Carta 20: Sobre praticar o que se prega

Sêneca começa sua vigésima carta pedindo para Lucílio provar suas palavras por meio de suas ações. É um lembrete gritante de que o estoicismo é uma filosofia prática, destinada a ser implantada diariamente durante a vida, e não simplesmente contemplada por algumas horas por semana, quando podemos ler um livro por lazer.

Sêneca diz que devemos nos esforçar para manter “escrita e ações” de acordo uns com os outros, mas também reconhece imediatamente que este é um padrão elevado, difícil de manter. Por que as pessoas se comportam de maneira incoerente? Segundo Sêneca, esse é o resultado de dois problemas. O primeiro é que muitas pessoas simplesmente não se incomodam com as inconsistências entre suas ações e suas palavras, ou seja, não levam a sério a busca pela virtude. A segunda é que, mesmo que algumas pessoas estejam incomodadas, elas facilmente retornam a velhos hábitos, por falta de sabedoria.

Sêneca imagina Lucílio objetando que ele tem uma grande família para cuidar e que, portanto, precisa de muito dinheiro. Esse pode ser o caso, diz o filósofo, mas seus dependentes irão se virar ele parar de mimá-los, sugerindo que uma das vantagens da pobreza é que ela imediatamente revela quem são seus verdadeiros amigos: aqueles que ficam por perto mesmo quando há pouca vantagem material a ser obtida.

Essa linha de raciocínio leva Sêneca a sugerir  o exercício da autodeprivação moderada: “Considero, portanto, essencial fazer o que os grandes homens fazem com frequência: reservar alguns dias para nos prepararmos para a pobreza real por meio da pobreza imaginada…. Nenhum homem nasce rico. Todo homem, quando vê pela primeira vez a luz, é condenado a se contentar com leite e trapos.”(XX.13)

Esta prática pode tomar a forma de uma ducha fria (para lembrar de como é bom poder tomar as mais quentes), um dia ou dois de jejum (para aproveitar melhor a próxima refeição), uma semana ou mais sem comprar nada além de comida. Os exercícios de privação, então, têm múltiplas funções: eles testam nossa resistência, eles nos preparam para possíveis adversidades, eles nos lembram que muitas coisas que achamos que precisamos não são realmente necessárias, e eles reajustam nosso ciclo hedônico, fazendo-nos apreciar o que nós já temos.

( imagem Diógenes por Jean-Leon Gerome)


 

XX. Sobre praticar o que se prega

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Se você está em boa saúde e se você se considera digno de finalmente se tornar seu próprio mestre, estou contente. Pois o crédito será meu, se eu puder salvá-lo das inundações de golpes sem esperança de fim. Porém, meu caro Lucílio, peço e suplico, por sua parte, que deixe a sabedoria penetrar em sua alma, e teste seu progresso, não por mero discurso ou escritos, mas por força de coração e redução do desejo. Prove suas palavras por suas ações.
  2. Diferente é o propósito daqueles que discursam e tentam ganhar a aprovação de uma multidão de ouvintes, muito diferente daqueles que seduzem os ouvidos dos jovens e dos ociosos por meio de argumentação fluente; A filosofia nos ensina a agir, não a falar; exige de cada homem que viva de acordo com o seu próprio padrão, que a sua vida não esteja em desacordo com as suas palavras, e que, além disso, a sua vida interior deva ser não destoante, mas em harmonia com todas as suas atividades. Isto, eu digo, é o mais alto dever e a mais alta prova de sabedoria, – que ações e palavras estejam em acordo, que um homem deve ser sempre o mesmo sob todas as condições. “Mas,” você responde, “quem pode manter este nível?” Muito poucos, com certeza; mas há alguns. É de fato um empreendimento árduo, e não digo que o filósofo possa sempre manter o mesmo ritmo. Mas ele sempre pode seguir o mesmo caminho.
  3. Observe-se, então, e veja se suas vestes e sua casa são inconsistentes, se você se trata generosamente, mas sua família mal, se você come frugalmente, mas ainda constrói casas de luxo. Você deve aplicar, uma vez por todas, um único padrão de vida, e deve regular toda a sua vida de acordo com este padrão. Alguns homens se restringem em casa, mas andam empertigados diante do público; tal discordância é uma falha, e indica uma mente vacilante que ainda não pode manter seu equilíbrio.
  4. E eu posso dizer-lhe, ainda, de onde surge esta instabilidade e desacordo de ação e propósito; é porque nenhum homem decide o que deseja, e mesmo que o tenha feito, não persiste nisso, desiste; não só vacila, mas volta para a conduta que abandonou e repudiou.
  5. Portanto, omitindo as antigas definições de sabedoria e incluindo todo o modo de vida humana, posso ficar satisfeito com o seguinte: “O que é sabedoria? Sempre desejar as mesmas coisas, e sempre recusar as mesmas coisas[1]“. Você pode acrescentar uma pequena condição, – que o que se deseja, seja o certo; já que nenhum homem pode sempre estar satisfeito com a mesma coisa, a menos que esteja ela seja a certa.
  6. Por isso os homens não sabem o que desejam, a não ser no momento em que desejam; nenhum homem decidiu de uma vez por todas desejar ou recusar. O julgamento varia de dia para dia, e muda para o oposto, fazendo com que muitos homens passem a vida em uma espécie de jogo. Prossiga, portanto, como você começou; talvez você seja levado à perfeição, ou a um ponto no qual só você considere aquém da perfeição.
  7. “Mas o que,” você diz, “se tornará da minha casa cheia de gente sem uma renda?” Se você parar de apoiar essa gente, ela se sustentará; ou talvez vá aprender graças a pobreza o que não pode aprender por conta própria. A pobreza manterá para você seus amigos verdadeiros e provados; você será livrado dos homens que não o procuraram por você mesmo, mas por algo que você tem. Não é certo, no entanto, que você ame a pobreza, ainda que apenas por essa única razão, para mostrar por quem você é amado? Ou quando chegará esse ponto, quando ninguém disser mentiras para congratula-lo!
  8. Assim, deixe que seus pensamentos, seus esforços, seus desejos, ajudem a torná-lo satisfeito com seu próprio eu e com os bens que brotam de si mesmo; e empenhe todas as orações à Deus! Que felicidade poderia se aproximar de você? Traga-se a condições humildes, das quais você não pode ser expulso e para que você possa fazê-lo com maior espontaneidade, a contribuição contida nesta carta irá se referir a esse assunto; eu o concederei imediatamente.
  9. Embora você possa olhar com desconfiança, Epicuro, mais uma vez, ficará contente em liquidar meu endividamento: “Acredite, suas palavras serão mais imponentes se você dormir em uma cama estreita e usar trapos, pois nesse caso você não estará simplesmente dizendo, você estará demonstrando sua verdade.” De qualquer modo, escuto com um espírito diferente as palavras de nosso amigo Demétrio, depois que o vi recostado sem sequer um manto para cobri-lo, e, mais do que isso, sem tapetes para deitar. Ele não é apenas um mestre da verdade, mas uma testemunha da verdade.
  10. “Não pode um homem, no entanto, desprezar a riqueza quando ela está em seu próprio bolso?” Claro; também é de grande alma, quem vê riquezas amontoadas em torno de si e, depois de se perguntar longa e profundamente porque elas chegaram em sua posse, sorri e ouve, em vez de sentir que elas são suas. Significa muito não ser estragado pela intimidade com as riquezas; e é verdadeiramente grande, quem é pobre em meio às riquezas.
  11. “Sim, mas eu não sei”, você diz, “como o homem de quem você fala sofrerá a pobreza, se cair nela de repente”. Nem eu, Epicuro, sei se o pobre de quem você fala vai desprezar as riquezas, se esta, de repente, chegar a ele; portanto, no caso de ambos, é a mente que deve ser avaliada, e devemos investigar se o seu homem está satisfeito com a sua pobreza, e se o meu homem está descontente com suas riquezas. Caso contrário, a cama estreita e os trapos são uma prova fraca de suas boas intenções, se não for deixado claro que a pessoa referida sofre essas provações não por necessidade, mas por escolha.
  12. É, contudo, a marca de um espírito nobre não se precipitar em tais coisas por serem melhores, mas pô-las à pratica, porque são desse modo fáceis de suportar. E são fáceis de suportar, Lucílio; quando, no entanto, você chegar a elas depois de uma longa prova, elas são ainda agradáveis; pois elas contêm uma sensação de liberdade, – e sem isso nada é agradável.
  13. Considero, portanto, essencial fazer o que os grandes homens fazem com frequência: reservar alguns dias para nos prepararmos para a pobreza real por meio da pobreza imaginada. Há mais razão para fazer isso, porque estamos impregnados de luxo e consideramos todos os deveres árduos e onerosos. Em vez disso, deixe a alma ser despertada de seu sono e ser estimulada, e que seja lembrada que a natureza prescreveu muito pouco para nós. Nenhum homem nasce rico. Todo homem, quando vê pela primeira vez a luz, é condenado a se contentar com leite e trapos. Tal é o nosso começo, e ainda assim os reinos são todos muito pequenos para nós[2]!

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Sêneca aplica à sabedoria a definição de amizade de Salústio, ” idem velle atque idem nolle, ea demui firma amicitia est“.

[2] Adaptado do epigrama sobre Alexandre o Grande, “hic est quem non capit orbis” em Plutarco.

Carta 19. Sobre Materialismo e Retiro

Nesta carta Sêneca nos alerta sobre a verdadeira amizade e mais uma vez mostra os riscos da ganância.

Sêneca diz que devemos escolher nossos amigos sem pensar nos benefícios que iremos receber destes, ou que a eles daremos: “é um erro escolher o seu amigo no salão de recepção ou testá-lo na mesa de jantar. O infortúnio mais grave para um homem ocupado que é dominado por suas posses é quando ele acredita que os homens são seus amigos mesmo que ele próprio não seja um amigo para estes e que ele considere seus favores eficazes na conquista de amigos, certos homens, quanto mais devem, mais odeiam. Uma dívida insignificante torna um homem seu devedor; uma grande faz dele um inimigo.” (XIX.11)

Termina a carta com mais uma citação de Epicuro: “Você deve refletir cuidadosamente com quem você deve comer e beber, ao invés do que você deve comer e beber, pois um jantar de carnes sem a companhia de um amigo é como a vida de um leão ou um lobo.” (XIX. 10)

(Imagem Daniel na cova dos Leões  por Rubens. )


 

Sobre Materialismo e Retiro

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Pulo de alegria sempre que recebo cartas de você. Pois me enchem de esperança; não são meras presunções sobre você, mas garantias reais. E rogo que continue neste caminho; pois que melhor pedido eu poderia fazer a um amigo do que um que possa ser feito para seu próprio bem? Se possível, retire-se de todos os negócios de que fala; e se você não pode fazer isto, afaste-se mesmo com prejuízo. Já gastamos bastante do nosso tempo – vamos na velhice começar a arrumar nossa bagagem.
  2. Certamente não há nada nisso que os homens possam cobiçar. Passamos nossas vidas em alto mar; que morramos no porto. Não que eu aconselhe você a tentar ganhar renome por seu retiro; O retiro não deve ser alardeado nem ocultado. Não ocultado, eu digo, porque não vou exortá-lo a rejeitar todos os homens como loucos e depois procurar a si mesmo um refugio; ao invés de fazer isso sua prática, que seu retiro não seja notável, embora deva ser evidente.
  3. Em segundo lugar, enquanto aqueles cuja escolha é livre desde o início irão deliberar sobre essa questão, caso eles queiram passar a vida em obscuridade. No seu caso, não há uma livre escolha. Sua habilidade e energia o empurraram para os negócios do mundo; assim tem o encanto de seus escritos e as amizades que você fez com homens famosos e notáveis. A fama já o conquistou. Você pode se afundar nas profundezas da obscuridade e se esconder completamente; contudo seus atos anteriores o revelarão.
  4. Você não pode manter-se à espreita no escuro; muito do brilho anterior lhe seguirá onde quer que vá. Paz que você pode reivindicar para si mesmo sem ser detestado por ninguém, sem qualquer sensação de perda, e sem dores de espírito. Por que você deixaria para trás algo que você pode imaginar-se relutante em abandonar? Seus clientes? Mas nenhum desses homens lhe corteja por você mesmo; eles meramente cortejam algo de você. As pessoas costumavam caçar amigos, mas agora elas caçam o dinheiro; se um velho solitário muda seu testamento, o visitante assíduo se transfere para outra porta. Grandes coisas não podem ser compradas por pequenas somas; por isso considere se é preferível deixar seu próprio eu verdadeiro, ou apenas alguns de seus pertences.
  5. Que você tivesse o privilégio de envelhecer em meio às circunstâncias limitadas de sua origem, e que sua fortuna não o tivesse elevado a tais alturas! Você foi afastado da oportunidade da vida saudável por sua rápida ascensão à prosperidade, pela sua província, pelo seu cargo de procurador[1] e por tudo o que tais coisas prometem; Em seguida, você vai adquirir responsabilidades mais importantes e depois delas ainda mais. E qual será o resultado?
  6. Por que esperar até que não haja nada para você desejar? Esse tempo nunca chegará. Nós sustentamos que há uma sucessão de causas, das quais o destino é tecido; Da mesma forma, você pode ter certeza, há uma sucessão em nossos desejos; pois um começa onde seu antecessor termina. Você foi empurrado para uma existência que nunca por si só porá fim na sua miséria e sua escravidão. Retire seu pescoço cansado da canga; é melhor tê-lo cortado uma vez por todas, do que escoriado eternamente.
  7. Se você se manter em privacidade, tudo estará em menor escala, mas você ficará abundantemente satisfeito; na sua condição atual, no entanto, não há satisfação na abundância que é jogada em cima de você por todos os lados. Você prefere ser pobre e saciado, ou rico e faminto? A prosperidade não é apenas gananciosa, mas também é exposta à ganância dos outros. E desde que nada o satisfaça, você mesmo não pode satisfazer os outros.
  8. “Mas”, você diz, “como posso me retirar?” De qualquer maneira que lhe agrade. Reflita quantos riscos você correu por causa do dinheiro, e quanto trabalho você empreendeu para um título! Você deve ousar algo para ganhar tempo livre também – ou então envelhecerá em meio às preocupações de atribuições no exterior e, posteriormente, a deveres cívicos em seu país, vivendo em agitação e em inundações de novas responsabilidades, que ninguém jamais conseguiu evitar por discrição ou por reclusão. Qual a influência no caso tem seu desejo pessoal de uma vida isolada? Sua posição no mundo deseja o oposto! E se, ainda agora, você permitir que essa posição cresça mais? Tudo o que for adicionado aos seus sucessos será adicionado aos seus medos.
  9. Neste ponto, gostaria de citar uma frase de Mecenas, que falou a verdade quando em seu auge: “Há trovões mesmo nos picos mais altos”. Se você me perguntar em que livro essas palavras são encontradas, elas ocorrem no volume intitulado Prometeu. Ele simplesmente queria dizer que esses altos picos têm seus cumes rodeados de trovoadas. Mas será que qualquer poder vale tão alto preço que um homem como você jamais conseguiria, para obtê-lo, adotar um estilo tão pervertido? Mecenas era de fato um homem de recursos, que teria deixado um grande exemplo para o oratório romano seguir, se sua boa fortuna não o tivesse tornado afeminado, – não, se não o tivesse emasculado! Um fim como o dele também o espera, a não ser que você baixe imediatamente as velas e – deferentemente de Mecenas, esteja disposto a abraçar a praia!
  10. Este texto de Mecenas pôde ter quitado minha divida com você; mas tenho certeza, conhecendo-lhe, de que obterá uma penhora contra mim, e que não estará disposto a aceitar o pagamento da minha dívida em moeda tão grosseira e vil. Seja como for, devo recorrer ao relato de Epicuro. Ele diz: “Você deve refletir cuidadosamente com quem você deve comer e beber, ao invés do que você deve comer e beber, pois um jantar de carnes sem a companhia de um amigo é como a vida de um leão ou um lobo.
  11. Este privilégio não será seu a menos que você se afaste do mundo; caso contrário, você terá como convidados apenas aqueles que seu secretário selecionar na multidão de peticionários. No entanto, é um erro escolher o seu amigo no salão de recepção ou testá-lo na mesa de jantar. O infortúnio mais grave para um homem ocupado que é dominado por suas posses é quando ele acredita que os homens são seus amigos mesmo que ele próprio não seja um amigo para estes e que ele considere seus favores eficazes na conquista de amigos, certos homens, quanto mais devem, mais odeiam. Uma dívida insignificante torna um homem seu devedor; uma grande faz dele um inimigo.
  12. “O quê”, você diz, “Bondades não estabelecem amizades?” Elas as estabelecem, se tiverem o privilégio de escolher aqueles que devam recebê-las, e se forem colocadas judiciosamente, em vez de serem espalhadas ao acaso. Portanto, enquanto você está começando a criar uma mente própria, aplique esta máxima do sábio: considere que é mais importante quem recebe uma coisa, do que aquilo que ele recebe.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] O procurador fazia o trabalho de um questor em uma província imperial. Posições em Roma a que Lucílio poderia ter sucesso seriam as de praefectus annonae, encarregado do fornecimento de grãos, ou praefectus urbi, Diretor de Segurança Pública e outros.

Carta 12: Sobre a Velhice

Na 12ª carta a Lucílio Sêneca trata de uma questão que um número crescente de pessoas de hoje têm que lidar: a velhice.

Ele começa recordando uma visita recente a uma de suas casas de campo, durante as quais ele reclamou a um de seus funcionários que estava gastando muito dinheiro na manutenção. Mas seu zelador protestou que a casa estava envelhecendo, e os reparos eram, portanto, totalmente justificados. Então Seneca escreve: “E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando? “(XII.1)

Qual deve ser a atitude da pessoa sábia em relação à velhice? Sêneca coloca muito vividamente a Lucílio:

“Vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer: ‘Eu tenho vivido; O curso que a fortuna estabeleceu para mim está terminado’ E se Deus se agrada de acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Quando um homem diz: ‘Eu tenho vivido!’, toda manhã que acorda, recebe um bônus.“(XII.9)

Como ele frequentemente faz nas cartas, Sêneca termina com um “presente”, uma citação significativa de outro autor, que neste caso é: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação.” (XII.10), outra referência ao suicídio a ser escolhido sob certas circunstâncias.

O ditado acima é de ninguém menos que Epicuro, o principal rival da escola estóica. Sêneca, então, imagina Lucílio protestando: “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem?” Qualquer verdade, eu sustento, é minha própria propriedade. (XII.11)

Mais uma vez, uma bela frase e um exemplo de verdadeira sabedoria: não importa de onde a verdade venha, uma vez descoberta, é nossa propriedade coletiva.

——

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Onde quer que eu vire, vejo evidências de meus avançados anos. Visitei recentemente a minha casa de campo e reclamei do dinheiro gasto na manutenção do prédio. Meu caseiro sustentou que as falhas não eram devidas a seu próprio descuido; “Ele estava fazendo todo o possível, mas a casa era velha.” E esta foi a casa que construí por minha própria labuta! O que me reserva o futuro, se as pedras de minha idade já estão se desintegrando?
  2. Eu estava com raiva, e usei a primeira oportunidade de exalar meu mal humor na presença do caseiro. – Está claro – exclamei eu – que esses plátanos estão negligenciados, não têm folhas, seus ramos são tão retorcidos e enrugados, os caules estão ásperos e desalinhados! Isso não aconteceria se alguém afofasse a terra sob seus pés e os regasse.” O caseiro jurou por todos os santos protetores que “ele estava fazendo todo o possível, e nunca relaxou seus esforços, mas aquelas árvores eram velhas”. Só entre nós, eu havia plantado essas árvores, eu as tinha visto em sua primeira florada.
  3. Então, virei-me para a porta e perguntei: “Quem é aquele quebrantado?” Vocês fizeram bem em colocá-lo na entrada, porque ele já está de saída[1], onde você o pegou?” Mas o escravo disse: “Você não me reconhece, senhor? Sou Felício, você costumava me trazer pequenas imagens[2], meu pai era o Filósito, o zelador, e eu sou seu escravo querido”. “O homem está louco”, comentei. “Meu escravo de predileto tornou-se um menininho de novo? Mas é bem possível, seus dentes estão caindo[3].”
  4. Estou obrigado admitir que minha velhice se tornou aparente. Apreciemos e amemos a velhice; pois é cheia de prazer se alguém sabe como usá-la. As frutas são mais bem-vindas quando quase acabadas; A juventude é a mais encantadora em seu fim; O último drinque deleita o ébrio, é o copo que o sacia e dá o toque final em sua embriaguez.
  5. Cada prazer reserva ao fim as maiores delícias que contém. A vida é mais deliciosa quando está em declive, mas ainda não atingiu o fim abrupto. E eu mesmo acredito que o período que se encontra, por assim dizer, à beira do telhado, possui prazeres próprios. Ou então o próprio fato de não desejarmos prazeres ter tomado o lugar dos próprios prazeres. Como é reconfortante ter cansado o apetite, e ter acabado com ele!
  6. “Mas,” você diz, “é um incômodo estar olhando a morte no rosto!” A Morte, no entanto, deve ser olhada no rosto por jovens e velhos. Nós não somos convocados de acordo com nossa classificação alfabética na lista do censor[4]. Além disso, ninguém é tão velho que seria impróprio para ele esperar mais um outro dia de existência. E um dia, lembre-se, é uma etapa na jornada da vida. Nosso escopo de vida é dividido em partes; consiste em grandes círculos que encerram menores. Um círculo abraça e limita o resto; atinge desde o nascimento até o último dia da existência. O próximo círculo limita o período de nossa juventude. O terceiro limita toda a infância em sua circunferência. Outra vez, há, em uma classe em si, o ano; contém dentro de si todas as divisões de tempo pela adição da qual obtemos o total da vida. O mês é limitado por um anel mais estreito. O menor círculo de todos é o dia; mas mesmo um dia tem seu começo e seu término, seu nascer e seu pôr-do-sol.
  7. Por isso Heráclito[5], cujo estilo obscuro lhe deu seu sobrenome, observou: “Um dia é igual a todos os dias”. Diferentes pessoas têm interpretado o ditado de maneiras diferentes. Alguns afirmam que os dias são iguais em número de horas, e isso é verdade; pois se por “dia” queremos dizer vinte e quatro horas de tempo, todos os dias devem ser iguais, na medida em que a noite adquire o que o dia perde. Mas outros sustentam que um dia é igual a todos os dias por meio da semelhança, porque o espaço de tempo mais longo não possui nenhum elemento que não possa ser encontrado em um único dia, a saber, a luz e a escuridão, e até a eternidade faz esses revezamentos mais numerosos, não diferentes quando é mais curto e diferente novamente quando é mais longo.
  8. Portanto, todos os dias deveriam ser regulados como se fechassem a série, como se estivessem completando nossa existência. Pacúvio, que por muito tempo ocupava a Síria, costumava realizar um ritual de sepultamento em sua própria honra, com vinho e banquetes fúnebres, e depois ser levado da sala de jantar para seu sarcófago, enquanto os eunucos aplaudiam e cantavam em grego: “Ele viveu sua vida, ele viveu sua vida!”
  9. Assim Pacúvio vinha enterrando-se todos os dias. Vamos, no entanto, fazer por um bom motivo o que ele costumava fazer por um motivo vil; vamos dormir com júbilo e alegria; deixe-nos dizer: “Eu tenho vivido; O curso que a fortuna estabeleceu para mim está terminado” E se Deus se agrada de acrescentar outro dia, devemos acolhê-lo com alegria. Esse homem é o mais feliz, e está seguro em sua própria posse de si mesmo, que pode esperar o amanhã sem receio. Quando um homem diz: “Eu tenho vivido!”, toda manhã que acorda, recebe um bônus.
  10. Mas agora eu devo concluir a minha carta. “O que?” Você diz; “Virá a mim sem qualquer contribuição?” Não tenha medo; trago algo, – e melhor, mais do que algo, muito. Pois o que há de mais nobre do que o seguinte provérbio de que eu faço desta carta portadora: “É errado viver sob coação, mas ninguém é coagido a viver sob coação.” Claro que não. Em todos os lados encontram-se muitos caminhos curtos e simples para a liberdade; e agradeçamos a Deus que nenhum homem possa ser mantido na vida. Podemos desprezar os próprios constrangimentos que nos prendem.
  11. “Epicuro”, você responde, “disse estas palavras, o que você está fazendo com a propriedade de outrem?” Qualquer verdade, eu sustento, é minha própria propriedade. E continuarei a amontoar citações de Epicuro sobre você, para que todas as pessoas que juram pelas palavras de outrem e que valorizam o orador e não o que é dito, compreendam que as melhores ideias são domínio público.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

(imagem Heráclito por Johannes Moreelse)

[1] Uma alusão irônica ao funeral romano; Os pés do cadáver apontando para a porta.

[2] Pequenas figuras, geralmente de terracota, eram frequentemente dadas às crianças como presente durante o festival da Saturnalia.

[3] O antigo escravo se assemelha a uma criança na medida em que está perdendo os dentes (mas pela segunda vez).

[4]seniores” em contraste com “iuniores

[5] Heráclito de Éfeso (Éfeso, ca 535 a.C. – 475 a.C.) foi um filósofo pré-socrático considerado o ” Pai da dialética “. Recebeu a alcunha de “Obscuro” principalmente em razão da obra a ele atribuída por Diógenes Laércio, Sobre a Natureza, em estilo obscuro, próximo ao das sentenças oraculares.

Carta 11: Sobre o rubor da modéstia

A 11ª carta a Lucílio trata de dois princípios estoicos cruciais.

Sêneca começa com o tópico improvável de corar, algo que simplesmente não podemos evitar, não importa o quão bravamente tentamos. Ele diz a seu amigo que “nenhuma sabedoria consegue remover as fragilidades naturais do corpo. O que é intrínseco e inato pode ser atenuado pelo treinamento, mas não totalmente superado”. (XI.1)

Esta é uma visão notável e um reconhecimento imediato dos limites da filosofia: a própria sabedoria, o principal bem de acordo com os estoicos, não pode superar nossas predisposições naturais e reações inatas. Se experimentarmos um constrangimento, coramos, se sentirmos medo ou raiva, não podemos evitar a precipitação da adrenalina. Tudo isso está fora do nosso controle e, portanto, Epicteto mais tarde diria, “não é nosso encargo“.

Isso estabelecido, Sêneca continua com o que ele pensa ser bom conselho:  cultivar a sabedoria apesar das suas limitações. Mas, como cultivamos sabedoria exatamente? Pode ser ensinada?  A resposta de Seneca é o estoicismo por excelência:

“Estime um homem de grande caráter, e mantenha-o sempre diante de seus olhos, vivendo como se ele estivesse observando você, e arranjando todas as suas ações como se ele as tivesse visto” (XI.8)… “Escolha, portanto, um Catão; ou, se Catão lhe parece um modelo muito severo, escolha um Lélio, um espírito mais suave… Pois precisamos ter alguém segundo o qual podemos ajustar nossas características; você nunca pode endireitar o que é torto a menos que você use uma régua.” (XI.10)

A escolha do seu exemplo pessoal depende de você, mas escolha bem, continue praticando ao imaginar que ele ou ela sempre olha sobre seus ombros, e seu bastão torto será gradualmente endireitado com a ajuda da régua reta.

Imagem: Morte de Catão por Pierre Bouillon. Catão era o melhor exemplo de conduta estoica para Sêneca.

Livros citados:

   

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Carta 9. Sobre Filosofia e Amizade

Na nona carta Sêneca discorre sobre a Amizade e sua relação com a filosofia.

Em toda a carta o termo  “sábio” é repetido inúmeras vezes. É importante entender que o conceito “sábio” para os filósofos antigos é um ideal a ser atingido, e não alguém real. Segundo Sêneca o sábio se equivale aos deuses, com a única distinção do sábio ser humano e mortal. É um humano perfeito no auge das qualidades.

Sêneca aconselha “Para que você possa ser amado, ame.” e  nos alerta sobre o risco das amizades por interesse:  Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará por interesse. Um homem será atraído por alguma recompensa oferecida em troca de sua amizade se ele for atraído por algo na amizade além da amizade em si.

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Carta 9. Sobre Filosofia e Amizade

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você deseja saber se Epicuro está certo quando, em uma de suas cartas, repreende aqueles que sustentam que o sábio é autossuficiente e por isso não precisa de amizades.[1] Esta é a objeção levantada por Epicuro contra Estilpo e aqueles que acreditam que o bem supremo é uma alma insensível e impassível.
  2. Estamos limitados a encontrar um duplo significado se tentarmos expressar resumidamente o termo grego apatheia (ἀπάθεια) em uma única palavra, tomando-o pela palavra latina impatientia (impaciência). Porque pode ser entendida no sentido oposto ao que desejamos que ela tenha. O que queremos dizer é uma alma que rejeita qualquer sensação de maldade, mas as pessoas interpretarão a ideia como a de uma alma que não pode suportar nenhum mal.[2] Considere, portanto, se não é melhor dizer “uma alma invulnerável, que não pode ser ofendida” ou “uma alma inteiramente além do reino do sofrimento”.
  3. Há essa diferença entre nós e a outra escola:[3] nosso sábio ideal sente seus problemas, mas os supera; o homem sábio deles nem sequer os sente. Mas nós e eles temos essa ideia, que o sábio é autossuficiente. No entanto, ele deseja amigos, vizinhos e associados, não importa o quanto ele seja suficiente em si mesmo.
  4. E perceba quão autossuficiente ele é; pois de vez em quando ele pode se contentar com apenas uma parte de si. Se ele perde uma mão por doença ou guerra, ou se algum acidente fere um ou ambos os olhos, ele ficará satisfeito com o que resta, tendo tanto prazer em seu corpo debilitado e mutilado como ele tinha quando era sadio. Mas enquanto ele não se queixa por esses membros ausentes, ele prefere não os perder.
  5. Nesse sentido o homem sábio é autossuficiente, pode prescindir de amigos, mas não deseja ficar sem eles. Quando eu digo “pode”, quero dizer isto: ele sofre a perda de um amigo com serenidade. Mas a ele nunca faltam amigos, pois está em seu próprio controle quão breve ele vai repor a perda. Assim como Fídias,[4] se ele perdesse uma estátua, imediatamente esculpiria outra, da mesma forma nossa habilidade na arte de fazer amizades pode preencher o lugar de um amigo perdido.
  6. Se você perguntar como alguém pode fazer um amigo rapidamente, vou dizer-lhe, desde que concordemos que eu possa pagar a minha dívida de uma vez e zerar a conta e, no que se refere a esta carta, estaremos quites. Hecato, diz: “Eu posso mostrar-lhe uma poção, composta sem drogas, ervas ou qualquer feitiço de bruxa: Para que você possa ser amado, ame!”. Agora, há um grande prazer, não só em manter amizades velhas e estabelecidas, mas também na aquisição de novas.
  7. Existe a mesma relação entre conquistar um novo amigo e já ter conquistado, como há entre o fazendeiro que semeia e o fazendeiro que colhe. O filósofo Átalo costumava dizer: “É mais agradável fazer um amigo do que mantê-lo, pois é mais agradável ao artista pintar do que ter acabado de pintar”. Quando alguém está ocupado e absorvido em seu trabalho, a própria absorção dá grande prazer; mas quando alguém retira a mão da obra-prima concluída, o prazer não é tão penetrante. Daí em diante, é dos frutos de sua arte que ele desfruta; era a própria arte que ele apreciava enquanto pintava. No caso de nossos filhos, na juventude produzem os frutos mais abundantes, mas na infância, eram mais doces e agradáveis.
  8. Voltemos agora à questão. O homem sábio, eu digo, se basta como é, no entanto, deseja amigos apenas para o propósito de praticar a amizade, a fim de que suas qualidades nobres não permaneçam dormentes. Não, todavia, para o propósito mencionado por Epicuro na carta citada acima: “Que haja alguém para sentar-se com ele enquanto doente, para ajudá-lo quando ele está na prisão ou em necessidade”, mas sim para que ele possa ter alguém em cujo leito hospitalar ele próprio possa sentar, alguém prisioneiro em mãos hostis que ele mesmo possa libertar. Aquele que só pensa em si e estabelece amizades por razão egoísta, não pensa corretamente. O fim será como o início: se ele faz amizade com alguém que poderia libertá-lo da escravidão, ao primeiro barulho da corrente, tal amigo o abandonará.
  9. Estas são as chamadas “amizades de céu de brigadeiro”[5]; aquele que é escolhido por causa da sua utilidade será satisfatório apenas enquanto for útil. Por isso os homens prósperos são protegidos por tropas de amigos, mas aqueles que faliram ficam em meio à vasta solidão, seus “amigos” fugindo da própria crise que está a testar seus valores. Por isso, também, vemos muitos casos vergonhosos de pessoas que, por medo, desertam ou traem. O começo e o fim não podem senão harmonizar. Aquele que começa a ser seu amigo por interesse também cessará a amizade por interesse. Um homem será atraído por alguma recompensa oferecida em troca de sua amizade se ele for atraído por algo na amizade além da amizade em si.
  10. Para que propósito, então, eu faço um homem meu amigo? A fim de ter alguém para quem eu possa dar minha vida, que eu possa seguir para o exílio, alguém por quem eu possa apostar minha própria vida e pagar a promessa depois. A amizade que você retrata é uma negociata e não uma amizade. Ela considera apenas a conveniência e olha apenas para os resultados.
  11. Sem dúvida, o sentimento de um amante tem algo semelhante à amizade, pode-se chamá-lo de amizade enlouquecida. Mas, embora isso seja verdade, alguém ama por vislumbrar lucro ou promoção ou renome? O amor puro, livre de todas as outras coisas, excita a alma com o desejo pelo objeto da beleza, não sem a esperança de uma correspondência ao afeto. E então? Pode uma causa que é mais elevada produzir uma paixão que é moralmente condenável?
  12. Você pode replicar: “Estamos agora discutindo a questão de saber se a amizade deve ser cultivada por sua própria causa”. Pelo contrário, nada mais urgente exige demonstração, pois se a amizade deve ser procurada por si mesma, pode buscá-la quem seja autossuficiente. “Como, então,” você pergunta, “ele a procura?” Precisamente como ele procura um objeto de grande beleza, não atraído a ele pelo desejo de lucro, nem mesmo assustado pela instabilidade da fortuna. Aquele que procura a amizade com objetivo interesseiro, despoja-a de toda a sua nobreza.
  13. O homem sábio se basta”. Essa frase, meu caro Lucílio, é incorretamente explicada por muitos porque eles retiram o homem sábio do mundo e forçam-no a habitar dentro de sua própria pele. Mas devemos marcar com cuidado o que significa essa sentença e até onde ela se aplica. O homem sábio se basta para uma existência feliz, mas não para a mera existência. Pois ele precisa de muita assistência para a mera existência, mas para uma existência feliz ele precisa apenas de uma alma sã e reta, que menospreze a fortuna.
  14. Quero também dizer a você uma das distinções de Crisipo, que declara que o sábio não deseja nada, ao mesmo tempo que precisa de muitas coisas.[6]Por outro lado”, diz ele, “nada é necessário para o tolo, pois ele não entende como usar nenhuma coisa, mas ele deseja tudo.”[7] O homem sábio precisa de mãos, olhos e muitas coisas que são necessárias para seu uso diário; mas a ele nada falta. Porque o desejo implicaria uma necessidade não atendida e nada é necessário ao homem sábio.
  15. Portanto, embora ele seja autossuficiente, ainda precisa de amigos. Ele anseia tantos amigos quanto possível, não, no entanto, para que ele possa viver feliz, pois ele viverá feliz mesmo sem amigos. O bem supremo não requer nenhum auxílio prático de fora. Ele é desenvolvido em casa e surge inteiramente dentro de si. Se o bem procura qualquer porção de si mesmo no exterior, começa a estar sujeito ao jogo da fortuna.
  16. As pessoas podem dizer: “Mas que tipo de existência o sábio terá, se ele for deixado sem amigos quando jogado na prisão, ou quando encalhado em alguma nação estrangeira, ou quando retido em uma longa viagem, ou quando em lugar ermo?” Sua vida será como a de Júpiter que, em meio à dissolução do mundo, quando os deuses se confundem na unidade e a natureza descansa por um pouco, pode se retirar em si mesmo e entregar-se a seus próprios pensamentos.[8] Da mesma maneira o sábio agirá: ele se retirará em si mesmo e viverá consigo mesmo.
  17. Enquanto for capaz de administrar seus negócios de acordo com seu julgamento, será autossuficiente; enquanto se casa com uma esposa, é autossuficiente; enquanto educa os filhos, é autossuficiente; e ainda assim não poderia viver se tivesse que viver sem a sociedade dos homens. Conclamações naturais e não suas próprias necessidades egoístas, o atraem às amizades. Pois, assim como outras coisas têm para nós uma atratividade inerente, também tem a amizade. Como odiamos a solidão e ansiamos por sociedade, à medida que a natureza atrai os homens uns para os outros, existe também uma atração que nos faz desejosos de amizade.
  18. Não obstante, embora o sábio possa amar seus amigos com carinho, muitas vezes contrapondo-os com ele mesmo e colocando-os à frente de si próprio, todo o amor será limitado a seu próprio ser e ele falará as palavras que foram faladas pelo próprio Estilpo, a quem Epicuro critica em sua carta. Pois Estilpo, depois que seu país foi capturado e seus filhos e sua esposa mortos, ao sair da desolação geral só e mesmo assim feliz, falou da seguinte maneira para Demétrio,[9] conhecido como “Cidade Sitiada” por causa da destruição que ele trouxe sobre elas, em resposta a pergunta se ele tinha perdido alguma coisa: “Eu tenho todos os meus bens comigo!
  19. Isto é ser um bravo e corajoso homem! O inimigo conquistou, mas Estilpo conquistou seu conquistador. “Não perdi nada!” Sim, ele forçou Demétrio a se perguntar se ele mesmo havia conquistado algo, afinal. “Meus bens estão todos comigo!” Em outras palavras, ele não considerou nada que pudesse ser tirado dele como sendo um bem. Ficamos maravilhados com certos animais porque eles podem passar pelo fogo e não sofrer danos corporais, mas quão mais maravilhoso é um homem que marchou ileso e incólume através do fogo, da espada e da devastação! Você entende agora o quão mais fácil é conquistar uma tribo inteira do que conquistar um homem? Este dito de Estilpo é comum com o estoicismo; o estoico também pode carregar de forma ilesa seus bens através de cidades devastadas pois ele é autossuficiente. Basta-se a si mesmo: tais são os limites que ele estabelece para sua própria felicidade.
  20. Mas você não deve pensar que nossa escola sozinha pode proferir palavras nobres. O próprio Epicuro, o crítico de Estilpo, usava semelhante linguagem. Coloco ao meu crédito, embora eu já tenha quitado minha dívida para o dia de hoje. Ele diz: “Quem não considera o que tem como riqueza mais ampla, é infeliz, embora seja o senhor do mundo inteiro”. Ou, se a seguinte lhe parece uma frase mais adequada, porque devemos traduzir o significado e não as meras palavras: “Um homem pode governar o mundo e ainda ser infeliz se ele não se sente supremamente feliz”.
  21. Contudo, para que você saiba que esses sentimentos são universais, propostos, certamente, pela natureza, você encontrará em um dos poetas cômicos esta estrofe:

Infeliz é aquele que  não se considera feliz.

Non est beatus, esse se qui non putat.[10]

O que importa a situação em que você se encontra, se ela é ruim a seus próprios olhos?

  1. Você poderia dizer; “Se, o homem rico, senhor de muitos, mas escravo de ganância por mais, chamar-se de feliz, sua própria opinião o tornará feliz?” Não importa o que ele diz, mas o que ele sente; não como se sente em um dia específico, mas como se sente em todos os momentos. Não há razão porém, para que você tema que este grande privilégio caia em mãos indignas; somente o sábio está satisfeito com o que tem. O insensato está sempre perturbado com o descontentamento consigo mesmo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] NT: Ver Epicuro, Cartas e Princípios.

[2] O termo grego ἀπάθεια (Apatheia) significa literalmente “ausência de sofrimento”, daí vem o termo apatia em português.

[3] NT: Isto é, escola cínica.

[4] Fídias foi um célebre escultor da Grécia Antiga. Sua biografia é cheia de lacunas e incertezas e o que se tem como certo é que ele foi o autor de duas das mais famosas estátuas da Antiguidade, a Atena Partenos e o Zeus Olímpico, e que sob a proteção de Péricles encarregou-se da supervisão de um vasto programa construtivo em Atenas, concentrado na reedificação da Acrópole, devastada pelos persas em 480 a.C.

[5] NT: em Latin, quas temporarias, tempo bom.

[6] A distinção baseia-se no significado de egeret “estar em falta de” algo indispensável, e opus esse, “ter necessidade de” algo do qual se pode prescindir.

[7] NT: Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, livro VII.

[8] NT: Alusão à teoria estoica da conflagração (ekpyrosis). Segundo esta teoria estoica, o mundo se renovaria de tempos em tempos, o mundo se resumiria ao fogo artífice (Logos = Zeus = Inteligência universal) e todos os demais deuses seriam tragados nesta unidade primordial. O processo cosmogônico daria origem a outro mundo que, para alguns estoicos, seria uma repetição de tudo o que vivemos. Daí que tudo aconteceria novamente, e todos renasceriam, mas (como disse Sêneca numa carta), sem qualquer lembrança de uma vida anterior. Então, se esta teoria fosse verdade, esta poderia ser nossa bilionésima vida, e pra nós não faria diferença, pois não teríamos consciência disso. Essa teoria reflete a concepção grega do eterno retorno. Ver George Stock, Estoicismo.

[9] NT: Demétrio I (337 a.C. — 283 a.C.), cognominado Poliórcetes, foi um rei da Macedônia. Seu apelido, “cidade sitiada” (Poliorketes), refere-se à sua habilidade militar em sitiar e conquistar cidades.

[10] Autor desconhecido, talvez uma adaptação do grego. Alguns eruditos atribuem o verso a Publílio Siro

Carta 8: Sobre o isolamento do filósofo

Em sua oitava carta Sêneca continua aconselhar evitar a multidão e as coisas que agradam à multidão, lembrando que  aquilo que a “fortuna” nos dá também pode nos retirar.

(“fortunae” para o autor latino, se assemelha à nossa “sorte” ou “destino”, mas era também uma divindade. Imagem: Fortuna Marina por Frans Francken, A deusa romana Fortuna distribui aleatoriamente seus favores)

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Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você sugere, “evite a multidão, e retire-se dos homens, e contente-se com a sua própria consciência?” Onde estão os conselhos da sua escola, que ordenam que um homem morra em meio ao trabalho produtivo?[1]” Quanto ao curso que eu lhe pareço incitar de vez em quando, meu objetivo em recolher-me e trancar a porta é ser capaz de ajudar um número maior. Nunca passo um dia em ociosidade; aproveito até uma parte da noite para estudar. Não me dou tempo para dormir, mas me rendo ao sono quando preciso, e quando meus olhos estão cansados e prontos para caírem fechado, eu os mantenho em sua tarefa.
  2. Tenho-me afastado não só dos homens, mas dos negócios, especialmente dos meus próprios negócios; estou trabalhando para gerações posteriores, escrevendo algumas ideias que podem ser de ajuda para eles. Há certos conselhos sadios, que podem ser comparados às prescrições de remédios; estes eu estou pondo por escrito; pois achei-os úteis para ministrar às minhas próprias feridas, que, se não estão totalmente curadas, ao menos deixaram de se espalhar.
  3. Aponto outros homens para o caminho certo, que eu encontrei tarde na vida, quando cansado de vagar. Eu clamo a eles: “Evite o que agrada à multidão: evite os dons do acaso, avalie todo o bem que o acaso lhe traz, em espírito de dúvida e de medo, pois são os animais que são enganados pela tentação. Você chama essas coisas de “presentes da fortuna”? São armadilhas. E qualquer homem dentre vocês que deseje viver uma vida de segurança evitará, ao máximo de seu poder, esses ramos favoráveis, por meio dos quais os mortais, muito lamentavelmente neste caso, são enganados; porque nós pensamos que nós os mantemos em nosso poder, mas eles é quem nos prendem.
  4. Tal curso nos leva a caminhos precipitados, e a vida em tais alturas termina em queda. Além disso, nem mesmo podemos nos levantar contra a prosperidade quando ela começa a nos conduzir a sota-vento; nem podemos descer, tampouco, “com o navio em seu curso”; a fortuna não nos afunda, ela estufa nossas velas e nos precipita sobre as rochas.
  5. “Apegue-se, pois, a esta regra sadia e saudável da vida – que você satisfaça seu corpo apenas na medida em que for necessário para a boa saúde. O corpo deve ser tratado mais rigorosamente, para que não seja desobediente à mente. Coma apenas para aliviar a sua fome, beba apenas para saciar a sua sede, vista-se apenas para manter fora o frio, abrigue-se apenas como uma proteção contra o desconforto pessoal. Pouco importa a casa ser construída de madeira ou de mármore importado, compreenda que um homem é abrigado tão bem por uma palha quanto por um telhado de ouro. Despreze tudo o que o trabalho inútil cria como um ornamento e um objeto de beleza. E reflita que nada além da alma é digno de admiração, pois para a alma, se ela for grandiosa, nada é grande. “
  6. Quando eu comungo em tais termos comigo e com as gerações futuras, você não acha que eu estou fazendo mais bem do que quando eu apareço como conselheiro na corte, ou carimbo meu selo sobre uma decisão, ou presto ajuda ao senado, por palavra ou ação, a um candidato? Acredite em mim, aqueles que parecem estar ocupados com nada estão ocupados com as maiores tarefas; eles estão lidando ao mesmo tempo com coisas mortais e coisas imortais.
  7. Mas devo parar, e prestar minha contribuição habitual, para equilibrar esta carta. O pagamento não será feito de minha própria propriedade; pois ainda estou copiando Epicuro. Hoje leio, em suas obras, a seguinte frase: “Se você quiser desfrutar da verdadeira liberdade, deve ser escravo da Filosofia”. O homem que se submete e entrega-se a ela não é mantido esperando; ele é emancipado no ato. Pois o próprio serviço da Filosofia é a liberdade.
  8. É provável que você me pergunte por que cito tantas palavras nobres de Epicuro em vez de palavras tiradas de nossa própria escola. Mas há alguma razão pela qual você deve considerá-las como ditos de Epicuro e não domínio público? Quantos poetas exalam ideias que foram proferidas ou poderiam ter sido proferidas por filósofos! Não preciso falar sobre as tragédias e os nossos escritores de drama; porque estes últimos são também um pouco sérios, e ficam a meio caminho entre comédia e tragédia. Que quantidade de versos sagrados estão enterrados na mímica! Quantas linhas de Públio são dignas de serem declamadas por atores célebres, assim como pelos pés descalços![2]
  9. Vou citar um versículo dele, que diz respeito à filosofia, e particularmente aquela fase da qual discutimos há pouco, onde ele diz que os dons do acaso não devem ser considerados como parte de nossas posses:
Ainda é alheio o que você ganhou devido a cobiça.Alienum est omne, quicquid optando evenit.[3]
  1. Recordo que você mesmo expressou essa ideia de maneira muito mais feliz e concisa: O que a Fortuna fez não é seu. E uma terceira, dita por você ainda, não deve ser omitida: O bem que pode ser dado, pode ser removido. Eu não vou colocar isso em sua conta de despesas, porque eu a dei a partir de seu próprio patrimônio.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Em contraste com a doutrina estoica geral de participar da política e atividades do mundo.

[2]excalceatis”, Comediantes ou mímicos

[3] Provérbios de Públio Siro.

Carta 7: Sobre multidões

A sétima carta de Seneca para o seu amigo Lucílio é sobre multidões, e por que um estoico (ou qualquer pessoa sã, realmente) deve evitá-la.

Como é frequente no caso do Seneca, a afirmação pode soar elitista, mas prefiro a leitura mais caridosa na qual ele está descrevendo a realidade das interações humanas: muitas pessoas são realmente gananciosas, ambiciosas, cruéis, e se alguém está tentando se treinar para evitar tais atitudes, então é melhor diminuindo a exposição, tanto quanto possível. Os leitores modernos também farão bem em lembrar o contexto cultural em que Sêneca estava vivendo e escrevendo:

“Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos; ao meio-dia, jogam-nos aos espectadores. … E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: ‘Um pouco gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!’ (VII.4-5)”

Seneca está particularmente preocupado com a exposição dos jovens às multidões: “O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão; é muito fácil tomar o partido da maioria. ”


Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você me pergunta o que você deve considerar evitar em especial? Eu digo, multidões; Porque ainda não pode confiar em si com segurança. Admito, de qualquer maneira, minha própria fraqueza; porque eu nunca trago de volta para casa o mesmo caráter que eu levei para fora comigo. Algo do que eu tenho forçado a ficar em paz dentro de mim é perturbado; alguns dos inimigos que eu havia eliminado voltam novamente. Assim como o homem doente, que tem estado fraco há muito tempo, está em tal condição que não pode ser tirado de casa sem sofrer uma recaída, então nós mesmos somos afetados quando nossas almas estão se recuperando de uma doença prolongada.
  2. Ligar-se à multidão é prejudicial; não há ninguém que não torne algum vício cativante para nós, nem o escancare sobre nós, nem nos manche inconscientemente com ele. Certamente, quanto maior a multidão com que nos misturamos, maior o perigo. Mas nada é tão prejudicial ao bom caráter como o hábito de frequentar os estádios; pois é lá que o vício penetra sutilmente por uma avenida de prazer.
  3. O que você acha que eu quero dizer? Quero dizer que volto para casa mais ganancioso, mais ambicioso, mais voluptuoso e ainda mais cruel e desumano, porque eu estive entre os seres humanos. Por acaso, eu assisti a uma apresentação matutina, esperando um pouco de diversão, sagacidade e relaxamento, uma exposição na qual os olhos dos homens têm descanso do massacre de seus semelhantes. Mas foi exatamente o contrário. Antigamente esses combates eram a essência da compaixão; mas agora todo o trivial é posto de lado e resta apenas puro assassinato. Os homens não têm armadura defensiva[1]. Eles estão expostos a golpes em todos os pontos, e ninguém nunca atira em vão.
  4. Muitas pessoas preferem este programa aos duelos habituais e combates “a pedido”. Claro que sim; não há capacete ou escudo para desviar o golpe. Qual é a necessidade de armadura defensiva, ou de habilidade? Tudo isso significa adiar a morte. Pela manhã lançam homens aos leões e aos ursos; ao meio-dia, jogam-nos aos espectadores. Os espectadores exigem que o assassino encare o homem que vai matá-lo por sua vez; e eles sempre reservam o último vitorioso para outro massacre. O resultado de cada luta é a morte, e os meios são fogo e espada. Esse tipo de coisa continua enquanto a arena está vazia.
  5. Você pode replicar: “Mas ele era um ladrão de estrada, ele matou um homem!” E dai? Admitido que, como assassino, merecia este castigo, que crime você cometeu, pobre colega, que você mereça sentar-se e ver este espetáculo? Pela manhã, eles clamaram: “Mate-o, açoite-o, queime-o, por que ele usa a espada de uma maneira tão covarde, por que ele bate tão debilmente, por que ele não morre no jogo, chicoteie-o para arder suas feridas! Deixe-o receber golpe por golpe, com peitos nus e expostos ao ataque!” E quando os jogos param para o intervalo, eles anunciam: “Um pouco gargantas sendo cortadas, para que possa haver algo acontecendo!” Convenhamos, você[2] não entende sequer esta verdade, que um mau exemplo retorna contra o agente? Agradeça aos deuses imortais que você está ensinando crueldade a uma pessoa que não pode aprender a ser cruel.
  6. O jovem caráter, que não consegue se manter íntegro, deve ser resgatado da multidão; é muito fácil tomar o partido da maioria. Mesmo Sócrates, Catão e Lélio poderiam ter sido abalados em sua força moral por uma multidão que era diferente deles; tão verdadeiro é que nenhum de nós, por mais que cultive suas habilidades, pode resistir ao choque de falhas que se acercam, por assim dizer, de tão grande séquito.
  7. Muito dano é feito por um único caso de indulgência ou ganância; o amigo da família, se ele é luxuoso, nos enfraquece e suaviza imperceptivelmente; o vizinho, se for rico, desperta nossa cobiça; o colega, se ele for calunioso, dissipa algo de seu bolor em cima de nós, mesmo que nós sejamos impecáveis e sinceros. Qual então você acha que será o efeito sobre o caráter, quando o mundo em geral o assalta! Você deve imitar ou abominar o mundo.
  8. Mas ambos os cursos devem ser evitados; você não deve copiar o mau simplesmente porque eles são muitos, nem você deve odiar os muitos, porque eles são diferentes de você. Concentre-se em si mesmo, tanto quanto puder. Associe-se com aqueles que irão lhe fazer um homem melhor. Dê boas-vindas àqueles que podem fazer você melhorar. O processo é mútuo; pois os homens aprendem enquanto ensinam.
  9. Não há razão para que o orgulho em divulgar suas habilidades deva atraí-lo para a notoriedade, de modo a faze-lo desejar recitar ou discursar frente ao público. É claro que deveria estar disposto a fazê-lo se você tivesse uma habilidade que se adeque a tal multidão; como são, não há um homem entre eles que possa lhe entender. Um ou dois indivíduos talvez aceitarão sua maneira, mas mesmo estes terão que ser moldados e treinados por você de modo a compreende-lo. Você pode dizer: “Com que propósito eu aprendi todas essas coisas?” Mas você não precisa recear ter desperdiçado seus esforços; foi por si mesmo que você aprendeu.
  10. No entanto, para que eu não tenha hoje aprendido exclusivamente para mim, compartilharei com vocês três excelentes ditados, do mesmo sentido geral, que me chamaram a atenção. Esta carta lhe dará um deles como pagamento da minha dívida; os outros dois você pode aceitar como um adiantamento. Demócrito[3] diz: “Um homem significa tanto para mim como uma multidão, e uma multidão apenas tanto como um homem.”
  11. O seguinte também foi nobremente falado por alguém ou outro, pois é duvidoso quem foi o autor; eles perguntaram-lhe qual era o objeto de todo este estudo aplicado a uma arte que alcançaria muito poucos. Ele respondeu: “Estou contente com poucos, contente com um, contente com nenhum”. O terceiro ditado – e também notável – é de Epicuro, escrito a um dos parceiros de seus estudos: “Eu escrevo isto não para muitos, mas para você, cada um de nós é o suficiente como público do outro.”
  12. Coloque estas palavras no coração, Lucílio, que você pode desprezar o prazer que vem dos aplausos da maioria. Muitos homens te louvam; mas você tem alguma razão para estar satisfeito consigo mesmo, se você é uma pessoa que muitos conseguem entender? Suas boas qualidades devem focar para dentro.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

(imagem: Pollice Verso (polegar para baixo) – por Jean-Léon Gérôme )

 

[1] Durante o intervalo do almoço, criminosos condenados são frequentemente levados para a arena e obrigados a lutar, para a diversão dos espectadores que permaneceram por toda a parte do dia.

[2] A observação é dirigida aos espectadores brutalizados.

[3] Demócrito de Abdera (ca. 460 a.C. — 370 a.C.) nasceu na cidade de Mileto, viajou pela Babilônia, Egito e Atenas, e se estabeleceu em Abdera no final do século V a.C.  Demócrito foi discípulo e depois sucessor de Leucipo de Mileto. A fama de Demócrito decorre do fato de ele ter sido o maior expoente da teoria atômica ou do atomismo. De acordo com essa teoria, tudo o que existe é composto por elementos indivisíveis chamados átomos.

Carta 6: Sobre Compartilhar Conhecimento

Sêneca diz que nada é agradável de se possuir sem amigos para compartilhar.  Pede que Lucílio continue estudando, não só através de livros, mas principalmente através de exemplos, e, principalmente, que compartilhe com os outros o que tem aprendido.

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Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Sinto, meu caro Lucílio, que não só estou sendo reformado, mas transformado. Entretanto, ainda não me asseguro, nem concedo a esperança de que não haja em mim elementos que precisem ser mudados. Claro que há muitos que devem ser feitos mais consistentes, ou mais afiados, ou ser conduzido a maior destaque. E, de fato, esse mesmo fato é prova de que meu espírito está transformado em algo melhor, – que ele pode ver suas próprias falhas, das quais antes era ignorante. Em certos casos, os doentes são parabenizados apenas porque eles perceberam que estão doentes.
  2. Desejo, portanto, comunicar-lhe esta repentina mudança em mim; eu deveria então começar a depositar uma confiança mais segura em nossa amizade, – a verdadeira amizade que a esperança, o medo e o interesse próprio não podem romper, a amizade em que e para a qual os homens encontram a morte.
  3. Eu posso mostrar-lhe muitos a quem têm faltado, não um amigo, mas uma amizade; isso, no entanto, não pode acontecer quando as almas são unidas por inclinações idênticas em uma aliança de desejos honestos. E por que não pode acontecer? Porque em tais casos os homens sabem que têm todas as coisas em comum, especialmente suas aflições. Você não pode conceber o nítido progresso que eu percebo que cada dia me traz.
  4. E quando diz: “Dá-me também uma parte destes dons que acha tão útil”, respondo que estou ansioso para empilhar todos estes privilégios sobre você, e que estou feliz em aprender para que eu possa ensinar. Nada me agradará, não importa o quão excelente ou benéfico, se eu dever manter tal conhecimento exclusivo para mim. E se a sabedoria me for dada, sob a condição expressa de que ela deva ser mantida escondida e não pronunciada, eu deveria recusá-la. Nenhuma coisa boa é agradável de possuir, sem amigos para compartilhá-la.
  5. Vou, portanto, enviar-lhe os livros reais; e para que não perca tempo procurando aqui e ali por tópicos proveitosos, vou marcar certas passagens, para que você possa voltar-se imediatamente para aquelas que eu aprovo e admiro. Naturalmente, porém, a voz viva e a intimidade de uma vida comum ajudarão você mais do que a palavra escrita. Você deve ir para o cenário da ação, primeiro, porque os homens colocam mais fé em seus olhos do que em seus ouvidos, e segundo, porque o caminho é longo se alguém segue normas, mas curto e útil, se seguir exemplos.
  6. Cleantes[1] não poderia ter sido a imagem expressa de Zenão, se ele tivesse apenas ouvido suas palestras; ele compartilhou em sua vida, viu em seus propósitos ocultos, e observou-o para ver se ele viveu de acordo com suas próprias regras. Platão, Aristóteles, e toda a multidão de sábios que estavam destinados a seguir cada um o seu caminho diferente, tiraram mais proveito do caráter do que das palavras de Sócrates. Não era a sala de aula de Epicuro, mas viver juntos sob o mesmo teto, que fez grandes homens de Metrodoro, Hermarco e Polieno. Portanto, eu lhe insisto, não apenas para que aufira benefícios, mas para que conceda benefícios; pois podemos auxiliar-nos mutuamente.
  7. Entrementes, estou em dívida da minha pequena contribuição diária; você será dito o que me agradou hoje nos escritos de Hecato; são estas palavras: “Que progresso, você pergunta, eu fiz? Eu comecei a ser um amigo de mim mesmo.” Isso foi realmente um grande auxílio; tal pessoa nunca pode estar sozinha. Você pode ter certeza de que esse homem é amigo de toda a humanidade.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1]Cleantes de Assos (ca. 330 a.C. — ca. 230 a.C.), foi um filósofo estoico, discípulo e continuador de Zenão de Cítio. Tendo iniciado o estudo da filosofia aos 50 anos de idade, depois de ter sido atleta e apesar de viver na pobreza, seguiu as lições de Zenão de Cítio e após a morte deste, cerca do ano 262 a.C., assumiu a liderança da escola, cargo que manteria por 32 anos, preservando e aprofundando as doutrinas do seu mestre e antecessor.

(imagem: Escola de Atenas – por Raphael )

Carta 5: Sobre a virtude do Filósofo

Sêneca explica o significado do lema “Viva de acordo com a Natureza” e recomenda um estilo de vida frugal e comedido , evitando avarice e luxos extremos. Fala sobre esperança e medo, apresentando uma relação surpreendente entre ambos.

Finalmente exorta a aproveitarmos o presente sem ansiedade pelo futuro ou atormentação pelo passado.

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Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Eu o elogio e me encho de contentamento pelo fato de você ser persistente em seus estudos, e que, colocando tudo de lado, você a cada dia se esforça para se tornar um homem melhor. Não me limito a exortá-lo a continuar; eu realmente imploro que você faça isso. Advirto-o, no entanto, para não agir de acordo com a moda daqueles que desejam ser notáveis em vez de melhorar, fazendo coisas que despertarão comentários sobre o seu vestido ou estilo geral de vida.
  2. Deve ser evitado trajes repulsivos, cabelos desgrenhados, barba desleixada, desprezo aberto ao uso de talheres e quaisquer outras formas pervertidas de auto exibição. O mero conceito de filosofia, ainda que silenciosamente perseguido, é objeto de suficiente desprezo; E o que aconteceria se começássemos a nos afastar dos costumes de nossos semelhantes? Internamente, devemos ser diferentes em todos os aspectos, mas nosso exterior deve estar em conformidade com a sociedade.
  3. Não se vista demasiadamente elegante, nem ainda demasiadamente desleixado. Não se precisa de peitoral de prata, incrustado e gravado em ouro maciço; mas não devemos acreditar que a falta de prata e ouro seja prova da vida simples. Procuremos manter um padrão de vida mais elevado do que o da multidão, mas não um padrão contrário; caso contrário, assustaremos e repeliremos as mesmas pessoas que estamos tentando melhorar. Temos que compreender que eles estão relutantes a nos imitar em qualquer coisa, porque eles têm medo de que eles sejam compelidos a imitar-nos em tudo.
  4. A primeira coisa que a filosofia se compromete a dar é o companheirismo entre todos os homens; em outras palavras, simpatia e sociabilidade. Nós nos diferenciamos se nós somos diferentes dos outros homens. Devemos velar para que os meios pelos quais desejamos atrair admiração não sejam absurdos e odiosos. Nosso lema, como você sabe, é “Viva de acordo com a Natureza[1]; mas é bastante contrário à natureza torturar o corpo, odiar a elegância espontânea, ser sujo de propósito, comer comida que não é somente simples, mas repugnante e desagradável.
  5. Assim como é um sinal de luxo procurar finas iguarias, é loucura evitar o que é habitual e pode ser comprado a preço razoável. Filosofia exige vida simples, mas não de penitência; e podemos perfeitamente ser simples e asseados ao mesmo tempo. Este é o meio de que eu sanciono; nossa vida deve se guiar entre os caminhos de um sábio e os caminhos do mundo em geral; todos os homens devem admirá-la, mas devem compreendê-la também.
  6. “Bem, então, agiremos como os outros homens? Não haverá distinção entre nós e o mundo?” Sim, muito grande; que os homens descubram que somos diferentes do rebanho comum, se olharem de perto. Se eles nos visitam em casa, eles devem nos admirar, ao invés de nossas mobílias. É um grande homem quem usa pratos de barro como se fossem de prata; mas é igualmente grande quem usa prataria como se de barro fosse. É o sinal de uma mente instável não poder tolerar riquezas.
  7. Mas desejo compartilhar com você o saldo positivo de hoje também. Encontro nos escritos de nosso Hecato[2] que a limitação dos desejos ajuda também a curar medos: “Deixe de ter esperança”, diz ele, “e deixará de temer”. Mas como, “você vai responder, “coisas tão diferentes podem ir lado a lado?” Deste modo, meu caro Lucílio: embora pareçam divergentes, contudo estão realmente unidas. Assim como a mesma cadeia prende o prisioneiro e o carcereiro que o guarda, assim a esperança e o medo, por mais dissimilares que sejam, caminham juntas; o medo segue a esperança.
  8. Não me surpreende que procedam dessa maneira; cada conceito pertence a uma mente que está incerta, uma mente que está preocupada aguardando com ansiedade o futuro. Mas a causa principal de ambos os males é que não nos adaptamos ao presente, mas enviamos nossos pensamentos a um futuro distante. E assim a previdência, a mais bela benção da raça humana, torna-se pervertida.
  9. Animais evitam os perigos que veem, e quando escapam estão livres de preocupação; mas nós homens nos atormentamos sobre o que há de vir, assim como sobre o que é passado. Muitas de nossas bênçãos trazem a nós desgraça; pois a memória recorda as torturas do medo, enquanto a antevisão as antecipa. O presente sozinho não faz nenhum homem infeliz.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Lema da escola estoica.

[2] Hecato de Rodes foi um filósofo estoico, discípulo de Panécio de Rodes.

(imagem: Entre Esperanaça e Medo – por Lawrence Alma-Tadema )

Carta 4: Sobre os Terrores da Morte

Esta carta ensina como desenvolver a calma mental e rejeitar o medo da morte. Sêneca começa comparando um homem que torna-se sábio com um rapaz que atinge a maioridade. Diz que é igualmente tolo desprezar a vida e temer a morte, e que a tranquilidade pode ser alcançada aprendendo que não há motivo para temer a morte, pois ela está sempre conosco.

Sêneca faz um alerta importante, muito relevante hoje em dia:  “Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.” Atualmente as pessoas querem estender a adolescência para sempre, homens de 30 ou até mesmo 40 anos exibem orgulhosamente sua infantilidade.

(Imagem: Still Life with a Skull and a Writing Quill por Pieter Claesz)


IV. Sobre os terrores da morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Mantenha-se como você começou e se apresse a fazer o que é possível, de modo que você possa ter o prazer de uma alma aperfeiçoada que esteja em paz consigo mesma. Sem dúvida, você vai auferir prazer durante o tempo em que você estiver melhorando a sua mente e estará em paz consigo mesmo, mas é bem superior o prazer que vem da contemplação quando a alma está tão limpa que brilha.

2. Você se lembra, é claro, que alegria você sentiu quando deixou de lado as vestes de infância e vestiu a toga viril[1] e foi escoltado ao fórum; no entanto, você pode ansiar a uma alegria maior quando você deixar de lado a mente da infância e quando a sabedoria lhe tiver inscrito entre os homens. Porque não é a infância que ainda permanece em nós, mas algo pior, a infantilidade e esta condição é tanto mais séria quando possuímos a autoridade da velhice em conjunto com a insensatez da infância, sim, até mesmo as tolices da infância. Os meninos temem coisas sem importância, as crianças temem sombras, nós tememos ambos.

3. Tudo que você precisa fazer é avançar. Compreenderá que algumas coisas são menos temíveis, precisamente porque elas nos estimulam com grande medo. Nenhum mal é tão grande, quanto o último mal de todos. A morte chega; seria uma coisa a temer, se pudesse ficar com você. Mas a morte não deve vir, ou então deve vir e passar.

4. “É difícil, entretanto,” você diz, “trazer a mente a um ponto onde pode menosprezar a vida.” Mas você não vê que razões insignificantes impelem os homens a desprezar a vida? Um homem enforca-se diante da porta de sua amante; outro se atira da casa para não mais ser obrigado a suportar as provocações de um mestre mal-humorado; um terceiro, para ser salvo da prisão, enfia uma espada em seus órgãos vitais. Você não acha que a virtude será tão eficaz quanto o medo excessivo? Nenhum homem pode ter uma vida pacífica quando pensa demais em alongá-la, quando acredita que viver por muitas atribuições é uma grande bênção ou quando considera entre os bens mais preciosos um grande número de anos.

5. Repasse este pensamento todos os dias, para que você possa sair da vida contente; pois muitos homens se apegam e agarraram-se à vida, assim como aqueles que são levados por uma correnteza e se apegam e agarram-se a pedras afiadas. A maioria dos homens anda a deriva e flui em miséria entre o medo da morte e as dificuldades da vida; eles não estão dispostos a viver e ainda não sabem como morrer.

6. Por esta razão, torne a vida como um todo agradável para si mesmo, banindo dela todas as preocupações. Nenhuma coisa boa torna seu possuidor feliz, a menos que sua mente esteja harmonizada com a possibilidade da perda; nada, contudo, se perde com menos desconforto do que aquilo que, quando perdido, não se dá falta. Portanto, encoraje e endureça seu espírito contra os percalços que afligem até os mais poderosos.

7. Por exemplo, o destino de Pompeu foi estabelecido por um menino e um eunuco, o de Crasso, por um Parto cruel e insolente. Gaio César[2] ordenou Lépido[3] a desnudar seu pescoço para o machado de Dexter; e ele mesmo ofereceu sua própria garganta a Cássio Quereia[4]. Nenhum homem jamais foi tão guiado pela Fortuna que ela não o ameaçou tão grandemente como ela o havia favorecido anteriormente. Não confie na aparência de calma, em um momento o mar se agita até suas profundezas. No mesmo dia em que os navios fizeram uma exibição valente nos jogos, eles foram engolidos.

8. Reflita que um bandido ou um inimigo pode cortar sua garganta e, embora não seja seu senhor, cada escravo exerce o poder da vida e da morte sobre você. Portanto, eu lhe declaro: é senhor de sua vida aquele que a despreza. Pense naqueles que morreram por meio de conspiração em sua própria casa, mortos abertamente ou por artimanha. Você perceberá que foram mortos por escravos raivosos tantos quantos por reis irados. O que importa, portanto, quão poderoso é quem você teme, quando cada pessoa possui o poder que inspira o seu medo?

9. “Mas,” você dirá, “se você acaso cair nas mãos do inimigo, o conquistador ordenará que você seja levado”, sim, para onde você já estava sendo conduzido. Por que você voluntariamente se engana e exige que lhe digam agora pela primeira vez qual é o destino que há muito tempo o aguarda? Acredite em mim: desde que você nasceu você está sendo conduzido para lá. Devemos refletir sobre esse pensamento, ou outros pensamentos similares, se desejamos ter calma enquanto aguardamos esta última hora, o medo dela faz todas as horas anteriores desconfortáveis.

10. Mas preciso terminar minha carta. Deixe-me compartilhar com você o provérbio que me agradou hoje. Ele também é selecionado do jardim de outro homem:[5] Pobreza colocada em conformidade com a lei da natureza, é grande riqueza.[6] Você sabe quais os limites que a lei da natureza ordena para nós? Apenas evitar a fome, a sede e o frio. A fim de banir a fome e a sede, não é necessário para você cortejar às portas dos ricos ou submeter-se ao olhar severo ou à bondade que humilha; nem é necessário para você percorrer os mares ou ir à guerra; as necessidades da natureza são facilmente fornecidas e estão sempre à mão.

11. São supérfluas as coisas pelas quais os homens labutam, as coisas supérfluas que desgastam nossas togas a farrapos, que nos obrigam a envelhecer no acampamento militar, que nos levam às costas estrangeiras. O que é suficiente está pronto e ao alcance das nossas mãos. Aquele que fez um justo pacto com a pobreza é rico.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1]  A toga pretexta, com uma faixa púrpura, era substituída pela toga viril, inteiramente branca, aos 16 anos, quando o jovem era apresentado à vida pública no fórum e ficava reconhecida a sua maioridade e sua capacidade de administrar todos os direitos plenos de um cidadão. Aqui, a substituição da toga pretexta pela toga viril é um símbolo de maturidade.

[2] Nome de Calígula.

[3] Marcus Aemilius Lepidus (6-39) casado com a irmã mais nova do futuro imperador Calígula, Julia Drusilla.

[4] Cássio Quereia: existem relatos que afirmam que o imperador Calígula constantemente o humilhava por suas maneiras supostamente afeminadas. Como vingança, juntamente com seu colega de tribuna Cornélio Sabino, ele conspirou contra o imperador e em janeiro de 41, fez suas vítimas; assassinando também a mulher de Calígula.

[5] O Jardim de Epicuro.

[6] Ver Epicuro, Cartas e Princípios. A mesma citação é repetida na carta 27, neste volume, e também na carta 119. Ver Cartas de um Estoico, Volume III.