No artigo “Eram os estoicos reformadores morais?” Aldo Dinucci explica que os estoicos entendem que o progresso através da filosofia deve ser buscado espontaneamente. Eles faziam sim propaganda de seus ensinamentos, mas os ensinavam apenas para aqueles que por sua própria vontade os buscavam.
“Portanto, um estoico não ficará por aí importunando quem quer que seja com sua filosofia, buscando convencimento e aceitação, mas cumprirá bem os papéis que lhe foram atribuídos. Se, por acaso, é político, proporá leis equitativas e justas e buscará implementar na medida do possível o bem comum, sem, entretanto, se iludir com utopias. Os estoicos sabem que um mundo perfeito requer humanos perfeitos, como a República de Zenão, na qual todos são igualmente sábios e livres. Mas sabem também que o mundo humano é o mundo das imperfeições e das paixões e que o sábio estoico perfeito é só um ideal.”
Aldo Dinucci
Artigo publicado originalmente em Estoicismo Artesanal em 06 de fevereiro de 2022.
Aldo resume os ensinamentos de forma brilhante e concisa:
1. A maioria dos mortais reclama da Natureza por ela supostamente nos ter dado uma vida breve. Entretanto, a vida humana só é breve se o tempo dado não for bem empregado.
2. Muitos clamam por ócio, mas não dão essa oportunidade a si próprios, pois vivem sobrecarregados em suas ocupações diárias. Sêneca oferece vários exemplos de homens célebres que ilustram esse fato, como César Augusto e Cícero.
3. Muitos dos que se dedicam ao ócio também tornam sua vida pior e mais curta por causa dele. Sêneca esclarece que ócio não é, como muitos pensavam e muitos mais pensam hoje, se dedicar aos prazeres excessivos, como embebedar-se em banquetes (uma preferência nacional romana, que corresponde de certa forma ao nossos churrascos) e consagrar sua vida ao sexo.
4. O ócio também não consiste em se consagrar a estudos estéreis, erudições vazias e pedantes. O verdadeiro ócio, consagrado ao estudo da filosofia, deve tornar melhor o humano e abrir-lhe as portas para o conhecimento das coisas do mundo e da Divindade que as governa.Sêneca, portanto, nos ensina a administrar e bem empregar nosso tempo. Ele nota que não temos ciência da importância de nosso tempo por ele, embora seja necessariamente limitado, nos parecer infinito, razão pela qual o desperdiçamos e deixamos que nos seja tomado por ocupações e preocupações inúteis e por pessoas que nada nos acrescentam.
Para os romanos, o mês de janeiro tinha um significado especial. Seu nome derivava da divindade de duas faces, Jano, o deus da mudança e dos começos.
Jano era visto como olhando simbolicamente para o velho e para o novo, sendo que esta concepção era vinculada ao conceito de transição de um ano para o próximo.
Os romanos celebravam o dia 1º de janeiro fazendo oferendas a Jano, na esperança de receber boa sorte no novo ano. Este dia era considerado como o prognóstico para os doze meses seguintes, e era comum que amigos e vizinhos trocassem felicitações e presentes, como figos e mel uns com os outros. Segundo o poeta Ovídio, a maioria dos romanos também adotavam trabalhar pelo menos durante parte do dia de ano novo, pois a ociosidade era vista como um mau presságio para o resto do ano.
E com este breve post, desejo a todos um Feliz e próspero Ano Novo.
“Enfermaria nº 6” é o conto mais famoso de Tchekhov. A história é ambientada em um hospital provincial e explora o conflito filosófico entre Ivan Dmitritch, um paciente, e Andrey Ragin, médico-chefe do hospital. Ivan denuncia a injustiça que vê em toda parte, enquanto o médico insiste em ignorar a injustiça e outros males; parcialmente como resultado desta forma de pensar, ele negligencia resolver as péssimas condições da ala psiquiátrica.
O conto pode ser visto como uma analogia ao comportamento humano, que, em vez de lidar com os problemas, opta por vê-los à distância e ignorá-los. É uma história de ideias sobre a vontade, ação e inação, e o lugar do indivíduo na sociedade. Gira em torno do principal dilema de Tchekhov – Será possível o progresso? Ou em milhares de anos apenas os aspectos superficiais da vida terão mudado, enquanto os instintos humanos básicos permanecerão os mesmos?
No conto, o paciente desafia o estoicismo do médico-chefe e abala os fundamentos de sua crença. O médico nunca sofreu, diz o paciente, e portanto suas convicções sobre os ciclos intermináveis e repetitivos da vida e da história só podem ser acadêmicas, teóricas e, portanto, sem sentido. O Dr. Ragin é eloquente em sua defesa do estoicismo:
“A vida é uma armadilha vexatória; quando um homem pensante atinge a maturidade e atinge a plena consciência, não pode deixar de sentir que está em uma armadilha da qual não há como escapar. De fato, ele é convocado sem sua escolha por circunstâncias fortuitas de não-existência para a vida… Para quê? Ele tenta descobrir o significado e o objeto de sua existência … Se se considera que o objetivo da medicina consiste em aliviar a dor, surge a pergunta: Para quê aliviá-la? Em primeiro lugar, dizem que a dor leva o homem à perfeição e, em segundo, que se a humanidade aprender, efetivamente, a aliviar as suas dores com a ajuda de pílulas e remédios, abandonará por completo a religião e a filosofia, em que até agora encontrara não apenas defesa contra todos os males mas também a felicidade.” (Enfermaria nº 6, VI)
Toda escolha, diz Ragin, é uma não escolha – sem sentido em um mundo definido pelo nascimento casual e pela morte inevitável. Um quarto aconchegante junto a um fogo é igual a uma cela de prisão, ele justifica, porque a aleatoriedade que produziu ambos não tem nenhum significado ou valor inerente. O mundo externo não tem nenhum propósito, nenhum futuro e nenhum significado; e a única expressão válida da humanidade é a aceitação incondicional desta realidade. Há apenas duas qualidades admiráveis do homem – a busca da compreensão e o desprezo pela vaidade. “O homem verdadeiramente sábio não se surpreende com nada“, diz Ragin.
Dr. Ragin: — Você é um homem que sabe pensar. Em qualquer situação pode encontrar tranquilidade interior. O pensamento livre e profundo, que aspira a compreender a vida, e o desprezo total pela estúpida vaidade humana são os dois bens supremos que o homem conhece, e você pode possuí-los ainda que viva atrás de grades. Diógenes viveu num barril, mas, apesar disso, foi mais feliz que todos os reis da Terra. Ivan Dmitritch: — Diógenes não precisava de um escritório e uma casa aquecida; a Grécia é um país quente; podia permanecer no seu tonel comendo laranjas e azeitonas. Mas se tivesse vivido na Rússia, já não digo em Dezembro, mas mesmo em Maio, teria pedido uma casa. Ficaria gelado. Dr. Ragin:— Não. Uma pessoa pode ser insensível ao frio como a qualquer outra dor. Marco Aurélio diz: “Uma dor é uma ideia vívida de dor; faça um esforço de vontade para mudar essa ideia, rejeitá-la, parar de reclamar e a dor desaparecerá”. Isso é verdade. O homem sábio, ou simplesmente o homem reflexivo e pensativo, distingue-se precisamente por seu desprezo pelo sofrimento; está sempre contente e surpreso por nada. (Enfermaria nº 6, IX)
O doente mental, a única pessoa inteligente em toda a cidade, mostra o cinismo e falhas do falso estoicismo do médico:
Ivan Dmitritch:— Os estoicos a que você se refere eram homens notáveis, mas a sua doutrina estagnou há dois mil anos e não avançou mais, nem avançará, porque não é praticado nem tem vida. Apenas obteve um certo êxito entre uma minoria que passa o seu tempo a estudar e a ruminar toda a espécie de doutrinas; a maior parte das pessoas não chegou a compreendê-la. Uma doutrina que preconiza a indiferença em relação às riquezas, às comodidades da vida, e o desdém pelos sofrimentos e a morte, é totalmente incompreensível para a imensa maioria, já que esta não conheceu nunca as riquezas nem as comodidades. E desprezar o sofrimento significaria para eles desprezar a própria vida, visto que o homem na sua essência é feito de sensações de fome, frio, desconsiderações, derrotas, e um medo perante a morte à semelhança de Hamlet. Nestas sensações está encerrada a vida inteira: pode cansar-nos, podemos odiá-la, mas não desprezá-la. Assim, portanto, repito: a doutrina dos estoicos nunca poderá ter futuro. Pelo contrário, aquilo que progride, conforme pode observar, desde o princípio do mundo até ao dia de hoje, é a luta, a sensibilidade perante a dor, a capacidade de responder às excitações… (Enfermaria nº 6, X)
Fazer vista grossa ao sofrimento com base em sua perpetuidade é de alguma forma errado ou mesmo imoral? Será que o sofrimento nega automaticamente a teoria filosófica? Se Ragin chora quando seu dedo é preso em uma porta, isso significa que ele tem instintivamente, e por isso corretamente, descartado o estoicismo?
O progressivo e inevitável declínio do Dr. Ragin é doloroso de se observar. Quando o próprio médico é lá internado, ele percebe a falácia de sua filosofia e, tarde demais, entende que o mal deve ser enfrentado. O livro, como a instituição em que é ambientado, é frio, insensível e hostil. Somente as idéias e o debate entre Dr. Ragin e Ivan Dmitrich têm vida.
“Nascemos sob um reinado e obedecer a Deus é liberdade“
Justo Lípsio ( 1547 – 1606 d.C), foi filólogo e humanista flamengo considerado um dos eruditos mais famosos do século XVI. Autor de uma série de obras que pretendiam recuperar a antiga corrente filosófica do estoicismo num formato compatível com o cristianismo tomando como modelo de partida a obra Sêneca. Viveu, toda sua vida, em meio a Guerra dos 80 anos (1568 a 1648). Na época os Países Baixos pertenciam ao Império Espanhol. Altos impostos, desemprego e a perseguição católica contra os calvinistas criaram uma perigosa oposição e revolta liberal. Nascido em família católica, troca de lado, aliando-se aos calvinistas, para depois retornar à fé católica.
Em Sobre a Constância Justo Lípsio aconselha a busca de um estado de espírito reto e inabalável, baseado em uma firmeza interior (constância), que emana, não de mera opinião, mas de julgamento e razão justos.
Lípsio se concentra no valor do estoicismo para fortalecimento da mente contra problemas e ansiedades externas. Em uma época de disputas e perseguições religiosas, Lípsio pretendia que o livro fosse tanto um consolo quanto uma solução para as calamidades que ele e seus contemporâneos estavam sofrendo. O resultado é um manual para a vida prática e, como tal, está mais focado em regras morais do que em argumentos filosóficos rigorosos. O tema central do livro é a necessidade de cultivar a resistência voluntária e inflexível para todas as circunstâncias humanas.
O livro é escrito na forma de um diálogo entre Lípsio e seu velho amigo Carlos Langhe, no texto lançado no papel de um sábio estoico que havia conseguido o domínio sobre suas emoções pela razão.
O jovem Lípsio começou seu estudo de Sêneca, bem como o de Tácito, durante a época que morou em Roma, em 1569. Foi seu professor Marc-Antoine Muret quem primeiro estimulou seu interesse em Sêneca e no estoicismo romano, dando origem a uma obsessão vitalícia que alternaria entre filologia e filosofia. O interesse filosófico de Lípsio pelo estoicismo romano levou à publicação de seu diálogo baseado em Sêneca de grande sucesso, estabelecido em meio às violentas lutas religiosas e políticas da Holanda, De constantia in publicis malis (“Sobre a Constância em Tempos de Calamidade Pública”). Esta foi sua primeira tentativa de combinar estoicismo e cristianismo a fim de criar uma nova filosofia que ajudaria os indivíduos a viver o difícil período de guerras civis e religiosas que estavam dilacerando o norte da Europa.
Um olhar mais atento ao primeiro trabalho neo-estoico de Lípsio revela que de constantia era o manifesto de um humanista que estava convencido de ter encontrado na filosofia de Sêneca tanto um consolo quanto uma solução para as calamidades públicas que ele e seus contemporâneos estavam suportando.
Do livro A Vida Feliz de Sêneca, Lípsio toma o lema: “Nascemos sob um reinado e obedecer a Deus é liberdade”( I.14). Depois de definir Deus, providência e destino, ele chega à necessidade (necessitas), a conclusão lógica de sua mútua cooperação: tudo que é governado pelo destino acontece por necessidade (I.19). O exemplo mais óbvio desta necessidade natural é a decadência e destruição de todas as coisas temporais (I.15-16).
Embora consolando seus leitores, Lípsio não nega a arrogância do poder, as atrocidades da história ou a crueldade de tiranos e imperadores. No entanto, ele tenta encorajar seus leitores a adotar uma atitude de constância, listando uma longa série de divinae clades (desastres aprovados por Deus): exemplos horríveis da história destinados a ilustrar a utilidade do castigo divino e a demonstrar que males como terremotos, pestilência, guerra e tirania fazem parte da condição humana – na verdade, do plano de Deus para a preservação e melhoria do mundo como um todo. Além disso, argumenta ele, os males do tempo presente não são particularmente graves nem piores do que os que existiam no passado: “Pois como o trabalho dividido entre muitos é fácil: do mesmo modo, também é com a tristeza” (II.26).
Espera-se, portanto, que o homem verdadeiramente sábio aceite a lei da necessidade com firmeza e fortaleza mental, ao mesmo tempo em que perceba que “o homem é uma sombra e um sonho” (I,17), ele deve mostrar desprezo pelo curso dos acontecimentos humanos cultivando constância: “a razão correta como sendo um verdadeiro sentido e julgamento das coisas humanas e divinas“ (I.4). A mãe desta constância é a paciência, que é governada pela razão. A razão – ao contrário das falsas opiniões – não é nada mais que um verdadeiro julgamento sobre as coisas humanas e divinas. É esta transformação interior – baseada nos princípios estoicos essenciais da razão, coragem, justiça e sujeição à vontade de Deus – que torna possível viver feliz em meio à inevitável decadência e agitação do mundo.
Assim, “envoltos pela névoa e pelas nuvens da opinião” (I.2), nunca devemos parar de tentar dominar, pela razão, nossas paixões e emoções (adfectus) – desejo, alegria, medo e dor (cupiditas, gaudium, metus e dolor) – e nossas falsas opiniões. As emoções não apenas perturbam o equilíbrio da alma e impedem a constância, elas são falsas e perigosas, pois podem perturbar o desapego necessário ao homem sábio. Consequentemente, é necessário “acirrar nossa mente e temperá-la de modo que possamos alcançar a paz em meio à agitação e a tranquilidade em meio ao conflito“ (I.1). Se a razão, a governante legítima de nossa mente, puder vencer nossas paixões e falsas opiniões, poderemos enfrentar o mal público e privado com verdadeira constância. Devido a três emoções, porém – engano, patriotismo, e piedade pelos infortúnios dos outros – todos nós carregamos a guerra dentro de nós mesmos. Pior ainda, o que nos parece ser uma virtude é na verdade um vício, pois pensar que sofremos por causa do sofrimento de nosso país nos faz sofrer por nós mesmos e por nossa propriedade, enquanto a pena pelo sofrimento dos outros é indigna em um homem sábio. Devemos, portanto, obedecer à prescrição estoica para extirpar todas essas emoções nocivas.
O diálogo entre Lípsio e seu velho amigo Langhe – lançado no papel de um sábio estoico que havia conseguido o domínio sobre suas emoções pela razão – tem claramente o objetivo de proporcionar aos leitores algo mais simples do que a filosofia contemporânea, que Lípsio criticava por sua sutileza excessiva, e de estabelecer a constância como principal virtude. O Sobre a Constância de Lípsio tem assim um foco diferente do tratado de Sêneca De constantia sapientis (“Sobre a Constância do Sábio“), no qual foi ostensivamente modelado; pois nos capítulos 1a 12 do Livro I Lípsio apresenta a virtude da constância como um remédio para o tumulto dos tempos e exorta os leitores a se distanciarem completamente de todos os sentimentos que poderiam levar a qualquer tipo de envolvimento emocional nas guerras políticas e religiosas que os rodeavam.
No entanto, ele não aconselhou o abandono dos assuntos públicos e a retirada para a vida privada. Estoicos e cristãos eram cosmopolitas, cuja verdadeira pátria era o céu. Eles deveriam ser bons cidadãos para serem bons homens, “executará mais em obras do que em palavras: e estenderá sua mão aos pobres e necessitados, em vez de sua língua.” (1.12) e, como tal, render-se ao plano de Deus para a humanidade e ao imutável poder da providência.
Lípsio reformula a apatheia estoica como um antídoto adequado às paixões religiosas e políticas de sua época e transforma a Fortuna estoica na providência divina cristã (ficando o destino subordinado a Deus em vez do contrário).
Embora o livro Sobre a Constância não fosse o tratamento mais sistemático ou teórico da ética estoica de Lípsio, mas sim um texto de filosofia prática, um manual para uma vida sábia, este adquiriu uma posição de destaque no pensamento europeu. Tendo mais de oitenta edições entre os séculos XVI e XVIII, sendo mais de quarenta no latim original e o restante em traduções para uma ampla gama de línguas europeias. O tratado, que incorpora elementos do calvinismo militante juntamente com argumentos sobre o livre arbítrio utilizado pelos jesuítas, tornou-se patrimônio cultural universal durante o período barroco, influenciando a erudição, a poesia e a arte até o Iluminismo.
Jean Tosetto, em parceria com a Suno Research, lançou esta semana o livro Estoicismo aplicado aos investimentos no qual defende que a ataraxia, estado mental emulado pelos estoicos, beneficia investidores cientes de que a prosperidade vai além do progresso material, lhes provendo maior controle sobre as emoções para lidar com os riscos inerentes da renda variável.
O livro, na verdade um longo artigo, é muito bem escrito e trata um assunto importante sem cair na falha, tão comum atualmente, de confundir o estoicismo como uma “auto ajuda para ficar rico rápido”. Aborda as razões para estudar as finanças e os estoicos, a relação entre o processo de investimento e as emoções e os benefícios do estoicismo para os investidores, sem nunca descuidar do principal ponto, que o dinheiro não é um fim em si mesmo, mas uma ferramenta que pode ser útil para o desenvolvimento pessoal e para se entregar algo de bom para a sociedade.
Trechos:
Numa sociedade que cada vez mais estabelece estereótipos para os indivíduos, ao invés de tentar compreender suas idiossincrasias, é comum retratarem estudantes de filosofia como avessos aos assuntos financeiros, ao passo que entusiastas dos investimentos são vistos como pessoas egocêntricas, sem interesse por assuntos fora da esfera monetária – o que é um erro conceitual.
Podemos não concordar com alguns aspectos desumanizantes do capitalismo, mas devemos tomar ações para nos proteger das consequências que atingem quem ignora as regras do dinheiro, do qual muitas pessoas são escravas e não donas provisórias. Como poucas coisas no mundo estão mais associadas às emoções do que o dinheiro, estudar filosofia estoica para adquirir autoconhecimento e para controlar minimamente as emoções, se mostra uma atitude bastante sensata.
Adotar um comportamento estoico visando apenas o enriquecimento monetário seria um autoengano emocionalmente custoso quando a essência do indivíduo se sobressaísse. Ao contrário, é a prática dos investimentos que pode servir de apoio para um sujeito se desenvolver pessoalmente, através do autoconhecimento patrocinado por uma condição financeira estável e livre das dívidas que escravizam as pessoas.
Um estudante de filosofia estoica não deve ser avesso ao capitalismo, mas transitar por ele de modo a extrair de seus mecanismos de criação de riqueza a manifestação de algo bom para a sociedade de sua época.
O pensamento de Jean está em linha com os grandes mestres do estoicismo. Sêneca no livro “A Vida Feliz“ aborda a relação do dinheiro e virtude:
“Ninguém condenou a sabedoria à pobreza. O filósofo pode possuir ampla riqueza, mas não possuirá riqueza que tenha sido arrancada de outro, ou que esteja manchada com o sangue de outra pessoa: ela deve ser obtida sem prejudicar qualquer homem e sem que ela seja obtida por meios vis; deve ser honrosamente acessível e honrosamente gasta.” (XXIII,1)
“Se as minhas riquezas me deixarem, não levarão consigo nada além de si mesmas: já vocês ficarão desnorteadas e parecerão ficar fora de si se as perderem: comigo as riquezas ocupam um certo lugar, mas com você elas ocupam lugar mais alto de todos. Em suma, minhas riquezas pertencem a mim, você pertence às suas riquezas.” (XXII, 5)
O Autor palestrou sobre o tema na Stoicon X-Aracaju, evento de filosofia organizado pelo GT Epicteto e pelo grupo Viva Vox, sob a supervisão do Professor Doutor Aldo Dinucci, da Universidade Federal de Sergipe.
Neste sábado, 20 de novembro acontece o Stoicon-X Aracaju. Irei falar brevemente sobre estoicismo e religião, focando na obra de Boécio e Justo Lípsio.
Boécio (480 a 524 d.C.) foi um filósofo, poeta, estadista e teólogo romano, cujas obras tiveram uma profunda influência na filosofia Patrística e Escolástica. Sua principal obra A Consolação da Filosofia foi escrita na prisão à espera da morte. Trata-se de uma obra-prima da literatura e do pensamento europeu; ela se basta, e teria o mesmo valor se ignorássemos tudo a respeito daquele que a concebeu entre duas sessões de tortura, à espera de sua execução. Contudo, a história pessoal do autor é bem conhecida. Ele foi um homem cuja fortuna se elevou ao mais alto nível possível; mas que experimentou o colapso total dessa fortuna, ficando conhecido por ter se mantido firme na prisão até mesmo sob tortura.
Justus Lipsius ( 1547 – 1606 d.C) foi um filólogo e humanista flamengo considerado um dos eruditos mais famosos do século XVI. Foi autor de uma série de obras que pretendiam recuperar a antiga corrente filosófica do estoicismo num formato compatível com o cristianismo tomando como modelo de partida a obra Sêneca. A mais importante dessas obras foi Sobre a constância. Sua nova forma de estoicismo influenciou grande número de seus contemporâneos intelectuais dando lugar ao movimento conhecido como neoestoicismo.
Suspensão de juízo é em resumo entender antes de adjetivar, só dar nossa opinião sobre fatos ou atos depois de entender profundamente seus motivos. Muito relevante nessa época de cancelamentos sumários.
“Os atos de julgar e adjetivar, mais uma vez, nos afastam da realidade, razão pela qual nos tornamos incapazes de compreender os demais justamente quando pensamos compreender suas ações. Prova disso é que nos tornamos intolerantes e agressivos com elas.“
Artigo publicado originalmente em Estoicismo Artesanal em 29 de outubro de 2021.
Danilo Gavião, que conheci em um grupo de estudos de estoicismo dirigido por Donato Ferrara, me fez uma pergunta relacionada àquela que me foi feita recentemente por Selmo Gliksman, meu colega dos tempos de pós na PUC/RJ, e que respondi em um post anterior.
Danilo indaga: Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações:
Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Prediga a si mesmo na alvorada: encontrarei um inquisitivo, um ingrato, um insolente, um traiçoeiro, um caluniador, um indivíduo antissocial. (Tradução: Aldo Dinucci)
Isso parece se contrapôr ao que Epicteto diz no Manual:
Epicteto, Manual, XLV: Alguém se banha de modo apressado: não digas que ele se banha de modo ruim, mas de modo apressado. Alguém bebe muito vinho: não digas que ele bebe de modo ruim, mas muito. Pois, antes que compreendas a opinião [dele], por que pensas que ele o faz de modo ruim? Assim, não te acontecerá, <ao> apreenderes as impressões compreensivas de algumas coisas, dares assentimento a outras. (IN: Epicteto, Manual Edição original de 2007, Tradução dos originais em grego: Aldo Dinucci)
Epicteto nos ensina que não devemos qualificar pessoas e suas ações como boas ou más sem sabermos por qual razão agem assim. Isso lembra o que Jesus Cristo teria dito sobre não julgarmos para não sermos julgados, mas em Epicteto o sentido é outro. O que Epicteto está dizendo é que estas palavras ‘bem’ ou ‘mal’ são usadas de forma inapropriada e acabam nos impedindo acesso à realidade (a ‘impressão compreensiva’ que podemos ter das coisas), pois seu uso nos faz crer possuir um conhecimento que efetivamente não temos sobre ações e pessoas.
Assim, o ‘banho ruim’ de alguém pode ser sido feito por uma série de razões que nos escapam e que fariam do banho rápido um ato adequado. Da mesma forma, o ‘beber mal’ pode estar associado da mesma forma a estados mentais de um indivíduo que podem tornar compreensível e justificável o seu modo de beber.
Epicteto está dizendo que usar essas palavras não nos confere nenhum conhecimento sobre a realidade, só evidenciando, de fato, nossa ignorância sobre a ação e a pessoa. Assim, ao invés de usarmos adjetivos tais como ‘bom, ótimo, excelente, péssimo, ruim’ etc, devemos procurar entender o que está acontecendo, descrevendo da melhor forma possível a ação e a pessoa e, ao mesmo tempo, estabelecendo os limites de nosso conhecimento do caso, suspendendo o juízo sobre o que não sabemos. Exemplos:
Fulano banhou-se rápido e saiu. Não compreendo por qual razão ele agiu assim. É possível que estivesse apressado para outro compromisso.
Fulano bebeu muito na festa de ontem. Estará ele comemorando alguma vitória? Estará ele triste com algum fato? Não sei a razão pela qual ele agiu assim. No momento, só posso fazer conjecturas.
Isso pode ser aplicado também ao modo como falamos aos nossos alunos sobre seus trabalhos e provas. Ao invés de um mero ‘excelente’, devemos descrever o trabalho e suas qualidades. Exemplo:
Seu trabalho foi escrito de acordo com as normas ortográficas e de forma escorreita, demonstrando conhecimento da linguagem culta. Você tratou o tema com precisão e senso crítico etc.
E o mesmo vale para os defeitos dos trabalhos. Voltemo-nos agora à passagem de Marco, que é um exemplo de praemeditatio malorum, do que falamos no outro post. Marco começa a passagem adjetivando um série de indivíduos que encontraria pela frente durante o seu dia. No entanto, na linha seguinte, ele mesmo rechaça essas adjetivações, afirmando uma causa comum para agirem de modo inadequado:
Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Prediga a si mesmo na alvorada: encontrarei um inquisitivo, um ingrato, um insolente, um traiçoeiro, um caluniador, um indivíduo antissocial. Todas essas coisas lhes ocorrem pela ignorância dos bens e dos males. (Tradução: Aldo Dinucci)
Marco, mais à frente, na mesma citação, afirma um preceito básico do estoicismo e do socratismo: a ação inadequada é fruto da ignorância. Para Sócrates e para os estoicos, não há algo como pessoas naturalmente malignas. O que há são pessoas ignorantes ou mentalmente enfermas (os limites entre a loucura epistêmica e a psíquica são, para estoicos, imprecisos, e muitas vezes uma implica a outra):
Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Mas eu teorizei a natureza do bem e do mal… e que a natureza do que erra é da minha mesma estirpe, não segundo o sangue ou o mesmo esperma, mas que partilho o mesmo espírito e a mesma porção divina… Nascemos, pois, para agir conjuntamente como os pés, como as mãos, como as pálpebras… estarmos em conflito uns contra os outros é contra a natureza: entrar em conflito e irritar-se é, portanto, opôr~se <à natureza>. (Tradução: Aldo Dinucci)
Marco Aurélio, portanto, substitui os adjetivos que usara no princípio de sua reflexão pela compreensão de que tais pessoas agem inadequadamente por ignorância. E acrescenta que, na verdade, os que erram são de nossa mesma estirpe, razão pela qual devemos não nos opor a eles, mas tentar colaborar com eles apesar dos defeitos que venham a ter.
O movimento, aqui, é essencialmente o mesmo que vemos no Manual de Epicteto: partimos de adjetivações que pretendem descrever a realidade, mas que só escondem nossa incompreensão dos fatos, das ações e das pessoas, nos afastando e nos pondo em oposição a elas, e rumamos para uma compreensão real das pessoas e de seus possíveis erros, não mais nos opondo ou julgando, mas, através de uma atitude verdadeiramente compreensiva, buscando agir conjuntamente com elas.
Os atos de julgar e adjetivar, mais uma vez, nos afastam da realidade, razão pela qual nos tornamos incapazes de compreender os demais justamente quando pensamos compreender suas ações. Prova disso é que nos tornamos intolerantes e agressivos com elas. Pois se os compreendêssemos realmente, jamais o seríamos.
O caderno de Cultura do O Globo do último domingo, 03 de outubro, traz uma coluna de Caca Diegues comentando a Carta 9 de Sêneca. O título é “O sábio se basta“, frase tirada do texto do filósofo.
O artigo começa bem e apresenta uma boa interpretação do pensamento de Sêneca, mas termina choramingando por “apoio” do governo. O cineasta não entendeu, ainda acha que precisa de dinheiro tirado dos mais pobres. Continua na “mera existência”, como diria Sêneca:
“O homem sábio se basta. Essa frase, meu caro Lucílio, é incorretamente explicada por muitos porque eles retiram o homem sábio do mundo e forçam-no a habitar dentro de sua própria pele. Mas devemos marcar com cuidado o que significa essa sentença e até onde ela se aplica. O homem sábio se basta para uma existência feliz, mas não para a mera existência. Pois ele precisa de muita assistência para a mera existência, mas para uma existência feliz ele precisa apenas de uma alma sã e reta, que menospreze a fortuna.” (Carta 9, §13)