Carta 80: Sobre Decepções mundanas

A carta 80, uma de minhas preferidas, se mostra atual e apropriada ao momento que estamos passando. Sêneca fala sobre os falsos valores que a sociedade contemporânea dá coisas mundanas. Critica que hoje “treinamos nossos corpos, enquanto quão poucos treinam suas mentes“.

Devido a crise do coronavírus, hoje nos dividimos entre aqueles que temem pela vida e os que temem pela pobreza. Sêneca diz que a liberdade não pode ser comprada ou vendida, mas buscada individualmente quando deixamos de temer a morte e a pobreza:

“… a liberdade não é possuída nem por aqueles que a compraram, nem por aqueles que a venderam. Você deve dar este bem a si mesmo, e buscá-lo por si mesmo. Antes de tudo, liberte-se do medo da morte, pois a morte põe a canga sobre nossos pescoços; então liberte-se do medo da pobreza.” (LXXX, 5)

Como se estivesse falando das redes sociais, das fotos postadas no Facebook e Instagram, Sêneca alerta sobre a felicidade fingida:

Mas a alegria daqueles a quem os homens chamam de feliz é fingida, enquanto sua tristeza é pesada e supurada, e mais pesada, porque eles não podem, entretanto, exibir sua tristeza, mas devem fingir o papel da felicidade no meio das aflições que devoram seus próprios corações.” (LXXX, 6)

Assim como o comprador de um cavalo olha os dentes, ignorando a sela, e o comprador de escravos quer ver o corpo nu e não as vestes, devemos avaliar as pessoas, e a nós mesmo, não por posses ou cargos, mas por aquilo que realmente são:

“Mas por que eu falo dos outros? Se você deseja definir um valor em si mesmo, coloque ao lado seu dinheiro, suas propriedades, suas honrarias, e olhe para sua própria alma. No momento, você está tomando a palavra dos outros pelo o que você é ” (LXXX, 10)

Imagem: Mercado de Escravos em Roma pintura de Jean-Léon Gérôme


LXXX. Sobre Decepções mundanas

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Hoje eu tenho algum tempo livre, graças não tanto a mim, mas sim aos jogos, que atraíram todos os chatos para a luta de boxe[1]. Ninguém vai me interromper ou perturbar o trem de meus pensamentos, que irá em frente com mais ousadia como resultado da minha própria confiança. A minha porta não tem continuamente rangido em suas dobradiças nem minha cortina tem sido puxada para o lado; meus pensamentos podem marchar com segurança, e isso é tanto mais necessário para quem é independente e segue seu próprio caminho. Posso então não seguir antecessores? Sim, mas me permito descobrir algo novo, alterar, rejeitar. Eu não sou um escravo deles, embora eu lhes dê minha aprovação.

2. E, no entanto, essa foi uma palavra muito ousada que eu falei quando me assegurei de que deveria ter um pouco de aposentadoria tranquila e ininterrupta. Pois bem, uma grande ovação vem do estádio, e enquanto isso não me deixa distraído, ela muda meu pensamento para um contraste sugerido por este mesmo barulho. Quantos homens, digo a mim mesmo, treinam seus corpos, e quão poucos treinam suas mentes! Que multidões se reúnem aos jogos, espúrios como são e dispostas apenas para o passatempo, – e que solidão reina aonde as artes boas são ensinadas! Como são imbecis os atletas cujos músculos e ombros nós admiramos!

3. A questão que eu mais pondero é a seguinte: Se o corpo pode ser treinado a tal grau de resistência que vai suportar os golpes e chutes de vários oponentes de uma só vez e em tal grau que um homem pode durar o dia e resistir ao sol escaldante no meio da poeira ardente, encharcado todo o tempo com seu próprio sangue, – se isso puder ser feito, quanto mais facilmente a mente poderia ser fortalecida para que pudesse receber os golpes da Fortuna e não ser conquistada, para que pudesse lutar novamente depois de ser derrubada, depois que foi pisada e espezinhada? Pois, embora o corpo precise de muitas coisas para ser forte, a mente cresce de dentro, dando-se nutrição e exercício. Os atletas de lá devem ter comida abundante, copiosa bebida, quantidades copiosas de óleo, e longo treinamento também; mas você pode adquirir virtude sem equipamento e sem despesas. Tudo o que vai fazer de você um homem bom está dentro de você.

4. E o que você precisa para se tornar bom? Basta desejar. Mas que melhor coisa você poderia desejar do que romper com essa escravidão, uma escravidão que nos oprime a todos, uma escravidão que até mesmo nossas menores propriedades, nascidas em meio a tal degradação, se esforça de toda maneira possível para nos despojar? Em troca da liberdade eles entregam economias que rasparam enganando suas próprias barrigas; você não estará ansioso para alcançar a liberdade a qualquer preço, visto que você a reivindica como seu direito de primogenitura?

5. Por que lança olhares em direção a sua caixa forte? A liberdade não pode ser comprada. Portanto, é inútil entrar em seu livro-razão o item de “Liberdade”, pois a liberdade não é possuída nem por aqueles que a compraram, nem por aqueles que a venderam. Você deve dar este bem a si mesmo, e buscá-lo por si mesmo. Antes de tudo, liberte-se do medo da morte, pois a morte põe a canga sobre nossos pescoços; então liberte-se do medo da pobreza.

6. Se você soubesse quão pouco mal há na pobreza; compare os rostos dos pobres com os dos ricos; o homem pobre sorri com mais frequência e mais genuinamente; seus problemas não vão em profundidade; mesmo que alguma ansiedade vá de encontro com ele, passa como uma nuvem agitada. Mas a alegria daqueles a quem os homens chamam de feliz é fingida, enquanto sua tristeza é pesada e supurada, e mais pesada, porque eles não podem, entretanto, exibir sua tristeza, mas devem fingir o papel da felicidade no meio das aflições que devoram seus próprios corações.

7. Muitas vezes me sinto chamado a usar a seguinte ilustração, e parece-me que nada expressa mais eficazmente este drama da vida humana, onde nos são atribuídas as partes que devemos desempenhar tão mal. Lá está o homem que atua no palco com esplendido estilo de vida e a cabeça jogada para trás e diz:

Ei!, Eu sou aquele quem Argos chama de senhor, a quem Pélope deixou terras que se espalham Do Helesponto[2] e do mar Jónico até o estreito Ístmico. En impero Argis; regna mihi liquit Pelops, Qua ponto ab Helles atque ab Ionio mari Urgetur Isthmos[3],

E quem é esse homem? Ele é apenas um escravo; seu salário é de cinco medidas de grãos e cinco denários[4].

8. Acolá outro que, orgulhoso e rebelde e empolado pela confiança em seu poder, declama:

Paz, Menelau[5], ou esta mão te matará!. Quod nisi quieris, Menelae, hac dextra occides,

Recebe uma miséria diária e dorme em trapos. Você pode falar da mesma maneira sobre todos estes fanfarrões que você vê em liteiras acima das cabeças dos homens e acima da multidão; em todos os casos sua felicidade é vestida como a máscara do ator. Rasgue-a, e você vai desprezá-los.

9. Quando você compra um cavalo, você pede que seu cobertor seja removido; você tira as roupas dos escravos que são anunciados para venda, de modo que nenhuma falha corporal possa escapar a sua observação; se você julgar um homem, você o julga quando está envolvido em um disfarce? Os negociantes de escravos escondem sob algum tipo de adorno qualquer defeito que possa ofender, e por essa razão os próprios ornamentos despertam a suspeita do comprador. Se você avista uma perna ou um braço que está amarrado em panos, você exige que ele seja desnudado e que o próprio corpo seja revelado a você.

10. Você vê aquele rei da Cítia ou da Sármata, com a cabeça adornada com o distintivo de seu ofício? Se você desejar ver o que ele vale, e saber o seu valor total, tire a sua coroa; muito mal se esconde debaixo dela. Mas por que eu falo dos outros? Se você deseja definir um valor em si mesmo, coloque ao lado seu dinheiro, suas propriedades, suas honrarias, e olhe para sua própria alma. No momento, você está tomando a palavra dos outros pelo o que você é.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Provavelmente uma disputa em que os participantes juntaram pesos de chumbo às mãos para aumentar a força dos golpes.

[2] Atual Dardanelos, é um estreito no noroeste da Turquia ligando o mar Egeu ao mar de Mármara.

[3] Autoria desconhecida.

[4] Uma pequena moeda de prata que era a de maior circulação no Império Romano. É geralmente aceito que no fim da República e no início do Principado, um denário correspondia ao salário diário de um trabalhador. Com um denário era possível comprar em torno de 8 quilos de pão.

[5] Menelau, na mitologia grega, foi um rei lendário de Esparta, irmão mais novo de Agamémnon. O rapto da sua mulher (Helena) por Alexandre, deu origem à Guerra de Troia.