Meditações, entrevista de Aldo Dinucci à Veja

Com o lançamento da tradução das Meditações por Aldo Dinucci a resvista Veja publicou uma resenha e pequena entrevista. Segue entrevista:

Com a palavra, o tradutor das Meditações, Aldo Dinucci.

Meditações é daqueles livros que se tornaram um best-seller atemporal e universal. A que o senhor atribui tamanho êxito?
O diário de Marco Aurélio permaneceu praticamente perdido por séculos e séculos, com esparsas notícias ao longo da Antiguidade Tardia e da Idade Média, sendo publicado na Europa apenas no século XVI, com inúmeras edições em línguas modernas a partir de então. No seu libelo, Marco dialoga consigo mesmo, de modo similar ao que fazem amigos íntimos ao trocarem impressões entre si sobre temas relativos à vida.
Esse sentimento de intimidade é muito evidente no texto, razão pela qual costuma ser lido por algumas pessoas dezenas de vezes, estabelecendo-se assim laços afetivos de amizade entre o leitor vivo e o filósofo que há muito se foi. A extraordinária sensibilidade de Marco ilumina temas que concernem à humanidade como um todo, como a reflexão sobre o que é a vida plena, sobre a fraternidade humana, sobre a morte, sobre o lugar do humano no Cosmos, tudo isso entre belíssimas imagens da natureza e da nossa vida cotidiana.

O diário de Nos últimos anos, tivemos o lançamento de muitos livros que beberam, de forma evidente ou nem tanto, de lições do estoicismo para promover discursos de autoajuda ou do tipo “como vencer na vida”. O senhor acredita que, muito embora ajudem a popularizar essa corrente filosófica, eles também possam deturpar ideias e intenções caras à escola estoica?
O mercado cultural afeta hoje quase todos os aspectos de nossa vida: vestuário, cinema, música, alimentação, religião… Tudo acaba se transformando em mercadoria para consumidores cada vez mais existencialmente vazios. Essas mercadorias são niveladas por baixo no que se refere ao aspecto cultural propriamente dito, razão pela qual muitos dizem haver acabado a boa música, o bom cinema, a boa literatura. Isso ocorre porque o mercado cultural almeja não a qualidade de seus produtos, mas meramente a quantidade de consumidores e de renda arrecadada.

O estoicismo, assim como tudo mais, acabou sendo transformado em produto nesse contexto do capitalismo tardio em que vivemos, apresentado por meio de simplificações grosseiras e evidentes deturpações, mais ou menos como a teologia da prosperidade o faz em relação ao cristianismo. A filosofia do Pórtico (como é também conhecido o estoicismo), na Antiguidade, jamais foi uma técnica individualista para buscar o sucesso pessoal, mas sempre se tratou de uma doutrina de amor à humanidade que busca conectar os humanos entre si por sentimentos fraternos e reconectar o humano ao Cosmos, exortando seus seguidores a ações que concorram não para o sucesso individual, mas para o bem comum, como Marco não se cansa de repetir em seu diário.

Que mensagem do livro de Marco Aurélio o senhor julga a mais preciosa para estes tempos pós-modernos, pós-pandêmicos, regidos pela tal pós-verdade?
Cada vez mais, estamos, humanos das ruas, fartos do dogmatismo e do cinismo de certos filósofos e intelectuais modernos e contemporâneos: ou temos aqueles que se creem donos da verdade e querem nos fazer passar essa suposta verdade goela abaixo, ou temos os cínicos no pior sentido do termo, os que não creem em nada e se resignam a uma atitude irreverente e malévola diante das vicissitudes humanas. Marco não vai nem por um caminho nem por outro. Nosso imperador não é jamais dogmático, mas se questiona frequentemente quanto aos mais centrais princípios filosóficos, como quando, por exemplo, se indaga se há providência divina (a tese estoica) ou apenas átomos (a tese atomista e epicurista), refletindo e nos fazendo refletir simultaneamente sobre as duas possibilidades.

Sua ideia mais importante (e menos conhecida) é que a humanidade é uma grande fraternidade, e que devemos alimentar em nós esse pensamento para que possamos agir visando ao bem comum, seja o de nossa comunidade imediata, seja o da humanidade como um todo, seja o do Cosmos. Para Marco, o humano é um animal racional e político, que só pode alcançar seu fim (quer dizer, sua plenitude e sua realização) agindo de forma comunitária por meio da interpretação adequada dos papéis que lhe cabem na sociedade e no Cosmos, tais como os de ser racional, filho ou filha, irmã ou irmão, pai, mãe, vizinho, político, entre tantos personagens que são atribuídos a nós, humanos, em nossas breves existências.

Texto completo em:
https://veja.abril.com.br/coluna/conta-gotas/o-sucesso-atemporal-das-meditacoes-do-imperador-filosofo/

Extra: Carta 107: Espera por tudo / tradução de Aldo Dinucci

Temos uma excelente novidade! Um pouco de variação.
Quem acompanha o blog sabe que publicamos 99 cartas de Sêneca, traduzidas do inglês por Alexandre Vieira.

Recentemente o professor Aldo Dinucci lançou livro com tradução direto do latim de Cartas Selecionadas. Ao ler irão perceber estilo muito mais conciso e próximo do original de Sêneca. Não irei comentar a carta, mas trazer a pequena introdução que Aldo nos enviou:

Pessoal, pretendi fazer um manual de Sêneca com a minha tradução destas nove cartas do Latim. Sêneca me ajudou muito em um período muito difícil de minha vida. Esse livro é minha homenagem a quem considero um dos mais poderosos intelectuais (filósofo, dramaturgo, poeta, humorista, político) de todos os tempos. Meu objetivo é que seu pensamento continue ajudando quantas pessoas dele necessitarem. Saudações a todos.
Aldo Dinucci.

Professor Doutor em Logica & Filosofia – Universidade Federal de Sergipe

Cartas Selecionadas está disponível em papel e formato digital.

(imagem Boulanger Gustaveo mercado de escravos)


Carta CVII – Espera por tudo (Omnia Exspecta)

Sêneca saúda seu amigo Lucílio.

(1) Onde está aquela tua prudência? Onde está a sagacidade nas coisas que se devem discernir? Onde está a grandeza de alma? Já as pequenas coisas te afligem? Teus servos viram, em tuas ocupações, a oportunidade para a fuga. Se os amigos te enganaram, que tenham então este nome, o qual nosso erro lhes colocou de modo impensado. E que sejam assim chamados, para que seja mais vergonhoso não o serem. Pois bem, há algo a menos dentre as tuas coisas: aqueles amigos, que agora te faltam, são aqueles que destruíam a tua obra e te consideravam molesto aos demais.

(2) Nenhuma destas coisas é insólita, nenhuma inesperada. Ofender-te com estas coisas é tão ridículo quanto te queixares porque caíste em público ou porque te sujaste na lama. A mesma condição tem a vida, o banho público, a multidão, a viagem: algumas coisas serão atiradas em ti, algumas coisas acontecerão. Não é coisa delicada viver. A uma longa viagem vieste e é necessário que escorregues, que tropeces, que caias, que te canses e que exclames: “Ó Morte!”, isto é, é necessário que mintas. Num lugar, deixarás para trás um companheiro; noutro, sepultarás um; noutro ainda, terás medo; deste modo, por entre ferimentos, é necessário atravessar esta difícil viagem. (3) Deseja alguém morrer? Que seu espírito esteja preparado contra todas as coisas; que saiba, por si mesmo, que chegou onde estronda o trovão. Que saiba por si mesmo que chegou onde…

Perdas e Vingança estabeleceram seus quartéis de governo
E pálidas e tristes doenças e a velhice habitam[1].

Nesta morada, é necessário gastar a vida. Escapar dela não podes, desprezá-la podes. (4) Desprezarás, porém, se muitas vezes pensares e conjecturares as coisas futuras. Todos mais corajosamente atravessam aquilo para o que durante muito tempo se prepararam, e, do mesmo modo, resistem se previamente refletem sobre os obstáculos. Por outro lado, teme-se muito aquilo contra o que não se preparou, mesmo as coisas fúteis.  Isto é necessário fazer: que nada seja para nós inesperado. E, porque todas as coisas são mais graves por <serem> novidades, a reflexão constante te defenderá disso – assim, peço-te que, de modo algum, ajas como um mau recruta.

(5) “Os servos me deixaram”. A outro roubaram, a outro falsamente acusaram, a outro assassinaram, a outro traíram, a outro esmagaram, a outro envenenaram, a outro atingiram com falsa acusação: o que quer que digas, aconteceu a muitos. Em seguida, <é preciso que saibas que> muitos e variados dardos há e são dirigidos a nós. Alguns estão fixados em nós, alguns são lançados e chegam com força máxima, (6) alguns, que vão atingir outros, resvalam em nós.

(6) Em nada nos admiremos destes <dardos>, para os quais nascemos; os quais, por esta razão, de modo algum devem ser lamentados, porque são pátria para todos. Assim, digo que são iguais <para todos>, pois também se pode sofrer daquilo do que se escapa. Além disso, uma lei equitativa é o que é estabelecido para todos, não o que ocorre para todos. Que seja prescrita equidade ao espírito e que paguemos, sem queixas, os tributos de nossa condição mortal.

(7) O inverno faz vir o frio: é necessário gelar. O tempo traz de novo o calor: é necessário arder. A intempérie do céu provoca a saúde: é necessário adoecer. Uma fera em algum lugar se aproximará de nós, e também um homem mais pernicioso que todas as feras. Algo a água, algo o fogo retirar-nos-á. Esta condição das coisas não podemos mudar. Mas isto podemos <fazer>: adotar um espírito elevado e digno do homem nobre para (8) que corajosamente suportemos as coisas fortuitas e nos harmonizemos com a Natureza. A Natureza tempera este reino que vês com as mutações: o céu sereno sucede ao coberto de nuvens; agitam-se os mares com a condição de que se acalmem; parte do céu se ergue, parte imerge. A eternidade das coisas consiste nos contrários.

(9) É necessário que nosso espírito se adapte a esta lei; é necessário que siga esta lei, que a obedeça. E, o que quer que aconteça, é necessário que pense ter devido acontecer e que não deseje repreender a natureza, que siga a Divindade, da qual todas as coisas provêm.

Mau soldado é quem (10) segue gemendo o comandante. Portanto, cheios de ardor e diligentes, recebamos as ordens e não desertemos o curso desta belíssima obra à qual foi entrelaçada o que quer que teremos de suportar. E deste modo, exortemos a Júpiter, cujo governo é ornador dessa imensidade, da mesma maneira que nosso Cleantes o exorta através de versos mais que eloquentes, versos os quais me é permitido traduzir para o nosso idioma, a exemplo de Cícero, mais eloquente dos homens. Se te agradarem, aprová-los-á, se te desagradarem, saberás que aqui segui o exemplo de Cícero:

(11) Conduz-me, ó Pai Excelso e Senhor do Mundo,
Para onde quer que queiras, nenhum obstáculo impedir-me-á de seguir-te.
Diligente, estarei junto a ti. E, caso eu não o queira fazer
o que é possível ao intrépido, ainda assim seguir-te-ei, gemendo e infeliz.
O Destino conduz quem lhe obedece e arrasta a quem lhe opõe resistência.

(12) Que vivamos assim, que falemos assim; que o destino nos encontre prontos e diligentes. Eis o espírito elevado que confiou a si mesmo ao destino. E, em oposição a ele, o fraco e degenerado, que luta contra e julga mal a ordem do mundo e prefere corrigir os Deuses que a si mesmo.

Adeus.


[1] Virgílio, Eneida, vi, 274 ss.