As Cartas oferecem algo além da filosofia: você tem vislumbres ocasionais da vida privada de Sêneca, bem como da vida em Roma no auge do poder imperial. Esse é um ótimo bônus além do conhecimento filosófico!
Esta é uma de minhas cartas prediletas, onde Sêneca dá o conselho de não se abster de se divertir, mas simplesmente não exagerar:
“Mostra-se muito mais coragem permanecendo abstêmio e sóbrio quando a multidão está bêbada e vomitando; mas mostra maior autocontrole recusar-se a se afastar e fazer o que a multidão faz, mas de uma maneira diferente, portanto, não se tornando conspícuo nem se tornando um dentre as multidões. Pois pode-se guardar os festivais sem extravagância.”(XVIII.4)
É exatamente assim que me sinto no Carnaval, no Natal e assim por diante. Claro que queremos nos divertir e compartilhar um momento agradável da vida com nossa família e amigos. Mas nós temos que ficar bêbados ou doentes por comer demais para fazer isso?
Sêneca então aproveita o tópico em questão para apresentar um ponto mais geral sobre um exercício estoico padrão, auto-privação moderada:
“separe determinados dias em que você se retirará de seus negócios e ficará em casa com a alimentação da mais escassa. Estabeleça relações diplomáticas com a pobreza….só aquele está em afinidade com Deus, que pode desprezar a riqueza. É óbvio que não o proíbo de possuí-la, mas gostaria que chegasse ao ponto em que a possuísse intrepidamente; isso só pode ser realizado persuadindo-se de que você pode viver feliz sem ela, bem como com ela, e sempre considerando que as riquezas podem possivelmente lhe iludir.” (XVIII, 12-13)
(imagem Antoine-François Callet (1741 – 1823) interpretação barroca da Saturnalia – 1783)
XVIII. Sobre Festivais e Jejum
Saudações de Sêneca a Lucílio.
- É quase dezembro, e mesmo assim a cidade está neste momento em um mormaço. A licença é dada para a folia geral. Tudo ressoa com poderosos preparativos, como se as Saturnálias[1] diferissem do dia-a-dia usual! Tão verdadeiro é que a diferença seja nula, que considero correta a observação do homem que disse: “Uma vez dezembro foi um mês, agora é um ano.”
- Se eu tivesse você comigo, eu ficaria feliz em trocar ideias e descobrir o que você acha que deve ser feito, – se devemos mudar nada em nossa rotina diária, ou se, nem que por compaixão com os costumes populares, nós devamos jantar em uma maneira mais alegre e despir a toga. Tal como é, nós, os romanos, trocamos nossas roupas por causa do feriado[2], embora em tempos antigos isso acontecia somente quando o Estado estava perturbado e caíra em desgraça.
- Tenho a certeza de que, se eu o conheço bem, desempenhando o papel de um árbitro, teria desejado que não fôssemos nem como a multidão libertina em todos os sentidos, nem diferentes deles em absolutamente todos os aspectos; a menos que, talvez, esta seja apenas a época em que devamos estabelecer lei à alma, e pedir que seja a única a abster-se de prazeres quando a multidão inteira se deixa ir em prazeres; pois esta é a prova mais segura que um homem pode obter de sua própria constância, se ele não busca as coisas que são sedutoras e o tentam ao luxo, nem é levado para elas.
- Mostra-se muito mais coragem permanecendo abstêmio e sóbrio quando a multidão está bêbada e vomitando; mas mostra maior autocontrole recusar-se a se afastar e fazer o que a multidão faz, mas de uma maneira diferente, portanto, não se tornando conspícuo nem se tornando um dentre as multidões. Pois pode-se guardar os festivais sem extravagância.
- Estou tão firmemente decidido, no entanto, a testar a constância de sua mente que, extraindo dos ensinamentos de grandes homens, eu também lhe darei uma lição: reserve um certo número de dias, durante os quais você se contentará com a alimentação mais barata e escassa, com vestes grosseiras e ásperas, dizendo a si mesmo: “É esta a situação que eu temia?”
- É precisamente em tempos despreocupados que a alma deve endurecer-se de antemão para ocasiões de maior estresse, e é enquanto a fortuna é amável que se deve fortalecer contra violência. Em dias de paz, o soldado executa manobras, lança obras de terraplenagem sem inimigo à vista, e se exercita, a fim de se tornar indiferente a labuta inevitável. Se você não quer que um homem recue quando a crise chegar, treine-o antes que ela chegue. Tal é o curso que esses homens seguiram, que, em sua imitação de pobreza, quase todos os meses chegavam quase à miséria, de forma que eles nunca recuarão do que ensaiaram com tanta frequência.
- Você não precisa supor que eu quero dizer refeições como Tímon[3], ou “cabines de homem pobre[4]“, ou qualquer outro dispositivo que luxuosos milionários usam para enganar o tédio de suas vidas. Deixe a cama de palha ser real, e o manto grosseiro; deixe o pão ser duro e sujo. Resistir a tudo isso por três ou quatro dias por vez, às vezes por mais, para que possa ser um teste de si mesmo em vez de um mero passatempo. Então, asseguro-lhe, meu querido Lucílio, que saltará de alegria quando obtiver um centavo de comida, e compreenderá que a paz de espírito de um homem não depende da fortuna; pois, mesmo quando irritada ela concede o suficiente para as nossas necessidades.
- Não há nenhuma razão, entretanto, para que você deva pensar que você está fazendo qualquer coisa grande; porque você estará apenas fazendo o que muitos milhares de escravos e muitos milhares de pobres estão fazendo todos os dias. Mas você pode creditar-se com este item, – que você não vai fazê-lo sob coação, e que será tão fácil para você suportá-lo permanentemente tanto como para fazer experiência de vez em quando. Vamos praticar nossos golpes no “boneco”; nos fazer íntimos com a pobreza, para que a fortuna não nos pegue despreparados. Seremos ricos com mais conforto, se uma vez descobrirmos que a pobreza está longe de ser um fardo.
- Mesmo Epicuro, o professor de prazer, costumava observar intervalos declarados, durante os quais ele satisfazia a sua fome de maneira sovina; desejava ver se, assim, ficava aquém da plena e completa felicidade e, se fosse assim, em que quantia ficava aquém, e se essa quantidade valia a pena comprar ao preço de um grande esforço. De qualquer forma, ele faz tal declaração na conhecida carta escrita a Polieno[5]. Na verdade, ele se vangloria de que ele próprio viveu com menos de um centavo, mas que Metrodoro, cujo progresso ainda não era tão grande, precisava de um centavo inteiro.
- Você acha que pode haver plenitude em tal alimentação? Sim, e há prazer também, – não aquele prazer falso e fugaz que precisa de um estímulo de vez em quando, mas um prazer que é firme e seguro. Pois, embora a água, a farinha de cevada e as crostas de pão de cevada não sejam uma dieta alegre, no entanto, é o tipo mais elevado de prazer poder obter alegria deste tipo de alimento e ter reduzido suas necessidades a esse mínimo que nenhuma injustiça da fortuna possa arrebatar.
- Mesmo comida prisional é mais generosa; e aqueles que foram condenados à pena de morte não são tão mal alimentados pelo homem que deve executá-los. Portanto, que uma alma nobre se deve ter, para descer de próprio arbítrio a uma dieta que mesmo aqueles que foram condenados à morte receariam! Isso é de fato prevenir-se das lanças da má fortuna.
- Comece então, meu caro Lucílio, siga o costume destes homens, e separe determinados dias em que você se retirará de seus negócios e ficará em casa com a alimentação da mais escassa. Estabeleça relações diplomáticas com a pobreza. Desafie, ó amigo meu, desprezar o ponto de vista da riqueza, e molde-se com afinidade com seu Deus.
- Pois só aquele está em afinidade com Deus, que pode desprezar a riqueza. É óbvio que não o proíbo de possuí-la, mas gostaria que chegasse ao ponto em que a possuísse intrepidamente; isso só pode ser realizado persuadindo-se de que você pode viver feliz sem ela, bem como com ela, e sempre considerando que as riquezas podem possivelmente lhe iludir.
- Mas agora devo começar a dobrar a minha carta. “Pague sua dívida primeiro”, você clama. Aqui está um texto de Epicuro; ele vai pagar a conta: “Raiva desgovernada produz loucura.” Você não pode evitar saber a verdade dessas palavras, já que você teve não só escravos, mas também inimigos.
- Mas, de fato, esta emoção resplandece contra todas as espécies de pessoas; brota tanto do amor quanto do ódio, e se mostra não menos em assuntos sérios do que em brincadeira e esporte. E não faz diferença a importância da provocação, mas em que tipo de alma ela penetra. Da mesma forma com o fogo; não importa quão grande é a chama, mas sobre o que ela cai. Pois madeiras sólidas têm repelido um fogo muito grande; por outro lado, matéria seca e facilmente inflamável nutre a menor chama em um incêndio. Assim é com raiva, meu caro Lucílio; o resultado de uma raiva poderosa é a loucura, e, portanto, a raiva deve ser evitada, não apenas para que possamos escapar do excesso, mas para que possamos ter uma mente saudável.
Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.
[1] Saturnália era um festival da Antiga Roma em honra ao deus Saturno, se estendendo com festividades até 23 de dezembro. O feriado era celebrado com um sacrifício no Templo de Saturno, no Fórum Romano. Um banquete público, seguido de troca de presentes em privado, festa contínua e uma atmosfera de carnaval que derrubava as normas sociais romanas.
[2] O pilleus era usado por escravos recém-libertados e pela população romana em ocasiões festivas.
[3] Tímon de Fliunte, filho de Timarco, foi um filósofo cético grego, pupilo de Pirro de Élis, célebre autor de poemas satíricos.
[4] Os homens ricos às vezes instalavam em seus palácios uma imitação de “cabine de homem pobre”, por contraste com os outros quartos ou como um gesto para uma vida simples.
[5] Polieno de Lâmpsaco foi anteriormente um matemático da Grécia Antiga e posteriormente um discípulo de Epicuro. Apesar de matemático, diz-se que convenceu Epicuro de que a geometria era um desperdício de tempo.