Carta 89: Sobre as Partes da Filosofia

Esta carta é uma das mais voltadas para o debate teórico da filosofia, em contraste com a maioria das cartas que têm cunho mais prático. Sêneca inicia fazendo uma diferenciação entre sabedoria e filosofia:

A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou.” (LXXXIX, 4) Ou, de forma mais condensada: “A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.“(LXXXIX, 6).

A carta cita e comenta posições de Epicuro, Cícero, da escola peripatética e cirenaica sobre as partes da filosofia, chegando ao defendido pelos estoicos, que os principais ramos são ética, física e lógica: A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. (LXXXIX, 9).

Imagem: Mosaico Academia de Platão na vila de Siminius Stephanus em Pompeia.


LXXXIX. Sobre as Partes da Filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. É um fato útil que deseje saber, o que é essencial para aquele que busca a sabedoria – mais precisamente, as partes da filosofia e a divisão de seu todo em membros separados. Pois, ao estudar as partes, podemos ser trazidos com mais facilidade a entender o todo. Só desejo que a filosofia possa estar diante de nossos olhos em toda a sua plenitude, assim como toda a extensão do firmamento se mostra para que o possamos contemplar! Seria uma visão muito parecida com a do firmamento. Pois, certamente, a filosofia arrebataria todos os mortais pelo amor por ela; devemos abandonar todas aquelas coisas que, na nossa ignorância do que é excelente, acreditamos ser excelentes. No entanto, como isso não nos é dado graciosamente, devemos ver a filosofia exatamente como os homens contemplam os segredos do firmamento.

2. A mente do sábio, com certeza, abraça toda a estrutura da filosofia, examinando-a com um olhar não menos rápido do que nossos olhos mortais examinam os céus; nós, no entanto, que devemos atravessar a escuridão, nós, cuja visão falha mesmo para o que está próximo, podemos ser apresentados com maior facilidade a cada objeto em separado, apesar de ainda não sermos capazes de compreender o universo. Portanto, cumpro suas exigências e dividirei a filosofia em partes, mas não em migalhas. Pois é útil que a filosofia seja dividida, mas não cortada em pedaços mínimos. Assim como é difícil compreender o que é demasiadamente grande, também é difícil compreender o que é demasiadamente pequeno.

3. As pessoas são divididas em tribos, o exército em centúrias[1]. Tudo o que cresceu a um tamanho maior é mais facilmente identificado se for dividido em partes; mas as partes, como observei, não devem ser incontáveis em número e em tamanho diminuto. Pois a análise excessiva é defeituosa exatamente da mesma forma que nenhuma análise; o que quer que você corte tão bem que se torne pó é tão bom quanto misturado em uma massa novamente.

4. Em primeiro lugar, portanto, se você aprovar, vou traçar a distinção entre sabedoria e filosofia. A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou. E é claro por que a filosofia[2] é assim chamada. Pois reconhece por seu próprio nome o objeto de seu amor.

5. Certas pessoas definem a sabedoria como o conhecimento das coisas divinas e das coisas humanas[3]. Outros ainda dizem: “A sabedoria é saber coisas divinas e coisas humanas, e suas causas também[4]”. Esta frase adicionada parece-me supérflua, uma vez que as causas das coisas divinas e as coisas humanas fazem parte do sistema divino. A filosofia também foi definida de várias maneiras; alguns a chamaram de “o estudo da virtude”, outros se referiram a ela como “um estudo sobre o modo de modificar a mente”, e alguns a chamaram de “busca da razão justa”.

6. Uma coisa está praticamente resolvida, que há alguma diferença entre filosofia e sabedoria. Também não é possível que o que é procurado e o que procura sejam idênticos. Como há uma grande diferença entre a avareza e a riqueza, sendo uma sujeito do desejo e a outra seu objeto, assim também entre filosofia e sabedoria. Pois uma é um resultado e uma recompensa da outra. A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.

7. A sabedoria é aquilo que os gregos chamam de σοφία[5]. Os romanos também costumavam usar essa palavra, sophia, no sentido em que eles agora usam a “filosofia” também. Isso é provado pelas nossas antigas peças de teatro de toga[6], bem como pelo epitáfio que está esculpido no túmulo de Dosseno: “Detenha-se, estranho, e leia de Dosseno a sofia”.[7]

8. Certos de nossa escola, embora a filosofia significasse para eles “o estudo da virtude”, e embora a virtude fosse o objeto buscado e a filosofia o buscador, sustentavam, no entanto, que as duas não podem ser separadas. Pois a filosofia não pode existir sem virtude, nem virtude sem filosofia. A filosofia é o estudo da virtude, por meio, no entanto, da própria virtude; mas a virtude não pode existir sem o estudo de si mesma, nem o estudo da virtude existe sem a própria virtude. Pois não é como tentar atingir um alvo em um longo ponto, onde o atirador e o objeto a ser atingido estão em diferentes lugares. Nem, como estradas que conduzem a uma cidade, nem são as abordagens da virtude situadas fora da própria virtude; o caminho pelo qual se alcança a virtude é por meio da própria virtude; a filosofia e a virtude se mantêm juntas.

9. Os maiores autores e o maior número de autores, sustentaram que existem três divisões de filosofia – moral, natural e lógica[8]. A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. Mas também houve aqueles que dividiram a filosofia, por um lado, em menos divisões, por outro lado, em mais.

10. Certos da escola peripatética adicionaram uma quarta divisão, “filosofia política”, porque aplica-se a uma esfera especial de atividade e está interessada em um assunto diferente. Alguns acrescentaram um departamento para o qual eles usam o termo grego “οικονομία” (economia), a ciência de gerenciar o próprio patrimônio. Ainda outros fizeram um título distinto para os vários tipos de vida. Não há nenhuma dessas subdivisões, no entanto, que não sejam encontradas sob o ramo “moral” da filosofia.

11. Os epicuristas sustentavam que a filosofia era dupla: natural e moral; eles acabaram com o ramo lógico. Então, quando foram compelidos pelos próprios fatos a distinguir entre ideias equívocas e a expor falácias escondidas sob a capa da verdade, eles também introduziram um título para o qual eles dão o nome “forense e reguladora[9]”, que é meramente “lógica” sob outro nome, embora considerem que esta seção é suplementar ao departamento de filosofia “natural”.

12. A Escola Cirenaica[10] aboliu o departamento natural e lógico, e estava contente com o lado moral sozinho; e, no entanto, esses filósofos também incluem sob outro título o que eles rejeitaram. Pois dividem a filosofia moral em cinco partes: (1) O que evitar e o que procurar, (2) As paixões, (3) Ações, (4) Causas, (5) Prova. Agora, as causas das coisas realmente pertencem à divisão “natural”, as provas a “lógica”.

13. Aristo de Quios[11] observou que o natural e a lógica não eram apenas supérfluos, mas também eram contraditórios. Ele até mesmo limitou a “moral”, que era tudo o que lhe restava; pois aboliu esse título que abraçou o conselho, sustentando que era o negócio do pedagogo e não do filósofo – como se o homem sábio fosse outra coisa senão o pedagogo da raça humana!

14. Uma vez que, portanto, a filosofia é tripla, primeiro comecemos a definir o lado moral. Foi acordado que esse deveria ser dividido em três partes. Primeiro, temos a parte reflexiva, que atribui a cada coisa sua função particular e pesa o valor de cada uma; é o mais alto em termos de utilidade. Pois o que é tão indispensável como dar a tudo seu valor adequado? O segundo tem que ver com impulso, o terceiro com ações. Pois o primeiro dever é determinar separadamente o que vale a pena; o segundo, conceber em relação a eles um impulso regulado e ordenado; o terceiro, fazer seu impulso e suas ações se harmonizar, de modo que sob todas essas condições você possa ser consistente consigo mesmo.

15. Se algum dos três estiver com defeito, há confusão no resto também. Pois que benefício há em ter todas as coisas avaliadas, cada uma em suas relações adequadas, se você ultrapassar seus impulsos? Qual o benefício que existe ao ter controlado seus impulsos e em ter seus desejos sob seu próprio controle, se, quando você chegar à ação, você desconhece os horários e as épocas adequadas, e se você não sabe quando, onde e como cada ação deve ser realizada? Uma coisa é entender os méritos e os valores dos fatos, outra coisa conhecer o momento preciso para a ação, e ainda outra refrear os impulsos e prosseguir, em vez de se precipitar, para o que está para ser feito. Por isso, a vida está em harmonia com ela mesma somente quando a ação não abandona o impulso, e quando o impulso para um objeto surge em cada caso do valor do objeto, sendo lânguido ou mais ansioso, conforme o caso, de acordo com os objetos que o despertam valem a pena procurar.

16. O lado natural da filosofia é duplo: corporal e não corporal. Cada um é dividido em seus próprios graus de importância, por assim dizer. O tópico sobre os corpos aborda, primeiro, com estas duas classes: o criativo e o criado; e as coisas criadas são os elementos. Agora, esse mesmo tópico dos elementos, de acordo com alguns escritores, é integral; com outros, é dividido em matéria, a causa que move todas as coisas e os elementos.

17. Resta para mim dividir a filosofia lógica em suas partes. Toda a fala é contínua ou dividida entre questionador e respondedor. Foi definido que a primeira deveria ser chamada de ῥητορικὴ (retórica), e a última διαλεκτική (dialética). A retórica trata de palavras, significados e arranjos. A dialética é dividida em duas partes: palavras e seus significados, isto é, nas coisas que são ditas, e as palavras em que são ditas. Então vem uma subdivisão de cada uma – e é de grande extensão. Portanto, eu vou parar neste ponto, e

Percorrer o clímax;Summa sequar fastigia rerum;[12]

Pois, se eu tivesse vontade de dar as subdivisões, minha carta se tornaria o manual de um debatedor!

18. Não estou tentando desencorajá-lo, excelente Lucílio, de ler sobre este assunto, desde que você esteja pronto para praticar tudo o que ler. É sua conduta que você deve manter em controle; você deve despertar o que está dormente em você, tencionar rapidamente o que se tornou relaxado, conquistar o que é obstinado, acossar seus apetites e os apetites da humanidade, tanto quanto você pode; e para aqueles que dizem: “Por quanto tempo essa conversa sem fim continuará?” Responda com as palavras:

19. “Eu é quem deveria estar perguntando: Por quanto tempo esses pecados sem fim continuarão?Você realmente deseja que meus remédios parem antes de seu vício? Mas devo falar mais de meus remédios, e apenas porque você oferece objeções, eu continuarei falando. A medicina começa a fazer o bem no momento em que um toque faz com que o corpo doente arda com dor. Devo pronunciar palavras que ajudarão os homens até mesmo contra a vontade deles. Às vezes, você deve permitir que outras palavras além de elogios atinjam seus ouvidos e se, como indivíduo, você não estiver disposto a ouvir a verdade, ouça coletivamente.

20. Quão longe você estenderá os limites de suas propriedades? Uma fazenda que mantenha uma nação é muito limitada para um único senhor. Até que ponto você avançará seus campos arados – você que não está contente em confinar a medida de suas fazendas mesmo dentro da amplitude das províncias? Você tem rios nobres que atravessam seus terrenos privados; você tem rios poderosos – fronteiras de nações poderosas – sob seu domínio do início ao fim. Isso também é muito pequeno para você, a menos que também envolva mares inteiros com seus estados, a menos que seu administrador mantenha influência do outro lado do mar Adriático, da Jônia e do mar Egeu, a menos que as ilhas, casas de chefes famosos, sejam contadas por você como o mais insignificante dos bens! Espalhe-os tão amplamente quanto você quiser, se puder ter como “fazenda” o que uma vez foi chamado de império; faça seu o que quiser, desde que seja mais do que o do seu vizinho!

21. E agora por uma palavra contigo, cujo luxo se espalha tão amplamente quanto a ganância daqueles a quem acabei de referir. Para você, eu digo: “Este costume continuará até que não haja lago sobre o qual os pináculos de suas casas de campo não atinjam? Até que não haja um rio cujas margens não sejam limitadas por suas estruturas senhoriais? Onde águas quentes possam surgir, onde as margens se curvem em uma baía, você estará pronto para estabelecer fundações e, não contente com nenhuma terra que não tenha sido trabalhada pela engenharia, você irá trazer o mar dentro de seus limites. De cada lado, deixará suas casas brilharem ao sol, agora colocadas em picos nas montanhas, onde elas procuram uma visão extensa sobre o mar e a terra, agora levantadas da planície até o alto das montanhas, construirá suas múltiplas estruturas, suas imensas pilhas, vocês são, no entanto, apenas indivíduos e insignificantes com isso! O que você ganha em ter várias camas? Você dorme em uma. Nenhum lugar é seu, onde você não esteja”.

22. “Em seguida, eu passo para você, você cuja boca insaciável e sem fundo explora, por um lado, os mares, do outro, a terra, com um enorme trabalho, caçando sua presa, agora com anzol, agora com armadilha, agora com redes de vários tipos, nenhum animal tem paz, exceto quando você está empanturrado dele. E quão pequena é uma parte desses banquetes, preparado para você por tantas mãos, que você prova com seu paladar fatigado de prazer! Quão pequena parte de toda essa carne de caça, cuja captura esteve repleta de perigo, o paladar doente e cheio de melindre chega ao estômago? Quão pequena porção de todos os peixes, importados de longe, escorrega para aquela insaciável garganta? Pobres desgraçados, vocês não sabem que seus apetites são maiores que suas barrigas?

23. Fale assim com outros homens, desde que você enquanto falar também escute; escreva assim, desde que, enquanto escreve, lê, lembrando que tudo o que você ouve ou lê, deve ser aplicado para conduzir e para aliviar a fúria da paixão. Estude, não para adicionar nada ao seu conhecimento, mas para melhorar seu conhecimento.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Centúria era uma unidade de infantaria do exército romano, que continha oitenta legionários, correspondendo a dez contubérnios (a unidade mínima do exército romano, constituída de oito a dez soldados).

[2] Pitágoras foi, segundo Diógenes de Laércio, o primeiro a utilizar a palavra «filosofia», que é decomposta em duas: filo (amizade) e sofia (saber); o filósofo é, portanto, o amigo ou o amante do saber – esta é a significação com que a palavra aparece também em Sócrates e Platão.

[3] “Θείων τε καὶ ἀνθρωπίνων ἐπιστήμη”, citado por Plutarco, De Plac. Phil. 874 E.

[4] Cicero, De Officiis, “Sobre os Deveres”, II,ii, 5.

[5]sofia” equivalente em grego (Σοφία)

[6] Fabula togata, comédia “de toga”, distingue-se da comédia de imitação grega, “fabula palliata” apenas na atuação, o local e os personagens são romanos, ao contrário do que sucede com a palliata, em que se conservam os nomes gregos e a acão ocorre em locais vários do mundo grego.

[7] Hospes resiste et sophian Dossenni lege.

[8] Também traduzido como ética, física e lógica.

[9] Sêneca usa o termo latino “de iudicio” traduzindo o adjetivo grego δικανικός, “aquilo que tem a ver com os tribunais”, e por “de regula” a palavra κανονικός, “aquilo que tem a ver com regras”, aqui as regras da lógica. Os Epicuristas usavam para a lógica κανονική, em contraste com Aristóteles e seus sucessores, que usaram λογική. No latim, racionalis é uma tradução deste último.

[10] Aristipo de Cirene foi o fundador da Escola Cirenaica de filosofia, assim denominada devido à cidade de Cirene na qual foi fundada, floresceu entre 400 a.C. e 300 a.C., e tinha como a sua característica distintiva principal o hedonismo, ou a doutrina de que o prazer é o bem supremo. Como os cínicos se desenvolveram para os estoicos, assim os cirenaicos se desenvolveram para os Epicuristas.

[11] Aríston ou Aristo de Quios foi um filósofo estoico e discípulo de Zenão de Cítio. Esboçou um sistema de filosofia estoica que esteve, em muitos aspectos, mais próximo da anterior filosofia cínica. Rejeitou o lado lógico e físico da filosofia aprovada por Zenão e enfatizou a ética.

[12] Eneida, I, 342,  de Virgílio.

Carta 88: Sobre estudos liberais e vocacionais

A carta 88 é bastante interessante, nela Sêneca critica os “estudo liberais“, o que poderia ser traduzido no nosso tempo como formação universitária. Para Sêneca o conhecimento técnico é apenas isso, uma ferramenta para o trabalho diário e venal, não um fim em si mesmo ou um certificado de excelência, inteligência ou sabedoria. A crítica e conclusão são atuais e podem ser aplicadas igualmente aos intelectuais contemporâneos.

“O intelectual se ocupa com investigações sobre o idioma, e se for seu desejo de ir mais longe, ele trabalha na história ou, se ele estender seu alcance para os limites mais distantes, sobre a poesia. Mas qual destes abre caminho à virtude? Pronunciando sílabas, investigando palavras, memorizando peças, ou fazendo regras para o exame crítico da poesia, o que existe em tudo isso que livra alguém do medo, refreia o desejo ou elimina as paixões?” (LXXXVIII, 3)

No texto Sêneca cita a Odisseia e Ilíada de Homero bem como vários filósofos e escolas filosóficas da antiguidade. Ao final do texto, Sêneca volta suas baterias contra alguns filósofos, mais uma vez se mostrando atual – ou comprovando que a natureza humana se manteve inalterada em 2000 anos:

“Tenho falado até agora de estudos liberais; mas pense quanto de matéria supérflua e pouco prática que os filósofos contêm! Por sua própria conta, eles também se rebaixam para estabelecer boas divisões de sílabas, para determinar o verdadeiro significado de conjunções e preposições; eles têm inveja dos estudiosos, inveja dos matemáticos. Eles passaram a usar em sua própria arte todas as superfluidades dessas outras artes; o resultado é que eles sabem mais sobre falar meticulosamente do que sobre uma vida meticulosa.” (LXXXVIII, 42)

Imagem: Ulisses e as Sereias, por John William Waterhouse.


LXXXVIII. Sobre estudos liberais e vocacionais

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você tem desejado conhecer os meus pontos de vista em relação aos estudos liberais[1]. A minha resposta é a seguinte: não admiro nenhum estudo e não considero um bom estudo, o que resulta na criação de dinheiro. Tais estudos são ocupações condutoras de lucro, úteis apenas na medida em que dão à mente uma preparação e não a ocupam permanentemente. Deve se demorar sobre eles apenas enquanto a mente não se ocupa com nada maior; eles são nosso aprendizado, não nosso trabalho real.

2. Então você vê por que os “estudos liberais” são chamados assim; é porque eles são estudos dignos de um cavalheiro nascido livre. Mas há apenas um estudo realmente liberal, o que dá a um homem sua liberdade. É o estudo da sabedoria, e isso é elevado, corajoso e de grande alma. Todos os outros estudos são insignificantes e pueris. Você certamente não acredita que exista algo bom em qualquer um dos assuntos cujos professores são, como você vê, os homens do selo mais ignóbil e vil? Não devemos estar aprendendo essas coisas; devíamos ter concluído com aprendê-las. Certas pessoas decidiram que o ponto em questão em relação aos estudos liberais é se eles fazem os homens bons; mas eles nem professam ou visam o conhecimento desse assunto em particular.

3. O intelectual[2] se ocupa com investigações sobre o idioma, e se for seu desejo de ir mais longe, ele trabalha na história ou, se ele estender seu alcance para os limites mais distantes, sobre a poesia. Mas qual destes abre caminho à virtude? Pronunciando sílabas, investigando palavras, memorizando peças, ou fazendo regras para o exame crítico da poesia, o que existe em tudo isso que livra alguém do medo, refreia o desejo ou elimina as paixões?

4. A questão é: tais homens ensinam a virtude, ou não? Se eles não ensinam, então nem sequer a transmitem. Se ensinam, são filósofos. Gostaria de saber como aconteceu que eles não tomaram a cátedra com o propósito de ensinar a virtude? Veja como é diferente de seus assuntos; e, no entanto, seus assuntos se assemelhariam se ensinassem a mesma coisa[3].

5. Pode ser, talvez, que eles façam você acreditar que Homero era um filósofo[4], embora refutem isso pelos argumentos através dos quais procuram provar isso. Pois às vezes fazem dele um estoico, que não aprova nada além de virtude, evita prazeres e se recusa a renunciar à honra mesmo ao preço da imortalidade[5]; às vezes o fazem um epicurista, louvando a condição de um estado de repouso, que passa seus dias em festa e canção[6]; às vezes um peripatético, classificando o bem de três maneiras[7]; às vezes um Acadêmico, afirmando que todas as coisas são incertas. É claro, no entanto, que nenhuma dessas doutrinas deve ser concebida sobre Homero, só porque estão todas lá; pois são irreconciliáveis umas com as outras. Podemos admitir a esses homens, de fato, que Homero era um filósofo; ainda assim ele se tornou um homem sábio antes de ter algum conhecimento de poesia. Então, vamos aprender as coisas particulares que fizeram Homero sábio.

6. Não é mais importante, claro, que eu investigue se Homero ou Hesíodo era o poeta mais velho, do que saber por que Hécuba[8], embora mais jovem do que Helena, mostrou seus anos tão lamentavelmente. O que, na sua opinião, eu pergunto, seria o ponto em tentar determinar as respectivas idades de Aquiles e Patroclos[9]?

7. Você levanta a questão: “Por quais regiões Ulysses se extraviou?” Em vez de tentar evitar que nos desviemos a todo momento? Não temos tempo para ouvir palestras sobre a questão de saber se ele se mantinha no mar entre a Itália e a Sicília, ou fora do nosso mundo conhecido (de fato, uma peregrinação tão longa não poderia ter ocorrido dentro de limites tão estreitos); Nós nos encontramos com tempestades do espírito, que nos perturbam diariamente, e nossa depravação nos leva a todos os males que perturbavam Ulysses. Para nós nunca falta a beleza para tentar nossos olhos, ou o inimigo para nos assaltar; desse lado estão monstros selvagens que se deleitam com o sangue humano, daquele lado os traiçoeiros encantos de orelha, e acolá está o naufrágio e toda variada categoria de infortúnios. Mostre-me, pelo exemplo de Ulysses, como eu amo meu país, minha esposa, meu pai e como, mesmo depois de sofrer um naufrágio, eu poderei singrar na via da honestidade.

8. Por que tentar descobrir se Penélope era um padrão de pureza, ou se ela era motivo de risada de seus contemporâneos? Ou se ela suspeitava que o homem em sua presença era Ulysses, antes que ela soubesse que era ele? Ensine-me, em vez disso, o que é a pureza e quão grande é o bem que temos nela e se está situada no corpo ou na alma.

9. Agora vou transferir minha atenção para o músico. Você, senhor, está me ensinando como os agudos e os graves estão de acordo um com o outro e como, embora as cordas produzam notas diferentes, o resultado é uma harmonia; em vez disso, coloque a minha alma em harmonia consigo mesmo, e não permita que meus propósitos estejam fora de sintonia. Você está me mostrando quais são as teclas lúgubres; mostre-me um pouco como, no meio da adversidade, eu posso evitar de pronunciar uma nota lúgubre.

10. O matemático ensina-me a definir as dimensões dos meus imóveis; mas eu prefiro aprender como descrever o que é suficiente para um homem possuir. Ele me ensina a contar, e adapta meus dedos para a avareza; mas eu deveria preferir que ele me ensine que não há nenhum sentido em tais cálculos, e alguém não é o mais feliz por cansar os contadores com seus bens – ou melhor, como é inútil a propriedade de qualquer homem que acharia a maior desgraça se fosse obrigado a calcular, por sua própria inteligência, o valor de suas participações.

11. O que é proveitoso para mim em saber como lotear um terreno, se eu não sei como dividi-lo com meu irmão? O que há de bom em calcular em minúcia as dimensões de um acre e na detecção do erro se uma pequena parte tiver escapado da minha régua de medição, se eu fico amargurado quando um vizinho mal-intencionado simplesmente arranca um pouco de minha terra? O matemático me ensina como eu não posso perder meus limites; no entanto, eu procuro aprender a perder todos com um coração leve.

12. “Mas”, vem a resposta: “Estou sendo expulso da fazenda que meu pai e meu avô foram donos!” Sim! Quem possuía a terra antes de seu avô? Você pode explicar que pessoas (eu não direi que pessoa) a mantinha originalmente? Você não entrou como proprietário, mas apenas como inquilino. E quem é seu inquilino? Se sua reivindicação for bem-sucedida, você é inquilino do herdeiro. Os juristas dizem que a propriedade pública não pode ser adquirida por particular por usucapião; ao que você se apega e chama de seu é propriedade pública – na verdade, ela pertence à humanidade em geral.

13. Oh, que habilidade maravilhosa! Você sabe como medir o círculo; você encontra a área de qualquer forma que esteja desenhada a sua frente; você calcula as distâncias entre as estrelas; não há nada que não chegue ao alcance de seus cálculos. Mas se você é um verdadeiro mestre de sua profissão, meça a mente do homem! Diga-me o quão grande é, ou o quão insignificante! Você sabe o que é uma linha reta; Mas como isso lhe beneficia se não sabe o que é reto na nossa vida?

14. Vamos agora para aquela pessoa que se vangloria de seu conhecimento dos corpos celestes, aquele que sabe

Aonde a esmerada estrela de Saturno esconde, E através de qual órbita Mercúrio se afasta.Frigida Saturni sese quo stella receptet, Quos ignis caeli Cyllenius erret in orbes.[10]

De que benefício será saber isso? Para que eu seja perturbado porque Saturno e Marte estão em oposição, ou quando Mercúrio se instala ao fim da tarde em vista de Saturno, ao invés de aprender que essas estrelas, onde quer que estejam, são benignas[11] e que não estão sujeitas a mudanças?

15. Elas são conduzidas por um ciclo infinito de destino, num curso do qual elas não podem se desviar. Elas retornam nas estações indicadas; elas se iniciam, ou marcam os intervalos do trabalho de todo o mundo. Mas se elas são responsáveis pelo que quer que aconteça, como isso ajudará você a conhecer os segredos do imutável? Ou se elas apenas dão indicações, o que há de bom em prever o que você não pode escapar? Se você conhece essas coisas ou não, elas acontecerão.

16. Veja o sol fugaz,

Se reparar as estrelas que seguem em seu trem, Nunca o amanhã nunca me engana, Ou é enganado por noites serenas.Si vero solem ad rapidum stellasque sequentes Ordine respicies, numquam te crastina fallet Hora nec insidiis noctis capiere serenae.[12]

Contudo, foi suficientemente e totalmente estabelecido que eu esteja a salvo de qualquer coisa que possa me enganar.

17. “O que”, você diz, “o amanhã nunca me enganará. O que acontece sem o meu conhecimento me deixa enganado.” Eu, pela minha parte, não sei o que será, mas sei o que pode acontecer. Não terei desconfiança sobre este assunto; aguardo o futuro na sua totalidade; e se houver qualquer redução em sua gravidade, eu aproveito ao máximo. Se o dia seguinte me tratar gentilmente, é uma espécie de decepção; mas não me engana mesmo nisso. Pois eu sei que todas as coisas podem acontecer, então eu sei, também, que elas não acontecerão em todos os casos. Estou pronto para eventos favoráveis, mas estou preparado para o pior.

18. Nesta discussão você deve me suportar se não seguir o curso normal. Pois não aceito admitir a pintura na lista de artes liberais, não mais do que escultura, marmoraria e outras ajudas para o luxo. Também excluo dos estudos liberais a luta livre e todo conhecimento que é composto de óleo e lama; caso contrário, eu seria compelido a admitir perfumistas também, e cozinheiros, e todos os outros que prestam sua inteligência ao serviço de nossos prazeres.

19. Qual elemento “liberal” existe nesses tomadores de eméticos[13] vorazes, cujos corpos são alimentados a gordura enquanto suas mentes são magras e estúpidas? Ou acreditamos realmente que o treinamento que eles dão é “liberal” para os jovens de Roma, que costumavam ser ensinados pelos nossos antepassados a ficarem retos e a arremessar um dardo, a empunhar uma lança, a guiar um cavalo e a lidar com armas? Nossos antepassados costumavam ensinar a seus filhos nada que pudesse ser aprendido enquanto em repouso. Mas nem o novo sistema nem o antigo ensina ou nutre a virtude. Por que qual bem nos faz montar um cavalo e controlar sua velocidade com a guia, e depois descobrir que nossas próprias paixões, totalmente descontroladas, se aferram a nós? Ou vencer muitos oponentes em luta ou boxe, e depois descobrir que nós mesmos somos espancados pela raiva?

20. “O que, então,” você diz, “os estudos liberais não contribuem com nosso bem-estar?” Muito em outros aspectos, mas nada em termos de virtude. Pois mesmo essas artes das quais eu falei, embora reconhecidamente de baixo grau – dependendo do trabalho feito – contribuem grandemente para a aparelhagem da vida, mas, no entanto, não têm nada a ver com a virtude. E se você perguntar: “Por que, então, educamos nossos filhos nos estudos liberais?” Não é porque eles podem conferir virtude, mas porque preparam a alma para receber a virtude. Assim com esse “curso primário”, como os anciãos o chamavam, na gramática, que dá aos meninos o seu treinamento elementar, não lhes ensina as artes liberais, mas prepara o terreno para a aquisição precoce dessas artes, então as artes liberais não conduzem a alma até a virtude, mas simplesmente aponta naquela direção.

21. Posidônio divide as artes em quatro classes: primeiro temos as que são comuns e baixas, então as que servem para diversão, depois as que se referem à educação dos meninos e, finalmente, às artes liberais. O tipo comum pertence aos trabalhadores e são meros trabalhos manuais; elas estão preocupadas em equipar a vida; não há pretensões de beleza ou honra.

22. As artes da diversão são aquelas que visam agradar os olhos e ouvidos. Para esta classe, você pode atribuir os engenheiros de palco, que inventam andaimes que se vão por conta própria, ou pisos que se elevam silenciosamente no ar e muitos outros dispositivos surpreendentes, como quando os objetos que se encaixam, depois se desmontam ou objetos que são separados, em seguida, juntam-se automaticamente, ou objetos que ficam eretos, em seguida, colapsam gradualmente. O olho dos inexperientes é surpreendido por essas coisas; pois tais pessoas se maravilham com tudo o que ocorre sem aviso prévio, porque elas não conhecem as causas.

23. As artes que pertencem à educação dos meninos, e são algo similar às artes liberais, são aquelas que os gregos chamam de “ciclo de estudos”, mas que nós, romanos, chamamos de “liberal[14]”. No entanto, as únicas que realmente são liberais – ou melhor, para dar-lhes um nome mais verdadeiro, “livre” – são aquelas cuja preocupação é a virtude.

24. “Mas,” dizemos, “assim como há uma parte da filosofia que tem a ver com a natureza, e uma parte que tem a ver com a ética, e uma parte que tem que ver com o raciocínio, então esse grupo de artes liberais também reivindicam por si mesmo um lugar na filosofia. Quando se aborda questões que lidam com a natureza, uma decisão é alcançada por meio de uma palavra do matemático. Portanto, a matemática é um departamento desse ramo que auxilia”.

25. Mas muitas coisas nos ajudam e ainda não são partes de nós mesmos. Não, se fossem, elas não nos ajudariam. A comida é um auxílio para o corpo, mas não é parte dele. Recebemos alguma ajuda do serviço que a matemática faz; e a matemática é tão indispensável para a filosofia quanto o carpinteiro é para o matemático. Mas o carpinteiro não faz parte da matemática, nem a matemática é parte da filosofia.

26. Além disso, cada um tem seus próprios limites; pois o sábio investiga e aprende as causas dos fenômenos naturais, enquanto o matemático segue e calcula seus números e suas medidas. O homem sábio conhece as leis pelas quais os corpos celestes persistem, quais poderes lhes pertencem e quais atributos; O astrônomo observa apenas as suas idas e vindas, as regras que regem seus nasceres e poentes, e os períodos ocasionais durante os quais parecem ficar imóveis, embora, de fato, nenhum corpo celestial possa ficar quieto.

27. O sábio saberá o que causa a reflexão no espelho; mas, o matemático pode simplesmente dizer-lhe o quão longe o corpo deve estar da reflexão, e que forma de espelho produzirá uma reflexão dada. O filósofo irá demonstrar que o Sol é um corpo grande, enquanto o astrônomo calcula o quão grande, progredindo no conhecimento por seu método de tentativa e experimentação; mas, para progredir, deve convocar certos princípios para ajudar. Nenhuma arte, no entanto, é suficiente para si mesmo, se o fundamento sobre o qual ela se baseia depende de um simples favor.

28. Agora a filosofia não pede favores de nenhuma outra fonte; ela constrói tudo em seu próprio solo; mas a ciência dos números é, por assim dizer, uma estrutura construída sobre a terra de outro homem – ela se baseia em tudo sobre o solo alheio[15]; aceita os primeiros princípios, e por seu favor chega a conclusões adicionais. Se pudesse marchar sem ajuda para a verdade, se pudesse entender a natureza do universo, devo dizer que isso proporcionaria muita ajuda às nossas mentes; pois a mente cresce pelo contato com as coisas celestiais e desenha em si algo de elevado. Há apenas uma coisa que traz a alma à perfeição – o conhecimento inalterável do bem e do mal. Mas não há outra arte que investigue o bem e o mal. Gostaria de passar em revista as várias virtudes.

29. A bravura é um escarnecedor de coisas que inspiram o medo; olha de cima, desafia e esmaga os poderes do terror e tudo que levaria nossa liberdade sob o jugo. Mas os “estudos liberais” fortalecem essa virtude? A lealdade é o bem mais sagrado do coração humano; é impossível ser forçada a traição, e é subornada por nenhuma recompensa. A lealdade clama: “Queime-me, mate-me, destrua-me! Não vou trair a minha confiança, e quanto mais a tortura procurar encontrar o segredo, mais profundo no meu coração, eu o enterrarei!” As “artes liberais” podem produzir esse espírito dentro de nós? Temperança controla nossos desejos; alguns odeia e espanta, outros rege e restaura a uma medida saudável, nem se aproxima de nossos desejos por seu próprio interesse. Temperança sabe que a melhor medida dos apetites não é o que você quer tomar, mas o que você deve tomar.

30. A bondade proíbe que você sobrecarregue seus associados, e ela proíbe que você seja prepotente. Em palavras e em ações e em sentimentos, ela se mostra gentil e atenciosa com todos os homens. Não contabiliza nenhum mal como outro apenas. E a razão pela qual ela ama o seu bem próprio é principalmente porque algum dia será o bem de outro. Os “estudos liberais” ensinam um caráter desse? Não; Não mais do que ensinam simplicidade, moderação e autocontrole, frugalidade e economia, e essa bondade que poupa a vida de um vizinho como se fosse própria e sabe que não é correto o homem desperdiçar o uso de seus semelhantes.

31. “Mas,” diz-se, “porque você declara que a virtude não pode ser alcançada sem os ‘estudos liberais’, como é que você nega que eles ofereçam alguma ajuda à virtude?” Porque você também não pode alcançar a virtude sem comida; e, no entanto, a comida não tem nada a ver com a virtude. A madeira não oferece assistência a um navio, embora um navio não possa ser construído sem madeira. Não há razão, eu digo, para que você pense que qualquer coisa é feita com a assistência daquilo com a qual não possa ser feita.

32. Podemos até mesmo afirmar que é possível alcançar a sabedoria sem os “estudos liberais”; pois, embora a virtude seja uma coisa que deva ser aprendida, não é aprendida por meio desses estudos. Que motivo tenho, no entanto, para supor que alguém que ignore as letras nunca será um homem sábio, já que a sabedoria não pode ser encontrada em letras? A sabedoria comunica fatos e não palavras; e pode ser verdade que a memória é mais confiável quando não tem suporte externo.

33. A sabedoria é uma coisa grande e espaçosa. É necessário muito espaço livre. É preciso aprender sobre coisas divinas e humanas, o passado e o futuro, o efêmero e o eterno; e é preciso aprender sobre o tempo. Veja quantas questões surgem somente sobre o tempo: em primeiro lugar, se é algo em si e por si só; em segundo lugar, se existe alguma coisa antes do tempo ou sem o tempo; e novamente, o tempo começou com o universo, ou, porque havia algo antes do início do universo, o tempo também já existia?

34. Há inúmeras questões sobre a alma: de onde vem, qual é a sua natureza, quando começa a existir e quanto tempo existe; se ela passa de um lugar para outro e muda sua habitação, sendo transferida sucessivamente de uma forma de animal para outra, ou se é escrava apenas uma vez, vagando pelo universo depois que é liberada; seja ela corpórea ou não; o que será dela quando deixar de nos usar como meio; como usará sua liberdade quando escapar da presente prisão; se esquecerá todo o seu passado, e nesse momento começa a se conhecer quando, liberada do corpo, se retira para o céu.

35. Assim, seja qual for a fase das coisas humanas e divinas que você tenha apreendido, você ficará cansado pelo grande número de coisas a serem respondidas e coisas a serem aprendidas. E para que esses sujeitos múltiplos e poderosos possam ter entretenimento gratuito em sua alma, você deve remover de lá todas as coisas supérfluas. A virtude não se renderá a esses limites estreitos; um grande assunto precisa de um amplo espaço para se mover. Deixe que todas as outras coisas sejam expulsas, e deixe o peito ser esvaziado para receber a virtude.

36. “Mas é um prazer estar familiarizado com muitas artes”. Portanto, deixe-nos manter apenas o essencial delas. Você considera culpado, o homem que coloca as coisas supérfluas no mesmo pé das coisas úteis, e em sua casa faz uma exibição pródiga de objetos caros, mas não considera errado quem se permitiu absorver o mobiliário do aprendizado inútil? Esse desejo de saber mais do que o suficiente é uma espécie de intemperança.

37. Por quê? Como essa busca indecorosa das artes liberais torna os homens maçantes, prolixos, sem tato, chatos auto-satisfeitos, que não conseguem aprender o essencial apenas porque aprenderam o não essencial. Dídimo Calcêntero[16], o erudito, escreveu quatro mil livros. Eu deveria sentir pena por ele se ele tivesse lido apenas o mesmo número de volumes supérfluos. Nesses livros, ele investiga o local de nascimento de Homero, quem era realmente a mãe de Eneias, se Anacreonte era mais um libertino ou mais um bêbado, se Safo era uma prostituta e outros problemas, as respostas para as quais, se encontradas, eram imediatamente esquecidas. Convenhamos, não me diga que a vida é longa!

38. Não, quando você considera nossos próprios compatriotas também, posso mostrar-lhe muitas obras que deveriam ser cortadas com o machado. É o custo de um vasto gasto de tempo e de grande desconforto para os ouvidos dos outros que ganhamos tanto elogio como este: “Que homem culto você é!” Deixe-nos contentar com esta recomendação, menos urbana que seja: “Que homem bom você é!

39. Quero realmente dizer isso? Bem, você teria que desenrolar os anais da história do mundo e tentar descobrir quem primeiro escreveu poesia. Ou, na ausência de registros escritos, devo fazer uma estimativa do número de anos entre Orfeu e Homero? Ou devo fazer um estudo sobre as escritas absurdas de Aristarco[17], onde ele plagiou o texto dos versos de outros homens e gastar minha vida nas sílabas? Deveria então revestir-me na poeira dos geómetras[18]? Até agora esqueci essa serra útil? Economizei seu tempo? Preciso saber essas coisas? E o que posso escolher para não saber?

40. Apião, o erudito, que atraiu multidões para suas palestras em toda a Grécia nos dias de Caio César e foi aclamado homérico por todos os estados, costumava defender que Homero, quando terminou seus dois poemas, a Ilíada e a Odisseia, acrescentou um poema preliminar ao seu trabalho, onde abraçou toda a guerra de Tróia. O argumento que Apião aduziu para provar esta afirmação foi que Homero introduziu intencionalmente na primeira linha duas letras que continham uma chave para o número de seus livros.

41. Um homem que deseja saber muitas coisas deve conhecer coisas como essas, e não deve pensar em todo o tempo que perde por saúde, deveres públicos, deveres privados, deveres diários e sono. Aplique a régua aos anos de sua vida; eles não têm espaço para todas essas coisas.

42. Tenho falado até agora de estudos liberais; mas pense quanto de matéria supérflua e pouco prática que os filósofos contêm! Por sua própria conta, eles também se rebaixam para estabelecer boas divisões de sílabas, para determinar o verdadeiro significado de conjunções e preposições; eles têm inveja dos estudiosos, inveja dos matemáticos. Eles passaram a usar em sua própria arte todas as superfluidades dessas outras artes; o resultado é que eles sabem mais sobre falar meticulosamente do que sobre uma vida meticulosa.

43. Deixe-me dizer-lhe quais males são devidos a uma exagerada exatidão, e que inimigo é da verdade! Protágoras declara que se pode tomar qualquer lado em qualquer questão e debatê-la com igual sucesso – mesmo nesta nossa questão, que qualquer assunto pode ser debatido de qualquer ponto de vista. Nausífanes[19] sustenta que, nas coisas que parecem existir, não há diferença entre existência e não-existência.

44. Parmênides sustenta que nada existe de tudo isso que parece existir, exceto o universo exclusivamente. Zenão de Eleia removeu todas as dificuldades removendo uma; pois ele declara que não existe nada. As escolas Pirrônica[20], Megárica[21], Eretrian[22] e Acadêmica estão empenhadas praticamente na mesma tarefa; elas introduziram um novo conhecimento, o não-conhecimento.

45. Você pode varrer todas essas teorias com as tropas supérfluas de estudos “liberais”; uma classe de homens me dá um conhecimento que não servirá de nada, a outra classe acabou com qualquer esperança de alcançar o conhecimento. É melhor, é claro, conhecer coisas inúteis do que não saber nada. Um conjunto de filósofos não oferece luz para que eu possa dirigir meu olhar para a verdade; o outro arranca meus próprios olhos e me deixa cego. Se eu seguir Protágoras, não há nada no esquema da natureza que não seja duvidoso; se eu me segurar com Nausífanes, tenho certeza apenas disso – de que tudo é incerto; se com Parmênides, não há nada exceto o Um; se com Zenão, não existe nem o Um.

46. O que somos, então? O que se torna de todas essas coisas que nos cercam, nos apoiam, nos sustentam? O universo inteiro é então uma sombra vã ou enganosa. Não posso prontamente dizer se estou mais contrariado com aqueles que querem que não conheçamos nada, ou com aqueles que não nos deixariam até mesmo esse privilégio.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] O círculo regular de educação, incluindo gramatica, música, geometria, aritmética, astrologia e certas fases de retórica e dialética, é colocado em contraste com estudos liberais – aqueles que têm como objeto a busca da virtude. Sêneca interpreta “studia liberalia” em um senso superior do que o esperado por seu contemporâneo.

[2] Grammaticus em grego clássico significa “um que está familiarizado com o alfabeto”; na era de Alexandre, um “aluno da literatura”; na era romana o equivalente a litteratus. Sêneca usa aqui como “especialista em ciência linguística”.

[3] Ou seja, a filosofia.

[4] Esta teoria foi aprovada por Demócrito, Hípias de Élis e os intérpretes alegóricos; Xenófanes, Heráclito e Platão condenaram Homero por suas supostas fabricações não filosóficas.

[5] Referência ao episódio em que Calipso oferece a Ulisses a imortalidade, que o herói rejeita. Ver (Odisseia, V, 206

[6] A ilha de Calipso seria um verdadeiro “jardim de Epicuro” (Odisseia, V, 63.); assim como a vida no palácio de Alcínoco (Odisseia, IX, 5.)

[7] “tripartição dos bens” é mencionada em Ilíada, XXIV, 376-7: entre bens do corpo, bens do espírito e bens externos.

[8] Hécuba, na mitologia grega e romana, é mulher de Príamo e mãe de dezenove filhos, entre os quais se contam Heitor, Páris e Cassandra.

[9] Patroclos ou Pátroklos (em grego: Πάτροκλος, “glória do pai”) é um dos personagens centrais da Ilíada, primo e às vezes considerado amante de Aquiles.

[10] Trecho de Georgicas, v. I, de Virgílio.

[11] Saturno e Marte eram consideradas estrelas desafortunadas. Astrologia, que remonta além de 3000 aC. na Babilônia, foi desenvolvida pelos gregos da era de Alexandre e conseguiu um ponto de apoio em Roma, floresceu no século II aC.

[12] Trecho de Georgicas, v. I, de Virgílio. “ignis caeli Cyllenius” é o planeta Mercúrio.

[13] Medicamento usado para provocar o vômito. Os eméticos servem para que o estômago se livre de venenos ou de alimentos que o estejam irritando. Eram usados após banquetes em Roma.

[14] Referidas por Sêneca no início da carta, ou seja, gramática, música, matemática e astronomia.

[15] De acordo com o direito romano, superficies solo cedit, “o prédio vai com o solo”.

[16] Dídimo Calcêntero ou Dídimo de Alexandria (em grego: Διδύμος χαλκέντερος) foi um gramático grego que viveu em Alexandria. Junto a outros quatro gramáticos de Alexandria, nomeadamente Aristônico, Seleuco e Filoxeno, dedicou-se ao estudo dos textos de Homero.

[17] Aristarco da Samotrácia (falecido ca. 144 a.C.) foi um gramático e filólogo Grécia Antiga, pertencente à escola alexandrina, O mais célebre dos seus gramáticos alexandrinos, autor de edições famosas de Homero, Hesíodo e outros poetas.

[18] Os geómetras resolviam os seus problemas desenhando numa superfície coberta de areia as figuras que estudavam

[19] Nausífanes (c. 325 a.C.), nativo de Téos, era ligado à filosofia de Demócrito e seguidor de Pirro de ÉlisTinha um grande número de seguidores, e foi particularmente famoso como retórico. Epicuro foi um dos seus ouvintes, mas insatisfeito com ele, teve uma posição hostil nos seus escritos.

[20] Pirronismo também conhecido como ceticismo pirrônico, foi uma tradição da corrente filosófica do ceticismo fundada por Enesidemo de Cnossos no século I d.C., e registrada por Sexto Empírico no século III. Toma o seu nome de Pirro de Élis, um cético que viveu cerca de 360 a 270 a.C. “Nada pode ser conhecido, nem mesmo isto”.

[21] Escola Megárica foi uma escola filosófica fundada por Euclides de Mégara, combinava as teorias do eleatas e dos socráticos.

[22] A escola de filosofia Eretriana era originalmente Escola de Elis, onde havia sido fundada por Fédon de Elis; Foi posteriormente transferida para Eretria por seu aluno Menedemus.

Carta 87: Alguns argumentos em favor da vida simples

Na carta 87 Sêneca retoma o debate sobre a natureza da riqueza, defendendo o princípio estoico que é um “indiferente“, ou seja, nem um bem nem um mal em si mesmo.

Começa contando uma anedota pessoal, de uma viajem feita sem luxos, onde dormiu no chão e as refeições eram pão e figos secos, e mesmo assim diz ter sido uma viagem muito feliz, que o fez perceber que:

quanto do que nós possuímos é supérfluo; temos tantas coisas de que nem sentiríamos a falta se delas fossemos privados pela força das circunstâncias.” (LXXXVII, 1)

A carta é longa, mas muito interessante, debate a posição dos peripatéticos, ou seja, dos seguidores de Aristóteles em oposição à escola estoica sobre o valor da riqueza, e se ela é uma virtude ou vício.

O assunto é atual e a resposta de Sêneca não poderia ser mais apropriada:

“Se alguma vez tivermos muito tempo livre, investigaremos a questão: qual é a essência da riqueza e qual a essência da pobreza; mas quando chegar a hora, também devemos considerar se não é melhor tentar mitigar a pobreza, e aliviar a riqueza de sua arrogância, do que discutir as palavras como se a questão, das coisas já estivessem decididas.” ( LXXXVII, 40)

imagem: Relevo romano em terra cotta do primeiro século – Museu Britânico.


LXXXVII. Alguns argumentos em favor da vida simples

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. “Eu era um náufrago antes de subir a bordo[1]”. Não vou acrescentar como isso aconteceu, para que não considere isso também como outro dos paradoxos estoicos; e, no entanto, sempre que estiver disposto a ouvir, ou melhor, mesmo que não esteja disposto, demonstrarei que essas palavras não são falsas, nem tão surpreendentes como se pensa à primeira vista. Entretanto, a viagem me mostrou isso: quanto do que nós possuímos é supérfluo; temos tantas coisas de que nem sentiríamos a falta se delas fossemos privados pela força das circunstâncias.

2. Meu amigo Máximo e eu passamos um período muito feliz de dois dias, levando conosco muito poucos escravos – apenas os que cabiam em uma carruagem – e nenhuma parafernália, exceto o que usamos em nossos corpos. O colchão jaz ao chão, e eu sobre o colchão. Há duas mantas – uma espalhada no solo e uma para nos cobrir.

3. Nada poderia ser subtraído do nosso almoço; não demorou mais de uma hora para preparar, e não estávamos destituídos de figos secos, nunca sem tabuleta de escrita. Se eu tenho pão, eu uso figos como um deleite; se não, considero os figos como um substituto do pão. Por isso, eles me trazem um banquete de Ano Novo todos os dias, e faço o Ano Novo feliz e próspero pelos bons pensamentos e grandeza da alma; pois a alma nunca é maior do que quando deixa de lado todas as coisas externas, e assegura a paz por si mesmo, sem temer nada, e é rica por não desejar riquezas.

4. O veículo no qual tomei meu lugar é uma carroça de agricultor. Apenas caminhando as mulas mostram que estão vivas. O cocheiro está descalço, e não porque é verão. Não consigo me forçar a desejar que outros considerem que esta minha carroça seja minha. O meu constrangimento com a verdade ainda resiste, veja você; e sempre que nos encontramos com um grupo mais suntuoso, ruborizo-me involuntariamente – prova de que essa conduta que eu aprovo e aplaudo ainda não ganhou uma habitação firme e resoluta dentro de mim. Aquele que se ruboriza em andar em uma carripana[2] se vangloriará quando passear com estilo.

5. Então, meu progresso ainda é insuficiente[3]. Ainda não tenho a coragem de reconhecer a minha frugalidade. Ainda estou incomodado com o que outros viajantes pensam de mim. Mas, em vez disso, eu realmente deveria ter pronunciado uma opinião contra aquilo em que a humanidade acredita, dizendo: “Você está louco, você está enganado, sua admiração se dedica a coisas supérfluas! Você não estima nenhum homem em seu valor real. Quando a propriedade é considerada, você avalia com o cálculo mais escrupuloso aqueles a quem você deve emprestar dinheiro ou benefícios, pois você incorpora benefícios também como pagamentos em seu livro caixa.”

6. Você diz: “Seu patrimônio é amplo, mas suas dívidas são grandes”. “Ele tem uma bela casa, mas ele construiu com capital emprestado”. “Nenhum homem exibirá um séquito mais brilhante de última hora, mas ele não pode quitar suas dívidas”. “Se pagar seus credores, ele não terá mais nada”. Então, você também deve se sentir obrigado a fazer o mesmo em todos os outros casos – descobrir por eliminação a quantidade de bens reais de cada homem.

7. Suponho que você chame um homem rico apenas porque leva consigo seu peitoral de ouro, mesmo em suas viagens, porque planta terras em todas as províncias, porque desenrola um grande livro-caixa, porque possui propriedades perto da cidade tão grande que os homens invejariam seus bens nas terras distantes da Apúlia[4]. Mas depois de ter mencionado todos esses fatos, ele é pobre. E porque? Ele está em dívida. “Até que ponto?” Você pergunta. Por tudo o que ele tem. Ou por acaso você pensa que importa se alguém emprestou de outro homem ou da Fortuna?

8. Que bem há em mulas gordas, todas da mesma cor? Para quê essas carruagens com baixos relevos em metal?

Corceis recobertos de púrpura, e coloridos panejamentos: são em ouro os arreios que lhes pendem sobre o peito, e, de ouro cobertos, é de ouro fulvo ainda o freio que mordemInstratos ostro alipedes pictisque tapetis, Aurea pectoribus deraissa monilia pendent, Tecti auro fulvom mandunt sub dentibus aurum.[5]

Nem o mestre nem a mula são melhorados por esses ornamentos.

9. Marco Catão, o Censor, cuja existência ajudou o Estado tanto quanto Cipião – pois enquanto Cipião lutou contra nossos inimigos, Catão lutou contra nossa má moral – costumava montar um burro e um burro daquele que carregava bolsas de sela contendo as necessidades do mestre. O como eu gostaria de vê-lo encontrar hoje na estrada um dos nossos janotas, com seus batedores e Numídios, e uma grande nuvem de poeira antes dele! Seu janota, sem dúvida, parece refinado e bem atendido em comparação com Marco Catão, seu janota, que, no meio de toda sua luxuosa parafernália, se preocupa principalmente com a espada ou com a faca de caça[6].

10. Que glória aos tempos em que vivia, pois, um general vitorioso, um censor e o que é mais notável de todos, um Catão, se contentava com um único pangaré, e com menos que um pangaré inteiro já que uma parte do animal era ocupada pela bagagem que pendia em ambos os lados. Você não preferiria, portanto, o corcel de Catão, aquele corcel único, selado pelo próprio Catão, ao séquito inteiro de póneis roliços, garanhões trotadores do janota?

11. Eu vejo que não haverá fim em lidar com esse tema, a menos que eu acabe com ele. Então, eu vou ficar em silêncio, pelo menos com referência a coisas supérfluas como estas; sem dúvida, o homem que primeiro as chamou de “impedimentos[7]“ teve uma suspeita profética de que seriam o tipo de coisa que agora são. No presente, gostaria de entregar-lhe os silogismos, ainda poucos, pertencentes à nossa escola sobre a questão da virtude, o que, em nossa opinião, é suficiente para a vida feliz.

12. “O que é bom faz os homens serem bons. Por exemplo, o que é bom na arte da música faz o músico. Mas os acontecimentos fortuitos não fazem um homem bom, portanto, os eventos de fortuna não são bens”. Os Peripatéticos respondem a isso dizendo que a premissa é falsa; que os homens, não em todos os casos, se tornam bons por meio do que é bom; que na música há algo de bom, como uma flauta, uma harpa ou um órgão adequado para acompanhar o canto; Mas que nenhum desses instrumentos faz o músico.

13. Devemos então responder: “Você não entende em que sentido usamos a frase ‘o que é bom na música’. Pois não queremos dizer o que equipa o músico, mas o que faz o músico, você, no entanto, está se referindo aos instrumentos da arte e não à arte propriamente. Se, no entanto, qualquer coisa na arte da música é boa, isso em todos os casos fazer o músico “.

14. E gostaria de colocar esta ideia ainda mais claramente. Definimos o bem na arte da música de duas maneiras: o que faz de um músico um executante, por outro, o que faz dele um artista. Agora, os instrumentos musicais têm a ver com sua performance, como flautas e órgãos e harpas; mas eles não têm que ver com a própria arte do músico. Pois ele é um artista mesmo sem eles; talvez ele esteja em falta com a habilidade de praticar sua arte. Mas o bem no homem não é duplo no mesmo modo; pois o bem do homem e o bem da vida são os mesmos.

15. “O que pode entrar na posse de qualquer homem, não importa o quão vil ou desprezado possa ser, não é um bem. Mas a riqueza vem ao cafetão e ao treinador de gladiadores, portanto, a riqueza não é um bem.” “Outra premissa errada”, dizem eles, “porque notamos que os bens entram na posse do homem mais vil, não só na arte do erudito, mas também na arte da cura ou na arte de navegar”.

16. Essas artes, no entanto, não fazem nenhuma declaração solene de grandeza da alma; elas não se levantam em nenhuma altura nem franzem o cenho sobre o que a fortuna pode trazer. É a virtude que levanta o homem e coloca-o superior ao que os mortais consideram caro; A virtude não anseia demais nem teme ao excesso o que é chamado de bem ou o que se chama de mau. Quelidon, um dos eunucos de Cleópatra, possuía uma grande riqueza; e ainda recentemente Natal – um homem cuja língua era tão sem vergonha quanto suja, um homem cuja boca empreendia os mais torpes ofícios – foi o herdeiro de muitos e também fez muitos herdeiros dele. O que então? Foi o dinheiro dele que o deixou impuro, ou ele próprio manchava seu dinheiro? O dinheiro cai nas mãos de certos homens assim como um denário[8] rola pelo esgoto.

17. A virtude está acima de todas essas coisas. É avaliada em moeda de sua própria cunhagem; e não considera que nenhum desses ganhos aleatórios sejam um bem. Mas a medicina e a navegação não proíbem a si e a seus seguidores de se maravilharem com essas coisas. Aquele que não é um homem bom pode, no entanto, ser um médico, um piloto ou um erudito, sim, tanto quanto pode ser um cozinheiro! Aquele que possui algo que não é de ordem aleatória, não pode ser chamado de tipo aleatório de homem: uma pessoa é do mesmo tipo do que possui.

18. Uma caixa forte vale apenas o que detém; ou melhor, é um mero acessório do que detém. Quem estabeleceu algum preço em uma carteira cheia, exceto o preço estabelecido pela contagem do dinheiro depositado na mesma? Isso também se aplica aos proprietários de grandes propriedades: são apenas acessórios e suplementos para suas posses. Por que, então, o homem sábio é grandioso? Porque ele tem uma grande alma. Consequentemente, é verdade que o que está ao alcançe mesmo da pessoa mais desprezível não é um bem.

19. Assim, nunca deveríamos considerar a passividade como um bem; pois mesmo a rã e a pulga possuem essa qualidade. Também não devemos considerar o ócio e a liberdade como um bem; pois o que é mais ocioso do que um verme? Você pergunta o que é que produz o homem sábio? O mesmo que produz um deus. Você deve admitir que o sábio tenha nele um elemento de piedade, santidade, grandeza. O bem não vem para todos, nem permite que qualquer pessoa aleatória o possua.

20. Observe:

Quais frutos cada país carrega ou não suportará; Aqui o milho, e lá a videira, ficam mais ricos. E em outros lugares ainda a arvore tenra e a grama espontaneamente vêm-se em verde. Veja como Tmolo envia seus perfumes de açafrão, E o marfim vem da Índia; os moles Sabeus enviam seu incenso e os Cálibes nus o ferro?.Et quid quaeque ferat regio et quid quaeque recuset: Hic segetes, illic veniunt felicius uvae. Arborei fetus alibi atque iniussa virescunt Graraina. Nonne vides, croceos ut Tmolus odores, India mittat ebur, molles sua tura Sabaei?  At Chalybes nudi ferrum.[9]

21. Estes produtos são divididos em países separados, a fim de que os seres humanos possam ser forçados a negociar entre si, cada um buscando algo de seu vizinho, por sua vez. Assim, o Bem Supremo também possui sua própria morada. Não cresce onde o marfim cresce, ou o ferro. Você pergunta onde o bem supremo mora? Na alma. E a menos que a alma seja pura e sagrada, não há espaço para o divino.

22. “O bem não resulta do mal. Mas as riquezas resultam da ganância, portanto, as riquezas não são boas”. “Não é verdade”, eles dizem, “que o bem não resulta do mal. Porque o dinheiro vem do sacrilégio e do roubo. Assim, embora o sacrilégio e o roubo sejam malignos, são maus apenas porque criam mais mal do que bem. Eles trazem ganho, mas o ganho é acompanhado pelo medo, ansiedade e tortura da mente e do corpo“.

23. Quem diz isso deve necessariamente admitir que o sacrilégio, apesar de ser um mal, porque cria muito mal, é ainda parcialmente bom, porque realiza uma certa quantidade de bem. O que pode ser mais monstruoso do que isso? Nós certamente convencemos o mundo de que o sacrilégio, o roubo e o adultério devem ser considerados como bens. Quantos homens há que não se envergonham do roubo, quantos se vangloriam de ter cometido adultério! Pois o sacrilégio insignificante é punido, mas o sacrilégio em grande escala é homenageado por uma procissão triunfal.

24. Além disso, o sacrilégio, se é totalmente bom em algum aspecto, também será honrado e será chamado de conduta correta; pois é uma conduta que nos interessa. Mas nenhum ser humano, em consideração séria, admite essa ideia. Portanto, bens não podem surgir do mal. Pois, se você se opuser, o sacrilégio é um mal pela única razão que traz muito mal, se você absolver o sacrilégio de sua punição e prometer imunidade, o sacrilégio será totalmente bom. E, no entanto, a maior punição para o crime, contudo, reside no próprio crime.

25. Você está enganado, eu afirmo, se propõe reservar suas punições para o carrasco ou a prisão; o crime é punido imediatamente após o ser cometido; ou melhor, no momento em que é cometido. Portanto, o bem não brota do mal, não mais do que os figos crescem das oliveiras. As coisas que crescem correspondem à sua semente; e os bens não podem se afastar da sua classe. Como o que é honorável não cresce a partir daquilo que é vil, então tampouco o bem cresce do mal. Pois os honoráveis e os bons são idênticos.

26. Certos membros de nossa escola se opõem a esta declaração da seguinte maneira: “Suponhamos que dinheiro obtido de qualquer fonte seja bom, mesmo que seja tomado por um ato de sacrilégio, o dinheiro não por essa razão deriva sua origem do sacrilégio. Você pode entender o que quero dizer através da seguinte ilustração: na mesma botija há um pedaço de ouro e há uma serpente. Se você pegar o ouro da botija, não é apenas porque a serpente também está, eu digo, que a botija me produz o ouro – porque também contém a serpente – mas cede o ouro, apesar de conter a serpente também. Igualmente, ganhos resultam do sacrilégio, não apenas porque o sacrilégio é um ato vil e maldito, mas porque contém ganho também. Como a serpente na botija é um mal, e não o ouro que fica ali, ao lado da serpente, então, em um ato de sacrilégio, é o crime, não o lucro, que é o mal”.

27. Mas eu me distingo desses homens; pois as condições em cada caso não são iguais. Em um caso, eu posso pegar o ouro sem a serpente, na outra, não posso ter o lucro sem cometer o sacrilégio. O ganho no último caso não está lado a lado com o crime; está indissociavelmente ligado com o crime.

28. “Aquilo que, enquanto desejamos alcançá-lo, envolve-nos em muitos males, não é um bem. Mas enquanto desejamos alcançar riquezas, nos envolvemos em muitos males, portanto, as riquezas não são um bem”, “Sua primeira premissa”, eles dizem, “contém dois significados: um é: nos envolvemos em muitos males enquanto desejamos alcançar riquezas. Mas também nos envolvemos em muitos males enquanto desejamos alcançar a virtude. Um homem, enquanto viaja para levar a cabo seus estudos, sofre naufrágio e outro é levado em cativeiro.

29. O segundo significado é o seguinte: aquilo através pelo qual nos envolvemos em males não é um bem. E não fluirá por lógica do nosso teorema que nos tornamos envolvidos nos males através das riquezas ou do prazer, caso contrário, se é através das riquezas que nos envolvemos em muitos males, as riquezas não só não são boas, mas são positivamente um mal. Você, no entanto, defende apenas que não são um bem. Além disso, o antagonista diz, você concede que as riquezas são de alguma utilidade. Você as conta entre as vantagens; e, ainda assim, não podem ser uma vantagem, pois é através da busca por riquezas que sofremos muitas desvantagens”.

30. Alguns homens respondem a esta objeção da seguinte maneira: “Você está enganado se atribuir desvantagens à riqueza. As riquezas não ferem ninguém; é a própria loucura de um homem, ou a iniquidade do seu vizinho, que o prejudica em cada caso, assim como uma espada por si só não mata; é apenas a arma usada pelo assassino. As próprias riquezas não o prejudicam, apenas por causa da riqueza é que você sofre danos”.

31. Eu penso que o raciocínio de Posidônio[10] é melhor: ele sustenta que as riquezas são uma causa do mal, não porque, por si mesmas, façam algum mal, mas porque encaminham os homens para que estejam prontos para fazer o mal. Pois o motivo eficiente, que necessariamente causa danos imediatamente, é uma coisa, e o motivo antecedente é outra. É essa causa antecedente que é inerente às riquezas; elas incham o espírito e engendram o orgulho, elas provocam impopularidade e perturbam a mente até tal ponto que a mera reputação de ter riqueza, embora devesse nos prejudicar, no entanto, oferece prazer.

32. Todos os bens, no entanto, deveriam ser livres de culpa; eles são puros, eles não corrompem o espírito, e eles não nos tentam. Eles, de fato, levantam e ampliam o espírito, mas sem infla-lo. As coisas que são bens produzem confiança, mas as riquezas produzem desprezo. As coisas que são bens nos dão grandeza de alma, mas a riqueza nos dá arrogância. E a arrogância não é senão uma falsa exibição de grandeza.

33. “De acordo com esse argumento”, diz ele: “as riquezas não são apenas um não bem, mas são um mal positivo”. Agora, elas seriam um mal se elas próprias causassem o mal, e se, como observei, fossem causa eficiente inerente a ele; na verdade, no entanto, é a causa antecedente que é inerente às riquezas, e, de fato, é essa a causa que, longe de simplesmente despertar o espírito, realmente o arrasta pela força. Sim, a riqueza derrama sobre nós uma aparência de bem, que é como a realidade e ganha credibilidade aos olhos de muitos homens.

34. A causa antecedente também é inerente em virtude; é isso que traz inveja – pois muitos homens se tornam impopulares por causa de sua sabedoria e muitos homens por causa de sua justiça. Mas essa causa, embora seja inerente à virtude, não é o resultado da própria virtude, nem é uma mera aparência da realidade; e, pelo contrário, muito mais similar à realidade é aquela visão que é exibida pela virtude sobre os espíritos dos homens, convocando-os a amá-la e se maravilhar com isso.

35. Posidônio pensa que o silogismo deve ser enquadrado na seguinte forma: “coisas que não conferem à alma grandeza ou confiança ou liberdade não são bens. Mas a riqueza, a saúde e condições semelhantes não fazem isso, portanto, riquezas e saúde não são bens“. Este silogismo, então, continua a se estender ainda mais da seguinte maneira: “As coisas que conferem à alma nenhuma grandeza ou confiança ou liberdade, mas, por outro lado, criam nela arrogância, vaidade e insolência, são males. As coisas que são presentes da Fortuna nos conduzem a esses caminhos do mal. Portanto, essas coisas não são bens“.

36. “Mas”, diz o objetor, “por tal raciocínio, as coisas que são presente da Fortuna nem sequer serão vantagens”. Não, as vantagens e os bens estão em uma situação diferente. Uma vantagem é aquilo que contém mais utilidade do que inconveniência. Mas um bem deve ser puro e sem nenhum elemento de nocividade. Uma coisa não é boa se contiver mais benefícios do que lesões, mas apenas se não contém nada além de benefício.

37. Além disso, as vantagens podem ser predicados de animais, de homens que são menos do que perfeitos e de tolos. Portanto, o vantajoso pode ter um elemento de desvantagem misturado com ele, mas a palavra “vantajosa” é usada do composto porque é julgada pelo seu elemento predominante. O bem, no entanto, somente pode ser predicado do homem sábio; é obrigado a ser puro, sem mistura.

38. Tenha bom ânimo; há apenas um nó para você desembaraçar, embora seja um nó para um Hércules: “O bem não resulta do mal. Mas as riquezas resultam de numerosos casos de pobreza, portanto, as riquezas não são boas”. Este silogismo não é reconhecido pela nossa escola, mas os Peripatéticos o criaram e deram sua solução. Posidônio, no entanto, observa que esta falácia, que tem sido discutida entre todas as escolas da dialética, é refutada por Antípatro[11] da seguinte maneira:

39. “A palavra ‘pobreza’ é usada para denotar, não a posse de algo, mas a não-possessão ou, como os antigos colocaram, privação, (pois os gregos usam a frase ‘por privação’, com o significado de ‘negativamente’”). ‘Pobreza’ afirma, não o que um homem tem, mas o que ele não tem. Consequentemente, não pode haver plenitude resultante de uma infinidade de vazios, muitas coisas positivas, e não muitas deficiências, compõem riquezas”. “Você tem”, diz ele, “uma noção errada do significado do que é a pobreza. Pois a pobreza não significa a posse de pouco, mas a falta de posse de muito, é usada, portanto, não para o que um homem tem, mas para o que ele não tem”.

40. Posso expressar minha tese mais facilmente se houvesse uma palavra em latim que pudesse traduzir a palavra grega que significa “ανύπαρκτο” (inexistência). Antípatro atribui essa qualidade à pobreza, mas, por minha parte, não consigo ver o que mais é a pobreza do que a posse de pouco. Se alguma vez tivermos muito tempo livre, investigaremos a questão: qual é a essência da riqueza e qual a essência da pobreza; mas quando chegar a hora, também devemos considerar se não é melhor tentar mitigar a pobreza, e aliviar a riqueza de sua arrogância, do que discutir as palavras como se a questão, das coisas já estivessem decididas.

41. Suponhamos que fomos convocados para uma assembleia; uma lei sobre a abolição das riquezas foi apresentada perante o grupo. Devemos apoiá-la, ou nos opor, se usarmos esses silogismos? Será que esses silogismos nos ajudam a fazer com que o povo romano exija a pobreza e a elogie a pobreza  – o fundamento e a causa de seu poderio! – e, por outro lado, encolher-se-ão com medo da riqueza atual, refletindo que eles a descobriram entre as vítimas de suas conquistas, que a riqueza é a fonte da qual a politica, o suborno e a desordem irromperam por uma cidade, uma vez caracterizada pelo maior escrúpulo e sobriedade, e que, por causa da riqueza, uma exposição muito esbanjadora é feita dos despojos das nações conquistadas. Refletindo, finalmente, que tudo o que um povo arrancou de todo o resto ainda pode ser mais facilmente arrebatado de um indivíduo? Não, seria melhor apoiar esta lei por nossa conduta e subjugar nossos desejos por agressão direta ao invés de rodeá-los pela lógica. Se pudermos, falemos com mais ousadia; se não, vamos falar mais francamente.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] isto é, na minha jornada, viajei com equipamento quase tão escasso como os de um náufrago.

[2] Veículo velho ou de má qualidade

[3] Sêneca, está longe de se considerar a si mesmo um sábio (sapiens); com modéstia ele se considera um homem que sabe qual a meta ideal a atingir, e para caminha neste rumo com empenho, sabendo  que ainda falta muito a percorrer. Ele tem-se por proficiens.

[4] É a região mais oriental de Itália. A sua parte mais a sul, a península de Salento, constitui o chamado “salto da bota italiana”.

[5] Trecho de Virgílio, Eneida, VII, descrevendo os presentes enviados pelo rei Latinus.

[6] Ou seja, atuar como gladiador ou caçador de feras. Crítica de Sêneca a sociedade da época: não era raro aristocratas que, por esnobismo, decidiam exibir-se no circo (ver, carta XCIX, 13). A paixão pelos espectáculos levou Nero a atuar no Circo Máximo como condutor de quadrigas (Suetônio, Nero XXII e Juvenal, II, 143). Até as mulheres participavam, por vezes, como a Mévia que caçava javalis na arena, conforme diz o mesmo Juvenal (I, 22-3).

[7] Do latim “impedimenta”, cujo significado literal é bagagem

[8] Moeda de baixo valor.

[9] Trecho de Geórgicas, I, 53-58, de Virgílio.

[10] Posidônio  (c. 135 a.C. – ca. 51 a.C.) foi um político, astrônomo, geógrafo, historiador e filósofo estoico grego. Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres – Livro VII

[11] Antípatro de Tarso (em grego: Ἀντίπατρος; morto em 130/129 a.C.) foi um filósofo estoico, discípulo e sucessor de Diógenes da Babilônia na escola estoica além de professor de Panécio de Rodes.

Carta 86: Sobre a Vila de Cipião

Na carta 86 temos outro fantástico relato da vida romana, com o paralelo entre os costumes da época de Sêneca, no Século I com a época de Cipião Africano, quase 3 séculos antes.

A carta critica o hedonismo da época de Sêneca e mostras como os romanos eram mais fortes e resistentes no passado. Nesse relato, vemos como o império romano era desenvolvido, pois os comentários de Sêneca sobre 200 anos no passado poderiam ser repetidos igualmente por qualquer morador do ocidente:

“Amigo, se você fosse mais sábio, você saberia que Cipião não se banhava todos os dias. É afirmado por aqueles que nos relatam os costumes da Roma antiga que os romanos lavavam apenas os braços e as pernas diariamente – porque esses eram os membros que reuniam a sujeira em seu trabalho diário – e banhavam-se completamente uma vez por semana. Aqui alguém replicará: “Sim, eram indivíduos evidentemente muito sujos! Como eles deveriam ter cheirado!” Mas eles cheiravam à batalha, à fazenda e ao heroísmo.” (LXXXVI, 12)

Na parte final Sêneca aborda técnicas de agricultura sobre cultivo de oliveiras, monstrando seu amor pela ciência e tecnologia.

(imagem: Cipião Africano Libertando Massiva por Giovanni Battista Tiepolo)


LXXXVI. Sobre a Vila de Cipião

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu estou descansando na casa de campo que uma vez pertenceu ao próprio Cipião Africano[1]; e escrevo-lhe depois de reverenciar seu espírito e um altar que estou inclinado a pensar ser o túmulo daquele grande guerreiro. Que a sua alma realmente retornou aos céus, de onde veio, estou convencido, não porque ele comandou exércitos poderosos – porque Cambises[2] também tinha poderosos exércitos, e Cambises era um louco que fez uso bem-sucedido de sua loucura – mas porque ele mostrou moderação e um senso de dever de maravilhosa amplitude. Considero este traço nele como mais admirável após sua retirada de sua terra natal do que enquanto ele estava defendendo-a; pois havia a alternativa: Cipião deveria permanecer em Roma, ou Roma deveria permanecer livre.

2. “É meu desejo“, disse ele, “não infringir o mínimo de nossas leis, ou de nossos costumes; que todos os cidadãos romanos tenham direitos iguais. Oh meu país, goza o máximo do bem que eu fiz, mas sem mim, eu fui a causa de sua liberdade, e eu serei também a sua prova, eu vou para o exílio, se é verdade que eu cresci além do que é a sua necessidade!

3. O que posso fazer senão admirar essa magnanimidade, que o levou a se retirar para o exílio voluntário e aliviar o Estado de sua carga? As coisas haviam ido tão longe que a liberdade prejudicaria Cipião, ou Cipião à liberdade. Qualquer uma dessas coisas era errada frente aos céus. Então ele cedeu às leis e retirou-se para Literno, pensando em fazer o Estado um devedor por seu próprio exílio não menos do que pelo exílio de Aníbal.

4. Eu inspecionei a casa, que é construída de pedra cortada; o muro que encerra um bosque; as torres também, fortificada em ambos os lados com a finalidade de defender a casa; o poço, escondido entre edifícios e arbustos, grande o suficiente para manter todo um exército fornecido; e o pequeno banho, sepultado na escuridão de acordo com o estilo antigo, pois nossos antepassados não pensavam que poderiam ter um banho quente, exceto fora de vista. Foi, portanto, um grande prazer eu comparar os costumes de Cipião com os nossos.

5. Pense, neste pequeno retiro, o “terror de Cartago”, a quem Roma deveria agradecer por não ter sido capturada mais de uma vez[3], costumava banhar um corpo cansado de trabalho nas batalhas! Pois ele estava acostumado a manter-se ocupado e a cultivar o solo com as próprias mãos, como os bons e antigos romanos costumavam fazer. Debaixo deste teto esquálido, ele esteve em pé; e este piso, medíocre como é, suportou seu peso.

6. Mas quem, nesses dias de hoje, poderia suportar banhar-se de tal maneira? Nós nos achamos pobres e mesquinhos se nossas paredes não são resplandecentes com espelhos grandes e dispendiosos; se os nossos mármores de Alexandria não são desencadeados por mosaicos de pedra numidiana[4], se suas molduras não são enfeitadas em todos os lados com padrões complexos, dispostos em muitas cores como pinturas; se os nossos tetos abobadados não estão cobertos por cristal; Se as nossas piscinas não estiverem revestidas com mármore de Tasos[5], antigamente uma ocorrência rara e maravilhosa em piscinas de templos, em que descemos nossos corpos depois de terem sido drenados por transpiração abundante; e, finalmente, se a água não verte por cumeeiras de prata.

7. Até agora tenho falado sobre os estabelecimentos de banhos comuns; o que devo dizer quando mencionar aqueles dos libertos[6]? Que grande número de estátuas, de colunas que não suportam nada, mas são construídas para decoração, apenas para gastar dinheiro! E que massas de água que caem de nível em nível! Nós nos tornamos tão luxuosos que não temos nada além de pedras preciosas para caminhar.

8. Neste banho de Cipião há pequenas fendas – você não pode chamá-las de janelas – cortadas do muro de pedra de modo a admitir a luz sem enfraquecer as fortificações; hoje em dia, no entanto, as pessoas consideram que os banhos servem apenas para as mariposas se não estiverem dispostos a receber o sol durante todo o dia através de largas janelas, se os homens não puderem tomar banho e se bronzear ao mesmo tempo e se não podem olhar para fora de suas banheiras sobre extensões de terra e mar. Assim vai; os estabelecimentos que haviam atraído multidões e ganharam admiração quando foram abertos pela primeira vez são evitados e colocados de volta na categoria de antiguidades veneráveis, assim que o luxo tenha criado algum dispositivo novo.

9. Nos dias de antigamente, no entanto, haviam poucos banhos[7], e eles não estavam equipados com qualquer ostentação. Por que os homens devem elaborar o que custa apenas um centavo, e foi inventado para uso, não apenas para o deleite? Os banhistas daqueles dias não tinham água jogada sobre eles, nem sempre corria pura como se de uma fonte termal; e eles não acreditavam que importava o quão perfeitamente pura era a água na qual eles deveriam deixar a sua sujeira.

10. Oh deuses, que prazer é entrar nesse banho escuro, coberto com um tipo comum de telhado, sabendo que ali o seu herói Catão como edil[8], ou Fabio Máximo, ou um dos Cornélios[9], aqueceu a água com suas próprias mãos! Pois isso também costumava ser o dever dos edis mais nobres – entrar nos lugares os quais a população utilizava e exigir que fossem limpos e aquecidos a uma temperatura exigida por considerações de uso e saúde, e não a temperatura que os homens recentemente usam, tão intensa como uma conflagração – tanto assim, de fato, que um escravo condenado por alguma ofensa criminal agora deve ser banhado vivo! Parece-me que hoje em dia não há diferença entre “o banho está escaldante” e “o banho está quente“.

11. Como algumas pessoas hoje condenam Cipião como provinciano, porque ele não deixou a luz do dia em sua sala de banho através de janelas largas, ou porque ele não se tostou na luz do sol forte e vacilou até estar cozido na água quente! “Pobre tolo“, eles dizem, “ele não sabia como viver! Ele não se banhou em água filtrada, muitas vezes era turva e depois de fortes chuvas quase lamacentas!” Mas não importava muito a Cipião se tivesse que banhar-se dessa maneira; ele foi lá para lavar o suor e não para ser ungido.

12. E como você acha que algumas pessoas me responderão? Elas dirão: “Eu não invejo Cipião, tinha verdadeiramente uma vida de exilado – suportar banhos como esses!” Amigo, se você fosse mais sábio, você saberia que Cipião não se banhava todos os dias. É afirmado por aqueles que nos relatam os costumes da Roma antiga que os romanos lavavam apenas os braços e as pernas diariamente – porque esses eram os membros que reuniam a sujeira em seu trabalho diário – e banhavam-se completamente uma vez por semana. Aqui alguém replicará: “Sim, eram indivíduos evidentemente muito sujos! Como eles deveriam ter cheirado!” Mas eles cheiravam à batalha, à fazenda e ao heroísmo. Agora que os estabelecimentos de banho reluzentes foram planejados, os homens são realmente mais nauseabundos do que anteriormente.

13. O que diz Horácio Flaco[10], quando desejou descrever um canalha, que era notório por seu luxo extremo? Ele diz. “Bucílio cheira a perfume[11]. Mostre-me um Bucílio nestes dias; seu cheiro seria o verdadeiro cheiro de cabra – ele tomaria o lugar do Gargónio com quem Horácio na mesma passagem o comparava. Hoje em dia não é suficiente usar perfume, a menos que você coloque um casaco novo duas ou três vezes por dia, para evitar que o cheiro da transpiração do corpo. Mas por que um homem deve se orgulhar desse perfume como se fosse dele próprio?

14. Se o que estou dizendo parecer a você muito pessimista, compare com a casa de campo de Cipião, onde aprendi uma lição de Egíalo, um chefe de família muito cuidadoso e agora dono dessa propriedade; ele me ensinou que uma árvore pode ser transplantada, não importa quão idosa. Nós, velhos, devemos aprender este preceito; pois não há nenhum de nós que não esteja plantando um jardim de oliveiras para o seu sucessor. Eu as vi ter frutos após três ou quatro anos de improdutividade

15. E você também deve ser sombreado pela árvore que

cresce lentamente, mas dará sombra aos seus futuros netos,Tarda venit seris factura nepotibus umbram,[12]

Como diz nosso poeta Virgílio. Virgílio procurou, no entanto, não o que estava mais próximo da verdade, mas o que era mais apropriado e direcionado, não a ensinar o fazendeiro, mas a agradar o leitor.

16. Por exemplo, ao omitir todos os outros erros dele, citarei a passagem em que incumbe hoje a mim detectar uma falha:

Na primavera semeia feijão, então, também, trevo, Vocês são bem-vindos pelos sulcos em ruínas; e O milhete pede cuidados anuaisVere fabis satio est: tunc te quoque, medica, putres Accipiunt sulci, et milio venit annua cura.[13]

Você pode julgar pelo seguinte incidente se essas plantas devem ser plantadas ao mesmo tempo ou se ambas devem ser semeadas na primavera. É junho no presente escrito, e estamos quase em julho; e eu vi neste momento os agricultores colhendo feijão e semeando milhete[14].

17. Mas para retornar ao nosso jardim de oliveiras novamente. Eu as vi sendo plantadas de duas maneiras. Se as árvores forem grandes, Egíalo pega seus troncos e corta os ramos até o comprimento de um pé cada; ele então transplanta junto com a base, depois de cortar as raízes, deixando apenas o bolbo, a parte grossa da qual as raízes se penduram. Ele mistura isso com esterco, e insere no buraco, não só cobrindo de terra, mas compactando e pressionando-a.

18. Não há nada, diz ele, mais eficaz do que este processo de embalagem; em outras palavras, afasta o frio e o vento. Além disso, o tronco não é muito abalado e, por esse motivo, a embalagem faz com que as raízes jovens cresçam e se firmem no solo. Essas são necessariamente ainda frágeis; elas provêm apenas uma leve fixação, e um pouco de agitação as arranca do lugar. Esta base, além disso, Egíalo desbasta antes de cobri-la. Pois ele afirma que novas raízes brotam de todas as partes que foram podadas. Além disso, o tronco em si não deve ficar a mais de três ou quatro pés do chão. Pois assim haverá, ao mesmo tempo, um crescimento espesso do fundo, e evitará um grande tronco, todo seco e murchado, como é o caso dos velhos olivais.

19. A segunda maneira de transplanta-las era a seguinte: ele colhe ramos de tipo semelhante que são fortes e de casca macia, como costumam ser as de jovens mudas. Estes crescem um pouco mais devagar, mas, como eles brotam do que é praticamente um corte, não há rugosidade ou feiura neles.

20. Isso também já vi recentemente – uma videira envelhecida transplantada de sua própria plantação. Neste caso, as radículas também devem ser reunidas, se possível, e então você deve encobrir a haste da videira de forma mais generosa, de modo que as raízes possam surgir mesmo do cepo. Eu vi tais plantações feitas não só em fevereiro, mas no final de março; as plantas tomam controle e abraçam os troncos dos ulmeiros.

21. Mas todas as árvores, ele declara, que são, por assim dizer, “espessas”, devem ser auxiliadas com irrigação; se tivermos essa ajuda, somos nossos próprios criadores de chuva. Eu não pretendo contar mais nada desses preceitos, com medo de que, como Egíalo fez comigo, talvez eu esteja lhe treinando-lhe para ser meu concorrente.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Veja Carta. LI, Cartas de um estoico, volume IPúblio Cornélio Cipião Africano (m. 183 a.C.; em latim: Publius Cornelius Scipio Africanus Maior), mais conhecido apenas como Cipião Africano, foi um político da família dos Cipiões da gente Cornélia da República Romana eleito cônsul por duas vezes, em 205 e 194 a.C.. Um dos maiores generais romanos de toda a história, derrotou Aníbal na Batalha de Zama, encerrando a Segunda Guerra Púnica. Quando Cipião morreu em meio a acusações de seus rivais de ter aceitado suborno do rei da Síria selêucida, Antíoco III, a quem havia derrotado na Ásia Menor, auto-exilado em sua villa na Campânia, teria dito: “Minha pátria ingrata não terá meus ossos antes de morrer”.

[2] Cambises foi imperador da Pérsia pertencente à dinastia Aquemênida, que reinou entre 580 e 559 a.C..

[3] Até então, ao longo da história de Roma a cidade só fora conquistada uma única vez, durante as invasões gaulesas na guerra de 390-38 3 a.C..

[4] Numídia é o antigo nome de uma região do norte da África localizada no território onde hoje estão a Argélia e, em menor proporção, a Tunísia ocidental. O nome foi utilizado pela primeira vez por Políbio e outros historiadores durante o século III a.C. para indicar o território a oeste de Cartago

[5] Tasos, Tasso ou Tassos (grego: Θάσος, transl. Thássos;) é uma ilha grega no mar Egeu, próxima à costa da Macedônia. Era famosa devido a suas minas de ouro e mármore.

[6] Sobretudo no tempo do imperador Cláudio, os escravos libertos, em especial os do imperador, adquiriram uma enorme importância política e social e acumularam fortunas consideráveis. O imperador Cláudio manteve 4 libertos com ministros de estado. O comportamento de “novos ricos” dos libertos ficou imortalizado na literatura pelo Trimalquião de Petrónio (Satiricon, XXVI, 7). Uma das ações conduzidas pela classe senatorial no início do governo de Nero consistiu em reduzir a influência enorme desses.  O próprio Sêneca escreveu no ano 44 uma carta de consoloção ao liberto Políbio, na tentativa de escapar do exílio, ver Consolação a Políbio.

[7] Houve um profusão de balneários no reinado de Augusto: em 33 a.C. uma contagem efecruada por Agripa recenseava, só em Roma, 170 banhos públicos.

[8] Na Roma Antiga, Edil era um funcionário ou magistrado responsável por assegurar o bom estado e funcionamento dos edifícios, dos bens e dos serviços públicos.

[9] A gente Cornélia (em latim: gens Cornelia; pl. Cornelii) foi a mais distinta de todas as gentes da Roma Antiga, especialmente por ter produzido a maior quantidade de pessoas ilustres entre todas as grandes casas de Roma. Juntamente com os Fábios e Valérios, os Cornélios competiam pelos cargos mais altos da magistratura romana do século III a.C. em diante e muitos dos grandes generais romanos também eram Cornélios.

[10] Quinto Horácio Flaco, em latim Quintus Horatius Flaccus, (65 a.C. — 27 de novembro de 8 a.C.) foi um poeta lírico e satírico romano, além de filósofo. É conhecido por ser um dos maiores poetas da Roma Antiga.

[11] Horácio, Sátiras., 1, 2, 27.

[12] Trecho de Geórgicas, v. II, 58 de Virgílio.

[13] Trecho de Geórgicas, v. I, 215-216 de Virgílio.

[14] O milhete, milho-miúdo, milho-alvo ou painço são denominações dadas a várias espécies cerealíferas produzidas um pouco por todo o mundo para alimentação humana e animal. Estas espécies não formam um grupo taxonômico mas antes um grupo agronômico, baseado em características e usos similares.

Carta 85: Sobre Silogismos Vazios

A carta 85 é longa, mas muito interessante e de difícil redução. Vale a pena ser lida integralmente. Responde ao pedido de Lucílio por explicações de silogismos da escola estoica e daqueles usados pelos oponentes. Sêneca reclama que não tem prazer ou vê utilidade nisso, e diz que “o resultado será um livro, em vez de uma carta!” (E com razão, a carta ficou com 41 parágrafos.)

Em resumo, trata-se de uma oposição à doutrina aristotélica do meio-termo também conhecida como “média áurea“. Esta doutrina dos peripatéticos defende que a felicidade seria atingida no meio termo desejável entre dois extremos, um de excesso e outro de deficiência. Sêneca discorda e afirma:

Eles não eliminam as paixões; eles apenas as moderam. Mas quão insignificante é a superioridade que atribuímos ao homem sábio, se ele é apenas mais corajoso do que o mais covarde, mais feliz do que o mais abatido, mais autocontrolado do que o mais desenfreado, e maior do que o mais baixo!” (LXXXV, 4)

Descreve e argumenta porque a escola estoica discorda dos seguidores de Artistóteles e aborda a firmeza de caráter do sábio estoico, assunto explorado em profundidade em “Sobre a Constância do Sábio“. A carta é concluída com um memorável parágrafo:

“Não era só de marfim que Fídias sabia fazer estátuas; ele também fez estátuas de bronze. Se você tivesse lhe dado mármore, ou um material ainda pior, ele teria feito dele a melhor estátua que o material permitiria. Assim, o sábio desenvolverá a virtude, se puder, no meio da riqueza ou, se não, no meio da pobreza; se possível, no seu próprio país – se não, no exílio; Se possível, como comandante – se não, como um soldado comum; se possível, em boa saúde – se não, enfraquecido.” (LVVVX, 40)

Imagem: Mural mostrando Aristóteles e Seus Discípulos. Universidade Nacional Kapodistriana de Atenas por Eduard Lebiedzki


LXXXV. Sobre Silogismos Vazios

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu estava inclinado a poupar você, e omitir qualquer problema intricado que ainda não tínhamos discutido; fiquei satisfeito em dar-lhe uma espécie de gosto das opiniões dos homens de nossa escola, que desejam provar que a virtude é por si só suficientemente capaz de obter a vida feliz. Mas agora você me mandou incluir todo o volume de nossos próprios silogismos ou daqueles que foram imaginados por outras escolas com a finalidade de nos menosprezar. Se eu estiver disposto a fazer isso, o resultado será um livro, em vez de uma carta! E declaro repetidas vezes que não tenho prazer em tais provas. Tenho vergonha de entrar na arena e empreender a batalha em nome dos deuses e dos homens armados apenas com uma sovela[1].

2. “Aquele que possui prudência é também contido, o que possui autocontenção também é inabalável, o inabalável é imperturbável, o imperturbável está livre da tristeza, o que está livre da tristeza é feliz. Portanto, o prudente é feliz, e a prudência é suficiente para constituir a vida feliz“.

3. Alguns dos peripatéticos[2] respondem a este silogismo interpretando “imperturbável”, “inabalável” e “livre da tristeza” de modo a tornar “imperturbável” quem raramente é perturbado e apenas um tanto moderado, e não aquele que nunca é perturbado. Da mesma forma, eles dizem que uma pessoa é dita “livre da tristeza” quando não está sujeita à tristeza, uma pessoa que raramente cai nesse estado censurável, e em um grau não muito grande. Não é, dizem eles, o natural humano que o espírito de um homem deva ser isento de tristeza, ou que o sábio não seja dominado pelo sofrimento, mas é apenas tocado por ele, e outros argumentos deste tipo, tudo de acordo com os ensinamentos de sua escola.

4. Eles não eliminam as paixões; eles apenas as moderam. Mas quão insignificante é a superioridade que atribuímos ao homem sábio, se ele é apenas mais corajoso do que o mais covarde, mais feliz do que o mais abatido, mais autocontrolado do que o mais desenfreado, e maior do que o mais baixo! Teria Ladas[3] orgulho de sua rapidez em correr, comparando-se com os coxos e os fracos?

Ela conseguia voar sobre a ponta das espigas de uma seara vi-rente sem na corrida atingir os tenros grãos; ou percorrer, suspensa, as grossas ondas do mar encapelado sem salpicar sequer os pés velozesIlla vel intactae segetis per summa volaret Gramina nec cursu teneras laesisset aristas, Vel mare per medium fluctu suspensa tumenti Ferret iter celeres nec tingueret aequore plantas.[4]

Esta é a velocidade estimada pelo seu próprio padrão, não do tipo que ganha elogios em comparação com o que é mais lento. Você chamaria de saudável um homem que tem um caso leve de febre? Não, pois uma boa saúde não significa doença moderada.

5. Dizem os peripatéticos: “O sábio é chamado imperturbável no sentido em que as romãs são chamadas maduras – não que não haja dureza em todas as suas sementes, mas que a dureza é menor do que era antes“. Essa visão é errada; pois não me refiro à eliminação gradual dos males em um homem bom, mas à completa ausência de males; não deveria haver nele nenhum mal, nem mesmo pequenos. Pois, se houver, crescerão e, à medida que crescerem, o estorvará. Assim como uma catarata completa cega totalmente os olhos, uma catarata de tamanho médio entorpece a visão.

6. Se por sua definição o homem sábio tem quaisquer paixões, sua razão não será nenhum adversário para elas e será carregada rapidamente, por assim dizer, em um córrego agitado. Particularmente se você atribuir a ele, não uma paixão contra qual deva lutar, mas todas as paixões. E uma multidão de tais, embora moderadas, podem afetá-lo mais do que a violência de uma poderosa paixão.

7. O sábio deles tem um desejo por dinheiro, embora em um grau moderado. Ele tem ambição, mas ainda não está totalmente despertada. Ele tem um temperamento quente, mas pode ser apaziguado. Ele tem inconstância, mas não o tipo que é muito caprichosa ou facilmente posta em movimento. Ele tem luxúria, mas não o tipo violento. Poderíamos lidar melhor com uma pessoa que possua um único vício pleno, do que com alguém que possua todos os vícios, mas nenhum deles em forma extrema.

8. Novamente, não faz diferença a grandeza da paixão; não importa qual seu tamanho possa ser, não reconhece nenhuma obediência, e não dá boas-vindas ao conselho. Assim como nenhum animal, selvagem ou domesticado, obedece à razão, já que natureza os fez surdos ao conselho; assim as paixões não seguem nem escutam, por mais que sejam moderadas. Tigres e leões nunca adiam a sua selvageria; eles às vezes a moderam, e então, quando você está menos preparado, sua ferocidade adormecida é despertada para a loucura. Vícios nunca são domesticados.

9. Novamente, se a razão prevalecer, as paixões nem sequer começarão; mas se elas se encaminharem contra a vontade da razão, elas se manterão contra a vontade da razão. Pois é mais fácil detê-las no começo do que controlá-las quando ganham força. Este meio caminho ( atenuação dos vícios, admitida pelos peripatéticos) é, portanto, enganoso e inútil; deve ser considerado como a declaração de que devemos ser moderadamente insanos ou moderadamente doentes.

10. A só a virtude possui moderação; os males que afligem a alma não admitem moderação. Você pode remove-los mais facilmente do que controlá-los. Pode-se duvidar de que os vícios da mente humana, quando se tornam crônicos e insensíveis (“doenças do espírito” nós os chamamos), estão fora de controle, como, por exemplo, a ganância, a crueldade e a indelicadeza? Portanto, as paixões também estão além do controle; porque é das paixões que passamos aos vícios.

11. Novamente, se você conceder quaisquer privilégios à tristeza, ao medo, ao desejo e a todos os outros impulsos errados, eles deixarão de estar sob nossa jurisdição. E porque? Simplesmente porque os meios de controlá-los estão fora do nosso próprio poder. Consequentemente, aumentarão proporcionalmente à medida que as causas pelas quais são agitados são maiores ou menores. O medo crescerá em proporções maiores, se o que causa o terror é visto como de maior magnitude ou em maior proximidade; e o desejo se tornará cada vez mais intenso na medida em que a esperança de um ganho maior o convoca à ação.

12. Se a existência das paixões não está no nosso próprio controle, nem está também a extensão de seu poder; pois se uma vez permitir que elas comecem, elas aumentarão juntamente com suas causas, e serão de qualquer tamanho que quiserem crescer. Além disso, não importa quão pequenos esses vícios são, eles crescem. O que é prejudicial nunca se mantém dentro dos limites. Não importa quão insignificantes sejam as doenças no começo, elas se arrastam rapidamente; e às vezes o menor aumento da doença derruba o corpo enfraquecido!

13. Mas que loucura é, quando o começo de certas coisas está situado fora de nosso controle, acreditar que seus fins estão sob nosso controle! Como terei eu o poder de trazer algo ao fim, quando eu não tive o poder de interromper isso no começo? Pois é mais fácil evitar uma coisa do que mantê-la sob controle após ela ter se estabelecido.

14. Alguns homens fazem uma distinção, dizendo: “Se um homem tem autocontrole e sabedoria, ele está de fato em paz quanto à atitude e ao hábito de sua mente, mas não quanto ao resultado, pois, no que se refere ao seu hábito mental, ele não está perturbado, triste ou temeroso, mas há muitas causas estranhas que o atingem e trazem perturbação a ele.”

15. O que eles querem dizer é isto: “Fulano não é de fato um homem de disposição irritada, mas ainda assim ele às vezes dá lugar à raiva“, e “ele não está, de fato, inclinado a temer, mas ainda assim às vezes tem medo“; em outras palavras, ele está livre da culpa, mas não está livre da paixão do medo. Se, no entanto, ao medo é dado uma entrada, irá pelo uso frequente passar a um vício; e a raiva, uma vez admitida na mente, irá alterar o hábito anterior de uma mente que antes estava livre de raiva.

16. Além disso, se o homem sábio, ao invés de desprezar todas as causas que vêm de fora, sempre teme alguma coisa, quando chegar o momento de ir bravamente de encontro as lanças ou chamas, em nome de seu país, suas leis, e sua liberdade, ele irá adiante relutantemente e com espírito enfraquecido. Tal inconsistência da alma, no entanto, não se adequa ao caráter de um homem sábio.

17. Então, novamente, devemos fazer com que dois princípios que devam ser demonstrados separadamente não devam ser confundidos. Pois a conclusão é alcançada independentemente de que só o que é bom que é honroso, e novamente independente a conclusão de que a virtude é suficiente para a vida feliz. Se só o que é bom que é honroso, todos concordam que a virtude é suficiente para o propósito de viver felizmente; mas, pelo contrário, se a virtude sozinha faz os homens felizes, não se admite que só o que é bom que é honroso.

18. Xenócrates[5] e Espeusipo[6] afirmam que um homem pode tornar-se feliz mesmo pela virtude sozinha, não, no entanto, que o que é honroso é o único bem[7]. Epicuro também decide que aquele que possui virtude é feliz, mas que a própria virtude não é suficiente para a vida feliz, porque o prazer que resulta da virtude, e não a própria virtude, torna-o feliz. Esta é uma distinção fútil. Pois o mesmo filósofo declara que a virtude nunca existe sem prazer; e portanto, se a virtude está sempre ligada ao prazer e sempre inseparável dela, a virtude é por si só suficiente. Pois a virtude mantém o prazer em sua companhia, e não existe sem ele, mesmo quando está sozinha.

19. Mas é absurdo dizer que um homem será feliz pela virtude sozinha, e ainda não absolutamente feliz. Eu não consigo descobrir como isso pode ser, uma vez que a vida feliz contém em si um bem que é perfeito e não pode ser melhorado, se um homem tem este bem, a vida é completamente feliz. Ora, se a vida dos deuses não contém nada maior ou melhor, e a vida feliz é divina, então não há mais altura para a qual um homem possa ser elevado.

20. Também, se à vida feliz não falta nada, então toda vida feliz é perfeita; é feliz e ao mesmo tempo a mais feliz. Você tem alguma dúvida de que a vida feliz é o Supremo Bem? Consequentemente, se ela possui o Bem Supremo, é supremamente feliz. Assim como o Bem Supremo não admite o aumento (pois o que será superior ao que é supremo?), exatamente assim a vida feliz também não pode ser aumentada; pois não existe sem o Bem Supremo. Se então você apresentar um homem que é “mais feliz” do que outro, você também vai apresentar alguém que é “muito mais feliz”; então você estará fazendo inúmeras distinções no Bem Supremo; embora eu entenda que o Bem Supremo seja aquele bem que não admite nenhum grau acima de si.

21. Se uma pessoa é menos feliz do que outra, segue-se que deseja ansiosamente a vida desse outro homem mais feliz do que a sua. Mas o homem feliz prefere a vida de nenhum outro homem a sua. Qualquer uma dessas duas coisas é incrível: que deva haver qualquer coisa faltando para um homem feliz desejar em preferência ao que é, ou que ele não deva preferir a coisa que é melhor do que o que já tem. Com certeza, quanto mais prudente ele for, tanto mais esforçara-se pelo melhor, e desejará alcançá-lo por todos os meios possíveis. Mas como se pode ser feliz quem ainda é capaz, ou melhor, quem ainda está obrigado a desejar algo mais?

22. Eu lhe direi qual é a origem desse erro: os homens não entendem que a vida feliz é uma unidade; pois é sua essência, e não sua extensão, que estabelece tal vida no mais nobre plano. Daí a completa igualdade entre a vida que é longa e a vida curta, entre aquilo que se estende e o que está confinado, entre aquilo cuja influência é sentida em muitos lugares e em muitas direções, e aquilo que se restringe a um interesse. Aqueles que contam a vida em número, ou por medida, ou por partes, roubam sua qualidade distintiva. Agora, na vida feliz, qual é a qualidade distintiva? É a sua plenitude.

23. Saciedade, penso eu, é o limite para o nosso comer ou beber. A come mais e B come menos; que diferença faz? Cada um está agora saciado. Ou A bebe mais e B bebe menos; que diferença faz? Cada um não está mais sedento, da mesma forma, A vive por muitos anos e B por menos; não importa, se os muitos anos de A trouxeram tanta felicidade quanto os poucos anos de B. Aquele que você diz ser “menos feliz” não é feliz; a palavra não admite nenhuma diminuição.

24. “Quem é valente não conhece o medo; quem não conhece o medo não conhece a tristeza; quem não conhece a tristeza é feliz.”. É a nossa própria escola que fabricou este silogismo; eles tentam refutá-lo com esta resposta, ou seja, que nós estoicos estamos assumindo uma premissa que é falsa e claramente controversa, – que o homem corajoso não sente medo. “O que!” Eles dirão: “Será que o homem corajoso não tem medo dos males que o ameaçam? Esta seria a condição de um louco, um lunático, em vez de um homem corajoso. O homem corajoso, é verdade, sentirá medo em apenas um leve grau, mas ele não está absolutamente livre de medo.”

25. Agora, aqueles que afirmam isso estão voltando a seu antigo argumento, na medida em que consideram os vícios de menor grau como equivalentes às virtudes. Pois, de fato, o homem que sente o medo, embora o sinta raramente e em menor grau, não está livre da maldade, mas está apenas perturbado por ela de uma forma suave. “Não é assim“, é a resposta, “porque eu considero que um homem é louco se ele não tem medo de males que pairam sobre sua cabeça.” O que você diz é perfeitamente verdadeiro, se as coisas que ameaçam são realmente males; mas se ele sabe que não são males e acredita que o único mal é a imoralidade, ele será compelido a enfrentar perigos sem ansiedade e desprezar as coisas que outros homens não podem deixar de temer. Ou, se é a característica de um tolo e um louco não temer males, então quanto mais sábio um homem for mais temerá tais coisas!

26. “É a doutrina de vocês estoicos, então,” eles respondem, “que um homem corajoso se exponha a perigos.” De jeito nenhum; ele simplesmente não os temerá, embora os evite. É bom para ele ter cuidado, mas não ter medo. “E então, não temerá a morte, o aprisionamento, o fogo, e todos os outros ataques da Fortuna?” De modo nenhum; pois ele sabe que eles não são males, mas só parecem ser. Ele considera todas essas coisas como espantalhos para assustar os homens.

27. Trace um quadro de escravidão, chicotes, correntes, carestia, mutilação por doença ou por tortura – ou qualquer outra coisa que possa querer mencionar; ele contará todas essas coisas como terrores causados pelo desarranjo da alma. Essas coisas só devem ser temidas por medrosos. Ou você considera como um mal algo que um dia poderemos ser obrigados a recorrer de nossa livre e espontânea vontade?

28. O que então, você pergunta, é um mal? É a submissão às coisas que se chamam males; é a entrega da própria liberdade ao seu controle, quando realmente devemos sofrer todas as coisas para preservar essa liberdade. A liberdade está perdida a menos que desprezemos as coisas que colocam o jugo[8] nos nossos pescoços. Se os homens soubessem o que é a bravura, eles não teriam dúvidas quanto ao que a conduta de um homem corajoso deveria ser. Pois a bravura não é imprudência, ou amor ao perigo, ou o cortejo de objetos inspiradores do medo; é o conhecimento que nos permite distinguir entre o que é o mal e o que não o é[9]. A bravura cuida de si mesmo, e também atura com a maior paciência todas as coisas que têm uma falsa aparência de serem más.

29. “O que então?” É a questão: “Se a espada é brandida sobre o pescoço do seu corajoso, se ele é perfurado neste lugar, se ele vê suas entranhas no colo, se ele for torturado novamente depois de ter descansado para que possa sentir a tortura com mais intensidade, e se o sangue corre novamente de seu intestino, onde há pouco deixou de fluir, ele não terá medo? Você diz que ele também não sente nenhuma dor?” Sim, ele sente dor; pois nenhuma virtude humana pode se livrar de sentidos. Mas ele não tem medo; sem abalo ele olha a baixo de uma altura elevada sobre seus sofrimentos. Você me pergunta que espírito o anima nessas circunstâncias? É o espírito de alguém que está confortando um amigo doente.

30. “Aquilo que é mau prejudica, o que prejudica piora o homem, mas a dor e a pobreza não pioram o homem, por isso não são males“. “Sua proposição,” diz o objetor, “é errada, pois o que prejudica não necessariamente faz alguém pior, a tempestade e a tormenta prejudicam o piloto, mas não fazem dele um piloto pior.”

31. Alguns estoicos respondem a este argumento da seguinte maneira: “O piloto torna-se um piloto pior por causa de tempestades ou rajadas, na medida em que não consegue cumprir o seu propósito e manter-se em seu curso; não se torna um piloto pior, mas em seu trabalho ele piora“. A isto, os peripatéticos retrucam: “Por isso, a pobreza tornará pior até mesmo o homem sábio, e assim também a dor, assim como qualquer outra coisa semelhante, pois, embora essas coisas não o roubem de sua virtude, elas irão prejudicar o trabalho da virtude“.

32. Esta seria uma afirmação correta, não fosse pelo fato de que o piloto e o sábio são dois tipos diferentes de pessoa. O propósito do homem sábio na condução de sua vida não é concluir todos os perigos que prova, mas fazer todas as coisas corretamente; O propósito do piloto, no entanto, é levar seu navio para o porto em todos os perigos. As artes são servas; elas devem realizar o que prometem fazer. Mas a sabedoria é senhora e governante. As artes rendem o serviço de escravo à vida; a sabedoria emite os comandos!

33. Para mim, eu sustento que uma resposta diferente deve ser dada: que a arte do piloto nunca é piorada pela tempestade, nem a aplicação de sua arte também. O piloto prometeu-lhe, não uma viagem próspera, mas um desempenho útil de sua tarefa – isto é, um conhecimento especializado de dirigir um navio. E quanto mais ele é dificultado pelo estresse da Fortuna, tanto mais seu conhecimento se torna aparente. Aquele que foi capaz de dizer: “Netuno, você nunca afundará este navio, exceto em um mar calmo[10]“, cumpriu os requisitos de sua arte; a tempestade não interfere com o trabalho do piloto, mas apenas com seu sucesso.

34. “O que, então”, você diz, “um piloto não é prejudicado por qualquer circunstância que não lhe permita fazer porto, frustre todos os seus esforços, e que o leva para o fundo, ou segura o navio em ferros ou remove seus mastros?” Não, não o prejudica como piloto, mas apenas como um viajante; caso contrário, ele não é um piloto. Na verdade, está longe de dificultar a arte do piloto, e até mesmo exibe a arte; pois qualquer um, nas palavras do provérbio, é um piloto em um mar calmo. Esses percalços obstruem a viagem, mas não o timoneiro na qualidade de timoneiro.

35. Um piloto tem um duplo papel: um que ele compartilha com todos os seus companheiros de viagem, pois ele também é um passageiro; o outro é peculiar a ele, pois ele é o piloto. A tempestade o prejudica como passageiro, mas não como piloto.

36. Mais uma vez, a arte do piloto é voltada ao exterior – diz respeito aos seus passageiros, assim como a arte de um médico diz respeito a seus pacientes. Mas o bem do sábio é um bem interno – pertence tanto àqueles em cuja companhia ele vive, como a ele também. Daí o nosso piloto pode ser prejudicado, uma vez que seus serviços, que foram prometidos aos outros, são prejudicados pela tempestade;

37. Mas o homem sábio não é prejudicado pela pobreza, pela dor ou por qualquer outra tempestade da vida. Pois todas as suas funções não são restringidas, mas apenas as que pertencem aos outros; ele mesmo está sempre em ação, e é maior em desempenho no momento em que a fortuna atrapalha seu caminho. Pois então ele está realmente envolvido no negócio da sabedoria; e esta sabedoria que já declarei ser, tanto o bem dos outros, como também de si próprio.

38. Além disso, ele não está impedido de ajudar os outros, mesmo no momento em que as circunstâncias restritivas o pressionam. Por causa de sua pobreza, ele é impedido de mostrar como o Estado deve ser governado; mas ele ensina, não obstante, como a pobreza deve ser governada. O seu trabalho continua durante toda a sua vida. Assim, nenhuma fortuna, nenhuma circunstância externa, pode isolar o sábio da ação. Pois a própria coisa que envolve sua atenção o impede de atender a outras coisas. Ele está pronto para qualquer resultado: se traz bens, ele os controla; se males, ele os conquista.

39. Tão profundamente, quero dizer, ele se treinou a demonstrar sua virtude tanto na prosperidade quanto na adversidade, e mantém seus olhos na própria virtude, não nos objetos com os quais a virtude trata. Daí que nem a pobreza, nem a dor, nem qualquer outra coisa que desvie os inexperientes e os conduz ao fracasso, o impede o sábio de seguir seu curso.

40. Você acha que ele está sobrecarregado por males? Ele faz uso deles. Não era só de marfim que Fídias[11] sabia fazer estátuas; ele também fez estátuas de bronze. Se você tivesse lhe dado mármore, ou um material ainda pior, ele teria feito dele a melhor estátua que o material permitiria. Assim, o sábio desenvolverá a virtude, se puder, no meio da riqueza ou, se não, no meio da pobreza; se possível, no seu próprio país – se não, no exílio; Se possível, como comandante – se não, como um soldado comum; se possível, em boa saúde – se não, enfraquecido. Qualquer que seja a fortuna que se encontre, conseguirá algo digno de nota.

41. Alguns dos domadores de animais são infalíveis; eles tomam os animais mais selvagens, que podem muito bem aterrorizar qualquer um que os encontrar, e subjuga-os à vontade do homem, não se contentando em expulsar a sua ferocidade, eles até os domam para que habitem a mesma casa. O treinador coloca a mão na boca do leão; o tigre é beijado por seu dono. O minúsculo etíope ordena o elefante afundar-se em seus joelhos, ou andar a corda. Da mesma forma, o sábio é uma mão qualificada para domar males. A dor, a carestia, a desgraça, a prisão, o exílio – estes são universalmente temíveis – mas quando eles encontram o homem sábio, são domesticados!

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sovela é uma ferramenta utilizada em curtumes e marcenarias que é usada para fazer um furo no couro, por onde, posteriormente uma linha com agulha será adentrada para costura. Alusão a arma não apropriada para a batalha em questão.

[2] Membros da Escola Peripatética, um círculo filosófico da Grécia Antiga que basicamente seguia os ensinamentos de Aristóteles, seu fundador. “Peripatético” (em grego, περιπατητικός), é a palavra grega para ‘ambulante’ ou ‘itinerante’. Peripatéticos (ou ‘os que passeiam’) eram assim chamados em razão do hábito do filósofo de ensinar ao ar livre, caminhando enquanto lia e dava preleções.

[3] Ladas de Aegio foi um antigo atleta grego listado por Eusébio de Cesaréia como vitorioso na corrida de estádios da 125ª Olimpíada (280 AC).

[4] Trecho de Eneida,VII, 808-811 de Virgílio. As linhas descrevem Camilla, a guerreira-caçadora dos Volscos.

[5] Xenócrates (406 a.C. — 314 a.C.) foi um filósofo grego discípulo de Platão, a quem acompanhou à Sicília, sucedendo Espeusipo, após o suicídio deste.

[6]Espeusipo (,408 a.C. — 339 a.C.) foi um filósofo grego, sobrinho de Platão, a quem sucedeu na direção da Academia.

[7] Ver carta LXXI, 18

[8] Jugo, parelha ou canga é uma peça de madeira encaixada sobre a cabeça dos bois para que possam ser atrelados a uma carroça ou a um arado.

[9] Além dessa definição (padrão estoico) da terceira virtude cardinal, também encontramos “conhecimento sobre o que escolher e o que evitar”, “saber suportar as coisas” e, finalmente, “a vontade de empreender grandes feitos”.

[10] A figura do piloto é frequente na filosofia, de Platão em diante. Veja Sêneca, Ep. XXX. O mesmo argumento, aplicado ao músico, é encontrado em Ep.LXXXVII.

[11] Fídias foi um célebre escultor da Grécia Antiga. Sua biografia é cheia de lacunas e incertezas, e o que se tem como certo é que ele foi o autor de duas das mais famosas estátuas da Antiguidade, a Atena Partenos e o Zeus Olímpico, e que sob a proteção de Péricles encarregou-se da supervisão de um vasto programa construtivo em Atenas, concentrado na reedificação da Acrópole, devastada pelos persas em 480 a.C.

Carta 84: Sobre coletar ideias

Sêneca começa a carta com uma anedota particular: diz estar “fazendo exercício por procuração” ou seja, viajava de liteira, e quem fazia exercício eram os escravos que o carregavam! Não é atoa que ele foi (e continua sendo) acusado de hipocrisia por recomendar pobreza e vida frugal enquanto era um dos homens mais ricos do império.

A carta 84 é uma profunda meditação sobre o processo e o propósito da leitura. Sêneca argumenta que a leitura impede que se absorva a si mesmo e que bons leitores estão envolvidos em uma relação de diálogo com seus textos. Sêneca sustenta ainda que o próprio ato de escrever deve ser um reflexo de leitura cuidadosa:

“a leitura, penso eu, é indispensável: principalmente, para impedir a auto complacência, e, além disso, depois de ter aprendido o que os outros descobriram por meio de seus estudos, me permitir julgar suas descobertas e conjecturar sobre as quais ainda precisam ser feitas.” (LXXXIV, 1)

Acima de tudo, ele se preocupa em que façamos do conhecimento nosso dever. Como sempre, Sêneca não hesita em misturar metáforas para ilustrar seu ponto de vista, ou em mudar rapidamente de uma analogia para outra. Começa com analogia com as abelhas, ou seja, de devemos coletar de diversas fontes, passa para a imagem de um coro de muitas vozes e então diz que a leitura deve ser como os alimentos que consumimos: só nos são benéficos se digeridos e assimilados:

“Devemos seguir o exemplo das abelhas, que esvoaçam e selecionam as flores que são adequadas para a produção de mel, e depois organizar e classificar em seus favos tudo o que trouxeram.” (LXXXIV, 3)

“Devemos digeri-lo; caso contrário, simplesmente entrará na memória e não acrescentará nosso poder de raciocínio.” (LXXXIV, 7)

A seção 11 e seguintes compreende uma exortação geral à filosofia, na qual Sêneca deixa seu ponto central para trás. Observe, no entanto, como a carta termina quando começa com referência a uma viagem. É quase como se estivéssemos imaginando Sêneca escrevendo esta carta no caminho enquanto ele é transportado pela cidade em sua liteira.

(Imagem: pintura por Piotr Stachiewicz)


LXXXIV. Sobre coletar ideias

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. As viagens às quais você se refere – jornadas que afastam a preguiça do meu sistema – considero serem produtivas tanto para a minha saúde como para os meus estudos. Você percebe porque elas beneficiam a minha saúde: uma vez que minha paixão pela literatura me torna preguiçoso e descuidado em relação ao meu corpo, eu posso fazer exercício por procuração[1]; quanto aos meus estudos, mostrar-lhe-ei porque as minhas viagens os ajudam, pois não deixei de ler de forma alguma. E a leitura, penso eu, é indispensável: principalmente, para impedir a auto complacência, e, além disso, depois de ter aprendido o que os outros descobriram por meio de seus estudos, me permitir julgar suas descobertas e conjecturar sobre as quais ainda precisam ser feitas. A leitura nutre a mente e a refresca quando está cansada de estudo; no entanto, este refresco não é obtido sem estudo.

2. Não devemos limitar-nos nem à escrita, nem à leitura; a escrita contínua irá macular nossa força e a esgotará; a leitura sozinha fará a nossa força flácida e aguada. É melhor recorrer a elas alternadamente, e misturar uma com a outra, para que os frutos da leitura possam ser reduzidos à forma concreta pela pena.

3. Devemos seguir, dizem os homens, o exemplo das abelhas, que esvoaçam e selecionam as flores que são adequadas para a produção de mel, e depois organizar e classificar em seus favos tudo o que trouxeram; essas abelhas, como diz nosso Virgílio:

“o liquido mel acumulam, e fazem inchar os alvéolos de doce néctarliquentia mella Stipant et dulci distendunt nectare cellas.[2]

4. Não é certo se o suco que obtêm das flores se forma logo no mel, ou se transformam aquilo que recolhem neste objeto delicioso misturando algo ou por uma determinada propriedade de sua respiração. Pois algumas autoridades acreditam que as abelhas não possuem a arte de fazer mel, mas apenas de colhê-lo; e dizem que na índia o mel é encontrado nas folhas de certos juncos, produzido por um orvalho peculiar a esse clima, ou pelo suco da própria cana[3], que tem uma doçura e uma riqueza incomuns. E em nossas próprias gramíneas também, eles dizem, a mesma qualidade existe, embora menos clara e menos evidente; e uma criatura nascida para cumprir tal função poderia caçá-la e coletá-la. Alguns outros sustentam que os materiais que as abelhas retiraram das mais delicadas plantas florescentes são transformados nessa substância peculiar por um processo de conservação e armazenamento cuidadoso, auxiliado pelo que se poderia chamar de fermentação – por meio do qual elementos separados são unidos em uma substância.

5. Mas eu não devo desviar do assunto que estamos discutindo. Nós também, eu digo, devemos copiar estas abelhas, e peneirar tudo o que temos reunido de um curso variado de leitura, pois tais coisas são melhor preservadas se forem mantidas separadas; então, aplicando o cuidado de supervisão com que a nossa natureza nos dotou, ou seja, os nossos dons naturais, devemos misturar esses vários sabores num delicioso composto que, apesar de revelar sua origem, é certamente uma coisa diferente daquela de onde veio. Isto é o que vemos a natureza fazer em nossos próprios corpos sem nenhum trabalho de nossa parte;

6. O alimento que comemos, enquanto retém a sua qualidade original e permaneça, em nossos estômagos como uma massa não diluída, é um fardo; mas ele se torna tecido e sangue apenas quando for alterado de sua forma original. Assim é com a comida que nutre nossa natureza superior – devemos cuidar para que tudo o que tenhamos ingerido não seja permitido permanecer inalterado, ou não será parte de nós.

7. Devemos digeri-lo; caso contrário, simplesmente entrará na memória e não acrescentará nosso poder de raciocínio. Acolhamos fielmente tais alimentos e os façamos nossos próprios, de modo que algo único possa ser formado de muitos elementos, assim como um número é formado por vários elementos sempre que, segundo nosso cálculo, montantes menores, cada um diferente dos outros, são somados. Isto é o que a nossa mente deve fazer: deve esconder todos os materiais utilizados, e trazer à luz apenas o que foi feito deles.

8. Mesmo que se torne visível em você uma semelhança com um autor que, por causa de sua admiração, deixou-lhe uma profunda impressão, gostaria que se assemelhasse a ele como uma criança se assemelha a seu pai, e não como um retrato se assemelha a seu original; pois uma imagem é uma coisa sem vida. “O que“, você diz, “não será óbvio o estilo cujo qual você está imitando, o método de raciocínio, as palavras pungentes?” Acho que às vezes é impossível ver quem está sendo imitado, se a cópia é verdadeira; pois uma intelegência verdadeira carimba sua própria forma sobre todas as características que ela tirou do que podemos chamar de original, de tal forma que elas são combinadas em uma unidade.

9. Você não vê quantas vozes há em um coro? No entanto, do conjunto resulta-se uma única voz. Nesse coro uma voz toma o tenor outra o baixo, outra o barítono. Há mulheres, também, assim como homens, e a flauta é misturada com elas. Nesse coro as vozes dos cantores individuais estão escondidas; o que ouvimos são as vozes de todos juntos.

10. Certamente, refiro-me ao coro que os antigos filósofos conheciam; em nossas apresentações atuais temos um número maior de cantores do que costumava ter de espectadores nos teatros antigos. Todas as alas estão repletas de filas de cantores; os instrumentos de bronze cercam o auditório; O palco ressoa com flautas e instrumentos de toda descrição; e mesmo assim, dos sons discordantes, é produzida uma harmonia. Eu gostaria de ter tal qualidade como esta para minha mente; ela deve ser equipada com muitas artes, muitos preceitos e padrões de conduta tomados de muitas épocas da história; mas tudo deve misturar harmoniosamente em um todo.

11. “Como“, você pergunta, “isso pode ser realizado?” Por esforço constante, e por não fazer nada sem a aprovação da razão. E, se quiserem ouvir a sua voz, ela lhe dirá: “Abandone as perseguições que até agora lhe fez correr para cá e para lá. Abandone as riquezas, que são um perigo ou um fardo para o possuidor. Abandone os prazeres do corpo e da mente, eles apenas o amolecem e o enfraquecem…” Abandone sua busca por cargos, é uma coisa empolada, ociosa e vazia, uma coisa que não tem limites, tão ansiosa em não ter superiores como em evitar até os iguais, sempre torturada pela inveja, e uma inveja ainda por cima dupla: veja quão miserável é a situação de um homem quando é objeto de inveja ele próprio, tem inveja de outros.

12. Você contempla as casas dos grandes senhores, aquelas de soleiras ruidosas dos clientes que se atropelam na entreda? Eles têm muitos insultos para você assim que entra pela porta, e ainda mais depois de ter entrado. Passe pelos degraus que levam às casas dos ricos, e as varandas tornadas perigosas pela enorme multidão; pois lá você estará, não meramente na borda de um precipício, mas também em um terreno escorregadiço. Em vez disso, dirija o seu caminho para a sabedoria, e procure seus caminhos, que são formas de transcender a paz e a abundância.

13. Tudo o que parece notável nos assuntos dos homens – por insignificante que sejam, e apenas se destacam em contraste com os objetos mais baixos – é, no entanto, atingido por um caminho difícil e penoso. É um caminho acidentado que leva às alturas da grandeza; mas se você deseja escalar este pico, que está bem acima do alcance da Fortuna, você realmente verá aos seus pés tudo o que os homens consideram como o mais sublime, mas deste ponto em diante você poderá prosseguir para o bem supremo em um terreno plano.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sêneca viajava de liteira, ou seja, na realidade quem fazia exercício eram os escravos que o carregavam.  Veja carta 55, em que Sêneca cita até que ponto um passeio de liteira pode equivaler a um exercício físico para um homem de idade.

[2] Trecho de Eneida, de Virgílio, I 432-3.

[3] Cana de açúcar é originária da Índia e, posteriormente, foi levada para a Europa e Américas.

Carta 83: Sobre a embriaguez

A Carta 83 trata do tema da bebida, e se um sábio pode ou não se embriagar. A carta, apesar de longa, é de leitura fácil e envolvente, conta com inúmeros exemplos e relatos da época de Roma.

Assim como na carta anterior, Sêneca discorda de Zenão, que proibia totalmente o uso do álcool, dizendo que um bom homem jamais se embriaga ao afirmar que “Ninguém confia um segredo a um homem bêbado, mas confiará um segredo a um homem bom, portanto, o bom homem não vai ficar embriagado“. (§9)

Sêneca considera essa afirmação uma falácia, argumentando:

“Perceba quão ridículo Zenão é feito quando montamos um semelhante silogismo em contraste com o seu. Há muitos, mas um bastará: ‘Ninguém confia um segredo a um homem quando ele está dormindo, mas confia-se um segredo a um homem bom, portanto, o homem bom não vai dormir.'” (LXXXIII, 9)

Para ele é permitido beber, e existem inúmeros exemplos de homens bons e modelos de conduta que eventualmente (ou em alguns casos frequentemente) se embriagam. Contudo, o sábio estoico sabe que não é uma atitute racional e que não deve ser tomada:

“Quão melhor é acusar em público a embriaguez com franqueza e expor seus vícios! Pois mesmo o bom homem médio evita-a, para não mencionar o sábio perfeito, que se satisfaz abrandando sua sede; o sábio, mesmo que de vez em quando guiado pelo bom ânimo, e, por causa de um amigo, seja levado um pouco longe demais, sempre para antes da embriaguez.(LXXXIII, 17)

Conclui a carta com uma frase genial, afirmando ser impossível argumentar que um sábio pode exagerar na bebida e manter um curso reto, o correto, é demonstrar que o que os homens chamam de prazeres são punições assim que ultrapassarem os limites devidos. (§26)

(Imagem: Baco por Guido Reni)


LXXXIII. Sobre a embriaguez

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você me pediu dar-lhe um relato de cada dia separado, e do dia inteiro também; então você me deve ter em boa opinião se acha que nestes meus dias não há nada a esconder. Seja como for, é assim que devemos viver, como se vivêssemos à vista de todos os homens; e é assim que devemos pensar, como se houvesse alguém que pudesse olhar para nossa alma mais íntima; e há quem possa assim olhar. Pois que beneficio há em algo escondido do homem, quando nada escapa da visão de Deus? Ele é testemunha de nossas almas, e Ele entra em nossos pensamentos – entra neles, eu digo, como alguém que pode a qualquer momento partir.

2. Por conseguinte, farei o que me pediu, e com prazer informarei por carta o que faço e em que sequência. Vou continuar observando-me continuamente, e – um hábito muito útil – irei rever cada dia. Pois isto é o que nos torna cheios de vícios: pois nenhum de nós olha para trás sobre sua própria vida. Nossos pensamentos são dedicados apenas ao que estamos prestes a fazer. No entanto, nossos planos para o futuro sempre dependem do passado.

3. Hoje tem sido ininterrupto; ninguém furtou a menor parte de mim. O tempo todo foi dividido entre o leito[1] e a leitura. Um breve espaço foi dado ao exercício físico, e neste terreno eu posso agradecer a velhice – meu exercício custa muito pouco esforço; assim que começo a me mexer, estou cansado. E cansaço é o objetivo e o fim do exercício, não importa quão forte seja.

4. Você pergunta quem são meus treinadores? Um é suficiente para mim, o escravo Fário[2], um companheiro agradável, como você sabe; mas vou trocá-lo por outro. No meu tempo de vida eu preciso de um que seja de ainda mais suaves anos. Fário, pelo menos, diz que ele e eu estamos no mesmo período de vida; pois estamos ambos perdendo os dentes. No entanto, mesmo agora, mal posso seguir o seu ritmo enquanto corre, e dentro de um curto espaço de tempo não poderei segui-lo; assim que você vê quão lucrativo é o exercício diário. Brevemente abre-se um grande intervalo entre duas pessoas que viajam de maneiras diferentes. Meu escravo está subindo no momento em que estou descendo e você certamente sabe quanto mais rápida a última o é. Não, eu estava errado; pois agora minha vida não está descendo; está caindo completamente.

5. Você pergunta, por tudo isso, como nossa corrida resultou hoje? Corremos para um empate, algo que raramente acontece em uma competição em corrida. Depois de me cansar dessa maneira (porque não posso chamar de exercício), tomei um banho frio; isto, em minha casa, significa apenas morno. Eu, o antigo entusiasta da água fria, que costumava celebrar o ano novo mergulhando no canal[3], que, tão naturalmente como eu ia fazer alguma leitura ou escrita, ou compor um discurso, costumava inaugurar o primeiro do ano com um mergulho no aqueduto de Virgo[4], mudei minha fidelidade, primeiro para o Tibre, e depois para o meu tanque favorito, que é aquecido apenas pelo sol, às vezes quando eu sou mais robusto e quando não há sequer uma falha em meus processos corporais. Tenho muito pouca energia para tomar banho.

6. Após o banho, algum pão envelhecido e café-da-manhã sem uma mesa; não há necessidade de lavar as mãos após uma refeição como essa. Então vem uma sesta muito curta. Você conhece meu hábito; aproveito um pouquinho de sono, desarrear, por assim dizer. Pois estou satisfeito se consigo parar de ficar acordado. Às vezes eu sei que dormi; outras vezes, tenho uma mera suspeita.

7. Eis que agora o barulho das corridas soa sobre mim! Meus ouvidos são castigados por aplausos súbitos e gerais. Mas isso não perturba meu pensamento nem quebra sua continuidade. Posso suportar um alvoroço com completa resignação. A mistura de vozes embaralhadas em uma nota soa para mim como o ruído das ondas, ou como o vento que açoita as copas das árvores, ou como qualquer outro som que não traz nenhum significado.

8. O que é, então, você pergunta, a que tenho dado a minha atenção? Vou dizer-lhe, um pensamento apoderou-se de minha mente, desde ontem, ou seja, o que os homens da maior sagacidade têm querido dizer quando ofereceram as provas mais frívolas e intrincadas para problemas da maior importância, provas que podem ser verdade, mas ainda assim se assemelham a falácias.

9. Zenão, o maior dos homens, o reverenciado fundador da nossa brava e sagrada escola de filosofia, deseja desencorajar-nos da embriaguez. Ouça, pois, os seus argumentos para provar que o bom homem não se embriagará: “Ninguém confia um segredo a um homem bêbado, mas confiará um segredo a um homem bom, portanto, o bom homem não vai ficar embriagado“. Perceba quão ridículo Zenão é feito quando montamos um semelhante silogismo em contraste com o seu. Há muitos, mas um bastará: “Ninguém confia um segredo a um homem quando ele está dormindo, mas confia-se um segredo a um homem bom, portanto, o homem bom não vai dormir.”

10. Posidônio advoga a causa de nosso mestre Zenão da única maneira possível; mas não pode, eu mantenho, ser defendido mesmo desta maneira. Pois Posidônio sustenta que a palavra “bêbado” é usada de duas maneiras, – em um o caso de um homem que é carregado de vinho e não tem controle sobre si mesmo; no outro, de um homem que está acostumado a ficar bêbado, e é um escravo do vício. Zenão, diz ele, queria dizer do último, o homem que está acostumado a se embebedar, não o homem que está bêbado; e ninguém poderia confiar a esta pessoa qualquer segredo, pois poderia ser tagarelado quando tal homem estivesse em seus copos.

11. Esta é uma falácia. Pois o primeiro silogismo se refere a aquele que está realmente bêbado e não a aquele que está prestes a ficar bêbado. Você certamente vai admitir que há uma grande diferença entre um homem que está bêbado e um beberrão. Aquele que está realmente bêbado pode estar neste estado pela primeira vez e pode não ter o hábito, enquanto o beberrão muitas vezes está livre da embriaguez. Interpreto, portanto, a palavra em seu sentido usual, especialmente porque o silogismo é estabelecido por um homem que pratica o uso cuidadoso das palavras e que pesa sua linguagem. Além disso, se é isso que Zenão quis dizer, e o que queria que significasse para nós, ele estava tentando aproveitar-se de uma palavra ambígua para atingir uma falácia; e nenhum homem deve fazer isto quando a verdade é o objeto da investigação.

12. Mas admitamos, de fato, que ele quis dizer o que Posidônio diz; mesmo assim, a conclusão é falsa, que segredos não são confiados a um bêbado habitual. Pense quantos soldados que não estão sempre sóbrios foram confiados por um general ou um capitão ou um centurião com mensagens que não poderiam ser divulgadas! Quanto ao notório plano de assassinato de Caio César, quero dizer, o César que conquistou Pompeu e obteve o controle do estado[5], Tílio Cimbro foi confiado por ele pelo não que menos Caio Cássio. Cássio, ao longo da sua vida, bebeu água; Enquanto Tílio Cimbro era um beberrão, bem como um arruaceiro. O próprio Cimbro aludiu a este fato, dizendo: “Eu carrego um mestre, não posso controlar minha bebida!

13. Portanto, cada um lembre-se daqueles que, ao seu conhecimento, não podem ser confiados com vinho, mas são confiados com a palavra; e ainda um caso ocorre a minha mente, que eu relatarei, para que não caia no esquecimento, pois a vida deve ser provida de ilustrações notáveis. Não vamos sempre recordar ao passado obscuro.

14. Lucio Pisão, o diretor de Segurança Pública em Roma, estava bêbado desde o momento de sua nomeação. Costumava passar a maior parte da noite em banquetes e dormia até o meio-dia. Era assim que passava as horas da manhã. No entanto, aplicou-se com toda a diligência aos seus deveres oficiais, que incluía a tutela da cidade. Até o virtuoso Augusto confiava nele com ordens secretas quando o colocou no comando da Trácia[6]. Pisão conquistou aquele país. Tibério também confiava nele quando aproveitava férias na Campânia, deixando para trás, na cidade, muitos assuntos críticos que suscitavam suspeita e ódio.

15. Acho que foi por causa da embriaguez de Pisão ter dado bom resultado para o Imperador que ele nomeou Cosso para o cargo de prefeito de Roma, um homem de autoridade e equilíbrio, mas tão embebido e mergulhado em bebida que uma vez, em uma reunião do Senado, para onde tinha ido depois de banquetear, foi dominado por um sono do qual não podia ser despertado, e teve de ser levado para casa. Foi a este homem que Tibério enviou muitas ordens, escritas em suas próprias mãos, ordens que ele acreditava que não deveria confiar nem mesmo aos oficiais de sua casa. Cosso nunca deixou escapar um único segredo, seja pessoal ou público.

16. Aboliremos, portanto, todas as arengas como esta: “Nenhum homem nos laços da embriaguez tem poder sobre a sua alma. À medida que os próprios toneis são arrebentados pelo vinho novo, e como a escória no fundo é levantada à superfície pela força da fermentação, assim, quando o vinho efervesce, o que está escondido embaixo é levantado e tornado visível. Como um homem subjugado pelo licor não pode manter a sua comida quando ele exagera no vinho, assim também ele não pode manter um segredo. Derrama imparcialmente tanto os seus próprios segredos como os de outras pessoas “.

17. Isto, naturalmente, é o que comumente acontece, mas também acontece – nós discutirmos assuntos sérios com aqueles que sabemos ter o hábito de beber. Por conseguinte, esta proposição, que é estabelecida sob a forma de uma defesa do silogismo de Zenão, é falsa – que os segredos não são confiados ao bêbado habitual. Quão melhor é acusar em público a embriaguez com franqueza e expor seus vícios! Pois mesmo o bom homem médio evita-a, para não mencionar o sábio perfeito, que se satisfaz abrandando sua sede; o sábio, mesmo que de vez em quando guiado pelo bom ânimo, e, por causa de um amigo, seja levado um pouco longe demais, sempre para antes da embriaguez.

18. Investigaremos mais tarde a questão se a mente do sábio é perturbada por excesso de vinho e se comete loucuras como as do bêbado; mas enquanto isso, se quiser provar que um bom homem não deve ficar bêbado, por que trilhar pela lógica? Mostre como é vil beber mais licor do que se pode suportar, e não saber a capacidade de seu próprio estômago; mostre quantas vezes o bêbado faz coisas que o fazem corar quando está sóbrio; afirmam que a embriaguez não é senão uma condição de insanidade propositadamente assumida. Prolongue a condição do bêbado a vários dias; terá alguma dúvida sobre sua loucura? Mesmo assim, a loucura não é menor; meramente dura um tempo mais curto.

19. Pense em Alexandre da Macedônia, que esfaqueou Clito[7], seu amigo mais querido e mais fiel, em um banquete; depois que Alexandre compreendeu o que tinha feito, desejou morrer, e seguramente devia ter morrido. A embriaguez acende e revela todo o tipo de vícios, e elimina o sentimento de vergonha que encobre nossas ações perversas. Pois mais homens se abstêm de ações proibidas porque têm vergonha de pecar do que porque suas inclinações são boas.

20. Quando a força do vinho se torna muito grande e ganha o controle sobre a mente, todo mal escondido sai do seu esconderijo. A embriaguez não cria vícios, apenas os trazem à vista; nessas ocasiões o homem lascivo não espera até a privacidade de um quarto, mas sem postergação dá carta branca às exigências de suas paixões; em tais ocasiões o homem sem castidade proclama e publica sua doença; nessas ocasiões seu companheiro intratável não restringe sua língua ou sua mão. O homem pedante aumenta sua arrogância, o homem cruel sua crueldade, o caluniador seu veneno. A cada vício é dado liberdade.

21. Além disso, esquecemos quem somos, pronunciamos palavras hesitantes e mal enunciadas, o olhar é inseguro, o passo vacilante, a cabeça confusa, o próprio teto se move como se um ciclone estivesse girando toda a casa, e o estômago sofre tortura quando o vinho gera gás e faz com que nossas próprias entranhas inchem. No entanto, na ocasião, esses problemas podem ser suportados, desde que o homem retenha sua força natural; mas o que pode fazer quando o sono prejudica seus poderes, e quando aquilo que foi embriaguez se torna indigestão?

22. Pense nas calamidades causadas pela embriaguez em uma nação! Este mal traiu aos seus inimigos as raças mais espirituosas e guerreiras; este mal abriu brechas em muros defendidos pela guerra obstinada de muitos anos; este mal tem colocado povos sob influência estrangeira, povos que eram totalmente inflexíveis e desafiadores do jugo; este mal conquistou pela taça de vinho aqueles que na batalha eram invencíveis.

23. Alexandre, que acabo de mencionar, passou por suas muitas lutas, suas muitas batalhas, suas muitas campanhas de inverno (através das quais conseguiu superar as desvantagens do tempo e do lugar), os muitos rios que fluíam de fontes desconhecidas e os muitos mares, todos em segurança; foi a intemperança em beber o que derrubou, e a famosa taça mortal de Hércules[8].

24. Que glória há em beber muito? Quando você ganha o prêmio, e os outros convidados do banquete, escarrapachados adormecidos ou vomitando, recusam seu desafio a ainda mais brindes; quando você é o último sobrevivente da orgia; quando vence cada um por seu magnífico espetáculo de proezas e não há nenhum homem que tenha se provado de tão grande capacidade como você, você é vencido pelo barril.

25. Marco Antônio era um grande homem, um homem de habilidade distinta; mas o que o arruinou e o levou a hábitos exóticos e vícios não romanos, se não a embriaguez e – não menos potente que o vinho – o amor por Cleópatra? Foi isso que o fez inimigo do Estado; isto foi o que o tornou fraco para seus inimigos; foi isso que o fez cruel, quando, sentado à mesa, lhe trouxeram as cabeças dos líderes da República[9]; quando no meio das festas mais elaboradas e do luxo régio ele reconhecia os rostos e as mãos dos homens que havia proscrito; quando, ainda que cheio de vinho, ainda tinha sede de sangue. É intolerável que estivesse bebendo enquanto fazia tais coisas; quão mais intolerável que tenha feito essas coisas enquanto realmente bêbado!

26. Crueldade geralmente segue a bebedeira, pois a solidez mental de um homem é corrompida e tornada selvagem. Assim como uma doença persistente faz os homens ranzinzas e irritáveis e os faz selvagens na mínima oposição de seus desejos, assim também ataques contínuos de embriaguez bestializam a alma. Pois quando as pessoas estão frequentemente fora de si, o hábito da loucura perdura, e os vícios que o licor aflora retêm seu poder mesmo quando o licor se vai.

27. Portanto, você deve expor por que o sábio não deve ficar embriagado. Explique por fatos, e não por meras palavras, a hediondez da coisa e seus males assombradores. Faça o que é mais fácil de tudo – ou seja, demonstre que o que os homens chamam de prazeres são punições assim que ultrapassarem os limites devidos. Pois se você tentar provar que o sábio pode se saciar com muito vinho e ainda manter seu curso reto, mesmo que ele esteja bêbado, você vai acabar por inferir por silogismos que ele não vai morrer se ele engolir veneno, que não vai dormir se tomar uma poção sonífera, que não vai vomitar e rejeitar a matéria que entope seu estômago quando você lhe dá heléboro[10]. Mas, quando os pés de um homem cambaleiam e sua língua está instável, que razão você tem para acreditar que ele esteja em parte sóbrio e em parte bêbado?

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Não significa que passou metade do dia a dormir, pois ele necessitava pouco do sono (§ 6). O leito de que se trata aqui, portanto, é uma espécie de divã no qual se reclinava para meditar quando não estava à mesa de trabalho.

[2] Pharius.

[3] Inverno no hemisfério norte.

[4] Construído por Marcos Agripa; Atualmente fonte de Trevi.

[5] O preciosismo de Sêneca é necessário porque Caio César era o nome comumente usado para designar Calígula.

[6] A Trácia é uma região histórica do sudeste da Europa. Antiga região da Macedônia, atualmente é dividida entre a Grécia, Turquia e a Bulgária.

[7] Clito, o Negro foi um oficial do exército macedônio liderado por Alexandre, o Grande. Ele salvou a vida de Alexandre na Batalha do Grânico. Clito foi, mais tarde, morto pelas mãos do próprio Alexandre durante uma bebedeira.

[8] Há uma versão , não confirmada, que Alexandre teria morrido após beber da “Taça de Hércules” em uma sessão de forte bebedeira.

[9] Por ordem de Marco Antônio, a cabeça de Cícero cabeça foi pregada na Rostra no Fórum Romano. Segundo Dião Cássio a esposa de Antônio, Fúlvia, pegou a cabeça de Cícero, arrancou sua língua e a espetou repetidas vezes com um grampo de cabelo, uma vingança final contra o poder da oratória do inimigo de seu marido.

[10][10] Uma planta que possuía propriedades catárticas e era amplamente utilizada pelos antigos. Também aplicada em casos de perturbação mental.

Carta 82: Sobre o medo natural da morte

300

Após algum tempo, retomamos a programação normal, as cartas de Sêneca. Na carta 82 mais uma vez o tema é a medo da morte, usando o assunto para se aprofundar num conceito muito importante do estoicismo: o significado de “indiferente“.

A carta é interessante pois mostra a independência de Sêneca ao discordar e criticar Zenão, o fundador do estoicismo. Sêneca diz que não é papel de um filósofo discutir silogismos e dialética, mas sim criar mecanismos para nos ajudar a enfrentar ansiedades e medos:

“Mas, de minha parte, recuso-me a reduzir tais assuntos a uma questão de regras dialéticas ou às sutilezas de um sistema completamente desgastado. Fora, eu digo, com todo esse tipo de coisa que faz um homem sentir-se, quando lhe é proposta uma pergunta, que ele está cercado e forçado a admitir uma premissa, e então o faz dizer uma coisa em sua resposta quando sua verdadeira opinião é outra”. (LXXXII, 19)

A definição de Indiferentes de Sêneca é a clássica do estoicismo:

Eu classifico como “indiferente” – ou seja, nem o bem nem o mal – a doença, a dor, a pobreza, o exílio, a morte. Nenhuma dessas coisas é intrinsecamente gloriosa; mas nada pode ser glorioso além delas. Pois não é a pobreza que louvamos, é o homem a quem a pobreza não pode humilhar ou dobrar. (…) É a maldade ou a virtude que concede o nome de bem ou mal. Um objeto não é por sua própria essência nem quente nem frio; ele é aquecido quando jogado em um forno, e resfriado quando colocado em água”. (LXXXII, 10-11;14)

Contudo, Sêneca diz que chamar a morte de indiferente é “forçar a barra” e que as pessoas dificilmente concordariam com isso. Portanto, embora a morte seja algo indiferente, não é, algo que seja facilmente ignorado, pois:

“Não é natural que um homem proceda de bom grado a um destino que acredita ser ruim; ele irá lentamente e com relutância. Mas nada glorioso pode resultar da relutância e covardia; a virtude não faz nada sob compulsão”. (LXXXII, 17)

Sêneca conclui a carta citando os trezentos de Leônidas e os Fábios, exemplos de comandantes que conduziram seus exércitos para a morte certa pois era o que deveria ser feito.


Imagem cena do filme 300.

Iria usar a pintura clássica de Leônidas nas Termópilas por Jacques Louis David… mas por algum motivo, esses guerreiros não me convencem.


LXXXII. Sobre o medo natural da morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Já deixei de estar ansioso por você. “Quem, então, dos deuses”, você pergunta, “você encontrou um fiador?” Um deus, deixe-me dizer-lhe, que não engana ninguém, – uma alma em amor com o que é reto e bom. A melhor parte de si mesmo está em terreno seguro. A fortuna pode infligir dano a você; o que é mais pertinente é que não tenho medo de que você cause dano a si mesmo. Proceda como você começou, e resolva-se neste modo de vida, não com luxo, mas com calma.

2. Prefiro estar em apuros ao invés de em luxo; e você deve interpretar melhor o termo “em apuros”, como o uso popular costuma interpretá-lo: viver uma vida “dura”, “áspera”, “cansativa”. Nós costumamos ouvir a vida de certos homens enaltecidas dessa forma, quando eles são objetos de impopularidade: “Fulano vive luxuosamente”; mas com isso eles querem dizer: “Ele é amolecido pelo luxo.” Pois a alma é efeminada gradualmente e enfraquecida até corresponder ao sossego e preguiça em que se encontra. Eis que não é melhor para alguém que é mesmo um homem se endurecer, ter ânimo vigoroso? Em seguida, estes mesmos fanfarrões temem que o que fizeram de suas próprias vidas. Há muita diferença entre estar ocioso e estar enterrado!

3. “Mas”, você diz, “não é melhor até mesmo estar ocioso do que girar nesses redemoinhos de distração empresarial?” Ambos os extremos devem ser depreciados – tanto a tensão e lassidão. Considero que aquele que está deitado em um leito perfumado não é menos morto do que aquele que é arrastado pela forca do carrasco. Ociosidade sem estudo é a morte; é um túmulo para o homem vivo.

4. Qual é a vantagem da aposentadoria? Como se as verdadeiras causas de nossas ansiedades não nos seguissem através dos mares! Que esconderijo existe, onde o medo da morte não possa entrar? Que covil pacífico existe, tão fortificado e até agora seguro que a dor não o encha de medo? Onde quer que você se esconda, os males humanos farão um alvoroço ao redor. Há muitas coisas externas que nos cercam, para nos enganar ou pesar sobre nós; há muitas coisas dentro das quais, mesmo em meio à solidão, se preocupam e fermentam.

5. Portanto, envolva-se com a filosofia, uma muralha inexpugnável. Embora seja assaltada por muitos mecanismos, a Fortuna não pode encontrar passagem nela. A alma permanece em terreno inatacável, quando abandona as coisas externas; é independente em sua própria fortaleza; e cada arma que é atirada fica aquém do alvo. A fortuna não tem o longo alcance com que creditamos a ela; ela não pode atingir ninguém a não ser aquele que se apega a ela.

6. Vamos então recuar dela o mais que pudermos. Isso só será possível para nós por via do autoconhecimento e da natureza[1]. A alma deve saber para onde vai e de onde veio, o que é bom para ela e o que é mau, o que procurar e o que evitar, e o que a razão distingue entre o que é desejável e indesejável e, assim, domina a loucura de nossos desejos e acalma a violência de nossos medos.

7. Alguns homens se lisonjeiam de terem controlado esses males sozinhos, mesmo sem o auxílio da filosofia; mas quando algum acidente os tira da guarda, uma confissão tardia de erro é arrancada deles. Suas palavras atrevidas perecem de seus lábios quando o torturador lhes ordena que estendam suas mãos, e quando a morte se aproxima! Poderia dizer a esse homem: “Era fácil para você desafiar males que não estavam próximos, mas aqui vem a dor, que você declarou que poderia suportar, aqui vem a morte, contra a qual você se gabou! O chicote estala, a espada cintila:

Ah, mostra agora, Eneias, a sua coragem, a sua energia!”Nunc anirais opus, Aenea, nunc pectore firmo.[2]

8. Esta força de coração, no entanto, virá de estudo constante, desde que você pratique, não com a língua, mas com a alma, e desde que você se prepare para enfrentar a morte. Para se capacitar para encontrar a morte, você não pode esperar nenhum incentivo ou elogio daqueles que tentam fazer você acreditar, por meio de sua lógica minuciosa, que a morte não é nenhum mal. Pois eu tenho prazer, ó excelente Lucílio, em zombar dos absurdos dos gregos, dos quais, para minha contínua surpresa, ainda não consegui me livrar.

9. Nosso mestre Zenão usa um silogismo como este: “Nenhum mal é glorioso, mas a morte é gloriosa, portanto a morte não é mal[3]“. Uma cura, Zenão! Fiquei livre do medo; doravante, não hesitarei em pôr meu pescoço sobre o patíbulo. Você não vai pronunciar palavras mais severas em vez de despertar um moribundo para o riso? De fato, Lucílio, eu não poderia facilmente dizer-lhe se aquele que pensa que esta removendo o medo da morte por estabelecer este silogismo é o mais tolo, ou aquele que tenta refutá-lo, como se tivesse algo a ver com o assunto!

10. Pois o próprio contestante propôs um contra silogismo, baseado na proposição de que consideramos a morte como “indiferente” – uma das coisas que os gregos chamam de “Adiáfora[4]”. “Nada”, diz ele, “que é indiferente pode ser glorioso, a morte é gloriosa, portanto a morte não é indiferente”. Você compreende a falácia complicada que está contida neste silogismo. – a mera morte não é, de fato, gloriosa; Mas uma morte corajosa é gloriosa. E quando você diz: “Nada que seja indiferente é glorioso”, eu te concedo isso, e declaro que nada é glorioso exceto quando trata de coisas indiferentes. Eu classifico como “indiferente” – ou seja, nem o bem nem o mal – a doença, a dor, a pobreza, o exílio, a morte.

11. Nenhuma dessas coisas é intrinsecamente gloriosa; mas nada pode ser glorioso além delas. Pois não é a pobreza que louvamos, é o homem a quem a pobreza não pode humilhar ou dobrar. Nem é o exílio que louvamos, é o homem que se retira para o exílio no espírito em que teria enviado outro para o exílio[5]. Não é a dor que louvamos, é o homem a quem a dor não coagiu. Ninguém elogia a morte em si, mas o homem cuja alma a morte tira antes que possa amaldiçoa-la.

12. Todas estas coisas não são em si nem honradas nem gloriosas; mas qualquer uma delas que a virtude tem visitado e tocado é feita honrada e gloriosa pela virtude; elas se limitam ao meio, e a questão decisiva é apenas se a maldade ou a virtude tem sobrepujado sobre elas. Por exemplo, a morte que no caso de Catão é gloriosa, no caso de Brutus[6] é vil e vergonhosa. Pois este Brutus, condenado à morte, estava tentando obter protelação; retirou-se um instante para se aliviar; quando convocado para morrer e ordenado a desnudar sua garganta, ele exclamou: “Vou mostrar a minha garganta, se apenas eu puder viver!” Que loucura é fugir, quando é impossível voltar atrás! “Vou desnudar minha garganta, se eu puder viver!” Ele chegou muito perto de dizer também: “mesmo sob Antônio!” Este sujeito merecia, de fato, ser condenado à vida!

13. Mas, como eu comentava, você vê que a morte em si não é nem um mal nem um bem; Catão experimentou a morte com a maior honra, Brutus do modo mais indigno. Tudo, se você adicionar virtude, assume uma glória que não possuía antes. Falamos de um quarto muito claro, mesmo que o mesmo quarto seja completamente escuro durante a noite.

14. É o dia que o enche de luz, e a noite que rouba a luz; assim é com as coisas que chamamos de indiferentes ou “intermediárias”, como a riqueza, a força, a beleza, os títulos, a realeza e os seus opostos, a morte, o exílio, a má saúde, a dor e todos esses males, medos que nos perturbam em maior ou menor grau; é a maldade ou a virtude que concede o nome de bem ou mal. Um objeto não é por sua própria essência nem quente nem frio; ele é aquecido quando jogado em um forno, e resfriado quando colocado em água. A morte é honrosa quando relacionada com aquilo que é honroso; como honroso quero dizer virtude e uma alma que despreze as piores dificuldades.

15. Além disso, há grandes distinções entre essas qualidades que chamamos de “medianas”. Por exemplo, a morte não é tão indiferente quanto a questão de saber se os cabelos devem ser usados lisos ou cacheados. A morte pertence àquelas coisas que não são realmente más, mas ainda têm nelas uma aparência de mal; pois há arraigado em nós o amor próprio, o desejo de existência e autopreservação, e também a aversão pela extinção, porque a morte parece roubar-nos de muitos bens e nos retirar da abundância a que nos acostumamos. E há outro elemento que nos distingue da morte, já estamos familiarizados com o presente, mas ignoramos o futuro em que nos transferiremos, e nos afastamos do desconhecido. Além disso, é natural temer o mundo das sombras, onde a morte supostamente nos conduz.

16. Portanto, embora a morte seja algo indiferente, não é, no entanto, uma coisa que possamos facilmente ignorar. A alma deve ser afiada pela longa prática, para que possa aprender a suportar a visão e a aproximação da morte. A morte deve ser desprezada mais do que costuma ser desprezada. Porque acreditamos em muitas das histórias sobre a morte. Muitos poetas se esforçaram para aumentar sua má reputação; eles retratam a prisão no mundo inferior e a terra oprimida pela noite eterna, onde

o gigantesco porteiro do Orca, estendido no antro sangrento sobre ossadas meio roídas, assusta com o seu ladrar incessante as almas exangues!”Ingens ianitor Orci Ossa super recubans antro semesa cruento, Aeternum latrans exsangues terreat umbras.[7]

Mesmo se você possa ganhar o seu ponto e provar que estas são meras histórias[8] e que nada deve ser temido pelos mortos, outro medo se apodera de você. Pois o medo de ir ao mundo subterrâneo é igualado pelo medo de não ir a lugar algum.

17. Em face dessas noções, que a opinião duradoura tem alimentado em nossos ouvidos, como pode a corajosa resistência sobre morte ser algo mais que glorioso e digno de se classificar entre as maiores realizações da mente humana? Pois a mente nunca se elevará à virtude se acreditar que a morte é um mal; mas ela se elevará se considerar que a morte é uma questão indiferente. Não é natural que um homem proceda de bom grado a um destino que acredita ser ruim; ele irá lentamente e com relutância. Mas nada glorioso pode resultar da relutância e covardia; a virtude não faz nada sob compulsão.

18. Além disso, nenhum ato que um homem faz é honroso, a menos que tenha se dedicado a ele e atendido a ele com todo o seu coração, rebelando contra ele com nenhuma porção de seu ser. Quando, no entanto, um homem afronta um mal, seja pelo medo de males piores, seja na esperança de bens cujo alcance é suficiente para poder engolir o único mal que ele deve suportar – nesse caso o julgamento do agente é puxado em duas direções. Por um lado, está o motivo que o obriga a realizar seu propósito; por outro, o motivo que o restringe e o faz fugir de algo que despertou sua apreensão ou o levou ao perigo. Por isso, ele está rasgado em diferentes direções; e se isso acontecer, a glória de seu ato se foi. Pois a virtude realiza seus planos somente quando o espírito está em harmonia consigo mesmo, sem nenhum elemento de medo em qualquer de suas ações.

Não ceda ao mal, mas ainda valente vá, onde tua fortuna permitir.Tu ne cede malis, sed contra audentior ito Qua tua te fortuna sinet.[9]

19. Você não pode “ainda valente ir“, se está convencido de que essas coisas são os males reais. Arranque esta ideia de sua alma; caso contrário, suas apreensões permanecerão indecisas e, assim, restringirão o impulso à ação. Você será empurrado para aquilo para o qual deveria avançar como um soldado. Aqueles da nossa escola, é verdade, pensam que o silogismo de Zenão está correto, mas que o segundo que mencionei, que é contrario ao dele, é enganoso e errado. Mas, de minha parte, recuso-me a reduzir tais assuntos a uma questão de regras dialéticas ou às sutilezas de um sistema completamente desgastado. Fora, eu digo, com todo esse tipo de coisa que faz um homem sentir-se, quando lhe é proposta uma pergunta, que ele está cercado e forçado a admitir uma premissa, e então o faz dizer uma coisa em sua resposta quando sua verdadeira opinião é outra. Quando a verdade está em jogo, devemos agir com mais franqueza; e quando o medo deve ser combatido, devemos agir com mais coragem.

20. Essas questões, que os sofistas envolvem em sutilezas, prefiro resolver e pesar racionalmente, com o objetivo de conquistar a convicção e não de forçar o julgamento. Quando um general está prestes a levar ao combate um exército preparado para encontrar a morte por suas esposas e filhos, como ele os exorta à batalha? Lembro-o dos Fábios[10], que assumiram por um único clã uma guerra que dizia respeito a todo o Estado. Eu aponto os espartanos em guarda no próprio desfiladeiro das Termópilas![11] Eles não têm esperança de vitória, nenhuma esperança de retornar. O lugar onde eles estão será o seu túmulo.

21. Em que palavras você encoraja-os a trancar o caminho com seus corpos e assumir sobre si a ruína de toda a sua tribo, e recuar da vida em vez de seu posto? Poderia dizer: “O mal não é glorioso, mas a morte é gloriosa, por isso a morte não é um mal?” Que discurso persuasivo! Depois de tais palavras, quem hesitaria em se jogar sobre as lanças serradas dos inimigos e morrer aos seus pés? Mas pegue Leônidas: quão bravamente ele discursou aos seus homens! Ele disse: “Companheiros, vamos ao nosso café da manhã, sabendo que vamos jantar no Hades[12]!” A comida destes homens não lhes pareceu amargas em suas bocas, ou grudou lhes em suas gargantas, ou escorregou de seus dedos; ansiosamente eles aceitaram o convite para o café da manhã, e para jantar também!

22. Pense também no famoso general romano[13]; seus soldados haviam sido enviados para ocupar uma posição e, quando estavam prestes a atravessar um enorme exército do inimigo, dirigiu-se a eles com as palavras: Vocês devem ir agora, companheiros soldados, para o outro lugar, de onde não há “obrigação” sobre o seu retorno! Você vê, então, como a virtude é direta e peremptória; mas qual homem sobre a terra poderia com sua lógica enganosa tornar mais corajoso ou mais ereto? Em vez disso, quebra o espírito, que nunca deve ser forçado a lidar com pequenos e espinhosos problemas quando algum grande trabalho está sendo planejado.

23. Não são os trezentos, é toda a humanidade que deve ser aliviada do medo da morte. Mas como você pode provar a todos aqueles homens que a morte não é nenhum mal? Como você pode superar as noções de toda a nossa vida passada, – noções com as quais somos tingidos desde nossa infância? Que socorro você pode descobrir para o desespero do homem? O que você pode dizer que fará com que os homens se atirem, ardentes em zelo, no meio do perigo? Por qual discurso persuasivo você pode desviar esse sentimento universal de medo, por qual força de inteligência pode desviar a convicção da raça humana que se opõe firmemente a você? Você propõe construir palavras de ordem para mim, ou encadear silogismos mesquinhos? É preciso grandes armas para derrubar grandes monstros.

24. Você se lembra da serpente feroz na África, mais funestra para as legiões romanas do que a própria guerra, e atacada em vão por flechas e pedras; não podia ser ferida mesmo por Apolo Pítio, já que seu tamanho enorme, e a tenacidade com que combinava com sua massa corporal, faziam lanças, ou qualquer arma usada pela mão do homem, resvalar para fora. Foi finalmente destruída por rochas iguais em tamanho a mós[14]. Você está, então, usando armas insignificantes como a sua mesmo contra a morte? Você pode impedir o ataque de um leão por uma sovela[15]? Seus argumentos são realmente afiados; mas não há nada mais afiado do que uma haste de trigo. E certos argumentos são tornados inúteis e ineficazes por sua própria sutileza.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sobre a importância do conhecimento da natureza para o autoconhecimento veja o prefácio das Naturales Quaestiones que Sêneca dedicou ao seu amigo Lucílio.

[2] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[3] Veja Diógenes Laércio, Livro VII, §40.

[4] Adiáfora (em grego antigo: ἀδιάφορα adiaforon) é uma palavra de uso polissêmico, tendo sido utilizada primeiramente pelos estoicos, como algo que não era nem obrigatório, nem proibido. Em outros contextos, possui também um sentido de “insignificante”. Sendo assim, são classificados adiáforos os assuntos que não alteram, nem para mais, nem para menos a essência de algo.

[5] Mais uma vez, o célebre exemplo de Rutílio.

[6] Presumivelmente, D. Junius Brutus, que finalmente incorreu a inimizade de Octavio e Antônio. Ele foi vergonhosamente morto por um Gaulês enquanto fugia para se juntar M. Brutus na Macedônia.

[7] Trecho invertido de Eneida, de Virgílio. Sêneca citava de cor, daí a falha. – O “porteiro do Orco” é

Cérbero, o cão infernal de três cabeças.

[8] Também em As Troianas, tragédia escrita por Sêneca, ele chama às tradicionais descrições do mundo infernal de “ocos boatos, palavras sem sentido, fábulas semelhantes a pesadelos”. Mostrando o completo o acordo entre estoicos e epicuristas neste ponto.

[9] Trecho de Eneida, de Virgílio. VI, 95-6

[10] Os Fábios eram os membros do clã Fábia (em latim: gens Fabia; pl. Fabii), uma das mais antigas gentes patrícias da Roma Antiga. Tiveram um papel muito importante logo depois da fundação da República Romana. A casa dos Fábios derivou seu maior prestígio por sua coragem patriótica pelo trágico destino de 306 de seus membros na Batalha do Crêmera, em 477 a.C..

[11] A Batalha das Termópilas foi travada no contexto da Segunda Guerra Médica entre uma aliança de pólis gregas liderados pelo rei de Esparta Leônidas I e o Império Aquemênida de Xerxes I. A batalha durou três dias e se desenrolou no desfiladeiro das Termópilas em agosto ou setembro de 480 a.C.

[12] Hades na mitologia grega, é o deus do mundo inferior e dos mortos. Seu nome era usado frequentemente para designar tanto o deus quanto o reino que governa, nos subterrâneos da Terra.

[13] Calpúrnio, na Sicília, durante a primeira guerra púnica.

[14] Mó (do latim mola) é cada uma do par de pedras duras, redondas e planas com as quais, nos moinhos, se trituram grãos.

[15] Sovela é uma ferramenta utilizada em curtumes e marcenarias que é usada para fazer um furo no couro.

Carta 81: Sobre Benefícios e sua Retribuição

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A carta 81 é outra excelente fonte de ensinamento estoico. Nela Sêneca resume magnificamente o livro de sua autoria Sobre os Benefícios (De Beneficiis) e explica porque doar e conceder benefícios é mais vantajoso para aquele que dá do que para quem os recebe.

Começa com uma discussão, que segundo ele faltou no livro: Como ponderar uma pessoa que nos concedeu um benefício e depois nos prejudicou. Sêneca diiz:

“…o homem bom será flexível em alcançar um equilíbrio; ele vai permitir que muito seja colocado contra o seu crédito. O lado em que ele se inclinará, a tendência que ele exibirá, é o desejo de estar sob as obrigações do favor, e o desejo de retribuir por isso. Pois qualquer um que receba um benefício mais alegremente do que o retribua está em erro. Tanto quanto aquele que paga é mais alegre do que aquele que pede emprestado, por tanto deve ser mais alegre aquele que se desembaraça da maior dívida – um benefício recebido – do que aquele que incorre nas maiores obrigações…. Um homem é um ingrato se paga um favor sem juros. Portanto, os juros também devem ser ponderados, quando comparar suas receitas e suas despesas.” (LXXXI, 17-18)

Resolvida a questão proposta, Sêneca discorre longamente sobre as vantagens obtidas pelo doador, lançando várias frases de efeito:

  • Não há um homem que, quando tenha beneficiado o seu próximo, não se tenha beneficiado; §19
  • o prêmio de uma boa ação é tê-la praticado. §19
  • A maldade torna os homens infelizes e a virtude torna os homens abençoados; §21
  • O próprio mal bebe a maior parte de seu próprio veneno: §22
  • O que é mais miserável do que um homem que esquece seus lucros e se apega a seus prejuízos? §23

Conclui a carta alertando do risco de se conceder benefícios para pessoas ingratas. Segundo Sêneca um ingrato sente-se humilhado por ter recebido benefício fará tudo para se eximir da retribuição:

“Nossa loucura é tão ampla que é uma coisa muito perigosa conferir grandes benefícios a uma pessoa; pois só porque ele pensa que é vergonhoso não pagar, então ele não deixará vivo ninguém a quem ele deva pagar. ” (LXXXI, 32)

A carta é longa mais vale a leitura integral!

Imagem: Afresco Festa familiar em Pompeia Museo Archeologico Nazionale di Napoli


LXXXI. Sobre Benefícios e sua Retribuição

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você se queixa de ter encontrado com uma pessoa ingrata. Se esta é a sua primeira experiência desse tipo, você deve agradecer a sua boa sorte ou a sua cautela. Neste caso, entretanto, o cuidado não pode fazer nada além de torná-lo pouco generoso. Pois se quiser evitar tal perigo, não vai conferir benefícios; e assim, que os benefícios não possam ser perdidos com outro homem, eles serão perdidos para si mesmo. É melhor, porém, obter nenhum retorno do que não conferir benefícios. Mesmo depois de uma colheita ruim deve-se semear de novo; pois muitas vezes as perdas devidas à aridez contínua de um solo improdutivo são compensadas por um ano de fertilidade.

2. Para descobrir uma pessoa grata, vale a pena testar muitos ingratos. Nenhum homem tem uma mão tão infalível quando confere benefícios que ele não seja frequentemente enganado; é bom para o viajante a vaguear, pois assim ele pode abrir novos caminhos. Depois de um naufrágio, os marinheiros tentam o mar novamente. O banqueiro não é espantado para longe do fórum pelo vigarista. Se alguém for obrigado a abandonar tudo o que causa problemas, a vida logo ficaria enfadonha em meio à ociosidade indolente; mas no seu caso esta situação pode levá-lo a se tornar mais caridoso. Pois quando o resultado de qualquer empreendimento é incerto, deve-se tentar novamente e novamente, a fim de se ter sucesso em última instância.

3. Contudo, discuti o assunto com suficiente plenitude nos volumes que escrevi, intitulados “Sobre os Benefícios[2]“. O que eu acho que deve, principalmente, ser investigado é isso: – um ponto que sinto não ter sido suficientemente claro: “Se aquele quem nos ajudou e quitou a conta e libertou-nos de nossa dívida, se ele nos faz mal mais tarde.” Você pode adicionar esta pergunta também, se quiser: “quando o dano feito mais tarde é maior do que a ajuda prestada anteriormente.”

4. Se você está procurando a decisão formal e justa de um juiz rigoroso, verá que ele examina um ato pelo outro, e declara: “Embora as lesões superam os benefícios, no entanto, devemos creditar aos benefícios qualquer coisa que resta mesmo depois da lesão”. O dano causado foi realmente maior, mas o ato útil foi feito primeiro. Daí o tempo também deve ser levado em conta.

5. Outros casos são tão claros que eu não preciso lembrá-lo que deve também olhar pontos como: De quão bom grado a ajuda foi oferecida, e como relutantemente o dano foi feito, – já que benefícios, bem como lesões, dependem do espírito. “Eu não queria conferir o benefício, mas fui conquistado pelo meu respeito ao homem, ou pela importunidade do seu pedido, ou pela esperança.”

6. Nosso sentimento sobre cada obrigação depende, em cada caso, do espírito no qual o benefício é conferido; Nós não pesamos a maior parte da oferta, mas a qualidade da boa vontade que a incitou. Então, vamos acabar com a adivinhação; a ação anterior era um benefício, e a última, que transcendia o benefício anterior, é uma lesão. O homem bom organiza assim os dois lados de seu livro de registro o qual ele voluntariamente se ilude, adicionando ao benefício e subtraindo da lesão. O mais indulgente magistrado, no entanto (e eu prefiro ser tal), vai nos pedir para esquecer a lesão e lembrar o benefício.

7. “Mas certamente”, diz você, “é o papel da justiça dar a cada um o que é seu devido: graças em troca de um benefício e castigo, ou ao menos má vontade, em troca de um prejuízo!” Isto, eu digo, será verdadeiro quando for um homem quem infligiu a injúria, e um homem diferente quem tenha conferido o benefício; pois se for o mesmo homem, a força da lesão é anulada pelo benefício conferido. Na verdade, um homem que deve ser perdoado, embora não tenha boas obras creditadas a ele no passado, deve receber algo mais do que mera clemência se comete um erro quando tem um benefício a seu crédito.

8. Eu não estabeleço um valor igual em benefícios e lesões. Eu considero um benefício com uma taxa mais alta do que uma lesão. Nem todas as pessoas gratas sabem o que implica estar em dívida por um benefício; mesmo um sujeito insensato, bruto, um da multidão comum, pode saber, especialmente logo após receber o beneficio; mas ele não sabe quão profundamente está em dívida por isso. Somente o sábio sabe exatamente que valor deve ser colocado em tudo; para o tolo que acabei de mencionar, não importa o quão boa as suas intenções possam ser, ou paga menos do que deve, ou paga no momento errado ou no lugar errado. Aquilo por que deveria retribuir, ele desperdiça e perde.

9. Há uma fraseologia maravilhosamente precisa aplicada a certos assuntos, uma terminologia estabelecida há muito tempo que indica certos atos por meio de símbolos que são mais eficientes e que servem para delinear os deveres dos homens. Nós, como você sabe, costumamos falar assim: “A. fez uma retribuição pelo favor concedido por B.” Fazer uma retribuição significa entregar por sua própria conta o que você deve. Não dizemos: “Ele reembolsou o favor”; pois “reembolsar” é usado para um homem sobre quem uma exigência de pagamento é feita, daqueles que pagam contra a sua vontade. Daqueles que pagam em circunstância qualquer, e daqueles que pagam através de um terceiro. Não dizemos: “Ele restaurou o benefício”, ou “acertou a conta”; nós nunca ficamos satisfeitos com uma palavra que se aplica adequadamente a uma dívida de dinheiro.

10. Fazer uma retribuição significa oferecer algo a quem havia lhe dado algo. A frase implica um retorno voluntário. O sábio investigará em sua mente todas as circunstâncias: quanto ele recebeu, de quem, quando, onde, como. E assim declaramos que ninguém, a não ser o sábio, sabe como retribuir por um favor; além disso, só o sábio sabe conferir um benefício, aquele homem, quero dizer, que goza do dar mais do que o destinatário goza do recebimento.

11. Agora, alguém considerará essa observação como uma das declarações geralmente surpreendentes, como nós, os estoicos, costumamos fazer e como os gregos chamam de “paradoxos”, e dirão: “Você sustenta, então, que só o sábio sabe como devolver um favor? Você sustenta que ninguém mais sabe como fazer a restauração de um credor para uma dívida? Ou, ao comprar uma mercadoria, para pagar o valor total para o vendedor? A fim de não trazer qualquer ódio sobre mim, deixe-me dizer-lhe que Epicuro diz a mesma coisa. De qualquer modo, Metrodoro observa que só o homem sábio sabe como devolver um favor.

12. Mais uma vez, o objetor mencionado acima pergunta: “Somente o homem sábio sabe amar, só o homem sábio é um verdadeiro amigo”. No entanto, é uma parte do amor e da amizade devolver favores; além disso, é um ato comum, e acontece com mais frequência do que a amizade real. Novamente, este mesmo objetor se pergunta ao nosso dizer: “Não há lealdade senão no homem sábio”, como se ele mesmo não dissesse a mesma coisa! Ou você acha que há alguma lealdade naquele que não sabe como devolver um favor?

13. Esses homens, portanto, devem deixar de nos desacreditar, como se estivéssemos proferindo uma vanglória impossível; eles devem entender que a essência da honra reside no homem sábio, enquanto entre a multidão encontramos apenas o espectro e a semelhança de honra. Ninguém exceto o homem sábio sabe como devolver um favor. Até um tolo pode devolvê-lo em proporção ao seu conhecimento e ao seu poder; sua falta seria uma falta de sabedoria e não uma falta da vontade ou do desejo. A vontade não vem pelo ensino.

14. O sábio comparará todas as coisas umas com as outras; pois o mesmo objeto se torna maior ou menor, de acordo com o tempo, o lugar e a causa. Muitas vezes, as riquezas que são gastas em profusão em um palácio podem não realizar tanto quanto mil denários dados no momento certo. Agora, faz muita diferença se você der sem qualquer reserva, ou vir à assistência de um homem, se a sua generosidade pode salva-lo, ou defini-lo na vida. Muitas vezes o donativo é pequeno, mas as consequências grandes. E que distinção você imagina que existe entre tomar algo de que alguém carece, – algo que foi oferecido, – e receber um benefício a fim de conferir outro em troca?

15. Mas não devemos voltar ao assunto que já investigamos suficientemente. Neste equilíbrio de benefícios e lesões, o bom homem, com certeza, julgará com o mais alto grau de justiça, mas inclinará para o lado do benefício; ele se voltará mais rapidamente nessa direção.

16. Além disso, em casos deste tipo, a pessoa em questão costuma contar muito. Os homens dizem: “Você me concedeu um benefício em relação ao escravo, mas você me feriu no caso de meu pai” ou “Você salvou meu filho, mas me roubou um pai”. Da mesma forma, ele vai acompanhar todos os outros assuntos em que as comparações podem ser feitas, e se a diferença é muito leve, ele vai fingir não a notar. Mesmo que a diferença seja grande, contudo, se a concessão pode ser feita sem prejuízo do dever e da lealdade, nosso bom homem ignorará isso, desde que a lesão afete exclusivamente o próprio homem bom.

17. Resumindo, a questão está assim: o homem bom será flexível em alcançar um equilíbrio; ele vai permitir que muito seja colocado contra o seu crédito. Ele não estará disposto a pagar um benefício contrabalanceando uma lesão. O lado em que ele se inclinará, a tendência que ele exibirá, é o desejo de estar sob as obrigações do favor, e o desejo de retribuir por isso. Pois qualquer um que receba um benefício mais alegremente do que o retribua está em erro. Tanto quanto aquele que paga é mais alegre do que aquele que pede emprestado, por tanto deve ser mais alegre aquele que se desembaraça da maior dívida – um benefício recebido – do que aquele que incorre nas maiores obrigações.

18. Pois os homens ingratos cometem erros também neste aspecto: eles têm de pagar aos seus credores capital e juros, mas eles pensam que benefícios são moeda que podem usar sem juros. Assim, as dívidas crescem através do adiamento, e quanto mais tarde a ação é adiada, mais permanece a ser pago. Um homem é um ingrato se paga um favor sem juros. Portanto, os juros também devem ser ponderados, quando comparar suas receitas e suas despesas.

19. Devemos tentar por todos os meios ser o mais grato possível. Pois a gratidão é uma coisa boa para nós mesmos, num sentido em que a justiça, que comumente é tida como preocupada com as outras pessoas, não é; A gratidão retorna em grande medida a si mesma. Não há um homem que, quando tenha beneficiado o seu próximo, não se tenha beneficiado, – não quero dizer que quem você ajudou desejará ajudá-lo, ou que aquele quem você defendeu desejará proteger você, ou que um exemplo de boa conduta retorne em círculo para beneficiar o executor, assim como exemplos de má conduta retrocedem sobre seus autores e como os homens não sentem piedade se sofrem injustiças que eles mesmos demonstraram a possibilidade de cometer; Mas que a recompensa por todas as virtudes está nas próprias virtudes. Pois elas não são praticadas com vista a recompensa; o prêmio de uma boa ação é tê-la praticado.

20. Sou grato, não para que meu vizinho, provocado pelo ato de bondade anterior, esteja mais pronto a me beneficiar, mas simplesmente para que eu possa realizar um ato muito agradável e belo; sinto-me grato, não porque me beneficie, mas porque me agrada. E, para provar a verdade disto a você, eu declaro que mesmo que eu não possa ser grato sem parecer ingrato, mesmo que eu possa manter um benefício somente por um ato que se assemelhe a uma ofensa; ainda assim, esforçar-me-ei na mais absoluta calma do espírito para o propósito que a honra exige, no meio da desgraça. Ninguém, eu penso, julga melhor a virtude ou é mais devotado à virtude do que aquele que perde a reputação de ser um bom homem para não perder a aprovação de sua consciência.

21. Assim, como eu disse, seu ser grato é mais propício ao seu próprio bem do que ao bem do seu próximo. Pois, enquanto o seu vizinho tem uma experiência cotidiana e banal, ou seja, receber de volta o presente que ele havia concedido, você teve uma grande experiência que é o resultado de uma condição de alma totalmente feliz, ter sentido gratidão. Pois se a maldade torna os homens infelizes e a virtude torna os homens abençoados, e se é uma virtude ser grato, então o retorno que você fizer é apenas o costume habitual, mas a coisa que você alcança é inestimável, a consciência da gratidão, que só vem à alma que é divina e abençoada. O sentimento oposto a isso, porém, é imediatamente acompanhado pela maior infelicidade; nenhum homem, se for ingrato, será infeliz só no futuro. Não lhe concedo nenhum dia de graça; ele será infeliz imediatamente.

22. Evitemos, portanto, sermos ingratos, não por causa dos outros, mas por nós mesmos. Quando fazemos o mal, somente a parcela menor e mais leve flui para o nosso próximo; o pior e, se eu posso usar o termo, a parte mais densa dele fica em casa e causa problemas para o proprietário. Meu mestre Átalo costumava dizer: “O próprio mal bebe a maior parte de seu próprio veneno”. O veneno que as serpentes carregam para a destruição de outros, e secretam sem dano a si mesmas, não é como este veneno; pois este tipo é ruinoso para o possuidor.

23. O homem ingrato tortura-se e atormenta-se; ele odeia os presentes que ele aceitou, porque ele deve fazer uma retribuição por eles, e ele tenta diminuir seu valor, mas ele realmente amplia e exagera as lesões que ele recebeu. E o que é mais miserável do que um homem que esquece seus lucros e se apega a seus prejuízos? A sabedoria, por outro lado, concede graça a todos os benefícios e, por sua própria vontade, recomenda-os a seu favor, e deleita sua alma pela lembrança contínua deles.

24. Os homens maus têm somente um prazer nos benefícios, e um prazer muito curto nisso; só dura enquanto os recebe. Mas o sábio deriva deles uma alegria permanente e eterna. Pois não se compraz tanto no presente como também em tê-lo recebido; e esta alegria nunca perece; ela permanece com ele sempre. Ele despreza os erros contra ele; ele os esquece, não acidentalmente, mas voluntariamente.

25. Ele não põe uma intenção maldosa sobre tudo, ou procura alguém que possa responsabilizar por cada acontecimento; ele atribui até mesmo os pecados dos homens ao acaso. Ele não interpretará mal uma palavra ou um olhar; ele faz a luz de todos os percalços, interpretando-os de uma forma generosa. Ele não se lembra de uma lesão em lugar de um serviço. Tanto quanto possível, ele deixa sua memória descansar sobre a ação anterior e melhor, nunca mudando sua atitude para com aqueles que quiseram o seu bem, exceto nas situações onde os maus atos distanciam muito do bem, e o espaço entre eles é óbvio até mesmo para aquele que fecha os olhos para ele; mesmo assim, até este ponto, em que ele se esforça, depois de ter recebido o dano preponderante, para retomar a atitude que manteve antes de receber o benefício. Pois quando a lesão simplesmente é igual ao benefício, uma certa quantidade de sentimento agradável resta.

26. Assim como um réu é absolvido quando os votos são iguais, e assim como o espírito de bondade sempre tenta dobrar todo caso duvidoso para a interpretação mais bondosa, assim também a mente do sábio, quando os méritos de outro meramente igualam seus maus atos, deixará, com certeza, de se sentir obrigado, mas não deixará de desejar senti-lo, e age precisamente como o homem que paga suas dívidas mesmo depois de terem sido legalmente canceladas.

27. Mas ninguém pode ser grato a menos que tenha aprendido a desprezar as coisas que levam a multidão comum à distração; se você deseja retribuir um favor, você deve estar disposto a ir para o exílio, – ou derramar seu sangue, ou sofrer a pobreza, ou – e isso vai acontecer com frequência, – até mesmo para deixar a sua própria inocência ser manchada e exposta a calúnias vergonhosas. Não é nenhum preço leve que um homem deve pagar para ser grato.

28. Nós não consideramos nada mais caro do que um benefício, enquanto estivermos buscando um; não consideramos nada mais barato depois que o recebemos. Você pergunta o que é que nos faz esquecer os benefícios recebidos? É a nossa cobiça extrema por receber outros. Consideramos não o que obtivemos, mas o que estamos a procurar. Somos desviados do curso certo por riquezas, títulos, poder e tudo o que é valioso em nossa opinião, mas desprezível quando avaliado em seu valor real.

29. Não sabemos como ponderar os assuntos; devemos nos aconselhar sobre eles, não por sua reputação, mas por sua natureza; essas coisas não possuem grandeza para encantar nossas mentes, exceto pelo fato de que nos acostumamos a maravilhar-se com elas. Pois não são louvadas porque devem ser desejadas, mas são desejadas porque foram louvadas; e quando o erro de indivíduos cria erro por parte do público, então o erro público continua a criar erro por parte dos indivíduos.

30. Mas, assim como assumimos cegamente tais estimativas de valor, então assumamos cegamente esta verdade de que nada é mais honrado do que um coração grato. Esta frase será ecoada por todas as cidades, e por todas as raças, mesmo por aqueles de países selvagens. Sobre este ponto – bons e maus concordam.

31. Alguns elogiam o prazer, alguns preferem o trabalho; alguns dizem que a dor é o maior dos males, alguns dizem que não é mal algum; alguns incluirão riquezas no Bem Supremo, outros dirão que sua descoberta significou dano à raça humana, e que ninguém é mais rico do que aquele a quem a Fortuna não encontrou nada para dar. Em meio a toda essa diversidade de opinião, todos os homens ainda com uma só voz, como diz o ditado, votam “sim” para a proposição de que devemos retribuir a aqueles que desejaram bem de nós. Sobre esta questão a multidão comum, rebelde como é, concorda integralmente, mas no presente continuamos a retribuir lesões em vez de benefícios, e a principal razão por que um homem é ingrato é que ele achou impossível ser suficientemente grato.

32. Nossa loucura é tão longa que é uma coisa muito perigosa conferir grandes benefícios a uma pessoa; pois só porque ele pensa que é vergonhoso não pagar, então ele não deixará vivo ninguém a quem ele deva pagar. “Guarde para si mesmo o que você recebeu, eu não o peço de volta – eu não o exijo, fique seguro de ter conferido um favor.” Não há pior ódio do que aquele que brota da vergonha da profanação de um benefício.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Na tradução para o inglês o título usado é “On Benefits“ (sobre benefícios)

[2] De Beneficiis é uma obra de Sêneca, composta de sete livros. É parte de uma série de tratados sobre fenômenos naturais e ensaios morais que exploram questões filosóficas como a providência, a perseverança, a raiva, lazer, tranquilidade, a brevidade da vida, o perdão, a felicidade e a troca de presentes.

Carta 79: Sobre as Recompensas da Pesquisa Científica

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Na carta 79 Sêneca discorre sobre o dever do estudioso de conhecer a natureza, via pesquisa cientifica. Sabendo que Lucílio faria uma viagem à ilha da Sicília, recomenda que estude o mar no caminho e que estude e escreva sobre o vulcão Etna:

“…terei a ousadia de pedir-lhe para executar outra tarefa, – também para subir o Etna[3], a meu pedido especial. Certos naturalistas inferiram que a montanha está se esgotando e gradualmente diminuindo, porque os marinheiros costumavam vê-la a partir de uma maior distância.” (LXXIX, 2)

Sêneca defende o conhecimento é domínio público e é propriedade comum a todos, sendo válido o uso dos trabalhos de cientistas anteriores: “já à mão as palavras que, quando empacotadas de uma maneira diferente, mostram um novo rosto. E não os está roubando, como se pertencessem a outra pessoa, quando os usa, porque são propriedades comum a todos.(LXXIX, 6)

Para Sêneca, devemos desvendar a natureza para o bem da humanidade, pois “milhares de anos e milhares de povos virão após você; é a estes que você deve ter consideração.” (LXXIX, 17)

Nesta carta cita novamente Epicuro e diz que o cientista , assim como o sábio, não é suplantado por outro: quando descobrem algo e desvendam um mistério da natureza todos estão no topo, igualmente virtuosos:

A sabedoria tem esta vantagem, entre outras, – que nenhum homem pode ser superado por outro, exceto durante a escalada. Mas quando você chega ao topo, é um empate; não há espaço para mais subida, o jogo acabou. (LXXIX, 8)

Imagem: Etna visto de Taormina por Thomas Cole.


LXXIX. Sobre as Recompensas da Pesquisa Científica

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Tenho aguardado uma carta de você, em que me informasse da novidade revelada durante a sua viagem ao redor da Sicília, e sobretudo para me dar mais informações sobre a própria Caríbdis[1]. Eu sei muito bem que Cila é uma rocha – e de fato uma rocha não temida pelos marinheiros; mas no que diz respeito a Caríbdis, gostaria de ter uma descrição completa, para ver se ela concorda com os relatos da mitologia; e, se você tem por acaso investigado (pois é realmente digno de sua investigação), por favor me esclareça sobre o seguinte: É açoitada em um redemoinho constante causado por vento de uma única direção, ou todas as tempestades servem para perturbar a sua profundidade? É verdade que os objetos arrastados para baixo pelo redemoinho nesse estreito são transportados por muitos quilômetros debaixo de água, e então chegam à superfície na praia perto de Taormina[2]?

2. Se você me escrever um relato completo desses assuntos, então terei a ousadia de pedir-lhe para executar outra tarefa, – também para subir o Etna[3], a meu pedido especial. Certos naturalistas inferiram que a montanha está se esgotando e gradualmente diminuindo, porque os marinheiros costumavam vê-la a partir de uma maior distância. A razão para isto pode ser, não que a altura da montanha esteja diminuindo, mas porque as chamas se tornaram mais fracas e as erupções menos fortes e copiosas, e porque, pela mesma razão, a fumaça também é menos ativa durante o dia. Entretanto, qualquer uma destas duas coisas é possível acreditar: que por um lado a montanha está decrescendo porque é consumida dia a dia, e que, por outro lado, permanece do mesmo tamanho porque a montanha não está se devorando, mas, em vez disso, a matéria que que a faz ferver se reúne em algum vale subterrâneo e é alimentada por outro material, encontrando na montanha não o alimento que ela requer, mas simplesmente uma passagem.

3. Há um lugar bem conhecido na Lícia[4] – chamado pelos habitantes “Heféstion” – onde o chão está cheio de buracos em muitos lugares e é cercado por um fogo inofensivo, que não prejudica as plantas que crescem lá. Daí que o lugar seja fértil e exuberante em crescimento, porque as chamas não queimam, mas simplesmente brilham com uma força suave e fraca.

4. Mas adiemos esta discussão, e examine o assunto quando você me der uma descrição de quão distante a neve está da cratera, – quero dizer, a neve que não derrete mesmo no verão, tão segura que está do fogo adjacente. Mas não há motivo para que você cobre este trabalho em minha conta; pois você está prestes a satisfazer sua própria mania de escrever bem, sem incumbência de ninguém.

5. Não, o que posso oferecer-lhe senão apenas descrever o Etna em seu poema, e tocar ligeiramente em um tópico que é uma questão de ritual para todos os poetas? Ovídio não pôde ser impedido de usar este tema simplesmente porque Virgílio já o havia coberto inteiramente; nem nenhum desses escritores assustou Cornélio Severo. Além disso, o tema tem servido a todos com resultados felizes, e aqueles que foram antes me parecem não ter antecipado tudo o que poderia ser dito, mas apenas ter aberto o caminho.

6. Faz muita diferença se você se aproxima de um assunto que foi esgotado, ou um que o terreno foi simplesmente quebrado; neste último caso, o tópico cresce dia a dia, e o que já foi descoberto não impede novas descobertas. Além disso, quem escreve o último tem o melhor do negócio; ele encontra já à mão as palavras que, quando empacotadas de uma maneira diferente, mostram um novo rosto. E não os está roubando, como se pertencessem a outra pessoa, quando os usa, porque são propriedades comum a todos.

7. Agora, se o Etna não faz a sua boca salivar, eu estou equivocado com você. Há algum tempo que você deseja escrever algo no estilo grandioso e no nível da velha escola. Pois a sua modéstia não lhe permite elevar suas esperanças; essa sua qualidade é tão pronunciada que, para mim, é provável que reduza a força de sua capacidade natural, como se houvesse qualquer perigo superar os outros; é assim que você reverência os antigos mestres.

8. A sabedoria tem esta vantagem, entre outras, – que nenhum homem pode ser superado por outro, exceto durante a escalada. Mas quando você chega ao topo, é um empate; não há espaço para mais subida, o jogo acabou. Pode o sol adicionar ao seu tamanho? A lua pode avançar além de sua plenitude habitual? Os mares não aumentam a granel. O universo mantém o mesmo caráter, os mesmos limites.

9. As coisas que atingiram a sua plena estatura não podem crescer mais. Os homens que alcançaram a sabedoria serão, portanto, iguais e em pé de igualdade. Cada um deles possuirá seus próprios dons peculiares – um será mais afável, outro mais fácil, outro mais pronto de fala, um quarto mais eloquente; mas no que diz respeito à qualidade em discussão, – o elemento que produz felicidade, – é igual em todos eles.

10. Não sei se este Etna seu pode desabar e cair em ruínas, se sua cúpula elevada, visível por muitos quilômetros do alto mar, é desgastado pelo poder incessante das chamas; mas sei que a virtude não será reduzida a um plano inferior por chamas ou por ruínas. Sua é a única grandeza que não conhece rebaixamento; não pode haver para ela mais crescimento ou redução. Sua estatura, como a das estrelas no céu, é fixa. Por isso, esforçamo-nos por elevar-nos a esta altitude.

11. Já grande parte da tarefa foi cumprida; ou melhor, se eu puder confessar a verdade, não muito. Pois o bem não significa meramente ser melhor do que o mais baixo. Quem que pudesse pegar senão um mero vislumbre da luz do dia teria orgulho de seus poderes de visão? Quem vê o sol brilhar através de uma névoa pode estar contente que tenha escapado das trevas, mas ainda não desfruta a bênção da luz.

12. Nossas almas não terão razão para se regozijar de sua sorte, até que, libertadas desta escuridão em que elas tateiam, não tenham apenas vislumbrado o brilho com a visão fraca, mas tenham absorvido a plena luz do dia e tenham sido restauradas em seu lugar no céu, – até que, de fato, elas recuperem o lugar que ocuparam na atribuição de seu nascimento. A alma é convocada a cima pela sua própria origem. E alcançará esse objetivo antes mesmo de ser libertada da prisão aqui embaixo, assim que tiver rejeitado o pecado e, com pureza e leveza, ter saltado para os reinos celestiais do pensamento.

13. Alegra-me, amado Lucílio, que este ideal nos ocupa, que o persigamos com todas as nossas forças, ainda que poucos o saibam ou até ninguém. A fama é a sombra da virtude; ela atenderá à virtude mesmo contra sua vontade. Porém, como a sombra às vezes precede e às vezes segue ou até mesmo se atrasa, a fama algumas vezes nos precede e se mostra à vista, e às vezes está na retaguarda, e é tanto maior quanto mais tarde chegar, uma vez que a inveja bater em um retiro.

14. Por quanto tempo os homens acreditavam que Demócrito estava louco? A glória mal chegou a Sócrates. E quanto tempo permanecemos ignorando Catão! Eles o rejeitaram e não conheceram o seu valor até o perderem. Se Rutílio não se tivesse resignado a errar, sua inocência e virtude teriam escapado notícia; a hora de seu sofrimento foi a hora de seu triunfo. Ele não deu graças por sua fortuna, e acolheu seu exílio com os braços abertos? Já mencionei até agora aqueles a quem a Fortuna trouxe renome no próprio momento da perseguição; mas quantos são aqueles cujo progresso em direção à virtude veio à luz somente após sua morte! E quantos foram arruinados, não resgatados, por sua reputação?

15. Há Epicuro, por exemplo; como é admirado, não só pelos mais cultos, mas também por esta turba ignorante. Este homem, entretanto, era desconhecido por Atenas. E assim, quando já havia sobrevivido por muitos anos seu amigo Metrodoro, acrescentou em uma carta estas últimas palavras, proclamando com gratidão a amizade que havia existido entre eles: “Tão grandiosamente abençoados fomos Metrodoro e eu que não houve nenhum prejuízo para nós sermos desconhecidos e quase não percebidos, nesta famosa terra da Grécia”.

16. Não é verdade, então, que os homens os descobriram depois de terem cessado de ser? Por acaso a sua fama não brilhou? Metrodoro também admite esse fato em uma de suas cartas: que Epicuro e ele não eram bem conhecidos do público; mas ele declara que, após a vida de Epicuro e de sua própria, qualquer homem que pudesse querer seguir seus passos ganharia grande e pronto renome.

17. Virtude nunca é perdida de vista; e ainda ter sido despercebida não é perda. Chegará um dia que a revelará, mesmo escondida ou reprimida pelo despeito de seus contemporâneos. Esse homem nasce apenas para alguns, que só pensa nas pessoas de sua própria geração. Muitos milhares de anos e milhares de povos virão após você; é a estes que você deve ter consideração. Maldade pode ter imposto silêncio sobre a boca de todos os que estavam vivos em sua época; mas haverá homens que o julgarão sem preconceitos e sem favores. Se há alguma recompensa que a virtude recebe das mãos da fama, nem mesmo isso pode expirar. Nós mesmos, de fato, não seremos afetados pela conversa da posteridade; todavia, a posteridade nos acalentará e nos celebrará, embora não poderemos ter consciência disso.

18. A virtude nunca falhou em recompensar um homem, tanto durante a sua vida como depois da sua morte, desde que a tenha seguido fielmente, desde que não se tenha enfeitado ou pintado a si próprio, mas tenha sido sempre o mesmo, quer tenha aparecido perante os olhos dos homens depois de ser anunciada, ou de repente e sem preparação. O fingimento não realiza nada. Poucos são enganados por uma máscara que é facilmente retirada do rosto. A verdade é a mesma em cada parte. As coisas que nos enganam não têm substância real. Mentiras são coisas franzinas; elas são transparentes, se você as examinar com cuidado.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.     


[1] Caríbdis, era uma criatura marinha protetora de limites territoriais no mar. Em outra tradição, seria um turbilhão criado por Poseidon. Homero posicionou-a como entidade mitológica. Na tradição mitológica grega, Caríbdis era habitualmente relacionada a Cila, outro monstro marinho. Os dois moravam nos lados opostos do estreito de Messina, que separa a penínsnula Itálica da Sicília, e personificavam os perigos da navegação perto de rochas e redemoinhos. Três vezes por dia, sorvia as águas do mar e três vezes por dia tornava a cuspi-las.

[2] Taormina é uma cidade no topo da colina na costa leste da Sicília. Fica perto do Monte Etna, um vulcão ativo com trilhos até ao cume. A cidade é conhecida pelo Teatro Antico di Taormina, um antigo teatro greco-romano que ainda está em funcionamento. Perto do teatro, os penhascos debruçam-se sobre o mar e formam grutas com praias arenosas.

[3] O Etna é um vulcão ativo situado na parte oriental da Sicília, entre as províncias de Messina e Catânia. É o mais alto vulcão da Europa e um dos mais altos do mundo, atingindo aproximadamente 3350 metros de altitude, variando devido às frequentes erupções.

[4] Lícia era o nome de uma região da antiga Ásia Menor (Anatólia) onde hoje estão localizadas as províncias de Antália e Muğla, na costa sul da moderna Turquia,