Afinal há algo errado em comer bifes de ouro segundo o Estoicismo e o Cinismo de Diógenes?

Professor Aldo Dinucci escreveu um interessante artigo sobre ostentação e estoicismo, inspirado na controvérsia do momento, o bife de ouro dos jogadores da copa.

Pessoalmente, não acho que o fato tenha muito significado, eu, jamais o comeria, não por virtude, mas por um defeito: Sou muito muquirana. Por mais dinheiro que tivesse, pagar milhares de reais por uma refeição ou vinho me será sempre inaceitável.

Aldo toca um ponto importante, o motivo que leva uma pessoa a pagar fortunas por algo efêmero:

Assim, você pode até comer seu bife de ouro, mas isso obviamente contraria as recomendações de simplicidade do estoicismo e do cinismo, para os quais a genuína felicidade não advém da luxúria. Além disso, se você comer o tal bife de ouro para se exibir, mostrará que vive em função das opiniões alheias, deixando a si mesmo de lado e vivendo em função dos outros. No primeiro caso, você tornará sua vida mais difícil por se fazer dependente de coisas caras e inúteis. No segundo, será infeliz por fazer sua própria felicidade depender de opiniões alheias e não de seus próprios anseios decorrentes de sua natureza.”

Sêneca aparentemente consideraria a iguaria algo indiferente, ele diz que é sinal de uma alma instável não poder tolerar riquezas:

Os homens descobrirão que somos diferentes do rebanho comum se olharem de perto. Se eles nos visitam em casa, eles devem nos admirar, ao invés de admirar nossas mobílias. É um grande homem quem usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa prataria como se de barro fosse. É o sinal de uma alma instável não poder tolerar riquezas.”

Carta 5: Sobre a virtude do Filósofo, §6

Artigo publicado originalmente VIVA VOX ESTOICISMO em 10 de dezembro de 2022.


Afinal há algo errado em comer bifes de ouro segundo o Estoicismo e o Cinismo de Diógenes?

Ultimamente chamou nossa atenção o restaurante no Qatar no qual peças de carne assada cobertas de ouro são servidas com grande estardalhaço. Mas afinal o que há de errado com bifes cobertos de ouro? Quem tem dinheiro de sobra não tem o direito de ir ao tal restaurante e gastar o quanto quiser? O que diriam os estoicos antigos sobre isso? O que diria o cínico Diógenes, o cão, sobre o caso dos bifes de ouro do Qatar?

O primeiro ponto que eu destaco é a ligação entre o estoicismo e o cinismo que se revela primeiramente pela busca por simplicidade e descomplicação na vida. Diógenes pode ser visto como um Sócrates levado aos extremos, que busca a felicidade apostando literalmente na pobreza. É possível ser feliz com pouco, seria um dos lemas da filosofia de Diógenes. Assim, segundo uma anedota que nos chegou, Diógenes, ao ver um menino tomando água na fonte com as mãos em concha, jogou fora seu copo dizendo que um simples garoto lhe ensinaraque mesmo ele, Diógenes, tinha coisas supérfluas. E coisa semelhante ocorreu ao ver um menino comendo lentilhas sobre um pão ázimo, o que fez o Cão lançar fora seu prato.

O estoico etrusco Musônio Rufo reflete a partir dessas mesmas premissas. Para este filósofo, o luxo nas residências é desprovido de sentido, significando recursos desperdiçados e não representando qualquer ganho seja para o proprietário da casa seja para a comunidade em que vive:

Já que, em razão da proteção, também fazemos as casas, <Musônio> disse que é preciso construí-las tendo em vista a necessidade do uso, como prevenir o frio, o excesso de calor; ser, para os que precisam, proteção contra o sol e contra os ventos. Em geral, é preciso que a casa nos supra o mesmo que uma caverna natural que possua abrigo adequado ao homem pode suprir. E se efetivamente possui <espaço> extra, [19.35] este será uma conveniente dispensa para o alimento próprio aos seres humanos. Para que o peristilo no pátio? Para que as paredes douradas? Para que as abóbadas cobertas de ouro? Para que pedras dispendiosas, umas combinando-se no chão, outras pressionadas nos muros, outras ainda trazidas de bem longe e a grandes expensas? [19.40] Não são todas essas coisas extravagantes e desnecessárias, <coisas> sem as quais se pode tanto viver quanto ser saudável? E que dão muito trabalho, sendo obtidas com muito dinheiro, com o qual alguém poderia ser benfeitor de muitos homens, tanto pública quanto particularmente? (Musônio, Diatribe 19)[1]

Essa reflexão se estende aos utensílios domésticos, que devem também tão somente cumprir as funções para as quais foram originalmente concebidos:

Também consoante e congênere ao caráter dispendioso da casa se figuram as coisas relativas ao mobiliário dela – leitos, mesas, tapeçarias, taças e coisas de tal qualidade, que ultrapassam por completo a precisão e vão além da necessidade. Leitos de marfim e prata ou, por Zeus, dourados; mesas de material semelhante; cobertores de cor púrpura e de outras cores difíceis de achar; taças feitas de ouro e prata, de pedra ou de materiais semelhantes à pedra, que competem quanto ao custo com as feitas de prata e ouro. E todas essas coisas obtidas com esforço! Uma pequena cama não nos oferece <algo> pior do que um leito inclinado de prata ou um leito de marfim. E é mais do que suficiente cobrir-se com um casaco de pele de cabra, de modo que não se precisa de um casaco de cor púrpura ou escarlate. E como não deixar de desejar uma mesa de prata quando nos é possível comer, sem risco, em uma mesa de madeira? E, certamente, por Zeus, é possível beber em copos de barro, pois naturalmente mata-se a sede com eles do mesmo modo que com os de ouro. O vinho nos copos de barro não tem sabor contaminado e possui aroma mais prazeroso que nos copos de ouro ou de prata. (Musônio, Diatribe 20)[2]

Epicteto também fala em termos semelhantes no Manual, ao afirmar que:

A medida das posses para cada um é o corpo, assim como o pé é a medida para a sandália. Se te fixares sobre essa regra, observarás a <justa> medida. Mas, se a violares, serás no fim necessariamente conduzido ao abismo. Do mesmo modo também em relação à sandália: se violares a regra para além do que pede o pé, tornando dourada a sandália, depois púrpura, depois adornada. Pois não há limite para o que uma única vez ultrapassa a medida. (Epicteto, Manual, 39. Excerto de Epicteto, Manual Edição original de 2007 – Tradução dos originais em grego: Aldo Dinucci)

Mas qual limite é ultrapassado aqui? Por que uma vida mais simples seria melhor que uma existência luxuriosa e de ostentação? Por que uma casa ou um utensílio não podem ser adornados indo além daquilo para o que foram originalmente pensados? Não seriam os estoicos e os cínicos muito chatos e sem graça com suas recomendações sobre simplicidade de vida? Por que afinal não seria bom e louvável sair por aí ostentando riqueza, beleza, poder[3]?

Podemos refletir sobre isso a partir do sentido da palavra ostentação, que vem do latim ostentare, que significa expor à vista, exibir, mostrar. Ora, podemos dizer que quem ostenta quer obter algum tipo de felicidade por meio da ostentanção, fazendo sua felicidade depender dos juízos alheios sobre sua pessoa. Quem ostenta pensa algo como: Mostrarei minha riqueza e todos me admirarão! E essa admiração me fará feliz! O que Diógenes e os estoicos percebem é que essa ideia é equivocada e parte de uma concepção igualmente equivocada sobre o que é o ser humano, segundo a qual a felicidade dos humanos depende de poder, beleza, riqueza, coisas que, para esses filósofos, são indiferentes, porque podem ser bem ou mal usadas. Assim, a riqueza mal usada trará infelicidade. E o mesmo vale para os outros indiferentes, que nada mais são que materiais a partir dos quais podemos construir nossa felicidade ou nossa infelicidade. Para Diógenes e os estoicos, o que distingue um ser humano dos demais é uma certa sabedoria, sabedoria esta que permite fazer bom uso das coisas indiferentes. Assim, o erro de quem ostenta é achar que será feliz ostentando, que os demais o admirarão, quando, na verdade, colherá em geral inveja e se fará dependente dos juízos alheios, dependência que é, na verdade, a fonte suprema ae infelicidade, pois leva o humano a agir de acordo com o que ele acha que irá agradar os outros e não fazer aquilo que em seu íntimo ele intui que o fará feliz.

Assim, você pode até comer seu bife de ouro, mas isso obviamente contraria as recomendações de simplicidade do estoicismo e do cinismo, para os quais a genuína felicidade não advém da luxúria. Além disso, se você comer o tal bife de ouro para se exibir, mostrará que vive em função das opiniões alheias, deixando a si mesmo de lado e vivendo em função dos outros. No primeiro caso, você tornará sua vida mais difícil por se fazer dependente de coisas caras e inúteis. No segundo, será infeliz por fazer sua própria felicidade depender de opiniões alheias e não de seus próprios anseios decorrentes de sua natureza.

Creio que Diógenes, o Cão, sintetiza magistralmente essa minha reflexão em uma performance cuja notícia nos chegou e que parafraseio assim: Um dia, Diógenes foi convidado para ir à mansão de um homem rico, que ia lhe mostrando os caríssimos objetos de sua residência à medida em que atravessavam os corredores. “Vês essa estátua”, disse o ricaço, “é um bronze de Corinto, não cuspas nela”. “Vês esse tapete”, observou o nababo, “é de confecção caríssima, não cuspas nele”. “Vês esse jarro”, acrescentou o ostentador, “é raro  e antiquíssimo. Não cuspas nele por favor”. Então, Diógenes juntou bastante cuspe em sua boca, e quando já tinha uma boa quantidade do pegajoso líquido, cuspiu-o todo bem no meio da cara do milionário, que, estupefato, lhe indagou por que cargas d´água fizera tal coisa. E Diógenes lhe respondeu: “Sua cara foi o lugar mais ordinário que encontrei em sua casa”. Moral da estória: aquele que busca validação exibindo seu poder e sua riqueza mostra que não tem realmente nada de bom em termos humanos a oferecer, tornando-se uma pessoa fútil e patética e perdendo todo o valor para si mesmo e para os demais enquanto ser humano. 

Entretanto, há um ponto adicional que deve ser observado e que para mim é o mais importante. Uma coisa é ostentar em um sociedade na qual as pessoas possuem o mínimo para viver. Outra bem diferente é ostentar diante de miseráveis e famintos, como muitos brasileiros abastados fazem costumeiramente no Brasil e alhures. Um dos temas fundamentais do estoicismo é a questão do afeto e da empatia em relação aos demais seres humanos: Hiérocles de Rodes observa que um dos objetivos dessa filosofia é fazer com que o afeto natural que temos por nós mesmos e por nossos familiares e pessoas próximas se estenda aos demais cidadãos de nossa cidade e de nosso país, alcançando em última análise a todos os humanos de modo a serem reconhecidos então como nossos irmãos e irmãs em humanidade[4].  Assim, banquetear-se às vistas de pessoas famintas e ostentar luxúria diante de miseráveis é uma demonstração clara de falta de empatia, de sensibilidade e de humanidade –enfim, em termos estoicos, uma evidente demonstração de profunda ignorância. E alguém poderia indagar: o tanto de dinheiro gasto em um banquete resolveria o problema da fome e da miséria em nosso país? Certamente que não, mas pelo menos quem deixasse de lado essas demonstrações de ostentação, extravagância e luxúria, empregando esses recursos para matar a fome mesmo que fosse de umas poucas pessoas, mostraria que não é totalmente insensível ao sofrimento humano. Essa pessoa mostraria a si mesma e aos demais que a sobrevivência digna daqueles que o circundam também lhe diz respeito e o afeta, e que é capaz de amá-los e vê-los como seus irmãos e irmãs.


Crescendo como estoico: Uma educação filosófica voltada para o caráter, a persistência e a garra

Artigo útil e prático para os estoicos com filhos, do site devitastoica.

Começa advertindo que, como pais, temos de dar o bom exemplo, só depois lições. Leah Goldrick aborda então como ensinar as quatro virtudes cardeais dos estoicos, tudo baseado em Musônio Rufo.

Gostei especialmente do exercício sugerido para praticar “determinação”, a jardinagem:

“Mexer com plantas é particularmente educativo para elas, visto que envolve o adiamento da gratificação e, ocasionalmente, a lição de que o trabalho duro nem sempre é recompensado. A determinação é requerida quando se está semeando, regando e cultivando as plantas, e somente no fim é que você aproveitará a comida que produziu.”

Leah Goldrick, traduzido pelo site.