Resenha: Sobre a Tranquilidade da Alma (Parte 2)

Continuamos com a análise do diálogo Sobre a Tranquilidade da Alma. Primeira parte aqui.

Após tratar de preceitos sobre o patrimônio, “fonte mais fértil das dores humanas“, Sêneca se volta a discutir as vicissitudes da Fortuna, iniciando com a boa e tradicional sugestão estoica sobre como se adaptar a novas situações. Se você perdeu algo, até mesmo algo precioso, por causa das mudanças dos ventos da Fortuna, basta lembrar que “Em cada estação da vida você encontrará diversões, relaxamentos e prazeres; isto é, desde que esteja disposto a fazer dos males mais leves ao invés de odiosos” (X,1).

A isto, seguem citações clássicas que são joias de sabedoria que não requerem nenhuma adição:

Quando (o sábio) for convidado a desistir deles, não se queixará da Fortuna, mas dirá: “Agradeço-lhe pelo que tive em meu poder”. Tenho administrado a sua propriedade de modo a aumentá-la em grande parte, mas como você me ordenou, eu a devolvo e a devolvo de boa vontade e com gratidão” (XI, 2).

Que dificuldade pode haver em retornar ao lugar de onde se veio? Um homem não pode viver bem se não souber morrer bem” (XI, 4).

Doença, cativeiro, desastre, conflagração, nenhum deles é inesperado: Eu sempre soube com que companhia desordenada a Natureza me tinha associado” (XI, 7).

Nos capítulos XII e XIII são abordadas as fontes de inquietações oriundas de circunstâncias pessoais, tendo em vista as atribulações da Fortuna: falsos desejos relativos a bens e honrarias, atividades públicas e privadas. Sêneca adverte seu amigo sobre o perigo de se ocupar apenas para fazer algo, ao invés de fazer boas escolhas sobre como empregar seu tempo. Ele imagina um breve diálogo com quem não sabe o que está fazendo nem o porquê: Para onde você vai?” Ele responderá: “Por Hércules, eu não sei: mas verei algumas pessoas e farei alguma coisa“. Provavelmente conhecemos pessoas assim, veja que as coisas não mudaram tanto assim em dois milênios.

Segue-se que aceitamos o destino pelo que ele é, e de fato tentamos fazer o melhor com as novas circunstâncias. Sêneca lembra o exemplo de Zenão – o fundador da Escola – que perdeu tudo em um naufrágio e começou a estudar filosofia, dizendo:

A fortuna comanda que eu fique mais desimpedido para filosofar” (XIV, 3).

Já nos capítulos XV e XVI são tratadas as fontes de inquietações oriundas de circunstâncias externas. Sêneca compara duas atitudes diferentes em relação à vida: a trágica e a cômica, aconselhando que devemos seguir Demócrito e não Heráclito:

O último deles, sempre que aparecia em público, costumava chorar, o primeiro ria. Um pensava que todos os atos humanos eram tolices, o outro pensava que eram desgraças. Devemos ter uma visão mais elevada de todas as coisas e suportar com mais facilidade. É melhor ser homem a rir da vida do que a lamentar por ela” (XV, 2).

Mas é claro que Sêneca compreende que algumas vezes a vida é uma tragédia, como quando pessoas boas (ele menciona Sócrates, Rutílio, Pompeu, Cícero e Catão) são tratadas com injustiça. Mesmo assim, pode-se tirar lições valiosas:

veja como cada um deles suportou o seu destino, e se o suportaram com bravura. Deseje em seu coração uma coragem tão grande quanto a deles… Todos esses homens descobriram como, ao custo de uma pequena porção de tempo, eles poderiam obter a imortalidade e, com suas mortes, ganharam a vida eterna” (XVI, 2-4).

No último capítulo, Sêneca afirma que a alma dos homens deve ter um repouso, devemos mesclar solidão com contato social, trabalho com lazer e aproveitar jogos, diversão e bebidas, tudo porém, com moderação: “Não devemos forçar as colheitas dos campos férteis, porque um curso ininterrupto de colheitas abundantes logo esgotará sua fertilidade, e assim também a vitalidade de nossas mentes será destruída pelo trabalho incessante, mas elas recuperarão suas forças após um curto período de descanso e alívio.”

Esta última seção aniquila a injustificada acusação de que os estoicos seriam estraga-prazeres, recomendando brincar com crianças como Sócrates, dançar como Cipião, passear ao ar livre e beber como Catão e Sólon:

Por vezes, ganhamos força ao dirigir, ao viajar, ao trocar de paisagem ou de convívio social, ou ao fazer refeições com uma mesa mais generosa de vinho. Às vezes, devemos beber até a embriaguez, não para nos afogarmos, mas apenas para nos imergirmos no vinho, porque o vinho lava os problemas e nos afasta das preocupações das profundezas da mente, e age como remédio para a tristeza” (XVII, 8).

Um brinde a Sêneca!


Não se sabe quando o diálogo Sobre a tranquilidade da alma foi escrito. Pode ter sido composto e publicado no período entre o início dos anos 50 até por volta de 62 ou 63.

Aneu Sereno é destinatário não só da obra Sobre a Tranquilidade da Alma, mas também de Sobre a Constância do Sábio e ainda de Sobre o Ócio. Foi um grande amigo de Sêneca, pertencente à ordem equestre, formada pelos cidadãos mais abastados. Sereno também tinha cargo na administração pública, tendo obtido, por influência de Sêneca, a função de praefectus, responsável por combate a incêndios, atividade importante na cidade de Roma. Era bastante jovem e teve uma morte prematura, segundo Sêneca noticia na carta 63 a Lucílio.

(imagem, Diogenes por John William Waterhouse)