ensina-me algo fácil!” Ele chora; mas seu professor responde: “Essas coisas são as mesmas para todos, tão difíceis para um quanto para outro”.

18. Imagine que a natureza está nos dizendo: “As coisas de que você reclama são as mesmas para todos. Não posso dar nada de mais fácil a nenhum homem, mas quem assim o desejar, vai facilitar as coisas para si mesmo”. De que maneira? Pela tranquilidade. Você deve sofrer dor, sede, fome e velhice, se uma longa permanência entre os homens lhe for concedida; você deve ficar doente, e você deve sofrer perda e morte.

19. No entanto, você não deve acreditar naqueles cujos clamores ruidosos o rodeiam; nenhuma dessas coisas é um mal, nada está além do seu poder de suportar. É apenas por opinião comum que existe algo formidável nelas. Seu medo da morte é, portanto, como seu medo da fofoca. Mas o que é mais tolo do que um homem com medo de palavras? Nosso amigo Demétrio costuma colocar com habilidade quando ele dizia: “Para mim, a conversa de homens ignorantes é como os ruídos que surgem da barriga”, pois, ele acrescenta, “que diferença me faz saber se tais rumores são provenientes de cima ou de baixo?

20. Que loucura é ter medo de descrédito no julgamento por pessoas desprezíveis! Assim como você não tem nenhuma razão para se encolher de terror com a conversa dos homens, você também não tem nenhuma causa para se encolher dessas coisas, que você nunca teria medo se sua conversa não tivesse forçado o medo sobre você. Será que há prejuízo a um bom homem ser manchado por fofocas injustas?

21. Então, não deixe esse tipo de coisa danificar a morte, também, em nossa estima a morte também está com mau cheiro. Mas ninguém daqueles que maldizem a morte a provou. Enquanto isso, é imprudente condenar o que você ignora. Esta única coisa, no entanto, você sabe – que a morte é útil para muitos, que ela livra muitos de torturas, doenças, sofrimentos e cansaço. Nós não estamos sob poder de nada quando temos a morte em nosso próprio poder!Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Lião, colônia romana na Gália, lá teria nascido o Imperador Cláudio.

[2] Ásia Menor é conhecida hoje como península da Anatólia, situada entre o mar Negro e o mar Mediterrâneo, e que corresponde aproximadamente ao território da Turquia, Arménia e Curdistão. Na Antiguidade era designada por Ásia Menor, mas durante o Baixo Império começou a ser apelidada de Anatólia pelos Bizantinos e pelos Turcos.

[3] Acaia é uma região da Grécia, na costa norte do Peloponeso. Foi também a denominação de uma antiga província romana.

[4] Pafos (ou Paphos) é uma cidade portuária no sudoeste da ilha de Chipre.

[5] Timágenes de Alexandria, foi um historiador grego do primeiro século A.D. Ele foi levado para Roma como prisioneiro em 55 D.C., compôs uma História da Gália e uma História dos Reis, que se perderam.

[6] Mais uma vez Sêneca se prova visionário, a cidade de Lião existe até hoje, Lyon, em francês, é a terceira maior cidade da França.

[7] Ardea é uma das cidades mais antigas da Europa ocidental, fundada durante o século VIII a.C. Segundo a tradição, era a capital dos Rútulos, e é descrita como tal na Eneida de Virgílio.

Carta 90: Sobre o papel da Filosofia no Progresso do Homem

Na intrigante carta 90, Sêneca aborda as origens da humanidade e o papel da filosofia no progresso humano. Vemos que, em sua visão, a humanidade regrediu ao valorizar o luxo e conforto corporal deixando para trás o desenvolvimento espiritual intelectual.

Expõe suas divergências com o filósofo Posidônio e defende o princípio estoico viver de acordo com a natureza, onde explica detalhadamente o significado deste conceito e afirmando que nos primórdios da humanidade isso era praticado:

Sêneca diz:

  • os homens deixam de possuir todas as coisas da natureza no momento em que desejam coisas particulares para si próprios. (XC,3)
  • Qualquer dádiva que a natureza produzia, os homens obtinham tanto prazer em revelá-la a outro como em tê-la descoberto. Não era possível para nenhum homem superar a outro ou ficar atrás dele; tudo o que havia, era dividido entre os amigos sem discussão. O mais forte ainda não havia começado a colocar as mãos sobre os mais fracos; ainda não havia o avarento, escondendo o que estava diante dele, afastando seu vizinho das necessidades da vida; cada um se importava tanto com o próximo quanto com sigo mesmo. (XC, 40)

Estaria Sêneca defendendo o socialismo?

Sêneca está sugerindo que o capitalismo é maligno e que todos deveriam adotar o socialismo? Eu diria “não“. Sêneca reconheceu que esta idílica “Era de Ouro” existiu até que a ganância tomou conta. Ele afirma que porque a ganância entrou na civilização com tanta força, nunca poderemos voltar a como as coisas eram.

Em teoria, a maioria dos sistemas econômicos parecem ser grandes “soluções” para os problemas da sociedade – mas o problema é que a ganância humana acaba corrompendo qualquer um desses sistemas, de modo que eles nunca se revelam tão bons na prática como no papel. Sêneca parece até mesmo dizer que é uma causa perdida tentar voltar a esse modo de vida original:

“… por mais que a vida dos homens daquela época fosse excelente e sem censura, eles não eram homens sábios; pois esse título está reservado para a maior conquista. … Pois a natureza não concede virtude; é uma arte tornar-se bom.” (XC, 44)

O luxo não está realmente ajudando muito nosso mundo físico, mas parece estar prejudicando nossas mentes e nosso senso de moral mais do que imaginamos.

(Imagem: Os romanos em sua decadência por Thomas Couture)


XC. Sobre o papel da Filosofia no Progresso do Homem

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Quem pode duvidar, meu querido Lucílio, que a vida é a dádiva dos deuses imortais, mas que viver bem é a dádiva da filosofia? Daí a ideia de que nossa dívida com a filosofia é maior do que a nossa dívida com os deuses, na medida em que uma boa vida é mais benéfica do que a mera vida, não fosse a própria filosofia é uma benção que os deuses nos deram. Eles não deram seu conhecimento a ninguém, mas a faculdade de adquiri-lo foi dada a todos.

2. Pois, se tivessem feito a filosofia também um bem geral, e se nós tivéssemos o conhecimento desde nosso nascimento, a sabedoria perderia seu melhor atributo: não ser um dos presentes da Fortuna. Pois, a característica preciosa e nobre da sabedoria é que ela não tenta nos encontrar, que cada um precisa se endividar por ela, e que não a buscamos nas mãos dos outros. O que haveria de digno na filosofia, se ela fosse uma coisa que viesse por doação?

3. Sua única tarefa é descobrir a verdade sobre coisas divinas e coisas humanas. Do seu lado, a religião nunca se afasta, nem o dever, nem a justiça, nem toda a companhia de virtudes que se apegam em comunhão. A filosofia nos ensinou a adorar o que é divino, a amar o que é humano; ela nos disse que com os deuses há autoridade e entre os homens, a camaradagem. Esta camaradagem permaneceu intocada por um longo tempo, até que a avareza rasgou a comunidade e se tornou a causa da pobreza, mesmo no caso daqueles que ela mesma havia enriquecido. Pois os homens deixam de possuir todas as coisas da natureza no momento em que desejam coisas particulares para si próprios.

4. Mas os primeiros humanos e aqueles que surgiram deles, ainda intactos, seguiram a natureza, tendo um homem como seu líder e sua lei, confiando-se ao controle de alguém melhor do que eles. Pois a natureza tem o hábito de sujeitar os mais fracos ao mais forte. Mesmo entre os animais brutos, aqueles que são maiores ou mais ferozes dominam. Não é um touro fraco que lidera o rebanho; é aquele que venceu os outros machos por seu poder e músculos. No caso dos elefantes, o mais alto é o primeiro; entre os homens, o melhor é considerado o superior. É por isso que é pela mente que um governante é designado; e por essa razão a maior felicidade recai sobre aqueles povos entre os quais um homem não pode ser o mais poderoso, a menos que seja o melhor. Pois este homem pode cumprir com segurança o que ele quer, já que pensa que não pode fazer nada exceto o que deva fazer.

5. Por conseguinte, naquela idade que é considerada como a idade de ouro, Posidônio sustenta que o governo estava sob a jurisdição do sábio. Eles mantiveram suas mãos sob controle e protegiam o mais fraco do mais forte. Eles deram conselhos, tanto para fazer quanto para não fazer; eles mostraram o que era útil e o que era inútil. Sua previdência, que a seus súditos nada faltasse; sua bravura afastou os perigos; sua bondade enriqueceu e adornou seus súditos. Pois o governo deles era um serviço, não um exercício de realeza. Nenhum governante pôs à prova seu poder contra aqueles a quem devia o início de seu poder; e ninguém tinha a inclinação, ou a desculpa, para fazer o mal, já que o governante governava bem e o súdito obedecia bem, e o rei não poderia proferir nenhuma ameaça maior contra um súdito desobediente do que seu banimento do reino.

6. Mas, uma vez que o vício foi introduzido e os reinados se transformaram em tiranias, surgiu a necessidade de leis e essas mesmas leis foram, por sua vez, moldadas pelos sábios. Sólon[1], que estabeleceu Atenas em bases firmes por leis justas, foi um dos sete homens[2] reconhecidos por sua sabedoria. Se Licurgo[3] vivesse no mesmo período, um oitavo teria sido adicionado a esse sagrado número sete. As leis de Zaleuco[4] e Carondas são louvadas; não estava no fórum ou nos escritórios de conselheiros qualificados, mas no silencioso e santo retiro de Pitágoras, que esses dois homens aprenderam os princípios de justiça que deveriam estabelecer na Sicília (que na época era próspera) e ao longo de toda Itália grega.

7. Até este ponto, concordo com Posidônio; mas que essa filosofia descobriu as artes úteis à vida em sua ronda diária eu me recuso a admitir. Também não atribuo a ela uma glória de artesão. Posidônio diz: “Quando os homens estavam espalhados pela terra, protegidos pelas cavernas ou pelo abrigo escavado em um penhasco ou pelo tronco de uma árvore oca, foi a filosofia que os ensinou a construir casas”. Mas eu, por minha parte, não considero que essa filosofia concebeu essas habitações astutamente inventadas que se levantam a andar sobre andar, onde as multidões da cidade se apinham, não mais do que tenha inventado as conservas de peixe, que são preparadas com o propósito de poupar a gula dos homens de ter que correr o risco de tempestades, e para que, por mais que o mar esteja furioso, o luxo possa ter seus portos seguros para engordar raças extravagantes de peixe.

8. O que! Foi filosofia que ensinou o uso de chaves e fechaduras? Não, o que foi, exceto dar uma dica para a avareza? Foi a filosofia que construiu todos esses edifícios altos, tão perigosos para as pessoas que habitam neles? Não seria suficiente para o homem proporcionar-se um teto de qualquer possibilidade de cobertura e inventar para si algum retiro natural sem a ajuda da arte e sem problemas? Acredite, essa era uma época feliz, antes dos dias dos arquitetos, antes dos dias dos construtores!

9. Todo esse tipo de coisa nasceu quando o luxo nasceu – essa questão de cortar madeira e criar uma viga com mão inflexível enquanto a serra passa pela linha marcada.

O homem primitivo com cunhas dividiu sua madeira branda.Nam primi cuneis scindebant fissile lignum.[5]

Porque eles não estavam preparando um telhado para um futuro salão de banquete; nem para tal uso, eles carregavam os pinheiros ou os abetos ao longo das ruas trêmulas com uma longa fileira de carroças – apenas para pendurar sobre eles tetos com painéis pesados de ouro.

10. Os mastros bifurcados erguidos em ambas as extremidades apoiam suas casas. Com ramos fechados e com folhas amontoadas e inclinadas, eles conseguiam uma drenagem para as chuvas mais pesadas. Sob essas moradias, moravam, mas moravam em paz. Um telhado de palha cobria um homem livre; sob o mármore e o ouro habita a escravidão.

11. Em outro ponto também eu discordo de Posidônio, quando ele sustenta que ferramentas mecânicas são a invenção dos homens sábios. Pois nessa base, pode-se sustentar que esses eram sábios que ensinavam as artes:

de colocação de armadilhas para caça e galhos de arapuca para os pássaros, e encerrando de matilhas os vales.Tunc laqueis captare feras et fallere visco Inventum et magnos canibus circumdare saltus.[6]

Foi a engenhosidade do homem, não sua sabedoria, que descobriu todos esses dispositivos.

12. E eu também me distancio dele quando diz que homens sábios descobriram nossas minas de ferro e cobre, “quando a terra, queimada por incêndios florestais, derreteu as veias de minério que se encontravam perto da superfície e provocavam o jorro do metal.” Não, o tipo de homem que descobre essas coisas é o tipo de homem que está ocupado com elas.

13. Também não considero essa questão tão sutil quanto Posidônio pensa, ou seja, se o martelo ou a tenaz foi a primeira a entrar em uso. Ambos foram inventados por algum homem cuja mente era ágil e afiada, mas não grande ou elevada; e o mesmo vale para qualquer outra descoberta que só pode ser feita por meio de um corpo curvado e de uma mente cujo olhar está no chão. O homem sábio era simples em sua maneira de viver. E porque não? Mesmo em nossos tempos, ele prefere ser o mais desimpedido possível.

14. Como, pergunto, você pode admirar tanto Diógenes[7] quanto Dédalo[8]? Qual desses dois parece ser um homem sábio – aquele que inventou a serra, ou aquele que, ao ver um menino beber água do oco de sua mão, imediatamente tirou o copo da carteira e quebrou-o, repreendendo-se com estas palavras: “Louco que eu sou, ter transportado bagagem supérflua todo esse tempo!” E então enrolou-se em seu barril e deitou-se para dormir?

15. Nestes nossos tempos, qual homem, lhe pergunto, julga o mais sábio – aquele que inventa um processo para pulverizar perfumes de açafrão a uma altura tremenda por tubos escondidos, que preenche ou esvazia canais por uma súbita onda de águas, quem constrói tão habilmente uma sala de jantar com um teto de painéis móveis que apresenta um padrão após o outro, o telhado mudando tão frequentemente quanto os pratos, ou aquele que prova aos outros, bem como a si mesmo, que a natureza colocou sobre nós nenhuma lei severa e difícil quando ela nos diz que podemos viver sem o cortador de mármore e o engenheiro, que podemos nos vestir sem o uso de tecidos de seda, que podemos ter tudo o que é indispensável para o nosso uso, desde que nós apenas estejamos contentes com o que a Terra colocou em sua superfície? Se a humanidade estivesse disposta a ouvir esse sábio, ela saberia que o cozinheiro é tão supérfluo quanto o soldado.

16. Aqueles eram sábios, ou pelo menos como os sábios, que descobriram que o cuidado do corpo um problema fácil de resolver. As coisas indispensáveis não exigem esforços elaborados para a aquisição; são apenas os luxos que exigem trabalho. Siga a natureza, e você não precisará de artesãos qualificados. A natureza não queria que fôssemos “especialistas”. Pois para tudo o que coagiu contra nós, ela nos equipou. “Mas o frio não pode ser suportado pelo corpo nu”. O que então? Não há peles de feras selvagens e outros animais, que podem nos proteger bem o suficiente, e mais do que o suficiente, do frio? Muitas tribos não cobrem seus corpos com a casca de árvores? Não são as penas de pássaros costuradas para servir roupas? Mesmo hoje, não existe uma grande porção da tribo Cítia em peles de raposas e camundongos, macia ao toque e impermeável aos ventos?

17. “Por tudo isso, os homens devem ter uma proteção mais espessa do que a pele, para evitar o calor do sol no verão”. O que então? A antiguidade não produziu muitos refúgios que, criados pela erosão pelo tempo ou por qualquer outra ocorrência, abriu em cavernas? O que então? Os antigos não pegaram galhos e os teceram à mão em tapetes de vime, esfregando-os com lama comum e, em seguida, com restolho e outras gramas selvagens construíram um telhado, e assim passavam seus invernos seguros, as chuvas escoadas por meio de espigões inclinados? O que então? Os povos que estão à beira do golfo de Sirte não habitam em casas escavadas e, de fato, todas as tribos que, por causa do brilho feroz do sol, não possuem proteção suficiente para evitar o calor, exceto o próprio solo ressequido?

18. A natureza não foi tão hostil ao homem que, quando deu a todos os outros animais um papel fácil na vida, tornou impossível para ele sozinho viver sem todos esses artifícios. Nada disso foi imposto por ela; nenhum deles deve ser buscado com dificuldade para que nossas vidas pudessem ser prolongadas. Todas as coisas estão prontas para nós no nosso nascimento; somos nós que tornamos tudo difícil para nós mesmos, através do nosso desdém pelo que é fácil. Casas, abrigo, conforto material, comida e tudo o que agora se tornou a fonte de grandes problemas, estavam prontos, livres de tudo e alcançáveis por pequeno esforço. Pois o limite em todos os lugares corresponde à necessidade; somos nós que fizemos todas essas coisas valiosas, nós que as fizemos admiráveis, nós que as fizemos ser procuradas por dispositivos extensivos e múltiplos.

19. A natureza é suficiente para o que exige. O luxo virou as costas para a natureza; cada dia ele se expande, em todas as épocas ele vem acumulando força e por sua sagacidade promovendo os vícios. No início, o luxo começou a cobiçar o que a natureza considerava supérfluo, então, o que era contrário à natureza; E, finalmente, fez da alma um fiador ao corpo, e pediu que fosse uma escrava total das luxúrias do corpo. Todas essas astúcias pelas quais a cidade é patrulhada – ou devo dizer mantida em tumulto – estão envolvidas no negócio do corpo; há tempo todas as coisas eram oferecidas ao corpo tanto quanto a um escravo, mas agora elas são preparadas para o corpo como para um soberano. Consequentemente, daí vieram as oficinas das tecelãs e dos carpinteiros; daí o saboroso cheiro dos cozinheiros profissionais; daí a despreocupação daqueles que ensinam danças sensuais e cantos lascivos e afetados. Pois essa moderação que a natureza prescreve, que limita nossos desejos por recursos restritos a nossas necessidades, abandonou o campo; agora chegou a isso – querer apenas o que é suficiente é um sinal de grosseria e de absoluta pobreza.

20. É difícil de acreditar, meu querido Lucílio, com que facilidade o encanto da eloquência cativa, mesmo grandes homens, para longe da verdade. Tomemos, por exemplo, Posidônio – que, na minha opinião, é do time daqueles que mais contribuíram para a filosofia – quando deseja descrever a arte de tecer. Ele diz como, primeiro, alguns fios são torcidos e alguns tirados da suave e frouxa massa de lã; Em seguida, como a urdidura[9] vertical mantém os fios esticados por meio de pesos pendurados; Então, como a linha inserida da estrutura, que suaviza a textura dura da teia que a segura de cada lado, é forçada pelo batente para fazer uma união compacta com a urdidura. Ele sustenta que mesmo a arte do tecelão foi descoberta por homens sábios, esquecendo que a arte mais complicada que ele descreveu foi inventada nos últimos dias – a arte em que

A trama é presa a moldura; distante agora O pente separa a urdidura. Entre as fibras é atirada a textura pelas lançadeiras carregadas; Os dentes bem entalhados do pente largo, em seguida conduzem.Tela iugo vincta est, stamen secernit harundo, Inseritur medium radiis subtemen acutis, Quod lato paviunt insecti pectine dentes.[10]

Suponhamos ter tido a oportunidade de ver o tear do nosso próprio dia, o que produz as vestes que não esconderão nada, a roupa que proporciona – não vou dizer nenhuma proteção ao corpo, mas nem mesmo a modéstia!

21. Posidônio passa para o fazendeiro. Com menos eloquência, ele descreve o solo que é revolvido e cruzado novamente pelo arado, para que a terra, assim afrouxada, possa permitir um desenvolvimento mais livre das raízes; então a semente é espalhada, e as ervas daninhas arrancam à mão, para que nenhum crescimento casual ou planta selvagem desenvolva e estrague a cultura. Este ofício também, ele declara, é a criação do sábio – como se os cultivadores do solo não estivessem neste momento, descobrindo inúmeros novos métodos para aumentar a fertilidade do solo!

22. Além disso, não limitando sua atenção a essas artes, ele até degrada o homem sábio enviando-o para o moinho. Pois ele nos diz como o sábio, ao imitar os processos da natureza, começou a fazer pão. “O grão”, diz ele, “uma vez que é levado na boca, é esmagado pelos dentes íngremes, que se encontram em um encontro hostil, e qualquer que seja o grão que deslize na língua volta para os mesmos dentes. Então é misturado em uma massa, para que possa mais facilmente passar pela garganta escorregadia. Quando isso chega ao estômago, é digerido pelo calor uniforme do estômago, então, e só então, é assimilado pelo corpo”.

23. Seguindo esse padrão, ele continua, “alguém colocou duas pedras ásperas, uma sobre a outra, imitando os dentes, um dos quais está parado e aguarda o movimento do outro conjunto. Então, ao esfregar a pedra uma contra a outra, o grão é esmagado e trazido de volta uma e outra vez, até por fricção frequentemente é reduzido a pó. Então este homem polvilhou o repasto com água, e com a manipulação contínua subjugou a massa e moldou o pão. Esta lâmina foi, no início, cozida por cinzas quentes ou por um vaso de barro em brasa; mais tarde, fornos foram gradualmente descobertos e os outros dispositivos cujo calor presta obediência à vontade do sábio”. Posidônio chegou muito perto de declarar que mesmo o ofício do sapateiro era a descoberta do homem sábio.

24. A razão, de fato, inventou todas essas coisas, mas não era razão correta. Foi o homem, mas não o sábio, que as descobriu; Assim como eles inventaram navios, nos quais atravessamos rios e mares – navios equipados com velas com a finalidade de pegar a força dos ventos, navios com lemes adicionados na popa para girar o curso do navio em uma direção ou outra. O modelo seguido foi o peixe, que se dirige por sua cauda, e por seu menor movimento desse ou daquele lado desvia seu curso rapidamente.

25. “Mas”, diz Posidônio, “o homem sábio realmente descobriu todas essas coisas, mas elas eram muito insignificantes para que ele próprio lidasse, e ele as confiou a seus mais desprezíveis assistentes”. Não foi assim; estas invenções iniciais não foram pensadas por nenhuma outra classe de homens senão aqueles que as têm sob comando hoje. Sabemos que certos dispositivos surgiram apenas em nossa própria memória – como o uso de janelas que admitem a luz através de telhas transparentes e, como os banhos instalados em estufas, com canos em suas paredes para difundir o calor que mantém a uma temperatura uniforme seus mais baixos, bem como seus mais altos espaços. Por que preciso mencionar o mármore com o qual nossos templos e nossas casas particulares são resplandecentes? Ou as massas arredondadas e polidas de pedra pelo qual erguemos colunatas e edifícios espaçosos o suficiente para multidões? Ou nossos sinais para palavras inteiras[11], que nos permite anotar um discurso, por mais rapidamente pronunciado, combinando a velocidade da língua com a velocidade da mão? Todo esse tipo de coisa foi planejado pela mais vil categoria de escravos.

26. O lugar da sabedoria é mais alto; ela não treina as mãos, mas é a amante das nossas mentes. Você saberia o que a sabedoria trouxe à luz, o que ela realizou? Não são as poses graciosas do corpo, nem as variadas notas produzidas por corneta e flauta, por qual a respiração é recebida e, à medida que vaza ou passa, é transformada em voz. Não é sabedoria que inventa armas, erguer muralhas ou instrumentos úteis à guerra; a voz dela é para a paz, e ela convoca toda a humanidade para a concórdia.

27. Não é ela, eu mantenho, quem é a artesã de nossos instrumentos indispensáveis ao uso diário. Por que você atribui a ela coisas insignificantes? Você vê nela a especialista em artesanato da vida. As outras artes, é verdade, a sabedoria tem sob seu controle; pois aquele a quem vida serve é servido também pelas coisas que equipam a vida. Mas o curso da sabedoria é para o estado de felicidade; de lá ela nos guia, e abre o caminho para nós.

28. Ela nos mostra quais coisas são do mal e o que é aparentemente mau; ela tira nossas mentes de ilusão vã. Ela nos confere uma grandeza que é substancial, mas ela reprime a grandeza que é orgulhosa, e que é vistosa, mas cheia de vazio; e ela não nos permite ignorar a diferença entre o que é ótimo e o que é nada, senão inchado; além disso, ela nos entrega o conhecimento de toda a natureza e de sua própria natureza. Ela nos revela o que são os deuses e de que qualidade eles são; quais são os deuses inferiores, as divindades domésticas e os espíritos protetores; quais são as almas que foram dotadas de vida duradoura e foram admitidas na segunda classe de divindades, onde é a sua morada e quais são suas atividades, poderes e vontade. Tais são os ritos de iniciação da sabedoria, por meio dos quais é destrancado, não um santuário de aldeia, mas o vasto templo de todos os deuses – o próprio universo, cujas aparições verdadeiras e aspectos verdadeiros ela oferece ao olhar de nossas mentes, já que nossa visão não alcança um tão grandioso espetáculo!

29. Então ela volta ao começo das coisas, à razão eterna que foi transmitida ao todo, e à força que é inerente a todas as sementes das coisas, dando-lhes o poder de modelar cada coisa de acordo com seu tipo. Então a sabedoria começa a indagar sobre a alma, de onde ela vem, onde ela habita, quanto tempo ela permanece, quantas divisões ela tem. Finalmente, ela volta sua atenção do corpóreo para o incorpóreo, e examina de perto a verdade e as marcas pelas quais a verdade é conhecida, investigando o seguinte, como aquilo que é ambíguo pode ser distinguido da verdade, seja na vida ou na linguagem; pois ambos são elementos do falso misturado com o verdadeiro.

30. É minha opinião que o homem sábio não se retirou, como Posidônio pensa, das artes que estávamos discutindo, mas que ele nunca as tomou. Pois ele teria julgado que nada vale a pena descobrir que não julgasse valer a pena sempre usar. Ele não aceitaria hoje coisas que devessem ser descartadas amanhã.

31. “Mas Anacársis[12]“, diz Posidônio, “inventou a roda do oleiro, cujo turbilhão dá forma aos vasos”. Então, como a roda do oleiro é mencionada por Homero, as pessoas preferem acreditar que os versos de Homero são falsos e não a história de Posidônio! Mas eu sustento que Anacársis não foi o criador desta roda; e mesmo que ele fosse, embora fosse um homem sábio quando o inventou, ainda assim ele não inventou isso como “homem sábio” – assim como há muitas coisas que os homens sábios fazem como homens e não como homens sábios. Suponhamos, por exemplo, que um homem sábio seja muito rápido nos pés; ele superará todos os corredores da competição em virtude de ser ligeiro, não em virtude de sua sabedoria. Gostaria de mostrar a Posidônio um soprador de vidro que, por sua respiração, molda o copo em múltiplas formas que mal poderiam ser feitas pela mão mais hábil. Mais que isso, essas descobertas foram feitas desde que nós os homens deixamos de descobrir a sabedoria.

32. Mas Posidônio novamente observa. “Dizem que Demócrito descobriu o arco de abóboda[13], cujo efeito foi que a linha curva de pedras, que gradualmente se inclinam uma para a outra, é unida pela pedra angular”. Estou disposto a pronunciar esta declaração falsa. Pois deveria haver, antes de Demócrito, pontes e portais em que a curvatura não começou até o topo.

33. Parece ter fugido de sua memória que este mesmo Demócrito descobriu como o marfim poderia ser amolecido por fervura, como um calhau poderia ser transformado em esmeralda, – o mesmo processo usado até hoje para colorir pedras que são submissas a este tratamento! Pode ter sido um homem sábio que descobriu todas essas coisas, mas não as descobriu por ser sábio; pois ele fez muitas coisas que vemos feitas tão bem, ou mesmo com mais habilidade e destreza, por homens totalmente deficientes de sabedoria.

34. Você pergunta o que, então, o sábio descobriu e o que ele trouxe à luz? Antes de tudo, a verdade a respeito da natureza; e a natureza ele não seguiu como fazem os outros animais, com os olhos muito entorpecidos para perceber o divino nela. Em segundo lugar, existe a lei da vida e a vida que ele fez para se adequar aos princípios universais; e ele nos ensinou, não apenas a conhecer os deuses, mas a segui-los e a receber as dádivas do acaso exatamente como se fossem comandos divinos. Ele nos proibiu de prestar atenção a opiniões falsas e ponderou o valor de cada coisa por um verdadeiro padrão de avaliação. Ele condenou os prazeres com os quais o remorso se mistura e elogiou os bens que sempre satisfazem; E ele explicitou a verdade que é mais feliz aquele que não precisa de felicidade, e que é mais poderoso aquele que tem poder sobre si mesmo.

35. Não falo dessa filosofia que coloca o cidadão fora de sua comunidade e os deuses fora do universo, e que aceita haver virtude no prazer[14], mas sim daquela filosofia que não dá valor a nada, exceto o que é honorável, uma que não pode ser persuadida pelos presentes, tanto do homem como da fortuna, uma cujo valor é que não pode ser comprada por qualquer valor[15]. Que esta filosofia tenha existido em uma época tão bruta, quando as artes e ofícios ainda eram desconhecidos e quando as coisas úteis só podiam ser aprendidas pela prática – isso eu me recuso a acreditar.

36. Em seguida, veio o período favorecido pela fortuna, quando as recompensas da natureza se abriram a todos, para o uso indiscriminado dos homens, antes que a avareza e o luxo quebrassem os laços que mantinham os mortais juntos, e eles, abandonando sua existência comunal, se separaram e se tornaram saqueadores. Os homens da segunda era não eram homens sábios, mesmo que fizessem o que os homens sábios deveriam fazer.

37. Na verdade, não há outra condição da raça humana que alguém considere mais altamente; e se Deus ordenasse a um homem para criar criaturas terrestres e conferir instituições aos povos, esse homem não aprovaria nenhum outro sistema que fosse distinto daquele dos homens dessa época, quando

Nenhum lavrador cultivou o solo, nem estava certo repartir ou delimitar a propriedade. Os homens compartilharam seus ganhos, e a Terra entregava mais livremente Suas riquezas para os filhos que não as procuravam.Nulli subigebant arva coloni, Ne signare quidem aut partiri limite campum Fas erat; in medium quaerebant, ipsaque tellus Omnia liberius nullo poscente ferebat.[16]

38. Que raça de homens foi mais bem-aventurada do que aquela raça? Eles gozavam de toda a natureza em parceria. A natureza era uma mãe para eles, agora a tutora, assim como antes era a mãe, de todos; e este seu presente consistia na posse garantida de cada homem dos recursos comuns. Por que eu não poderia chamar essa raça a mais rica entre os mortais, já que não conseguiria encontrar uma pessoa pobre entre eles? Mas a avareza invadiu uma situação tão felizmente organizada, e, por sua ânsia por tirar algo e transformá-lo em seu próprio uso privado, fez de tudo a propriedade dos outros e reduziu riquezas ilimitadas a uma carestia desmedida. Foi a avareza que introduziu a pobreza e, por desejar muito, perdeu tudo.

39. E, por isso, embora ela tente compensar a perda, embora ela adicione uma propriedade a outra, expulsando um vizinho tanto comprando-o ou prejudicando-o, embora ela estenda suas mansões ao tamanho das províncias e defina propriedade como significando uma extensa viagem através da própria propriedade, – apesar de todos esses esforços dela, nenhuma ampliação de nossas fronteiras nos trará de volta à condição de onde partimos.

40. O próprio solo era mais produtivo quando se não dividido e produzia mais do que o suficiente para os povos que se abstinham de despojar uns aos outros. Qualquer dádiva que a natureza produzia, os homens obtinham tanto prazer em revelá-la a outro como em tê-la descoberto. Não era possível para nenhum homem superar a outro ou ficar atrás dele; tudo o que havia, era dividido entre os amigos sem discussão. O mais forte ainda não havia começado a colocar as mãos sobre os mais fracos; ainda não havia o avarento, escondendo o que estava diante dele, afastando seu vizinho das necessidades da vida; cada um se importava tanto com o próximo quanto com sigo mesmo.

41. A armadura não era usada e a mão, não manchada pelo sangue humano, direcionava todo seu ódio contra animais selvagens. Os homens daquele dia, que haviam encontrado em uma proteção densa do bosque contra o sol, e a segurança contra o rigor do inverno ou da chuva em seus pobres esconderijos, passavam suas vidas sob os ramos das árvores e passavam noites tranquilas sem um suspiro. O luxo nos irrita em nossas vestes púrpuras, e nos afasta de nossas camas com as mais afiadas aguilhoadas; mas quão suave era o sono que a terra dura concedia aos homens daquele dia! Quando não há mais que possamos fazer, devemos possuir muito; mas antes nós possuíamos o mundo inteiro!

42. Nenhuma preocupação constante ou tetos luxuosos pendiam sobre eles, mas quando se deitavam debaixo do céu aberto, as estrelas deslizavam silenciosamente acima deles, e o firmamento, o nobre desfile noturno, marchava rapidamente, conduzindo sua poderosa tarefa em silêncio. Pois eles tinham, ao dia, assim como a noite, as visões desta morada mais gloriosa, livre e aberta. Era sua alegria observar as constelações enquanto se afundavam do meio do céu e outras, novamente, quando se levantavam de suas casas escondidas.

43. O que mais, além da alegria, poderia ser vagar entre as maravilhas que pontilhavam os céus em toda parte? Mas você, da época atual, estremece a cada som que sua casa faz, e enquanto se senta entre seus afrescos, o menor chiado o faz encolher de terror. Eles não tinham casas tão grandes quanto cidades. O ar, brisas soprando livremente através dos espaços abertos, a sombra flutuante do penhasco ou da árvore, água cristalinas e córregos não estragadas pelo trabalho do homem, seja por tubulações ou por qualquer confinamento, mas correndo à vontade, e prados lindos sem o uso da arte, – em meio a essas cenas estavam suas casas rudes, adornadas com mão rústica. Tal moradia estava em conformidade com a natureza; nesse lugar havia alegria de viver, sem temer a própria residência nem por sua segurança. Hoje, no entanto, nossas casas constituem uma grande parte do nosso medo.

44. Mas, por mais que a vida dos homens daquela época fosse excelente e sem censura, eles não eram homens sábios; pois esse título está reservado para a maior conquista. Ainda assim, eu não negaria que eles eram homens de espírito elevado e – eu posso usar a frase – recente entregue pelos deuses. Pois não há dúvida de que o mundo produziu uma descendência melhor antes de ser esgotado. No entanto, nem todos foram dotados de faculdades mentais de maior perfeição, embora em todos os casos seus poderes inatos fossem mais vigorosos do que os nossos e mais adequados para o trabalho. Pois a natureza não concede virtude; é uma arte tornar-se bom.

45. Eles, pelo menos, não procuraram na mais baixa escória da terra por ouro, nem ainda por prata ou pedras transparentes; e eles ainda eram misericordiosos mesmo com os animais brutos – tão longe era essa época do costume de matar o homem pelo homem, não com raiva ou com medo, mas apenas para fazer um show[17]! Ainda não tinham roupas bordadas nem teciam um pano de ouro; o ouro ainda não era minerado.

46. Qual é, então, a conclusão do assunto? Foi devido sua ignorância das coisas que os homens daqueles dias eram inocentes; e faz uma grande diferença se queremos pecar ou se não temos conhecimento para pecar. A justiça era desconhecida, a prudência desconhecida, desconhecidos também eram o autocontrole e a bravura; mas sua vida rude possuía certas qualidades parecidas com todas essas virtudes. A virtude não é concedida a uma alma, a menos que essa alma tenha sido treinada e ensinada, e pela prática incessante, trazida à perfeição. Para a obtenção desta benção, mas não na posse dela, nós nascemos; e mesmo no melhor dos homens, antes da iniciação filosófica, se pode haver matéria-prima para a virtude, não existe ainda a virtude.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sólon (grego Σόλων, translit. Sólōn; (Atenas, 638 a.C. – 558 a.C.) foi um estadista, legislador e poeta grego antigo. Foi considerado pelos gregos como um dos sete sábios da Grécia antiga e, como poeta, compôs elegias morais-filosóficas. Em 594 a.C., iniciou uma reforma das estruturas social, política e econômica da pólis ateniense.

[2] No texto atribuído a Caio Higino, os sete sábios são: Pítaco de Mitilene, Periandro de Corinto, Tales de Mileto, Sólon de Atenas, Quílon de Esparta, Cleóbulo de Lindos e Bias de Priene. Plutarco lista os sete sábios como Tales, Bias, Pítaco, Sólon, Quílon, Cleóbulo e Anacarses. Platão, no diálogo intitulado Protágoras, expõe a seguinte lista: Tales, Pítacos, Bias, Sólon, Cleóbulo, Mison e Quílon.

[3] Licurgo foi um lendário legislador da pólis de Esparta. Nada se sabe seguramente sobre a existência deste personagem. Heródoto fala dele em meados do século V a.C., mas a vida do legislador deve ter decorrido no século VIII a.C., mas a sua memória seria correntemente mencionada na Esparta do século V, pois os seus habitantes nessa época sentiam a necessidade de atribuir a organização estatal que os regia a um ser humano, e não ao acaso. A organização estatal atribuída a Licurgo se compunha de rígido regime de formação possuía um caráter de obrigação social e imposição estatal, com o objetivo primordial de treinar cidadãos masculinos à vida militar espartana.

[4] Zaleuco de Locros (Locros, Século VII a.C.), foi um legislador do Período Arcaico da Magna Grécia. Zaleuco, sendo o primeiro legislador conhecido, promulgou c.644 a.C. um código de leis, usualmente designado por Código de Zaleuco.

[5] Trecho de Geórgicas, v. I, 144 de Virgílio.

[6] Trecho de Geórgicas, v. I, 139-140 de Virgílio.

[7] Diógenes de Sinope, também conhecido como Diógenes, o Cínico, foi um filósofo da Grécia Antiga.

[8] Dédalo, na mitologia grega, é um personagem natural de Atenas e descendente de Erecteu. Notável arquiteto e inventor, cuja obra mais famosa é o labirinto que construiu para o rei Minos, de Creta, aprisionar o Minotauro.

[9] Conjunto de fios de mesmo comprimento reunidos paralelamente no tear por entre os quais se faz a trama.

[10] Trecho de Metamorfoses, de Ovídio..

[11] Suetônio nos diz que um certo Ênio, um gramático da era de Augusto, foi o primeiro a desenvolver a estenografia em uma base científica, e que Tiro, o escravo liberto de Cícero, inventou o processo. Ele também menciona Sêneca como a autoridade mais científica e enciclopédica no assunto.

[12] Anacársis foi um filósofo cita que viajou de sua terra natal na costa norte do Mar Negro até Atenas no início do século VI a.C. e causou grande impressão como um “bárbaro” franco, sincero, aparentemente um precursor dos cínicos, embora nenhum de seus trabalhos tenha sobrevivido.

[13] A abóbada é uma construção em forma de arco com a qual se cobrem espaços compreendidos entre muros, pilares ou colunas. Compõe-se de peças lavradas em pedra especialmente para este fim, denominadas aduelas, ou de tijolos apoiados sobre uma estrutura provisória de madeira, o cimbre. Embora de uso generalizado no Império Romano, a construção de abóbadas constituiu o principal problema arquitetônico da Idade Média europeia. O desafio de construí-las foi um dos fatores que impulsionaram a evolução da arquitetura ocidental.

[14] Referência ao Epicurismo

[15] Em oposição, Sêneca apresenta síntese das posições estoicas.

[16] Trecho de Geórgicas, v. I, de Virgílio.

[17] Referência aos jogos de gladiadores.

Resenha: A Apocoloquintose do divino Cláudio

O texto de hoje não é sobre estoicismo, mas sobre uma sátira, escrita por Sêneca. Interessante comparar o tratamento dado a Cláudio, quando em vida, no livro Consolação a Políbio.

Além de filosofia, ele escreveu também tragédias e peças de teatro, bastante populares em sua época: como Hércules furioso (Hercules furens), As Troianas (Troades), As Fenícias (Phoenissae), Medeia (Medea), Fedra (Phaedra), Édipo (Oedipus), Agamemnon, Tiestes (Thyestes) e Hércules no Eta (Hercules Oetaeus)

A sátira A Apocoloquintose do divino Cláudio também é atribuída à Sêneca, tanto pela tradição antiga, quanto por estudiosos modernos. Contudo é impossível provar que é dele, e impossível provar que não é. O assunto provavelmente continuará a ser decidido por cada um de acordo com sua visão do caráter e habilidades de Sêneca: em matéria de estilo e de sentimento muito pode ser dito de ambos os lados. 

A Apocoloquintose do divino Cláudio, literalmente “A Transformação de Cláudio em Abóbora”, é uma sátira sobre o imperador romano Cláudio. Apocoloquintose é um jogo de palavras em torno do termo “apoteose1”, o processo pelo qual os imperadores romanos mortos eram reconhecidos como deuses. Trata-se de uma “sátira menipéia2”, mista de verso e prosa: os códices lhe dão o titulo de “Divi Claudii Apotheosis Annaei Senecae per Saturam”; mas Dião Cássio3 dá-lhe o titulo de “Divii Claudii Apokolokyntosis”, isto é, “apoteose daquela abóbora de Cláudio”. 

A obra acompanha a morte de Cláudio, sua ascensão ao céu, seu julgamento pelos deuses e a eventual descida ao Hades. Em cada etapa, é claro, Sêneca zomba dos falhas de caráter do falecido imperador, principalmente de sua crueldade, arrogância e desarticulação. Após Mercúrio persuadir Cloto a matar o imperador, Cláudio caminha para o Monte Olimpo, onde convence Hércules a influenciar os deuses para que ouçam seu processo de deificação em uma sessão do senado do Olimpo. Os procedimentos iniciais são favoráveis a Cláudio até que Augusto profere um longo e sincero discurso listando alguns dos crimes mais notórios do falecido imperador. 

Contudo Cláudio é rejeitado pela celeste reunião e Mercúrio o acompanha até o inferno. No caminho, ele é obrigado a ver sua procissão fúnebre, na qual um grupo de personagens venais chora a perda da perpétua Saturnália do reinado anterior. No mundo inferior, Cláudio é saudado pelos fantasmas de todos os amigos e vítimas que ele assassinou. Estes fantasmas o levam a ser punido, e o tormento imposto pelos deuses é que ele jogue os dados para sempre em um copo sem fundo (o jogo era um dos vícios de Cláudio): toda vez que ele tenta jogar os dados eles caem e ele tem que procurar por eles no chão. De repente, Calígula aparece, afirma que Cláudio é um ex-escravo e o entrega para ser esbirro80 no tribunal do submundo.

É uma sátira mordaz contra o imperador Cláudio, ou melhor, contra o Senado que decretou honras divinas ao príncipe. Sêneca, brilhante na filosofia e tragédia, não tinha alma de escritor satírico; todavia, notasse amiúde a genialidade de um intelecto que, também num gênero pouco adaptável à própria sensibilidade, demonstra a força da indignação contra um tirano e contra uma assembleia corrupta e imoral. A obras trás ricas referências tanto a história romana, quanto sua mitologia e poética.

Disponível nas lojas: Amazon, Kobo e Apple

Pensamento #64: Não deixe que a ação de homens maus afete seu humor

“Considere que aquele que não quer que o homem mau faça o mal, é semelhante ao homem que não quer que a figueira produza fruto nos figos, e que as crianças chorem, e o cavalo rinche, e tudo mais que deve ser por necessidade.”

Marco Aurélio, Meditações XII, 16

Para aqueles que estão inconformados ou surpreendidos com a decisão do Senado de reajustar salários dos funcionários públicos, lembrem-se do ensinamento de Marco Aurélio: de onde menos se espera é de onde não sai nada, mesmo.

Não deixe que a ação de homens maus afete seu humor.

Carta 89: Sobre as Partes da Filosofia

Esta carta é uma das mais voltadas para o debate teórico da filosofia, em contraste com a maioria das cartas que têm cunho mais prático. Sêneca inicia fazendo uma diferenciação entre sabedoria e filosofia:

A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou.” (LXXXIX, 4) Ou, de forma mais condensada: “A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.“(LXXXIX, 6).

A carta cita e comenta posições de Epicuro, Cícero, da escola peripatética e cirenaica sobre as partes da filosofia, chegando ao defendido pelos estoicos, que os principais ramos são ética, física e lógica: A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. (LXXXIX, 9).

Imagem: Mosaico Academia de Platão na vila de Siminius Stephanus em Pompeia.


LXXXIX. Sobre as Partes da Filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. É um fato útil que deseje saber, o que é essencial para aquele que busca a sabedoria – mais precisamente, as partes da filosofia e a divisão de seu todo em membros separados. Pois, ao estudar as partes, podemos ser trazidos com mais facilidade a entender o todo. Só desejo que a filosofia possa estar diante de nossos olhos em toda a sua plenitude, assim como toda a extensão do firmamento se mostra para que o possamos contemplar! Seria uma visão muito parecida com a do firmamento. Pois, certamente, a filosofia arrebataria todos os mortais pelo amor por ela; devemos abandonar todas aquelas coisas que, na nossa ignorância do que é excelente, acreditamos ser excelentes. No entanto, como isso não nos é dado graciosamente, devemos ver a filosofia exatamente como os homens contemplam os segredos do firmamento.

2. A mente do sábio, com certeza, abraça toda a estrutura da filosofia, examinando-a com um olhar não menos rápido do que nossos olhos mortais examinam os céus; nós, no entanto, que devemos atravessar a escuridão, nós, cuja visão falha mesmo para o que está próximo, podemos ser apresentados com maior facilidade a cada objeto em separado, apesar de ainda não sermos capazes de compreender o universo. Portanto, cumpro suas exigências e dividirei a filosofia em partes, mas não em migalhas. Pois é útil que a filosofia seja dividida, mas não cortada em pedaços mínimos. Assim como é difícil compreender o que é demasiadamente grande, também é difícil compreender o que é demasiadamente pequeno.

3. As pessoas são divididas em tribos, o exército em centúrias[1]. Tudo o que cresceu a um tamanho maior é mais facilmente identificado se for dividido em partes; mas as partes, como observei, não devem ser incontáveis em número e em tamanho diminuto. Pois a análise excessiva é defeituosa exatamente da mesma forma que nenhuma análise; o que quer que você corte tão bem que se torne pó é tão bom quanto misturado em uma massa novamente.

4. Em primeiro lugar, portanto, se você aprovar, vou traçar a distinção entre sabedoria e filosofia. A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou. E é claro por que a filosofia[2] é assim chamada. Pois reconhece por seu próprio nome o objeto de seu amor.

5. Certas pessoas definem a sabedoria como o conhecimento das coisas divinas e das coisas humanas[3]. Outros ainda dizem: “A sabedoria é saber coisas divinas e coisas humanas, e suas causas também[4]”. Esta frase adicionada parece-me supérflua, uma vez que as causas das coisas divinas e as coisas humanas fazem parte do sistema divino. A filosofia também foi definida de várias maneiras; alguns a chamaram de “o estudo da virtude”, outros se referiram a ela como “um estudo sobre o modo de modificar a mente”, e alguns a chamaram de “busca da razão justa”.

6. Uma coisa está praticamente resolvida, que há alguma diferença entre filosofia e sabedoria. Também não é possível que o que é procurado e o que procura sejam idênticos. Como há uma grande diferença entre a avareza e a riqueza, sendo uma sujeito do desejo e a outra seu objeto, assim também entre filosofia e sabedoria. Pois uma é um resultado e uma recompensa da outra. A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.

7. A sabedoria é aquilo que os gregos chamam de σοφία[5]. Os romanos também costumavam usar essa palavra, sophia, no sentido em que eles agora usam a “filosofia” também. Isso é provado pelas nossas antigas peças de teatro de toga[6], bem como pelo epitáfio que está esculpido no túmulo de Dosseno: “Detenha-se, estranho, e leia de Dosseno a sofia”.[7]

8. Certos de nossa escola, embora a filosofia significasse para eles “o estudo da virtude”, e embora a virtude fosse o objeto buscado e a filosofia o buscador, sustentavam, no entanto, que as duas não podem ser separadas. Pois a filosofia não pode existir sem virtude, nem virtude sem filosofia. A filosofia é o estudo da virtude, por meio, no entanto, da própria virtude; mas a virtude não pode existir sem o estudo de si mesma, nem o estudo da virtude existe sem a própria virtude. Pois não é como tentar atingir um alvo em um longo ponto, onde o atirador e o objeto a ser atingido estão em diferentes lugares. Nem, como estradas que conduzem a uma cidade, nem são as abordagens da virtude situadas fora da própria virtude; o caminho pelo qual se alcança a virtude é por meio da própria virtude; a filosofia e a virtude se mantêm juntas.

9. Os maiores autores e o maior número de autores, sustentaram que existem três divisões de filosofia – moral, natural e lógica[8]. A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. Mas também houve aqueles que dividiram a filosofia, por um lado, em menos divisões, por outro lado, em mais.

10. Certos da escola peripatética adicionaram uma quarta divisão, “filosofia política”, porque aplica-se a uma esfera especial de atividade e está interessada em um assunto diferente. Alguns acrescentaram um departamento para o qual eles usam o termo grego “οικονομία” (economia), a ciência de gerenciar o próprio patrimônio. Ainda outros fizeram um título distinto para os vários tipos de vida. Não há nenhuma dessas subdivisões, no entanto, que não sejam encontradas sob o ramo “moral” da filosofia.

11. Os epicuristas sustentavam que a filosofia era dupla: natural e moral; eles acabaram com o ramo lógico. Então, quando foram compelidos pelos próprios fatos a distinguir entre ideias equívocas e a expor falácias escondidas sob a capa da verdade, eles também introduziram um título para o qual eles dão o nome “forense e reguladora[9]”, que é meramente “lógica” sob outro nome, embora considerem que esta seção é suplementar ao departamento de filosofia “natural”.

12. A Escola Cirenaica[10] aboliu o departamento natural e lógico, e estava contente com o lado moral sozinho; e, no entanto, esses filósofos também incluem sob outro título o que eles rejeitaram. Pois dividem a filosofia moral em cinco partes: (1) O que evitar e o que procurar, (2) As paixões, (3) Ações, (4) Causas, (5) Prova. Agora, as causas das coisas realmente pertencem à divisão “natural”, as provas a “lógica”.

13. Aristo de Quios[11] observou que o natural e a lógica não eram apenas supérfluos, mas também eram contraditórios. Ele até mesmo limitou a “moral”, que era tudo o que lhe restava; pois aboliu esse título que abraçou o conselho, sustentando que era o negócio do pedagogo e não do filósofo – como se o homem sábio fosse outra coisa senão o pedagogo da raça humana!

14. Uma vez que, portanto, a filosofia é tripla, primeiro comecemos a definir o lado moral. Foi acordado que esse deveria ser dividido em três partes. Primeiro, temos a parte reflexiva, que atribui a cada coisa sua função particular e pesa o valor de cada uma; é o mais alto em termos de utilidade. Pois o que é tão indispensável como dar a tudo seu valor adequado? O segundo tem que ver com impulso, o terceiro com ações. Pois o primeiro dever é determinar separadamente o que vale a pena; o segundo, conceber em relação a eles um impulso regulado e ordenado; o terceiro, fazer seu impulso e suas ações se harmonizar, de modo que sob todas essas condições você possa ser consistente consigo mesmo.

15. Se algum dos três estiver com defeito, há confusão no resto também. Pois que benefício há em ter todas as coisas avaliadas, cada uma em suas relações adequadas, se você ultrapassar seus impulsos? Qual o benefício que existe ao ter controlado seus impulsos e em ter seus desejos sob seu próprio controle, se, quando você chegar à ação, você desconhece os horários e as épocas adequadas, e se você não sabe quando, onde e como cada ação deve ser realizada? Uma coisa é entender os méritos e os valores dos fatos, outra coisa conhecer o momento preciso para a ação, e ainda outra refrear os impulsos e prosseguir, em vez de se precipitar, para o que está para ser feito. Por isso, a vida está em harmonia com ela mesma somente quando a ação não abandona o impulso, e quando o impulso para um objeto surge em cada caso do valor do objeto, sendo lânguido ou mais ansioso, conforme o caso, de acordo com os objetos que o despertam valem a pena procurar.

16. O lado natural da filosofia é duplo: corporal e não corporal. Cada um é dividido em seus próprios graus de importância, por assim dizer. O tópico sobre os corpos aborda, primeiro, com estas duas classes: o criativo e o criado; e as coisas criadas são os elementos. Agora, esse mesmo tópico dos elementos, de acordo com alguns escritores, é integral; com outros, é dividido em matéria, a causa que move todas as coisas e os elementos.

17. Resta para mim dividir a filosofia lógica em suas partes. Toda a fala é contínua ou dividida entre questionador e respondedor. Foi definido que a primeira deveria ser chamada de ῥητορικὴ (retórica), e a última διαλεκτική (dialética). A retórica trata de palavras, significados e arranjos. A dialética é dividida em duas partes: palavras e seus significados, isto é, nas coisas que são ditas, e as palavras em que são ditas. Então vem uma subdivisão de cada uma – e é de grande extensão. Portanto, eu vou parar neste ponto, e

Percorrer o clímax;Summa sequar fastigia rerum;[12]

Pois, se eu tivesse vontade de dar as subdivisões, minha carta se tornaria o manual de um debatedor!

18. Não estou tentando desencorajá-lo, excelente Lucílio, de ler sobre este assunto, desde que você esteja pronto para praticar tudo o que ler. É sua conduta que você deve manter em controle; você deve despertar o que está dormente em você, tencionar rapidamente o que se tornou relaxado, conquistar o que é obstinado, acossar seus apetites e os apetites da humanidade, tanto quanto você pode; e para aqueles que dizem: “Por quanto tempo essa conversa sem fim continuará?” Responda com as palavras:

19. “Eu é quem deveria estar perguntando: Por quanto tempo esses pecados sem fim continuarão?Você realmente deseja que meus remédios parem antes de seu vício? Mas devo falar mais de meus remédios, e apenas porque você oferece objeções, eu continuarei falando. A medicina começa a fazer o bem no momento em que um toque faz com que o corpo doente arda com dor. Devo pronunciar palavras que ajudarão os homens até mesmo contra a vontade deles. Às vezes, você deve permitir que outras palavras além de elogios atinjam seus ouvidos e se, como indivíduo, você não estiver disposto a ouvir a verdade, ouça coletivamente.

20. Quão longe você estenderá os limites de suas propriedades? Uma fazenda que mantenha uma nação é muito limitada para um único senhor. Até que ponto você avançará seus campos arados – você que não está contente em confinar a medida de suas fazendas mesmo dentro da amplitude das províncias? Você tem rios nobres que atravessam seus terrenos privados; você tem rios poderosos – fronteiras de nações poderosas – sob seu domínio do início ao fim. Isso também é muito pequeno para você, a menos que também envolva mares inteiros com seus estados, a menos que seu administrador mantenha influência do outro lado do mar Adriático, da Jônia e do mar Egeu, a menos que as ilhas, casas de chefes famosos, sejam contadas por você como o mais insignificante dos bens! Espalhe-os tão amplamente quanto você quiser, se puder ter como “fazenda” o que uma vez foi chamado de império; faça seu o que quiser, desde que seja mais do que o do seu vizinho!

21. E agora por uma palavra contigo, cujo luxo se espalha tão amplamente quanto a ganância daqueles a quem acabei de referir. Para você, eu digo: “Este costume continuará até que não haja lago sobre o qual os pináculos de suas casas de campo não atinjam? Até que não haja um rio cujas margens não sejam limitadas por suas estruturas senhoriais? Onde águas quentes possam surgir, onde as margens se curvem em uma baía, você estará pronto para estabelecer fundações e, não contente com nenhuma terra que não tenha sido trabalhada pela engenharia, você irá trazer o mar dentro de seus limites. De cada lado, deixará suas casas brilharem ao sol, agora colocadas em picos nas montanhas, onde elas procuram uma visão extensa sobre o mar e a terra, agora levantadas da planície até o alto das montanhas, construirá suas múltiplas estruturas, suas imensas pilhas, vocês são, no entanto, apenas indivíduos e insignificantes com isso! O que você ganha em ter várias camas? Você dorme em uma. Nenhum lugar é seu, onde você não esteja”.

22. “Em seguida, eu passo para você, você cuja boca insaciável e sem fundo explora, por um lado, os mares, do outro, a terra, com um enorme trabalho, caçando sua presa, agora com anzol, agora com armadilha, agora com redes de vários tipos, nenhum animal tem paz, exceto quando você está empanturrado dele. E quão pequena é uma parte desses banquetes, preparado para você por tantas mãos, que você prova com seu paladar fatigado de prazer! Quão pequena parte de toda essa carne de caça, cuja captura esteve repleta de perigo, o paladar doente e cheio de melindre chega ao estômago? Quão pequena porção de todos os peixes, importados de longe, escorrega para aquela insaciável garganta? Pobres desgraçados, vocês não sabem que seus apetites são maiores que suas barrigas?

23. Fale assim com outros homens, desde que você enquanto falar também escute; escreva assim, desde que, enquanto escreve, lê, lembrando que tudo o que você ouve ou lê, deve ser aplicado para conduzir e para aliviar a fúria da paixão. Estude, não para adicionar nada ao seu conhecimento, mas para melhorar seu conhecimento.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Centúria era uma unidade de infantaria do exército romano, que continha oitenta legionários, correspondendo a dez contubérnios (a unidade mínima do exército romano, constituída de oito a dez soldados).

[2] Pitágoras foi, segundo Diógenes de Laércio, o primeiro a utilizar a palavra «filosofia», que é decomposta em duas: filo (amizade) e sofia (saber); o filósofo é, portanto, o amigo ou o amante do saber – esta é a significação com que a palavra aparece também em Sócrates e Platão.

[3] “Θείων τε καὶ ἀνθρωπίνων ἐπιστήμη”, citado por Plutarco, De Plac. Phil. 874 E.

[4] Cicero, De Officiis, “Sobre os Deveres”, II,ii, 5.

[5]sofia” equivalente em grego (Σοφία)

[6] Fabula togata, comédia “de toga”, distingue-se da comédia de imitação grega, “fabula palliata” apenas na atuação, o local e os personagens são romanos, ao contrário do que sucede com a palliata, em que se conservam os nomes gregos e a acão ocorre em locais vários do mundo grego.

[7] Hospes resiste et sophian Dossenni lege.

[8] Também traduzido como ética, física e lógica.

[9] Sêneca usa o termo latino “de iudicio” traduzindo o adjetivo grego δικανικός, “aquilo que tem a ver com os tribunais”, e por “de regula” a palavra κανονικός, “aquilo que tem a ver com regras”, aqui as regras da lógica. Os Epicuristas usavam para a lógica κανονική, em contraste com Aristóteles e seus sucessores, que usaram λογική. No latim, racionalis é uma tradução deste último.

[10] Aristipo de Cirene foi o fundador da Escola Cirenaica de filosofia, assim denominada devido à cidade de Cirene na qual foi fundada, floresceu entre 400 a.C. e 300 a.C., e tinha como a sua característica distintiva principal o hedonismo, ou a doutrina de que o prazer é o bem supremo. Como os cínicos se desenvolveram para os estoicos, assim os cirenaicos se desenvolveram para os Epicuristas.

[11] Aríston ou Aristo de Quios foi um filósofo estoico e discípulo de Zenão de Cítio. Esboçou um sistema de filosofia estoica que esteve, em muitos aspectos, mais próximo da anterior filosofia cínica. Rejeitou o lado lógico e físico da filosofia aprovada por Zenão e enfatizou a ética.

[12] Eneida, I, 342,  de Virgílio.

Estratégias estoicas para eliminar a culpa indevida

Este artigo de Aldo Dinucci aborda o sentimento de culpa na ótica Epicteto e Stockdale.

É ação de quem não se educou acusar os outros pelas coisas que ele próprio faz erroneamente. De quem começou a se educar, acusar a si próprio. De quem já se educou, não acusar os outros nem a si próprio.

Epicteto, Encheirídion, 5b. Tradução: A. Dinucci e A. Julien

Estratégias estoicas para eliminar a culpa indevida