Carta 95: Sobre a Utilidade dos Princípios Básicos

Na carta 95, Sêneca atende um pedido de Lucílio para aprofundar a discussão do tema da carta anterior, ou seja, a validade do ensino de preceitos em contraste com o uso de princípios. O texto é longo e complexo, e Sêneca, de forma bem humorada já alerta o leitor:

“…aceito o seu pedido de bom grado, e recuso a deixar o ditado comum perder o seu fundamento: “Não peça por aquilo que você desejaria não ter recebido’. Mas, sem piedade, me vingarei e colocarei uma enorme carta sobre seus ombros; por sua parte, se você ler isso com relutância, pode dizer: “Eu trouxe esse fardo a mim mesmo‘…” (XCV, 1-3)

Para Sêneca, ambos são úteis e imprescindíveis, mas sem princípios, os preceitos são inúteis, pois “quando um homem está organizando sua existência como um todo, não é suficiente lhe dar conselhos sobre detalhes“:

Existe a mesma diferença entre princípios filosóficos e preceitos que existe entre as letras e frases; as últimas dependem das primeiras, enquanto as primeiras são a fonte da última e de todas as coisas.(XCV, 12)

Como de costume, apresenta uma fantástica analogia para ilustrar seu ponto:

Um homem pode saber que manter uma amante é o pior tipo de insulto para sua esposa, mas a luxúria o levará na direção oposta. Portanto, não servirá dar preceitos, a não ser que você primeiro remova as condições que possam prejudicar os preceitos; A alma, para lidar com os preceitos que oferecemos, deve primeiro ser liberada.(XCV, 37-38)

Leiam a carta, vale o esforço.

(imagem: Guillaume Guillon-Lethière: Morte de Catão de Utica)


XCV. Sobre a Utilidade dos Princípios Básicos

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você continua pedindo-me para explicar sem adiamento um tópico que eu observei uma vez que deveria ser adiado até o momento apropriado e para informar-lhe, por carta, se este departamento de filosofia que os gregos chamam de “paraenético”(paraenetice)[1] e nós, romanos, chamamos de “preceptorial”(praeceptiva), é suficiente para nos dar uma sabedoria perfeita. Eu sei que você vai entender se eu me recusar a fazê-lo. Mas aceito o seu pedido de bom grado, e recuso a deixar o ditado comum perder o seu fundamento: “Não peça por aquilo que você desejaria não ter recebido”.

2. Pois as vezes buscamos com esforço o que deveríamos recusar se fosse oferecido voluntariamente. Chame isso inconstância ou descaramento[2] – devemos punir o hábito com pronta observância. Há muitas coisas que nós gostaríamos que os homens pensassem que desejamos, mas que realmente não desejamos. Um palestrante às vezes traz ao palco um enorme trabalho de pesquisa, escrito na letra mais minúscula e muito dobrado; depois de ler uma grande parte, ele diz: “Eu vou parar, se desejarem”; e surge um grito: “Leia mais, continue lendo!” Dos lábios daqueles que estão ansiosos para que o palestrante libere o paço. Muitas vezes queremos uma coisa e oramos por outra, sem contar a verdade nem mesmo aos deuses, o bom é que os deuses ou não nos atendem ou têm pena de nós.

3. Mas, sem piedade, me vingarei e colocarei uma enorme carta sobre seus ombros; por sua parte, se você ler isso com relutância, pode dizer: “Eu trouxe esse fardo a mim mesmo”, e pode classificar-se entre aqueles homens cujas esposas muito ambiciosas os deixam frenéticos, ou aqueles que as riquezas, ganhas pelo suor extremo da testa, só trazem angustias, ou aqueles que são torturados pelos cargos públicos que procuraram por todo tipo de dispositivo e trabalho, e todos os outros que são responsáveis por seus próprios infortúnios.

4. Mas devo parar este preâmbulo e abordar o problema em questão. Os homens dizem: “A vida feliz consiste na conduta correta, os preceitos guiam para a conduta correta, portanto os preceitos são suficientes para alcançar a vida feliz”. Mas nem sempre nos orientam para a conduta correta; isso ocorre somente quando a vontade é receptiva; e às vezes são aplicados em vão, quando as opiniões erradas atormentam a alma.

5. Além disso, um homem pode agir corretamente sem saber que ele está agindo corretamente. Pois ninguém, exceto aquele treinado desde o início e equipado com uma razão completa, pode desenvolver proporções perfeitas, entender quando deve fazer certas coisas e até que ponto, e em cuja companhia, e como, e por quê. Sem esse treinamento, um homem não pode esforçar-se com todo seu coração ao que é honrado, ou mesmo com firmeza ou alegria, mas sempre estará olhando para trás e hesitando.

6. Também é dito: “Se a conduta honrosa resulta dos preceitos, os preceitos são amplamente suficientes para a vida feliz; como a primeira dessas afirmações é verdadeira, portanto a segunda também é verdadeira”. Devemos responder a estas palavras que a conduta honrosa é, com certeza, provocada por preceitos, mas não apenas por preceitos.

7. “Então”, vem a resposta, “se as outras artes se contentam com os preceitos, a sabedoria também estará contente com eles, pois a própria sabedoria é uma arte de viver. E, no entanto, o piloto é feito por preceitos que lhe dizem isso ou aquilo sobre como virar o leme, colocar suas velas, fazer uso de um vento justo, bordejar, fazer o melhor das brisas inconstantes e variáveis – tudo da maneira correta. Outros artesãos também são guiados por preceitos, portanto, os preceitos serão capazes de realizar o mesmo resultado no caso do nosso artesão na arte de viver”.

8. Agora, todas essas artes estão preocupadas com as ferramentas da vida, mas não com a vida como um todo. Portanto, há muito para embaraçar essas artes e complicá-las – como a esperança, a ganância, o medo. Mas essa arte que professa ensinar a arte da vida não pode ser impedida por qualquer circunstância de exercer suas funções; pois sacode as complicações e atravessa os obstáculos. Gostaria de saber o quão diferente sua posição em relação as outras artes? No caso destas últimas, é mais perdoável errar voluntariamente ao invés de por acidente; mas, no caso da sabedoria, a pior falha é cometer o pecado deliberadamente.

9. Quero dizer algo assim: um estudioso se ruborizará por vergonha, não se ele cometer um erro gramatical intencionalmente, mas se o fizer involuntariamente; se um médico não perceber que seu paciente está falecendo, é um praticante muito mais pobre do que se reconhecesse o fato e escondesse seu conhecimento. Mas, nesta arte de viver, um erro voluntário é mais vergonhoso. Além disso, muitas artes, sim e as mais liberais de todas, têm sua doutrina especial, e não apenas preceitos de conselhos. Na profissão médica, por exemplo, existem as diferentes escolas: de Hipócrates, de Asclepíades,[3] de Temiso.

10. E, além disso, nenhuma arte que se preocupe com teorias pode existir sem suas próprias doutrinas; os gregos chamam de dogmatas, enquanto nós, romanos, podemos usar o termo “doutrinas” ou “princípios”, ou “princípios adotados”,[4] como você encontrará em geometria ou astronomia. Mas a filosofia é tanto teórica como prática; contempla e, ao mesmo tempo, age. Você está realmente enganado se você acha que a filosofia não oferece nada além de ajuda mundana; suas aspirações são mais altas do que isso. Ela chama: “Eu investigo todo o universo, nem estou satisfeita, me mantendo dentro de uma morada mortal, para dar conselhos favoráveis ou desfavoráveis. Os grandes assuntos convidam e estão bem acima de você. Nas palavras de Lucrécio[5]:

11. Para ti, eu revelarei os caminhos do céu

E os deuses, espalhando-se diante de teus olhos Os átomos, – de onde todas as coisas são trazidas ao nascimento, Aumentado e promovido pelo poder criativo, E atingem a putrefação quando a Natureza os expulsa.Nam tibi de summa caeli ratione deumque Disserere incipiam et rerum primordia pandam ; Unde omnis natura creet res, auctet alatque, Quoque eadem rursus natura perempta resolvat.

Filosofia, portanto, sendo teórica, deve ter suas doutrinas.

12. E por quê? Porque nenhum homem pode realizar devidamente as ações certas, exceto aquele que tenha sido dotado da razão, que lhe permitirá, em todos os casos, cumprir todas as categorias de dever. Essas categorias ele não pode observar a menos que receba preceitos para cada ocasião, e não só pela da ocasião. Os preceitos por si próprios são fracos e, por assim dizer, sem raízes se forem prescritos às partes e não ao todo. São as doutrinas que nos fortalecerão e nos apoiarão em paz e calma, que incluirão simultaneamente a totalidade da vida e do universo em sua plenitude. Existe a mesma diferença entre princípios filosóficos e preceitos que existe entre as letras e frases;[6] as últimas dependem das primeiras, enquanto as primeiras são a fonte da última e de todas as coisas.

13. As pessoas dizem: “A sabedoria antiga aconselhava apenas o que se deveria fazer e evitar, e, no entanto, os homens de tempos passados eram homens muito melhores. Quando os eruditos apareceram, os sábios tornaram-se raros. Dessa forma, a franca e simples virtude foi transformada em conhecimento escondido e astuto, somos ensinados a debater e não a viver”.

14. Claro, como você diz, a sabedoria antiga, especialmente em seus primórdios, era imperfeita; mas também as outras artes, nas quais a destreza desenvolveu com o progresso. Nem naqueles dias havia necessidade de curas cuidadosamente planejadas. A maldade ainda não havia chegado a um ponto tão alto, ou se espalhado tão amplamente. Os vícios simples podiam ser tratados com curas simples; agora, no entanto, precisamos de defesas erguidas com todo o cuidado, por causa dos poderes mais fortes pelos quais somos atacados.

15. A medicina consistiu-se uma vez no conhecimento de algumas ervas, para impedir o fluxo de sangue ou para curar feridas; então, gradualmente, atingiu o seu estágio atual de complexa variedade. Não é de admirar que, nos primeiros dias, o medicamento tivesse menos a fazer! Os corpos dos homens ainda eram sólidos e fortes; sua alimentação era leve e não estragada pela arte e pelo luxo, pois então começamos a procurar pratos não para a remoção, mas para o despertar do apetite, e inventamos inúmeros molhos para estimular a gula, então, o que antes era alimento para um homem faminto tornou-se um fardo para o estômago cheio.

16. Daí vem palidez e um tremor de músculos encharcados pelo vinho e uma magreza repulsiva, devido à indigestão e não à fome. Dessa forma, pequenos passos cambaleantes e uma marcha incerta como a da embriaguez. Daí a hidropisia,[7] espalhando sob toda a pele e a barriga crescendo para uma pança através de um hábito de consumir mais do que pode. Daí a icterícia, os semblantes descoloridos e os corpos que se apodrecem por dentro, e os dedos que se tornam nodosos quando as articulações se endurecem e os músculos entorpecidos e sem poder de sensação e a palpitação do coração.

17. Por que razão eu menciono tonturas? Ou falar de dor nos olhos e na orelha, comichão e dor no cérebro febril e úlceras internas em todo o sistema digestivo? Além disso, existem inúmeros tipos de febre, algumas agudas em sua malignidade, outras nos arrasando com danos sutis e outras que vêm acompanhadas de calafrios e severa maleita.

18. Por que devo mencionar as outras doenças inumeráveis, as torturas que resultam de uma vida luxuosa? Os homens costumavam estar livres de tais males, porque eles ainda não haviam diminuído sua força pela indulgência, porque eles tinham controle sobre si mesmos e proviam suas próprias necessidades. Eles enrijeceram seus corpos pela labuta e pelo trabalho real, cansando-se correndo ou caçando ou cultivando a terra. Eles eram revigorados por comida da qual apenas um homem faminto poderia ter prazer. Por isso, não havia necessidade de todas as nossas poderosas parafernálias médicas, de tantos instrumentos e caixas de pomadas. Por razões simples, eles gozavam de uma saúde simples; foi necessário um percurso elaborado para produzir doenças elaboradas.

19. Note o número de coisas – tudo a passar por uma única garganta – que o luxo mistura, depois de devastar a terra e o mar. Tantos pratos diferentes certamente devem estar em desacordo; eles são unidos fortemente e são digeridos com dificuldade, cada um acotovelando o outro. E não é de admirar que as doenças resultantes de alimentos variados sejam diversas e variadas; deve haver um transbordamento quando tantas combinações não naturais se misturam. Por isso, há tantas maneiras de estar doente quanto há de viver.

20. O ilustre fundador da guilda e da profissão da medicina[8] observou que as mulheres nunca perdiam os cabelos nem sofriam dor nos pés; e, no entanto, hoje em dia elas ficam sem cabelos e são afligidas pela gota. Isso não significa que o físico da mulher tenha mudado, mas que tenha sido conquistado; ao competir por indulgências masculinas, elas também competem pelos males dos quais os homens são herdeiros.

21. Elas dormem tão tarde e bebem tanto licor quanto eles; elas desafiam os homens na luta e na bebedeira; elas não são menos dadas ao vômito de estômagos distendidos e, assim, descarregando todo o vinho novamente; nem estão atrás dos homens em consumir gelo, como um alívio para suas digestões febris. E elas mesmo igualam os homens em suas paixões, embora tenham sido criadas para sentir amor passivamente (que os deuses e deusas possam amaldiçoá-las!). Elas inventam as variedades mais impossíveis de não castidade e na companhia dos homens elas fazem o papel dos homens. Que maravilha, então, que possamos checar a declaração do melhor e mais experiente médico, quando tantas mulheres são carecas e sofrem de gota! Por causa de seus vícios, as mulheres deixaram de merecer os privilégios de seu sexo; elas renegaram sua natureza feminina e, portanto, estão condenadas a sofrer as doenças dos homens.

22. Os médicos da antiguidade não sabiam nada sobre a prescrição de nutrientes frequentes e o sustento do pulso fraco com vinho; eles não entendiam a prática da sangria e de aliviar as queixas crônicas com banhos de vapor; eles não entendiam como, ao enfaixar os tornozelos e os braços, convocar às partes externas a força que havia se refugiado ao centro. Eles não eram obrigados a buscar muitas variedades de alívio, porque as variedades de sofrimento eram muito poucas em número.

23. Hoje em dia, no entanto, a que etapa os males da doença estão avançados! Este é o juro que pagamos pelos prazeres que desejamos além do que é razoável e correto. Você não precisa imaginar que as doenças estão além da conta: conte os cozinheiros! Todos os interesses intelectuais estão em suspenso; aqueles que seguem conferências de cultura em salas vazias, em lugares afastados. Os salões do professor e do filósofo estão desertos; mas que multidão nos cafés! Quantos jovens assediam as cozinhas de seus amigos glutões!

24. Não devo mencionar as tropas de escravos sem fortuna que devem suportar outros tratamentos vergonhosos depois que o banquete acaba. Não devo mencionar as tropas de catamitas[9], classificadas de acordo com a nação e a cor, que devem ter a mesma pele lisa e a mesma maneira de vestir os cabelos, de modo que nenhum menino com madeixas lisas possam ficar entre os de cabelos encaracolados. Nem devo mencionar a confusão de padeiros, e o número de garçons que em um determinado aviso correm para transportar os pratos. Oh, deuses! Quantos homens trabalham para divertir uma única barriga!

25. O que? Você imagina que esses cogumelos, o veneno do gourmet, não causam maldade em segredo, mesmo que não tenham tido efeito imediato? O que? Você acha que sua neve de verão não endurece o tecido do fígado? O que? Você acha que aquelas ostras, uma comida gosmenta engordada em lodo, não sobrecarregam com o peso da lama? O que? Você não acha que o chamado “garum – o molho das Províncias”, o extrato apodrecido de peixe venenoso, queime o estômago com sua putrefação salgada? O que? Você acha que os pratos corrompidos que um homem engole quase queimando do fogo da cozinha são apagados no sistema digestivo sem fazer mal? Quão repugnantes, e quão insalubres são os seus arrotos, e como os homens ficam enojados consigo mesmos quando respiram os vapores da orgia de ontem! Você pode ter certeza de que a comida deles não está sendo digerida, mas está apodrecendo.

26. Lembro-me de ter ouvido uma fofoca sobre um prato notório em que tudo do qual os gourmets adoram era amontoado por um restaurante que estava rapidamente entrando em bancarrota; havia dois tipos de mexilhões e as ostras aparadas na linha onde são comestíveis, separadas a intervalos por ouriços-do-mar; o todo estava flanqueado por tainhas cortadas e servidas sem as espinhas.[10]

27. Nestes nossos dias estamos envergonhados de alimentos separados; as pessoas misturam muitos sabores em um. A mesa de jantar faz o que o estômago deveria fazer. Eu vislumbro em seguida que a comida será servida já mastigada! E quão longe disso estamos quando separamos conchas e ossos e o cozinheiro executa o trabalho dos dentes? Eles dizem: “É muito difícil levar nossos luxos um a um, deixe-nos ter tudo servido ao mesmo tempo e misturado com o mesmo sabor. Por que eu deveria me contentar com um único prato? Vamos ter muitos chegando ao mesmo tempo, as delícias de vários cursos devem ser combinadas e confundidas.”

28. Aqueles que costumavam declarar que isso era feito para exibição e notoriedade devem entender que não é feito para exibição, mas que é uma oblação ao nosso senso de dever! Deixe-nos ter, ao mesmo tempo, embebidos no mesmo molho, pratos que costumam ser servidos separadamente. Não há diferença: deixe as ostras, os ouriços-do-mar, os crustáceos e os salmonetes serem misturados e cozidos no mesmo prato. Um vomitado não formaria uma massa mais caótica!

29. E como a comida em si é complicada, de modo que as doenças resultantes são complexas, inexplicáveis, múltiplas, variadas, os medicamentos começaram a fazer campanha contra eles de muitas maneiras e por muitas regras de tratamento. Agora, eu declaro que a mesma afirmação se aplica à filosofia. Ela era mais simples porque os pecados dos homens eram em menor escala e podiam ser curados com pequena dificuldade; no entanto, em face de toda inversão moral, os homens não devem deixar nenhum remédio não experimentado. E seria possível que essa praga fosse então superada!

30. Estamos loucos, não apenas individualmente, mas a nível nacional. Evitamos o homicídio culposo e assassinatos isolados; mas e a guerra e o tão voraz crime de matar povos inteiros? Não há limites para nossa ganância, nenhuma para nossa crueldade. E enquanto esses crimes forem cometidos escondido e por indivíduos, eles são menos prejudiciais e menos portentosos; mas as crueldades são praticadas de acordo com atos do senado e da assembleia popular, e o público é convidado a fazer o que é proibido ao indivíduo.

31. Ações que seriam punidas com a morte quando cometidas em particular, são louvadas por nós, porque os generais uniformizados as realizaram. O homem, naturalmente a classe de ser vivo mais branda, não tem vergonha de se deleitar com o sangue dos outros, de fazer guerra e de encaminhar seus filhos à guerra, quando as feras e os animais selvagens mantêm a paz uns com os outros.

32. Contra esta loucura excessiva e disseminada a filosofia tornou-se uma questão do maior esforço, e tomou forças em proporção às forças ganhas pela oposição. Costumava ser fácil repreender os homens que eram escravos da bebida e que procuravam comida da mais luxuosa; Não seria exigido um esforço poderoso para trazer o espírito de volta à simplicidade de onde apenas a pouco partira. Mas agora

É preciso a mão rápida, ao mestre artesão.Nunc manibus rapidis opus est, nunc arte magistra.[11]

33. Os homens procuram prazer de todas as fontes. Nenhum vício permanece dentro dos limites; o luxo é precipitado em ganância. Estamos impressionados com o esquecimento daquilo que é honroso. Nada de valor é atraente, é vil. O homem, um objeto de reverência aos olhos do homem, agora é abatido por brincadeira e esporte; e aqueles que costumavam acreditar ser profano treinar com o propósito de infligir feridas, estão expostos e indefesos; e é um espetáculo satisfatório ver um homem feito um cadáver.[12]

34. Em meio a esta condição de inversão da moral, é necessário algo mais forte do que o habitual – algo que sacuda esses males crônicos; a fim de erradicar uma crença profunda em ideias erradas, a conduta deve ser regulada por doutrinas. É somente quando adicionamos preceitos, consolo e encorajamento a estes, que podem prevalecer; por si só são ineficazes.

35. Se nos fossemos segurar os homens firmemente atados e os afastarmos dos males que os agarraram firmemente, eles deveriam aprender o que é maligno e o que é bom. Eles deveriam saber que tudo, exceto a virtude, podem mudar de qualificativo, e merecerem umas vezes serem consideradas como más e outras como boas. Assim como o principal vínculo de união do soldado é seu juramento de fidelidade, seu amor à bandeira, e seu horror à deserção, e assim como, após essa etapa, outros deveres podem ser facilmente exigidos dele, e confiança dada a ele uma vez o juramento ter sido administrado; assim é com aqueles que você traz para a vida feliz: os primeiros fundamentos devem ser colocados, e a virtude trabalhada nesses homens. Que sejam mantidos por uma espécie de adoração supersticiosa da virtude; que eles a amem; deixe-os desejar viver com ela e se recusarem a viver sem ela.

36. “Mas o que, então,” dizem, “certas pessoas não ganharam caminho para a excelência sem treinamento complicado? Não fizeram grandes progressos obedecendo apenas preceitos básicos?” Muito verdadeiro; mas seus temperamentos eram propícios, e eles pegaram atalho pelo caminho. Pois assim como os deuses imortais não aprenderam a virtude tendo nascido com a virtude completa e contendo em sua natureza a essência do bem – mesmo assim certos homens estão equipados com qualidades incomuns e alcançam sem um longo aprendizado o que normalmente é uma questão de ensino, acolhendo coisas honestas assim que as ouvem. Por isso, as mentes escolhidas se apoderam rapidamente da virtude, ou então a produzem dentro de si mesmas. Mas seu companheiro embotado e lento, que é prejudicado por seus maus hábitos, deve ter essa ferrugem da alma incessantemente esfregada.

37. Agora, assim como o primeiro tipo, que está inclinado para o bem, pode ser elevado às alturas com mais rapidez: também os espíritos mais fracos podem ser auxiliados e libertados de suas opiniões malignas se confiarmos a eles os princípios aceitos da filosofia; e você pode entender o quão essencial são esses princípios da seguinte maneira. Certas coisas se afundam em nós, tornando-nos preguiçosos de certa forma, e precipitados de outras. Essas duas qualidades, a de imprudência e a outra de preguiça, não podem ser controladas ou despertadas, a menos que removamos suas causas, que são admiração equivocada e medo confuso. Enquanto estivermos obcecados por tais sentimentos, você pode nos dizer: “Você deve esse dever ao seu pai, isso para seus filhos, isso para seus amigos, isso para seus hóspedes”; mas a ganância sempre nos impedirá, não importa como tentemos. Um homem pode saber que ele deve lutar por seu país, mas o medo o dissuadirá. Um homem pode saber que ele deve suar sua última gota de energia em favor de seus amigos, mas o luxo irá proibir. Um homem pode saber que manter uma amante é o pior tipo de insulto para sua esposa, mas a luxúria o levará na direção oposta.

38. Portanto, não servirá dar preceitos, a não ser que você primeiro remova as condições que possam prejudicar os preceitos; não servirá nada mais do que colocar as armas ao seu lado e se aproximar do inimigo sem ter as mãos livres para usar essas armas. A alma, para lidar com os preceitos que oferecemos, deve primeiro ser liberada.

39. Suponha que um homem aja como deveria; ele não pode se manter assim de forma contínua ou consistente, já que não saberá o motivo de tal forma de agir. Parte de sua conduta resultará corretamente por fortuna ou prática; mas à sua mão não há nenhuma regra pelo qual possa regular seus atos, e em que possa confiar para lhe dizer se o que faz está certo. Aquele que é bom por simples acaso não dá garantia de manter esse caráter para sempre.

40. Além disso, os preceitos talvez o ajudem a fazer o que deve ser feito; mas eles não o ajudarão a fazê-lo da maneira correta; e se eles não o ajudam a esse fim, eles não o conduzem à virtude. Eu admito a você que, se admoestado, um homem fará o que deveria; mas isso não é suficiente, já que o crédito reside, não na ação real, mas na forma como é feito.

41. O que é mais vergonhoso do que uma refeição cara que come a renda mesmo de um equestre[13]? Ou o que é tão digno da condenação do censor como sempre saciar a si mesmo e seu “gênio” interior? –  se posso usar os termos dos nossos gastrônomos! E, no entanto, muitas vezes um jantar inaugural[14] custa ao homem mais cuidadoso um milhão de sestércios![15] A própria soma é vergonhosa se gasta na gula, mas é irrepreensível se gasta para honrar o cargo! Pois não é luxo, mas uma despesa sancionada pelo costume.

42. Um salmonete de tamanho monstruoso foi oferecido ao imperador Tibério. Dizem que pesava quatro quilos e meio (e por que não deveria fazer cócegas nos palatos de certos glutões mencionando seu peso?). Tibério ordenou que fosse enviado para o mercado de peixe e colocado à venda, observando: “Eu vou ser tomado inteiramente por surpresa, meus amigos, se Apício[16] ou Otávio não comprar esse salmonete”. O palpite tornou-se realidade além da expectativa: os dois homens o disputaram, e Otávio ganhou, adquirindo assim uma grande reputação entre os seus íntimos porque comprou por cinco mil sestércios um peixe que o Imperador havia vendido e que até Apício não conseguiu comprar. Pagar tal preço foi vergonhoso para Otávio, mas não para o indivíduo que comprou o peixe para presenteá-lo a Tibério – embora eu também estivesse inclinado a culpar o último também; mas, de qualquer modo, admirava um presente do qual pensava ser digno de César.

43. Outro exemplo: quando as pessoas se sentam ao lado da cama de seus amigos doentes, nós honramos seus motivos. Mas, quando as pessoas fazem isso com o objetivo de alcançar um legado, são como abutres à espera de carniça. O mesmo ato pode ser vergonhoso ou honorável: a maneira e os princípios que o motivaram fazem toda a diferença. Ora, todas nossas as ações serão honestas se nós as conformarmos à moralidade, se pensarmos que  a honra e seus resultados sejam o único bem que pode cair na fortuna do homem; pois outras coisas só são temporariamente boas.

44. Penso, então, que deve haver profundamente implantada uma firme crença que se aplicará à vida como um todo: é o que eu chamo de “princípio”. E, como essa crença é, assim serão nossos atos e nossos pensamentos. Como nossos atos e nossos pensamentos são, então nossa vida será. Quando um homem está organizando sua existência como um todo, não é suficiente lhe dar conselhos sobre detalhes.

45. Marco Bruto, no livro que ele tem intitulado “Sobre o(s) dever(es)”, dá muitos preceitos a pais, filhos e irmãos; mas ninguém cumprirá seu dever como deveria, a menos que tenha algum princípio ao qual possa basear sua conduta. Devemos colocar diante de nossos olhos o objetivo do Bem Supremo, para o qual devemos lutar, e para o qual todos os nossos atos e palavras devem ter referência – assim como os marinheiros devem orientar seu curso de acordo com uma certa estrela.

46. A vida sem ideais é errática: assim que um ideal é configurado, as doutrinas começam a ser necessárias. Tenho certeza de que você admitirá que não há nada mais vergonhoso do que uma conduta incerta e vacilante, do que o hábito de um recuo receoso, sem saber onde por os pés. Esta será a nossa experiência em todos os casos, se primeiro não eliminarmos as causas que nos entravam e manietam a alma e a impedem de dar o melhor de si própria.

47. Preceitos são geralmente ditos sobre como os deuses devem ser adorados. Mas vamos proibir que as lâmpadas sejam iluminadas no sábado,[17] já que os deuses não precisam de luz, nem os homens apreciam a fuligem. Permitamos que os homens ofereçam saudações matutinas e se aglomerem nas portas dos templos; as ambições mortais são atraídas por tais cerimônias, mas Deus é adorado por aqueles que realmente o conhecem. Permita-nos proibir trazer toalhas e raspadores de banho para Júpiter, e oferecer espelhos para Juno; pois Deus não precisa de  servos. Claro que não; ele mesmo faz serviço à humanidade, em todos os lugares e a tudo Deus sempre está à mão para ajudar.

48. Embora um homem ouça quais limites deve observar em sacrifício, e até onde deve se afastar de superstições onerosas, ele nunca fará progresso suficiente até que tenha concebido uma ideia correta de Deus – referindo-se a Ele como alguém que possui todas as coisas, e atribui todas as coisas, e as concede sem contrapartida.

49. E por que razão os deuses têm feito ações de bondade? É a sua natureza. Quem pensa que não estão dispostos a fazer mal, está errado; eles não podem fazer mal. Eles não podem receber ou infligir ferimentos; pois causar dano tem a mesma natureza que sofrer danos. A natureza universal, toda gloriosa e toda bonita, tornou-se incapaz de infligir males aqueles que retirou do perigo do mal.

50. O primeiro ato para adorar os deuses é acreditar nos deuses; ao lado de reconhecer sua majestade, reconhecer sua bondade sem a qual não há majestade. Além disso, para saber que eles são comandantes supremos no universo, controlando todas as coisas pelo seu poder e agindo como guardiões da raça humana, mesmo que às vezes não sejam conscientes do indivíduo. Eles não dão nem têm o mal, mas eles castigam e restringem certas pessoas e impõem penalidades e, às vezes, punem ao conceder o que parece bom externamente. Você quer ser agradável aos deuses? Então seja um bom homem. Quem os imita, está os adorando suficientemente.

51. Então vem o segundo problema, como lidar com homens. Qual é o nosso propósito? Que preceitos oferecemos? Devemos pedir que se abstenham de derramar sangue? Que pequena coisa não é prejudicar alguém a quem você deveria ajudar! É realmente digno de grandes elogios, quando o homem trata o homem com bondade! Devemos aconselhar esticar a mão para o marinheiro naufragado, ou apontar o caminho para ao viajante, ou compartilhar uma migalha com o faminto? Sim, se eu puder apenas lhe dizer primeiro tudo o que deve ser concedido ou retido; entretanto, posso estabelecer para a humanidade uma regra curta para os nossos deveres nas relações humanas:

52. Tudo o que você vê, o que abrange o divino e o homem, é um – somos partes de um grande corpo. A natureza nos produziu relacionados uns com os outros, já que ela nos criou da mesma fonte e para o mesmo fim. Ela engendrou em nós um afeto mútuo, e nos fez propensos a amizades. Ela estabeleceu equidade e justiça; de acordo com sua decisão, é mais lamentável cometer do que sofrer lesões. Por meio de suas ordens, deixe nossas mãos estarem prontas para todos que precisam ser ajudados.

53. Deixe este verso penetrar seu coração e estar sempre pronto nos seus lábios:

sou homem, tudo quanto é humano me concerne.Homo sum, humani nihil a me ahenum puto.[18]

Deixe-nos possuir coisas em comum; o nascimento é nosso em comum. Nossas relações uns com os outros são como um arco de pedra, que colapsaria se as pedras não se apoiassem mutuamente.

54. Em seguida, depois de considerar deuses e homens, vejamos como devemos fazer uso das coisas. É inútil que possamos ter preceitos, a menos que comecemos por refletir sobre a opinião que devemos ter em relação a tudo – acerca da pobreza, riqueza, renome, desgraça, cidadania, exílio. Deixe-nos banir o rumor e definir um valor em cada coisa, perguntando o que cada coisa é de fato, e não o que os homens lhe chamam.

55. Passemos agora a uma consideração das virtudes. Algumas pessoas nos aconselharão a avaliar altamente a prudência, apreciar a bravura e ter mais próximo, se possível, a justiça do que todas as outras qualidades. Mas isso não nos fará bem, se não soubermos o que é a virtude, seja simples ou composta, seja uma ou mais do que uma, se suas partes estão separadas ou entrelaçadas umas com as outras; se aquele que tem uma virtude também possui as outras virtudes; e quais são as distinções entre elas.

56. O carpinteiro não precisa investigar sua arte à luz de sua origem ou de sua função, mais do que um artista de pantomima precisa investigar a arte de dançar; se essas artes se entendem, nada falta, pois não se referem à vida como um todo. Mas a virtude significa o conhecimento de outras coisas além de si mesma: se quisermos aprender a virtude, devemos aprender tudo sobre a virtude.

57. A conduta não terá razão, a menos que a vontade de agir seja correta; pois esta é a fonte de conduta. Nem, novamente, a vontade estará certa sem uma atitude correta da mente; pois esta é a fonte da vontade. Além disso, essa atitude de espírito não será encontrada mesmo no melhor dos homens, a menos que tenha aprendido as leis da vida como um todo e tenha elaborado um julgamento adequado sobre tudo e a menos que tenha reduzido os fatos a um padrão de verdade. A paz mental é desfrutada apenas por aqueles que alcançaram um padrão de julgamento fixo e imutável; o resto da humanidade continuamente rasa e vagante em suas decisões, flutuando em uma condição onde alternadamente rejeitam as coisas e as buscam. Permanecem indecisos sem saber se hão de levar ou não até ao fim os seus propósitos.

58. E qual é a razão para esse jogar de um lado para o outro? É porque nada é claro para eles, porque eles usam o critério mais inseguro – a opinião comum. Se você quiser sempre desejar a mesma coisa, você deve desejar a verdade. Mas não se pode alcançar a verdade sem princípios básicos; os princípios abraçam toda a vida. As coisas boas e más, honestas e vergonhosas, justas e injustas, obedientes e desleais, as virtudes e a prática delas, a posse de confortos, valor e respeito, saúde, força, beleza, agilidade dos sentidos – todas essas qualidades exigem quem seja capaz de avaliá-las. À pessoa deve ser concedido saber qual o valor de cada objeto a ser classificado.

59. Por vezes você é enganado e acredita que certas coisas valem mais do que seu real valor; na verdade, você é enganado pois acha que deva valorar em mera moeda aquelas coisas que nós, homens, consideramos valer mais, por exemplo, riqueza, influência e poder. Você nunca entenderá isso, a menos que tenha investigado o padrão real pelo qual essas condições são relativamente avaliadas. Como as folhas não podem prosperar por meio de seus próprios esforços, mas precisam de um ramo ao qual elas possam se apegar e de onde possam tirar a seiva, então seus preceitos, quando levados sozinhos, desaparecem; eles devem ser enxertados em uma escola de filosofia.

60. Além disso, aqueles que eliminam os princípios não entendem que são provados pelos próprios argumentos através os quais eles dão para refutá-los. Pois o que esses homens estão dizendo? Eles estão dizendo que os preceitos são suficientes para desenvolver a vida e que os princípios de sabedoria (em outras palavras, dogmas) são supérfluos. E, no entanto, esse próprio enunciado deles é um princípio, como se eu devesse agora observar que é preciso dispensar os preceitos com o fundamento de serem supérfluos, que é preciso fazer uso de princípios e que nossos estudos devem ser direcionados exclusivamente para esse fim; assim, pela minha própria afirmação de que os preceitos não devem ser levados a sério, eu estaria proferindo um preceito!

61. Existem alguns assuntos em filosofia que precisam de admoestação; há outros que precisam de prova, e uma grande prova, também, porque eles são complicados e dificilmente podem ser esclarecidos com o maior cuidado e a maior habilidade dialética. Se as provas forem necessárias, também são doutrinas; as doutrinas deduzem a verdade por meio do raciocínio. Alguns assuntos são claros e outros são vagos: aqueles que os sentidos e a memória podem abraçar são claros; aqueles que estão fora do alcance deles são vagas. Mas a razão não é satisfeita por fatos óbvios; sua função mais alta e mais nobre é lidar com coisas ocultas. As coisas escondidas precisam de prova; a prova não pode vir sem princípios; portanto, princípios são necessários.

62. O que leva a um acordo geral, e semelhante a um perfeito, é uma crença segura em certos fatos; mas, se, sem essa garantia, todas as coisas estão à deriva em nossas mentes, então os princípios são indispensáveis; pois eles dão às nossas mentes os meios de uma decisão inabalável.

63. Além disso, quando aconselhamos um homem a considerar seus amigos tão altamente como a si mesmo, para refletir que um inimigo pode se tornar um amigo, a estimular o amor no amigo e aplacar o ódio no inimigo, acrescentamos: “Isso é justo e honroso”. Agora, o elemento justo e honroso em nossos princípios é abraçado pela razão; portanto, a razão é necessária; pois sem ela os princípios também não podem existir.

64. Mas vamos unir as duas. Pois, de fato, os ramos são inúteis sem suas raízes, e as raízes são fortalecidas pelos ramos que produziram. Todos podem entender quão úteis são as mãos; elas, obviamente, nos ajudam. Mas o coração, a fonte do crescimento, do poder e do movimento das mãos, está escondido. E posso dizer o mesmo sobre os preceitos: eles são manifestos, enquanto os princípios da sabedoria estão escondidos. E como somente os iniciados conhecem a porção mais sagrada dos ritos, então, na filosofia, as verdades ocultas são reveladas apenas aos que são membros e foram admitidos nos ritos sagrados. Mas os preceitos e outros assuntos são familiares mesmo para os não iniciados.

65. Posidônio sustenta que não só a dação de preceitos (não há nada para impedir que use essa palavra), mas mesmo a persuasão, a consolação e o encorajamento são necessários. Para isso, ele acrescenta a investigação das causas (mas não consigo ver por que eu não deveria ousar chamar isso de “etiologia”,[19] uma vez que os estudiosos que monitoram a língua latina usam o termo como tendo o direito de fazê-lo). Ele observa que também será útil ilustrar cada virtude particular; esta ciência Posidônio chama etologia, enquanto outros a chamam de caracterismo. Dá os sinais e as marcas que pertencem a cada virtude e vício, de modo que, por meio deles, a distinção pode ser feita entre coisas semelhantes.

66. Sua função é a mesma que a do preceito. Pois aquele que profere preceitos diz: “Se você quiser ter autocontrole, aja assim e assim”. Aquele que ilustra, diz: “O homem que age assim e assim, e se abstém de certas outras coisas, possui autocontrole”. Se você perguntar qual é a diferença aqui, digo que uma pessoa dá os preceitos da virtude, a outra dá sua personificação. Essas ilustrações, ou, para usar um termo comercial, essas amostras, têm, eu confesso, uma certa utilidade; basta colocá-las à exposição com boas recomendações, e você encontrará homens para copiá-las.

67. Você, por exemplo, julgaria ser útil ter evidências para que você reconhecesse um cavalo de puro sangue e não fosse enganado em sua compra ou desperdiçasse seu tempo por um animal inferior? Mas quanto mais útil é conhecer as marcas de uma alma insuperável – marcas que alguém pode apropriar de outro para si mesmo!

68. Imediatamente, o potro de raça pura pisa a terra, Marchando com um passo animado; É o primeiro a caminha e a atravessar os rios de peito aberto Com ousadia, confia na ponte desconhecida, Não temendo estrondo vazio. Seu pescoço elevado E cabeça ágil, barriga curta e costas fortes, Seu peito com espírito exibe seus nervos… … Então, se a guerra ressoa ao longe Não pode descansar, mas pica os ouvidos com os membros curiosos, Reunindo sob suas narinas, espirala fogo.Continue pecoris generosi pullus in arvis Altius ingreditur et mollia crura reponit; Primus et ire viam et fluvios temptare minantis Audet et ignoto sese committere ponti, Nec vanos horret strepitus. Illi ardua cervix Argutumque caput, brevis alvus obesaque terga, Luxuriatque toris animosum pectus… …Turn, si qua sonum procul arma dederunt. Stare loco nescit, micat auribus et tremit artus Conlectumque premens volvit sub naribus ignem.[20]

69. A descrição de Virgílio, embora se refira a outra coisa, poderia perfeitamente ser o retrato de um homem corajoso; de qualquer forma, eu mesmo não deveria selecionar nenhum outro símile para um herói. Se eu tivesse que descrever Catão, que estava desesperado no meio da guerra civil, que primeiro atacou os exércitos que já marchavam para os Alpes, que mergulhou de frente no conflito civil, esse é exatamente o tipo de expressão e atitude que eu deveria dar a ele.

70. Certamente, ninguém poderia mais “marchar com um passo animado” do que aquele que se levantou contra César e Pompeu ao mesmo tempo e quando alguns estavam apoiando o partido de César e outros, o de Pompeu, lançou um desafio aos dois líderes, mostrando assim que a república também tinha alguns apoiantes. Pois não basta dizer de Catão “não treme ao ouvir ruídos vãos”. Claro que ele não tem medo! Ele não recua frente a ruídos reais e iminentes; Diante de dez legiões, reforços gauleses e uma multidão de cidadãos e estrangeiros, ele pronuncia palavras repletas de liberdade, encorajando a República a não falhar na luta pela liberdade, mas a lutar contra todos os perigos; ele declara que é mais honrado cair em servidão do que estar de acordo com ela.

71. Que força e energia ele tem! Que confiança ele exibe em meio ao pânico geral! Ele sabe que é o único cuja situação não está em questão, e que os homens não perguntam se Catão é livre, mas se ele ainda está entre os livres. Daí o seu desprezo pelo perigo e pela espada. Que prazer dizer, admirando a firmeza constante de um herói que não caiu quando todo o estado estava em ruínas: “Um peito másculo, abundante em coragem!”

72. Será útil não apenas indicar qual é a qualidade usual dos homens bons e delinear suas figuras e características, mas também relacionar e estabelecer que homens desse tipo houveram. Podemos imaginar a última e mais valente ferida de Catão, através da qual a Liberdade expirou por último; ou o sábio Lélio e sua vida harmoniosa com seu amigo Cipião; ou os nobres atos do outro Catão, o velho, em feitos públicos ou privados; ou os bancos de madeira de Q. Tubero com pele de cabra em vez de tapeçarias, e vasos de barro expostos para o banquete frente ao próprio santuário de Júpiter! O que mais significou, exceto consagração da pobreza diante do próprio Capitólio? Embora eu não conheça nenhum outro seu para o classificar entre os Catões, este não é o suficiente? Era uma censura pública, não um banquete.

73. Quão lamentavelmente os que desejam a glória mas não conseguem entender o que é a glória, ou de que maneira deve ser procurada! Naquele dia, a população romana viu a mobília de muitos homens; ficaram maravilhados apenas com a de um! O ouro e a prata de todos os outros foram quebrados e derretidos várias vezes; mas os copos de barro de Tubero persistirão pela eternidade.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Na retórica, a protrepsia (grego: πρότρεψις) e a paraênesis (παραίνεσις) são dois estilos de exortação intimamente relacionados que são empregados por filósofos morais. O uso de “conselhos por preceitos”, discutido na carta anterior por outro ângulo.

[2]vernilitas”, o descaramento ou ousadia de um escravo domestico.

[3] Asclepíades de Bitínia (129 a.C. – 40 a.C.) foi um médico grego nascido em Prusa, na Bitínia, que trabalhou em Roma. Teve sua formação em Alexandria, o maior centro científico de sua época. Asclepíades tinha muitos pupilos, que formavam a escola Metódica.

[4] Decreta, seita e placita respectivamente.

[5] De rerum natura, I, 54.

[6] Do Latim “elementa et membra”, pode significar “letras e cláusulas” ou “matéria e formas de matéria”.

[7] A hidropsia, também conhecida como ascite, ou barriga d’água, não é uma doença propriamente dita, mas um sinal clínico que pode ser decorrente de algumas enfermidades., uma síndrome. Ela ocorre quando há retenção de líquidos na cavidade abdominal, músculos e pele, o que prejudica o bom funcionamento do organismo como um todo.

[8] Hipócrates

[9] Catamita era o companheiro jovem, pré-adolescente ou adolescente, em uma relação de pederastia entre dois homens no mundo antigo, especialmente na antiga Roma. Geralmente refere-se a amantes homossexuais jovens e passivos.

[10] Trecho cheio de corruptelas.

[11] Trecho de Eneida, de Virgílio

[12] Mais uma vez Sêneca critica os tão populares jogos de gladiadores

[13] A ordem equestre romana (ordo equester) formava a mais baixa das duas classes aristocráticas da Roma Antiga, estando abaixo da ordem senatorial (ordo senatorius).

[14] Jantar de gala oferecido pelo oficial ao assumir seu posto.

[15] O sestércio (sestertius, em latim) era uma antiga moeda romana. O sestércio foi criado por volta de 211 a.C. como uma pequena moeda de prata que valia um-quarto de denário

[16] Marco Gávio Apício (ou simplesmente Apício; em latim Marcus Gavius Apicius) foi um gastrônomo romano do século I d.C. suposto escritor do livro De re coquinaria, a melhor fonte para se conhecer a gastronomia do mundo romano.

[17] Alusão ao culto judaico, que se difundiu um tanto em Roma e chegou mesmo a gozar de uma certa protecção de Popeia, mulher de Nero.

[18] Trecho de Heaautontimorumenos (O Punidor de Si Mesmo), de Públio Terêncio Afro.

[19] etiologia (do grego αιτία, aitía, “causa”) é o estudo ou ciência das causas.

[20] Trecho de Geórgias, iii, de Virgílio, 75-81 e 83-85.

Carta 94: Sobre o Valor do Conselho

Na carta 94 Sêneca usa a técnica do diálogo para debater se preceitos, ou seja, conselhos práticos sobre casos individuas, são ou não úteis à filosofia.

Usa os primeiros 17 parágrafos para apresentar a opinião de Aríston, um estoico que estudou com Zenão. Ao fim desta exposição ficamos convencidos que o uso de conselhos práticos é algo indevido e inútil à filosofia. Contudo, Sêneca usa então o restante da carta para desmontar cada um dos argumentos dos antigos estoicos e defender aguerridamente a utilidade dos preceitos:

As pessoas dizem: “Qual a vantagem apontar o óbvio?” Muito bom; pois às vezes conhecemos fatos sem prestar atenção neles. O conselho não é para ensinar; apenas simplesmente aguça a atenção e nos desperta. Concentra a memória e a impede de perder o controle. (XCIV, 25)

“Seja econômico com o tempo!” “Conheça a ti mesmo!” Porventura precisa ser informado do significado quando alguém lhe repete linhas como estas? Essas máximas não precisam de nenhum argumento especial; elas vão direto às nossas emoções e nos ajudam simplesmente porque a Natureza está exercendo sua função adequada. (XCIV, 28)

A carta também debate pontos de vista de Cleantes e Posodônio, filósofos estoicos gregos cujas obras não sobreviveram ao tempo.

Imagem: Christian Dirce por Henryk Siemiradzki


XCIV. Sobre o Valor do Conselho

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Esse departamento da filosofia que fornece preceitos adequados a caso individual, em vez de enquadrá-los para a humanidade em geral[1] – o que, por exemplo, aconselha como um marido deve se conduzir em relação a sua esposa ou como um pai deve educar seus filhos, ou como um mestre deve governar seus escravos – este departamento da filosofia, digo, é aceito por alguns como a única parte significativa, enquanto os outros departamentos são rejeitados com o argumento de que eles se desviam para além da esfera de necessidades práticas – como se qualquer homem pudesse dar conselhos sobre uma parcela da vida sem ter adquirido primeiro um conhecimento do total da vida como um todo!

2. Mas Aríston,[2] o estoico, pelo contrário, acredita que o departamento acima mencionado é de pouca importância – ele afirma que não penetra na mente, não tendo neles mais que preceitos de velhos e que o maior benefício é derivado dos dogmas reais da filosofia e da definição do Sumo Bem. Quando um homem ganha uma compreensão completa dessa definição e aprende tais princípios, diz ele, será capaz de deliberar por si próprio o que fazer em cada situação.

3. Assim como o aluno do lançamento do dardo continua visando um alvo fixo e, assim, treina a mão para dar direção ao míssil. Quando, por instrução e prática, ganha a habilidade desejada, ele pode empregá-lo contra qualquer alvo que deseje tendo aprendido a atingir não qualquer objeto aleatório, mas precisamente o objeto em que ele apontou. Aquele que se equipa para toda a vida não precisa ser aconselhado sobre cada item separado, porque agora está treinado para se opor a seu problema como um todo; pois não sabe apenas como ele deve viver com sua esposa ou seu filho, mas como ele deve viver corretamente. Nesse conhecimento, também está incluído a forma adequada de viver com esposa e filhos.

4. Cleantes sustenta que este departamento da sabedoria é realmente útil, mas que é uma coisa fraca, a menos que seja derivada de princípios gerais, isto é, a menos que seja baseado em um conhecimento dos dogmas reais da filosofia e suas principais rubricas. Este assunto é, portanto, duplo, levando a duas linhas de investigação separadas: primeiro, é útil ou inútil? E, segundo, pode produzir um bom homem? Em outras palavras, é supérfluo, ou torna todos os outros departamentos supérfluos?

5. Aqueles que exigem a visão de que este departamento é supérfluo argumentam da seguinte forma: “Se um objeto que é mantido na frente dos olhos interfere com a visão, ele deve ser removido. Porque enquanto estiver no caminho, é uma perda de tempo oferecer tais preceitos como estes: Caminhe assim e assim, estenda a mão naquela direção”. Da mesma forma, quando algo cega a alma de um homem e impede-a de ver a linha do dever claramente, não adianta aconselhá-lo: “Viva assim e assim com seu pai, assim e assim com sua esposa”. Porque os preceitos não servirão de nada, enquanto a mente está nublada de erro, somente quando a nuvem estiver dispersa ficará claro qual é o dever de cada um. Caso contrário, você apenas mostrará ao homem doente o que ele deveria fazer se estivesse bom, em vez de fazê-lo bom.

6. Suponha que você esteja tentando revelar ao homem pobre a arte de “agir como rico”; como se pode realizar isso enquanto sua pobreza não for alterada? Você está tentando deixar claro para um faminto de que maneira ele deve atuar o papel de alguém com um estômago bem preenchido; o primeiro requisito, no entanto, é aliviá-lo da fome que agarra seus sinais vitais. “O mesmo, asseguro-lhe, é válido para as falhas, as próprias falhas devem ser removidas e não devem ser dados preceitos que não possam ser realizados enquanto as falhas permanecem. A menos que você expulse as falsas opiniões sob as quais sofremos, o avarento nunca receberá instrução sobre o uso adequado do seu dinheiro, nem o covarde quanto ao modo de desprezar o perigo.”

7. Você deve fazer com que o avarento saiba que o dinheiro não é bem nem um mal, mostre-lhe homens de riqueza que são miseráveis até o último grau. Você deve informar o covarde que as coisas que geralmente nos assustam são menos temerosas que o boato anuncia, se o objeto do medo é o sofrimento ou a morte, que quando a morte vem – fixada por lei para todos nós – muitas vezes é um grande consolo refletir que nunca pode voltar, que em meio ao sofrimento, a determinação da alma será tão boa como uma cura, pois a alma torna mais leve qualquer fardo que resista com uma determinação corajosa. E lembre-se que a dor tem essa qualidade excelente: se for prolongada, ela não pode ser grave e, se grave, não pode ser prolongada; e que devemos aceitar corajosamente o que quer que as leis inevitáveis do universo lance sobre nós.

8. Quando, por meio de tais doutrinas, você trouxer o homem pecador para um senso de sua própria condição, quando souber que a vida feliz não é aquilo que se ajusta ao prazer, mas o que está em conformidade com a Natureza, quando ele cair profundamente apaixonado pela virtude como o único bem do homem e evitar a infâmia como o único mal do homem, e quando ele souber que todas as outras coisas – riqueza, cargos, saúde, força, domínio – ocupam posição intermediário, indiferente, e não devem ser contadas nem entre bens nem entre os males, então ele não precisará de um bedel para cada ação separada, para dizer-lhe: “Caminha assim e assim, coma assim e assim. Esta é a conduta própria de um homem e a de uma mulher, isto para um homem casado e isso para um solteiro.”

9. De fato, as pessoas que se esforçam para oferecer esses conselhos não são capazes de pô-los em prática. É assim que o pedagogo aconselha o menino e a avó, seu neto, é o professor mais irritadiço da escola que afirma que nunca se deve perder o temperamento. Vá para uma escola primária, e você aprenderá que apenas esses pronunciamentos, que emanam de filósofos altamente qualificados, podem ser encontrados no livro de aula para meninos!

10. Outro ponto: vocês oferecerão preceitos que são claros ou preceitos que são duvidosos? Aqueles que são claros não precisam de conselheiro, e preceitos duvidosos não ganham credibilidade, de modo que a prestação de preceitos é supérflua. Na verdade, você deveria estudar o problema dessa maneira: Se você está aconselhando alguém em uma questão obscura e de sentido duvidoso, você deve completar seus preceitos por meio de provas, e se você deve recorrer a provas, seus meios de prova são mais eficazes e mais satisfatórios em si mesmos.

11. É assim que você deve tratar seu amigo, assim seu cidadão, assim seu associado. E por quê? “Porque é justo.” No entanto, posso encontrar todo esse material incluído sob o título de Justiça. Acho que o jogo limpo é desejável em si mesmo, não sermos forçados a isso pelo medo nem contratados para esse fim via pagamento, e que nenhum homem é justo senão quem é atraído por qualquer coisa além da própria virtude do ato. Depois de convencer-me dessa visão e absorvê-la completamente, o que posso obter de tais preceitos, que só ensinam quem já está treinado? Para quem sabe, é supérfluo dar preceitos, a quem não sabe, é insuficiente. Pois deve ser informado, não só o que está sendo instruído a fazer, mas também o porquê.

12. Repito, tais preceitos são úteis para aquele que tem ideias corretas sobre o bem e o mal, ou para quem não tem? O último não receberá nenhum benefício de você; uma ideia que entra em conflito com seu conselho já monopolizou sua atenção. Aquele que tomou uma decisão cuidadosa sobre o que deva ser procurado e o que deva ser evitado sabe o que deve fazer, sem uma única palavra de você. Portanto, todo esse departamento de filosofia pode ser abolido.

13. Há duas razões pelas quais nos extraviamos: ou há na alma uma qualidade má que foi provocada por opiniões erradas, ou, mesmo que não possuídas por ideias falsas, a alma é propensa a falsidade e rapidamente corrompida por alguma aparência externa que a atrai na direção errada. Por esta razão, é nosso dever tratar com cuidado a mente doente e liberá-la de falhas, ou tomar posse da mente quando ainda está desocupada e ainda inclinada ao que é mal. Ambos os resultados podem ser alcançados pelas principais doutrinas da filosofia, portanto, a oferta de tais preceitos não serve de nada.

14. Além disso, se dermos preceitos a cada indivíduo, a tarefa é estupenda. Pois uma classe de preceito deve ser dada ao financista, outra ao fazendeiro, outra ao homem de negócios, outra a quem cultiva as boas graças da realeza, outra a quem procurará a amizade de seus iguais, outra a ele que irá julgar os de menor hierarquia.

15. No caso do casamento, você avisará a uma pessoa como ela deve se comportar com uma esposa que antes de seu casamento era uma donzela, e outra como deveria se comportar com uma mulher que anteriormente tinha estado casada com outro; como o marido de uma mulher rica deve agir, ou outro homem com uma esposa sem dote. Ou você não pensa que há alguma diferença entre uma mulher estéril e uma que tem filhos, entre uma avançada em anos e uma mera garota, entre uma mãe e uma madrasta? Não podemos incluir todos os tipos e, no entanto, cada tipo requer tratamento separado; mas as leis da filosofia são concisas e são válidas em todos os casos.

16. Além disso, os preceitos da sabedoria devem ser definidos e certos: quando as coisas não podem ser definidas, estão fora da esfera da sabedoria; pois a sabedoria conhece os limites adequados das coisas. Devemos, portanto, acabar com este departamento de preceitos, porque não pode cumprir tudo aquilo que promete apenas a alguns, mas a sabedoria abraça tudo.

17. Entre a insanidade das pessoas em geral e a insanidade que está sujeita a tratamento médico, não há diferença, exceto que esta sofre de doença e a primeira de opiniões falsas. Em um caso, os sintomas da loucura podem ser atribuídos a doenças; no outro a má saúde da mente. Se alguém oferecer preceitos a um louco – como ele deveria falar, como ele deveria andar, como ele deveria se comportar em público e privado, este seria mais lunático do que a pessoa a quem ele está aconselhando. O que é realmente necessário é tratar a bílis negra[3] e remover a causa essencial da loucura. E isso é o que também deve ser feito no outro caso: o da mente doente. A própria loucura deve ser abalada; caso contrário, suas palavras de conselho desaparecerão no ar.

18. Isto é que Aríston diz; e eu responderei seus argumentos um a um. Primeiro, em oposição ao que ele diz sobre a obrigação de alguém de remover o que bloqueia o olho e dificulta a visão. Eu admito que essa pessoa não precisa de preceitos para ver, mas que precisa de tratamento para curar sua visão e livrar-se do obstáculo que a prejudica. Pois é a natureza que nos dá a nossa visão; e aquele que remove os obstáculos restaura a natureza para sua própria função. Mas a natureza não nos ensina nosso dever em todos os casos.

19. Mais uma vez, se a catarata de um homem é curada, ele não pode, imediatamente após sua recuperação, devolver a visão a outros homens também; mas quando somos libertos do mal, podemos também libertar os outros. Não há necessidade de incentivo, ou mesmo de conselho, para que o olho possa distinguir cores diferentes; preto e branco podem ser diferenciados sem instigação de outro. A mente, por outro lado, precisa de muitos preceitos para ver o que deve fazer na vida; no tratamento dos olhos o médico não só realiza a cura, mas também dá conselhos na barganha.

20. Ele diz: “Não há nenhuma razão pela qual você deva imediatamente expor sua visão fraca para um brilho perigoso, comece com a escuridão, e então entre em meia-luz, e, finalmente, seja mais ousado, acostumando-se gradualmente à luz brilhante do dia. Não há razão para que você deva estudar imediatamente depois de comer, não há razão para que você imponha tarefas difíceis aos seus olhos quando estão inchados e inflamados, evite os ventos e as fortes rajadas de ar frio que sopram no seu rosto” – E outras sugestões do mesmo tipo, que são tão valiosas quanto as próprias drogas. A arte do médico complementa remédios por conselho.

21. “Mas,” vem a resposta, “o erro é a fonte do pecado, os preceitos não eliminam o erro, nem expulsam nossas falsas opiniões sobre o bem e o mal”. Eu admito que os preceitos por si só não são eficazes para derrubar as crenças equivocadas da mente; mas eles, naquela conta, não falham quando acompanhados de outras medidas também. Em primeiro lugar, eles atualizam a memória; em segundo lugar, quando classificados em suas próprias categorias, os assuntos que se mostraram uma massa confusa quando considerados como um todo, podem ser considerados dessa forma com maior cuidado. De acordo com a teoria dos nossos adversários, você pode até dizer que o consolo e a exortação são supérfluos. No entanto, eles não são supérfluos; nem também o é o conselho.

22. “Mas é loucura”, replicam, “prescrever o que um homem doente deveria fazer, como se estivesse bom, quando você realmente deveria restaurar sua saúde, porque sem saúde preceitos não valem a pena”. Mas não tem homens doentes e homens sadios em comum, no sentido em que eles precisam de conselhos contínuos? Por exemplo, para não acatar avidamente os alimentos, e para evitar ficar exausto. Pobre e rico têm em comum certos preceitos válidos a ambos.

23. “Cure a ganância deles, então”, as pessoas dizem, “e você não precisará palestrar tanto para os pobres como para os ricos, desde que, no caso de cada um deles, o desejo tenha diminuído”. Mas não é uma coisa ser livre do desejo por dinheiro, e outra coisa saber como usar esse dinheiro? Os sovinas não conhecem os limites adequados em matéria de dinheiro, mas mesmo aqueles que não são avarentos não conseguem compreender o seu uso. Então vem a resposta: “Evite o erro e seus preceitos se tornam desnecessários”. Isso esta errado; pois supor que a avareza é diminuída, que o luxo é confinado, que a imprudência é retida, e que a preguiça é estimulada pela espora; mesmo depois que os vícios são removidos, devemos continuar a aprender o que devemos fazer, e como devemos fazê-lo.

24. “Nada”, diz-se, “será realizado aplicando conselhos sobre faltas mais graves”. Não; e nem mesmo medicamentos podem dominar doenças incuráveis; no entanto, são usados em alguns casos como remédio, em outros como alívio. Nem mesmo o poder da filosofia universal, embora convoque toda a sua força para o propósito, removerá da alma o que é agora uma doença teimosa e crônica. Mas a sabedoria, apenas porque ela não tem poder para curar tudo, não é incapaz de fazer curas.

25. As pessoas dizem: “Qual a vantagem apontar o óbvio?” Muito bom; pois às vezes conhecemos fatos sem prestar atenção neles. O conselho não é para ensinar; apenas simplesmente aguça a atenção e nos despertar. Concentra a memória e a impede de perder o controle. Deixamos passar muito do que está diante dos nossos próprios olhos. O conselho é, de fato, uma espécie de exortação. A mente geralmente tenta ignorar mesmo aquilo que está diante de nossos olhos; devemos, portanto, impor a ela o conhecimento de coisas perfeitamente conhecidas. Pode-se repetir aqui o ditado de Calvo[4] sobre Vatínio[5]: “Vocês sabem que o suborno está acontecendo, e todos sabem que vocês sabem disso”.

26. Você sabe que a amizade deve ser escrupulosamente honrada e, no entanto, você não a mantém honrada. Você sabe que um homem faz errado ao exigir a castidade de sua esposa, enquanto ele mesmo está com esposas de outros homens; você sabe que, assim como sua esposa não deve ter relações com um amante, você também não deve se relacionar com uma amante; e ainda assim você não age de acordo. Portanto, você deve ser continuamente trazido a lembrar desses fatos; pois eles não devem estar no armazém, mas estar prontos para o uso. E o que quer que seja saudável deve ser frequentemente discutido e muitas vezes trazido à frente da mente, para que possa estar não apenas familiar a nós, mas também pronto para o uso. E lembre-se, também, de que, desta forma, as verdades evidentes se tornam ainda mais evidentes.

27. “Mas se”, vem a resposta, “seus preceitos não são óbvios, você será obrigado a adicionar provas, daí as provas e não os preceitos serão úteis”. Mas a influência do bedel não pode ser útil, mesmo sem provas? É como as opiniões de um especialista jurídico, que são válidas mesmo que os motivos para elas não sejam entregues. Além disso, os preceitos que são dados são de grande peso em si mesmos, sejam eles narrados no tecido da canção ou condensados em provérbios de prosa, como a famosa sabedoria de Catão: “Não compre o que você deseja, mas o que você deve ter. O que você não precisa, é caro mesmo por um ceitil”.[6] Ou aquelas respostas oraculares, como:

28. “Seja econômico com o tempo!” “Conheça a ti mesmo!” Porventura precisa ser informado do significado quando alguém lhe repete linhas como estas:

Esquecer os problemas é a maneira de curá-los. A fortuna favorece os corajosos, mas o covarde fica pelo caminho.Iniuriarum remedium est oblivio. Audentes fortuna iuvat, piger ipse sibi obstat.[7]

Essas máximas não precisam de nenhum argumento especial; elas vão direto às nossas emoções e nos ajudam simplesmente porque a Natureza está exercendo sua função adequada.

29. A alma carrega dentro de si a semente de tudo o que é honrado, e esta semente é estimulada ao crescimento por conselho, como uma faísca que ventilada por uma suave brisa desenvolve seu fogo natural. A virtude é despertada por um toque, um choque. Além disso, há certas coisas que, embora na mente, ainda não estão prontas para serem aplicadas, mas começam a funcionar facilmente assim que são colocadas em palavras. Certas coisas se espalham em vários lugares, e é impossível que a mente não organizada organize-as em ordem. Portanto, devemos levá-las à unidade, e juntar-se a elas, para que elas possam ser mais poderosas e mais uma elevação para a alma.

30. Ou, se os preceitos não servem de nada, então todos os métodos de instrução devem ser abolidos e devemos nos contentar apenas com a Natureza. Aqueles que mantêm esta visão não entendem que um homem é animado e rápido de inteligência, outro é lento e estúpido, e certamente alguns homens têm mais inteligência do que outros. A força do espírito é nutrida e continua crescendo por preceitos; ele acrescenta novos pontos de vista para aqueles que são inatos e corrige ideias depravadas.

31. “Mas suponha”, as pessoas replicam, “que um homem não é possuidor de dogmas sólidos, como o conselho pode ajudá-lo quando é acorrentado por dogmas viciosos?” Nesse caso, com certeza, ele é libertado disso; pois sua disposição natural não foi esmagada, mas superada e mantida baixa. Mesmo assim, continua tentando se levantar de novo, lutando contra as influências que fazem o mal; mas quando ganha apoio e recebe ajuda de preceitos, cresce mais forte, desde que o problema crônico não tenha corrompido ou aniquilado o homem natural. Nesse caso, nem mesmo o treinamento que vem da filosofia, lutando com todas as suas forças, fará a restauração. Que diferença, de fato, há entre os dogmas da filosofia e os preceitos, a menos que seja isso, que os primeiros são gerais e os últimos especiais? Ambos lidam com conselhos, um através do universal, o outro através do particular.

32. Alguns dizem: “Se alguém está familiarizado com dogmas justos e honestos, será supérfluo aconselhá-lo”. De jeito nenhum; pois essa pessoa realmente aprendeu a fazer coisas que deveria fazer; mas não vê com suficiente clareza quais são essas coisas. Pois somos impedidos de realizar ações dignas de louvor, não só por nossas emoções, mas também por falta de prática para descobrir as demandas de uma situação particular. Nossas mentes muitas vezes estão sob um bom controle e, no entanto, estão ao mesmo tempo inativas e inexperientes em encontrar o caminho do dever, e o conselho torna isso claro.

33. Mais uma vez, está escrito: “Retire todas as falsas opiniões relativas ao bem e ao mal, mas substitua-as por opiniões verdadeiras, então o conselho não terá função a executar”. A ordem da alma pode, sem dúvida, ser estabelecida dessa maneira; mas estas não são as únicas maneiras. Pois, embora possamos deduzir por provas apenas o que é o bem e o mal, no entanto, os preceitos têm seu próprio papel. A prudência e a justiça consistem em certos deveres; e os deveres são definidos por preceitos.

34. Além disso, o julgamento quanto ao bem e ao mal se fortalece ao seguir nossos deveres, e os preceitos nos conduzem para esse fim. Pois ambos estão de acordo um com o outro; nem os preceitos podem assumir a liderança, a menos que os deveres os seguirem. Observam sua ordem natural; portanto, os preceitos são claramente os primeiros.

35. “Preceitos”, diz-se “são inúmeros”. Errado de novo! Pois não são inúmeros no que diz respeito a coisas importantes e essenciais. Claro que há pequenas distinções, devido ao tempo, ou ao lugar, ou à pessoa; mas, mesmo nesses casos, existem preceitos que possuem uma aplicação geral.

36. “Ninguém, no entanto”, diz, “cura a loucura por preceitos e, portanto, também não cura a maldade”. Há uma distinção; pois se você livrar um homem de insanidade, ele se torna sano novamente, mas se removemos falsas opiniões, a visão de uma conduta prática não segue imediatamente. Mesmo assim, o conselho irá, no entanto, confirmar a opinião certa sobre o bem e o mal. E também é errado acreditar que os preceitos não são úteis aos loucos. Apesar de por si só serem inúteis, os preceitos são uma ajuda para a cura. Tanto repreensão como castigo dominam um lunático. Note-se que aqui me referi a lunáticos cujo juízo é perturbado, mas não desesperadamente perdido.

37. “Ainda assim”, é objetado, “as leis nem sempre nos fazem fazer o que devemos fazer, e o que mais são leis senão preceitos misturados com ameaças?” Agora, antes de tudo, as leis não persuadem exatamente porque ameaçam; preceitos, no entanto, em vez de coação, corrigem os homens com súplicas. Novamente, as leis amedrontam o homem a não cometer crime, enquanto os preceitos incitam o homem ao seu dever. Além disso, podemos dizer mesmo que as leis favorecem os bons costumes, desde que pretendam não só impor como também instruir.

38. Neste ponto, eu não concordo com Posidônio, que diz: “Não creio que as Leis de Platão deveriam ter os preâmbulos que lhes foram adicionados. Pois uma lei deve ser breve, para que os não iniciados possam compreendê-la com mais facilidade. Deve ser uma voz, por assim dizer, enviada do céu, deve mandar, não debater. Nada me parece mais estúpido ou mais tolo do que uma lei com preâmbulo. Advirta-me, diga-me o que você deseja que eu faça; não estou aprendendo, mas obedecendo.” Mas leis moldadas desta maneira são úteis; por isso você notará que um estado com leis defeituosas terá defeitos morais.

39. “Mas”, diz-se, “não são úteis em todos os casos”. Bem, nem é a filosofia; e, no entanto, a filosofia não é tão ineficaz e inútil no treinamento da alma. Além disso, a filosofia não é a Lei da Vida? Admitamos, se quisermos, que as leis não servem; não é necessariamente verdade que o aconselhamento também não deva servir. Por este motivo, você deve dizer que a consolação não serve, e a advertência, exortação, repreensão e elogio; uma vez que são todos variações de conselhos. É através de tais métodos que chegamos a uma condição perfeita da mente.

40. Nada é mais bem-sucedido em trazer influências honrosas para suportar a mente, ou em endireitar o espírito vacilante que é propenso ao mal, do que a associação com homens bons. Pois a visão frequente, a audição frequente deles pouco a pouco penetra no coração e adquire a força dos preceitos. Somos realmente elevados apenas por conhecer homens sábios; e alguém pode ser ajudado por um grande homem, mesmo quando ele está em silêncio.

41. Eu não poderia facilmente dizer-lhe como isso nos ajuda, embora eu esteja certo do fato de ter recebido ajuda dessa maneira. Fédon[8] diz: “Certos animais pequenos não deixam dor quando nos picam, tão sutil é seu poder, tão enganoso no propósito de danos. A picada é revelada por um inchaço e, mesmo no inchaço, não há ferida visível”. Essa também será sua experiência ao lidar com homens sábios, você não descobrirá como ou quando o benefício vem para você, mas descobrirá que o recebeu.

42. “Qual é o ponto desta observação?” Você pergunta. É, que bons preceitos beneficiarão você tanto quanto bons exemplos. Pitágoras declara que nossas almas experimentam uma mudança quando entramos em um templo e contemplamos as imagens dos deuses face a face e aguardamos as declarações de um oráculo.

43. Além disso, quem pode negar que mesmo os mais inexperientes são efetivamente atingidos pela força de certos preceitos? Por exemplo, por tais provérbios breves, mas importantes como: “Nada em excesso[9]”, “A mente gananciosa não é satisfeita por nenhum ganho”, “Você deve esperar ser tratado pelos outros como você mesmo os tratou[10]. Recebemos um tipo de choque quando ouvimos tais palavras; ninguém pensa em duvidar delas ou em perguntar “Por quê?” Tão fortemente, deveras, a mera verdade, não acompanhada por explicações, nos atrai.

44. Se a reverência reina na alma e reprime o vício, por que o conselho não pode fazer o mesmo? Além disso, se a repreensão dá uma sensação de vergonha, por que o conselho não tem o mesmo poder, mesmo se usa preceitos nus? O conselho que ajuda a sugestão por razão – que acrescenta o motivo de fazer uma coisa determinada e a recompensa que aguarda aquele que realiza e obedece a tais preceitos – é mais efetivo e se instala mais profundamente no coração. Se os comandos são úteis, também é o conselho. Mas se alguém é ajudado por comandos; portanto, também é ajudado por conselhos.

45. A virtude é dividida em duas partes – na contemplação da verdade e na conduta. O treinamento ensina a contemplação, e a admoestação ensina a conduta. E a conduta correta pratica e revela a virtude. Mas se, quando um homem está prestes a agir, ele é ajudado por conselhos, ele também é ajudado pela admoestação. Portanto, se a conduta correta é necessária para a virtude, e se, além disso, a admoestação deixa clara a conduta correta, então a admoestação também é uma coisa indispensável.

46. Há dois fortes apoios para a alma: confiar na verdade e convicção em nós mesmos; ambas são o resultado da admoestação. Pois os homens acreditam nelas, e quando a crença é estabelecida, a alma recebe grande inspiração e fica cheia de confiança. Portanto, a admoestação não é supérflua. Marco Agripa, um homem de grande alma, a única pessoa entre aquelas que as guerras civis levaram à fama e poder cuja prosperidade ajudou o estado, costumava dizer que estava muito endividado com o provérbio: “Harmonia faz crescer as pequenas coisas, a falta de harmonia faz com que as coisas grandes apodreçam”.[11]

47. Ele considerava que havia se tornado o melhor dos irmãos e o melhor dos amigos em virtude desse ditado. E se os provérbios de tal tipo, quando aceitos intimamente pela alma, podem moldar essa mesma alma, por que a seção da filosofia que consiste em tais provérbios não pode gozar de influência igual? A virtude depende em parte do treinamento e, em parte, da prática; você deve aprender primeiro e, em seguida, fortalecer sua aprendizagem por ação. Se isso é verdade, não só as doutrinas da sabedoria nos ajudam, mas também os preceitos, que controlam e banem nossas emoções por meio de uma espécie de decreto oficial.

48. Aríston diz: “A filosofia é dividida em conhecimento e estado de espírito. Pois quem aprendeu e entendeu o que deva fazer e evitar, não é um homem sábio até que sua mente seja metamorfoseada na forma daquilo que ele aprendeu. Este terceiro departamento – o de preceito – é composto de ambos os outros, de dogmas de filosofia e estado de espírito. Portanto, é supérfluo no que diz respeito ao aperfeiçoamento da virtude, as outras duas partes são suficientes para esse propósito”.

49. Sobre essa base, portanto, mesmo a consolação seria supérflua, uma vez que isso também é uma combinação dos outros dois, assim como a exortação, a persuasão e até mesmo a própria prova. Pois a prova também se origina de uma atitude mental bem ordenada e firme. Mas, embora essas coisas resultem de um estado de mente sã, o estado sadio da mente também resulta delas; é, ao mesmo tempo, tanto o criador delas como resultante delas.

50. Além disso, o que você menciona é a meta de um homem já perfeito, de alguém que atingiu o auge da felicidade humana. Mas a obtenção dessas qualidades é lenta, e, entretanto, por questões práticas, o caminho deve ser mostrado em benefício de alguém que ainda esteja longe da perfeição, mas que esteja fazendo progresso. Sabedoria por sua própria força talvez descubra este caminho sem a ajuda da admoestação; pois ela trouxe a alma a um estágio onde esta pode ser impulsionada apenas na direção certa. Os personagens mais fracos, no entanto, precisam de alguém para precedê-los, para dizer: “Evite isso” ou “Faça isso”.

51. Além disso, se alguém aguarda o momento em que possa saber sozinho qual é a melhor linha de ação, algumas às vezes se desviará e, desviando-se, será impedido de chegar ao ponto em que é possível contentar-se consigo próprio. A alma deve, portanto, ser guiada no momento em que está se tornando capaz de se guiar. Os meninos estudam de acordo com a direção. Seus dedos são segurados e guiados por outros para que possam seguir os contornos das letras; Em seguida, eles são obrigados a imitar uma cópia e a alicerçar nela um estilo de caligrafia. Da mesma forma, a mente é ajudada se for ensinada de acordo com a direção.

52. Tais fatos provam que este departamento da filosofia não é supérfluo. A questão em seguida surge se esta parte sozinha é suficiente para tornar os homens sábios. O problema deve ser tratado no devido momento[12]; mas no momento, omitindo todos os argumentos, não é claro que precisamos de alguém a quem possamos invocar como nosso mentor em oposição aos preceitos dos homens em geral?

53. Não há nenhuma palavra que atinja nossos ouvidos sem nos fazer mal; somos feridos tanto por bons desejos quanto por maldições. As orações irritadas de nossos inimigos inculcam medos falsos em nós; e o carinho de nossos amigos nos prejudica por seus desejos gentis. Pois esse carinho nos coloca a tatear por bens que estão distantes, inseguros e vacilantes, quando realmente podemos abrir o depósito de felicidades de casa.

54. Não nos permitimos, eu mantenho, viajar por uma estrada direta. Nossos pais e nossos escravos nos atraem para o errado. Ninguém confina seus erros para si mesmo; as pessoas pulverizam insensatez entre os seus vizinhos, e recebem-na por sua vez. Por esta razão, em um indivíduo, você encontra os vícios das nações, porque a nação os deu ao indivíduo. Cada um, ao corromper os outros, corrompe-se; o indivíduo embebe e, em seguida, transmite, a maldade, o resultado é uma grande massa de maldade, porque o pior em cada pessoa separada é concentrado em uma massa.

55. Devemos, portanto, ter um guardião, por assim dizer, para nos puxar continuamente pelo ouvido e dissipar rumores e protestar contra entusiasmos populares. Pois você está enganado se supor que nossas falhas são inatas em nós; elas vieram de fora, foram empilhadas sobre nós. Por isso, ao receber admoestações frequentes, podemos rejeitar as opiniões que retinam sobre nossos ouvidos.

56. A natureza não nos predestinou para nenhum vício; ela nos produziu em saúde e liberdade. Ela não colocou diante de nossos olhos nenhum objeto que pudesse atiçar em nós a coceira da ganância. Ela colocou ouro e prata debaixo de nossos pés, e ordenou que os pés pisoteassem e esmagassem tudo o que nos pisa e esmaga. A natureza elevou nosso olhar para o céu e desejou que quiséssemos olhar para cima para contemplar suas obras gloriosas e maravilhosas. Ela nos deu o nascente e o pôr-do-sol, o curso giratório do mundo apressado que revela as coisas da terra ao dia e os corpos celestes de noite, os movimentos das estrelas, que são lentos se você os compara com o universo, mas mais rápido se você refletir sobre o tamanho das órbitas que descrevem com velocidade; ela nos mostrou os sucessivos eclipses do sol e da lua, e outros fenômenos, maravilhosos porque ocorrem regularmente ou porque, por causas súbitas, eles ajudam a ver – como trilhas noturnas de fogo, ou relâmpagos no céu aberto não acompanhado pelo som de Trovões, ou colunas e as traves dos vários fenômenos de luzes.

57. Ela ordenou que todos esses corpos deveriam prosseguir acima de nossas cabeças; mas ouro e prata, com o ferro que, devido ao ouro e à prata, nunca traz a paz, ela escondeu, como se fossem coisas perigosas para confiar à nossa guarda. Somos nós mesmos que os arrastamos para a luz do dia, para que possamos lutar por eles; somos nós mesmos que, cavoucando a terra inferior, extraímos as causas e ferramentas de nossa própria destruição; somos nós mesmos que atribuímos nossas próprias faltas à Fortuna e não coramos ao considerar como os mais elevados objetos aqueles que uma vez se encontravam nas profundezas da Terra.

58. Você deseja saber quão falso é o brilho que engana seus olhos? Na verdade, não há nada mais imundo ou mais envolvido na escuridão do que essas coisas da terra, afundadas e cobertas há tanto tempo na lama onde elas pertencem. É claro que elas são sujas; elas foram transportadas por um longo e sombrio poço de mina. Não há nada mais feio que esses metais durante o processo de refinamento e separação do minério. Além disso, assista os próprios operários que devem lidar e peneirar a árida categoria de sujeira, o tipo que vem do fundo; veja como besuntados de fuligem eles são!

59. E, no entanto, as coisas que eles lidam poluem a alma mais do que o corpo, e há mais impureza no dono da mina do que no trabalhador. Portanto, é indispensável que sejamos admoestados, que tenhamos algum defensor com mente reta e, em meio a todos os tumultos e sons discordantes da falsidade, ouçamos apenas uma voz. Mas qual voz será essa? Certamente, uma voz que, em meio a todo o tumulto da busca de si mesmo, sussurra palavras saudáveis na orelha ensurdecida, dizendo:

60. Você não precisa ter inveja daqueles a quem as pessoas chamam de grandioso e afortunado, os aplausos não precisam perturbar sua atitude serena e sua sanidade mental, você não precisa se sentir enojado com seu espírito calmo porque você vê um grande homem vestido de púrpura, protegido pelos conhecidos símbolos de autoridade, você não precisa julgar o magistrado para quem o caminho é aberto como sendo mais feliz do que você, a quem o funcionário dele empurra da estrada. Se você exerce uma atividade lucrativa para si mesmo, e prejudicial a ninguém, limpe suas próprias falhas do caminho.

61. Há muitos que atearam fogo às cidades, que atacaram guarnições que permaneceram inexpugnáveis por gerações e seguras por várias eras, que criam montes tão altos como as paredes que são sitiando, que com aríetes e catapultas destroem torres que foram criadas em uma altura maravilhosa. Há muitos que podem enviar suas colunas à frente e pressionar destrutivamente sobre a parte de trás do inimigo, que pode alcançar o Grande Mar gotejando com o sangue das nações; mas mesmo esses homens, antes que pudessem conquistar seu inimigo, foram conquistados por sua própria ganância. Ninguém suportou seu ataque; mas eles mesmos não podiam suportar o desejo de poder e o impulso à crueldade; no momento em que pareciam estar perseguindo outros, eles próprios estavam sendo perseguidos.

62. Alexandre foi perseguido ao infortúnio e despachado para países desconhecidos por um desejo louco de destruir o território de outros homens. Você acredita que o homem estava em seus sentidos tanto que começou pela Grécia a devastação, a terra onde ele recebeu sua educação? Aquele que arrancou o mais caro tesouro de cada nação, exigindo que os espartanos fossem escravos, e que os atenienses ficassem quietos? Não contente com a ruína de todos os estados que Filepe havia conquistado ou subornado a escravidão, derrubou várias comunas em diversos lugares e carregou suas armas em todo o mundo; sua crueldade estava cansada, mas nunca cessou – como uma besta selvagem que rasga em pedaços mais do que sua fome demanda.

63. Ele juntou muitos reinos em um único reino; gregos e persas temem o mesmo senhor; as nações que Dário tinha deixado livre se submeteram ao jugo: ainda assim ele passa além do oceano e do sol, julgando vergonhoso que ele desvie seu curso de vitória dos caminhos que Hercules e Baco haviam pisado; ele ameaça a própria violência da natureza. Ele não deseja ir; mas ele não pode ficar; ele é como um peso que cai de cabeça, seu percurso acaba apenas quando chega ao chão.

64. Não foi virtude ou razão que persuadiu Cneu Pompeu a participar de guerras estrangeiras e civis; era o desejo louco de sua glória irreal. Ora ele atacava a Hispânia e a facção de Sertório; depois se retirava para acorrentar os piratas e subjugar os mares. Estas eram apenas desculpas e pretextos para ampliar seu poder.

65. O que o atraiu para a África, para o Norte, contra Mitrídates, para a Armênia e todos os cantos da Ásia? Certamente era o desejo ilimitado de poder; pois apenas em seus próprios olhos ainda não era suficientemente grande. E o que levou Júlio César à destruição combinada de si mesmo e do estado? Fama, egoísmo, e a definição de nenhum limite para a primazia sobre todos os outros homens. Ele não podia permitir que uma única pessoa o ultrapassasse, embora o estado permitisse que dois homens ficassem à cabeça.

66. Você acha que Caio Mario, que já foi cônsul (ele recebeu este cago em uma ocasião, e o roubou em todas as outras) cortejou todos os seus perigos por inspiração da virtude quando matava os Teutos e os Cimbros, e perseguindo Jugurta através das regiões selvagens da África? Mario comandou exércitos, mas quem comandava Mário era a ambição.

67. Quando homens como esses estavam perturbando o mundo, eram eles mesmos perturbados – como os ciclones que turbilhonam o que tomaram, mas que primeiro se turbilhonam a sim mesmos e podem por isso se atirar com toda a força, totalmente sem controle; portanto, depois de causar tal destruição para os outros, eles sentem em seu próprio corpo a força ruinosa que lhes permitiu causar estragos para muitos. Não pense que alguém pode ser feliz à custa da infelicidade dos outros.

68. Devemos desvendar todos os casos que são forçados diante de nossos olhos e amontoados em nossos ouvidos; devemos limpar nossos corações, pois eles estão cheios de conversa maligna. A virtude deve ser conduzida no lugar que estas ocuparam, – uma espécie de virtude que pode erradicar a falsidade e as doutrinas que transgridam a verdade, ou possa nos separar da multidão, na qual confiamos demais e possa nos restaurar para a fruição de opiniões sólidas. Pois esta é a sabedoria – um retorno à Natureza e uma restauração à condição a qual os erros do homem nos conduziram.

69. É uma grande parte da saúde ter abandonado os conselheiros da loucura e ter fugido para longe de uma companhia que é mutuamente prejudicial. Para que você possa conhecer a verdade da minha observação, veja como é diferente a vida de cada indivíduo perante o público daquela de seu eu interior. Uma vida tranquila não dá, por si só, lições de conduta correta; o campo não ensina uma vida simples; não, mas quando testemunhas e espectadores são removidos, as falhas que amadurecem em público calam fundo.

70. Quem veste o manto púrpura para exibi-lo aos olhos de ninguém? Quem usa peitoral de ouro quando janta sozinho? Quem, enquanto se deita sob a sombra de uma árvore do campo, mostra na solidão o esplendor de seu luxo? Ninguém se torna elegante apenas para sua própria visão, ou mesmo para a admiração de alguns amigos ou parentes. Em vez disso, ele espalha seus vícios bem providos em proporção ao tamanho da multidão admiradora.

71. É assim: claquistas e testemunhas são agentes irritantes de todas as nossas fraquezas. Você pode nos fazer cessar de desejar, se apenas nos faz deixar de nos exibir. A ambição, o luxo e o capricho precisam de um palco para agir; você vai curar todos esses males se você procurar o isolamento.

72. Portanto, se a nossa morada estiver situada no meio de uma cidade, deve haver um conselheiro que esteja perto de nós. Quando os homens louvam grandes rendas, ele deve louvar a pessoa que pode ser rica com um patrimônio pequeno e que meça sua riqueza pelo uso que faz dela. Em face daqueles que glorificam a influência e o poder, deve, por sua própria vontade, recomendar um tempo dedicado ao estudo, e uma alma que abandonou o externo e se encontrou.

73. Ele deve apontar pessoas, felizes na estimativa popular, que cambaleiam em suas invejadas alturas de poder, mas que estão consternadas e mantêm uma opinião muito diferente de si do que os outros detêm. O que outros acreditam ser elevado, é para eles um precipício completo. Por isso, eles estão assustados e agitados sempre que olham para baixo o abrupto íngreme de sua grandeza. Pois eles refletem que existem várias maneiras de cair e que o ponto mais alto é o mais escorregadio.

74. Então eles temem aquilo para o qual se esforçaram, e a boa fortuna que os fez importantes aos olhos dos outros pesa mais sobre si mesmos. Então eles louvam o lazer banal e independência; eles odeiam o glamour e tentam escapar enquanto suas fortunas ainda não são prejudicadas. Então, finalmente, você pode vê-los estudando filosofia em meio ao seu medo, e caçando conselhos de qualidade quando suas fortunas dão errado. Por estas duas coisas estão, por assim dizer, em polos opostos – boa fortuna e bom senso; é por isso que somos mais sábios quando estamos em meio à adversidade. É a prosperidade que nos afasta do caminho íntegro.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Isto é a praecepta, a moral prática, que ministra conselhos, por oposição à moral teórica que estabelece os princípios básicos, decreta.

[2] Aríston de Quios (em grego: Ἀρίστων ὁ Χίος; fl. c. 260 a.C.) foi discípulo de Zenão. Esboçou um sistema de filosofia estoica que esteve, em muitos aspectos, mais próximo da anterior filosofia cínica.

[3] Humorismo, ou humoralismo, foi uma teoria sobre a constituição e funcionamento do corpo humano adotada pelos médicos e filósofos gregos e romanos. Essencialmente, essa teoria afirmava que o corpo humano era preenchido com quatro substâncias básicas, chamadas de os quatro humores, ou humores, o quais estão balanceados quando a pessoa está saudável. Todas as doenças e inaptidões resultavam do excesso ou da deficiência de um desses quatro humores. Os quatro humores eram identificados como bílis negra, bílis amarela, fleuma e sangue. Os gregos e os romanos, e os estabelecimentos médicos posteriores da Europa Ocidental que adotavam e adaptavam a filosofia médica clássica, acreditavam que cada um desses humores poderia aumentar e diminuir no corpo, dependendo da dieta e da atividade.

[4] G. Licínio Calvo, orador e poeta contemporâneo de César e Cícero, amigo íntimo de Catulo, célebre sobretudo pelos seus discursos contra Vatínio (cf. Catulo 53), ainda lidos e admirados no tempo Tácito e Plínio. Utilizou uma oratória tão refinada que, no julgamento de Vatínio, foi interrompido no meio do discurso por uma frase: “Jurados, pergunto-lhes se irão condenar o suspeito simplesmente pela eloquência do acusador!

[5] Públio Vatínio foi um político da gente Vatínia da República Romana eleito cônsul em 47 a.C.. Depois de terminado seu mandato, Vatínio foi acusado formalmente por Caio Livínio Calvo de aceitar subornos.

[6]Moeda referida também no Novo Testamento (Lucas 12:6) que tem o valor de 1/16 de denário. Quantia insignificante, coisa de pequeno valor.

[7] Texto de Publílio Síro

[8]Provavelmente referência a Fédon de Élis, um filósofo grego. Fédon era nativo de Élis, tendo sido capturado em guerra e vendido como escravo. Veio posteriormente a entrar em contato com Sócrates em Atenas, tendo este o libertado da escravatura.  Mais tarde, regressou a Élis, fundando uma escola filosófica, a Escola de Élis.

[9] Sentença oracular, como as citadas anteriormente.

[10] Frases de Publílio Siro

[11] Frase de Salústio

[12] Esse problema, a saber, se a parenética, ou preceptística, é por si só suficiente para a formação do sábio, está discutido na carta XCV, a próxima.

Carta 93: Sobre a Qualidade da Vida quando contrastada com seu Comprimento

Chegamos a primeira carta do volume III das Cartas de Sêneca. E começa com uma carta fantástica, uma das mais citadas e comentadas de toda obra senequiana.

Mais uma vez o tema é o medo da morte e sua irracionalidade. Começa nos alertando de que não devemos amaldiçoar os deuses e aceitar a decisão divina. Para os estoicos Deus e Natureza eram equivalentes:

você considera mais justo que você deva obedecer à Natureza ou que a Natureza deva obedecer a você? E qual diferença faz quanto tempo você se afasta de um local para onde você deverá partir mais cedo ou mais tarde? Devemos nos esforçar não para viver muito, mas para viver plenamente” (XCIII, 2)

O principal argumento de Sêneca é que devemos nos preocupar com a qualidade, não com a duração da vida. Uma vida plena é uma vida de virtude, não uma longa: “vamos nos certificar, meu querido Lucílio, que nossas vidas, como joias de grande preço, sejam dignas de nota, não por seu tamanho, mas por sua qualidade(XCIII, 4)

A carta termina, como de costume, com uma analogia fantástica com gladiadores. Sêneca defende que a parte “terrestre” de nossa vida é uma parte insignificante e que anos a mais não representam nada no total da nossa existência:

Você considera mais afortunado o gladiador que é morto no último minuto dos jogos do que aquele que morreu no meio das festividades? Você acredita que alguém é tão estupidamente apegado pela vida que preferiria ter sua garganta cortada no espoliário do que no anfiteatro?” (XCIII, 12)

Imagem: Espoliário por Juan Luna


XCIII. Sobre a Qualidade da Vida quando contrastada com seu Comprimento

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Ao ler a carta em que você estava lamentando a morte do filósofo Metronax – como se ele pudesse e de fato, devesse ter vivido mais –  senti falta do espírito de justiça que abunda em todas as suas discussões sobre homens e coisas, mas falta a você quando se aproxima de um assunto falho a todos nós. Em outras palavras, eu vi muitos que lidam justamente com seus semelhantes, mas nenhum que lida de maneira justa com os deuses. Nós criticamos todos os dias a Fortuna, dizendo: “Por que A foi levado no meio de sua carreira? Por que B não é levado? E aquele? Por que prolongar sua velhice, que é um fardo para si mesmo, bem como para outros?

2. Mas diga-me, por favor, você considera mais justo que você deva obedecer à Natureza ou que a Natureza deva obedecer a você? E qual diferença faz quanto tempo você se afasta de um local para onde você deverá partir mais cedo ou mais tarde? Devemos nos esforçar não para viver muito, mas para viver plenamente; para alcançar uma vida longa, você só precisa do destino, mas para viver corretamente você precisa da alma. Uma vida é muito longa se for uma vida plena; mas a plenitude não é alcançada até que a alma tenha fornecido a si mesmo o bem próprio, isto é, até assumir o controle sobre si mesmo.

3. Qual o benefício que este homem mais velho obtém dos oitenta anos em que passou em ociosidade? Uma pessoa como ele não viveu; ele se atrasou na vida. Nem ele morreu tarde na vida; ele simplesmente morreu por muito tempo. “Ele viveu oitenta anos?” Isso depende da data a partir da qual você considera sua morte! Seu outro amigo, no entanto, partiu na floração de sua masculinidade.

4. Mas ele cumpriu todos os deveres de um bom cidadão, um bom amigo, um bom filho; em nenhum caso, ele deixou a desejar. Sua idade pode ter sido incompleta, mas sua vida foi completa. O outro homem viveu oitenta anos? Não, ele existiu oitenta anos, a não ser que, por acaso, você quis dizer com “ele viveu” o que queremos dizer quando dizemos que uma árvore “vive”. Por favor, vamos nos certificar, meu querido Lucílio, que nossas vidas, como joias de grande preço, sejam dignas de nota, não por seu tamanho, mas por sua qualidade. Deixe-nos medi-la pelo desempenho dela, não pela duração dela. Você saberia onde está a diferença entre este homem robusto que, desprezando a Fortuna, serviu através de cada batalha da vida e alcançou o Bem Supremo da vida, e aquela outra pessoa sobre cuja cabeça passaram muitos anos? O primeiro existe mesmo depois da morte dele; o último estava morto antes mesmo de morrer.

5. Devemos, portanto, louvar, e considerar em companhia do bem-aventurado, aquele homem que investiu bem sua parcela do tempo, por menor que tenha sido atribuída a ele; pois essa pessoa viu a verdadeira luz. Ela não foi um entre a multidão comum. Ela não só viveu, mas também floresceu. Às vezes, ela desfrutava de céus limpos; às vezes, como muitas vezes acontece, era apenas através das nuvens que via o resplendor da poderosa estrela[1]. Por que você pergunta: “Quanto tempo ele viveu?” Ele ainda vive! Em um passo ele atravessou para a posteridade e se entregou à guarda da memória.

6. E, no entanto, eu não negaria a mim alguns anos adicionais; embora, se o espaço da minha vida for encurtado, não direi que tenha faltado qualquer coisa que seja essencial para uma vida feliz. Pois não planejei viver até o último dia prometido pelas minhas esperanças gananciosas; não, eu olhei todos os dias como se fossem o meu último. Por que pedir a data do meu nascimento, ou se eu ainda estou inscrito na lista dos homens mais jovens[2]? O que eu tenho é meu.

7. Assim como alguém de pequena estatura pode ser um homem perfeito, da mesma forma uma vida curta pode ser uma vida perfeita. Idade se classifica entre as coisas externas. Quanto tempo eu vou existir não é minha decisão, mas quanto tempo eu vou continuar a existir no meu jeito atual está sob meu controle. Esta é a única coisa que você tem o direito de exigir de mim, – que eu deixe de medir anos sem glória, como se estivessem na escuridão, e que me dedique a viver em vez de ser carregado ao longo da vida.

8. E qual, você pergunta, é o máximo da envergadura da vida? É viver até você possuir sabedoria. Aquele que alcançou a sabedoria alcançou, não o mais longínquo, mas o mais importante objetivo. Tal pessoa pode realmente exultar com ousadia e dar graças aos deuses – sim e a si mesmo também – e ela pode considerar-se credora da natureza por ter vivido. Ela certamente terá o direito de fazê-lo, pois ela lhe retribuiu com uma vida melhor do que recebeu. Ela estabeleceu o padrão de um homem bom, mostrando a qualidade e a grandeza de um homem bom. Tivesse mais um ano adicionado, seria apenas como o passado.

9. E ainda quanto tempo devemos continuar vivendo? Tivemos a alegria de aprender a verdade sobre o universo. Sabemos de que origens a natureza surge; como ela regula o curso dos céus; por mudanças sucessivas que ela invoca o ano; como ela acabou com todas as coisas que já existiram e estabeleceu-se como o único fim de seu próprio ser. Sabemos que as estrelas se movem por sua própria direção, e que nada, exceto a terra, permanece imóvel, enquanto todos os outros corpos correm com rapidez ininterrupta[3]. Sabemos como a lua ultrapassa o sol; por que é que, o mais lento, deixa o mais rápido atrás; de que maneira ela recebe a luz, ou a perde de novo; o que traz a noite e o que traz de volta o dia. Para esse lugar você deve ir para que tenha uma visão mais próxima de todas essas coisas.

10. “E, no entanto,” diz o sábio: “Eu não partirei mais valentemente por causa dessa esperança – porque julgo que está claro diante de mim o caminho para meus próprios deuses. Certamente, ganhei a admissão à presença deles e, de fato, já estive em suas companhias, eu enviei minha alma para eles como eles já tinham enviado a deles para mim. Mas suponha que eu seja totalmente aniquilado, e que, após a morte, não subsista nada mortal, não tenho menos coragem, mesmo que quando eu parta, meu curso leve a nenhum lugar. Mas”, você diz, “ele não viveu tantos anos quanto poderia ter vivido”.

11. Existem livros que contêm poucas linhas, admiráveis e úteis, apesar do tamanho deles; e também existem os Anais de Tanúsio[4] – você sabe o volume do livro e o que os homens dizem dele. Este é o caso da longa vida de certas pessoas, um estado que se assemelha aos Anais de Tanúsio!

12. Você considera mais afortunado o gladiador que é morto no último minuto dos jogos do que aquele que morreu no meio das festividades? Você acredita que alguém é tão estupidamente apegado pela vida que preferiria ter sua garganta cortada no espoliário[5] do que no anfiteatro? Não é mais um intervalo do que isso que precedemos um ao outro. A morte visita cada um e todos; o assassino logo segue o morto. É uma bagatela insignificante, afinal, que as pessoas discutem com tanta preocupação. E de qualquer forma, o que importa por quanto tempo você evita aquilo do qual você não pode escapar?Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Isto é, o Sol.

[2] Referência ao comitia centuriata, Assembleia das centúrias, dividida em Juniores homens com idade entre 17 e 46 e Seniores com idade entre 46 e 65.

[3] A tese do geocentrismo era uma ideia contestada também na época de Sêneca como pode ser visto no seu livro Questões Naturais no livro VII em que discute o movimento dos cometas.

[4] Tanúsio Geminus foi um historiador. Chegou  a ser mencionado por Suetônio em Diuus Julius, IX. A expressão de Sêneca (“que os homens dizem dele”) é uma reminiscência de cacata carta do poema de Catulo.

[5] Espoliário na m Roma Antiga era o lugar anexo às arenas no qual se despojavam das vestes os gladiadores mortos em combate, e se acabavam de matar os que tinham sido mortalmente feridos.

Carta 92: Sobre a vida feliz

Sêneca escreveu sobre este tópico em maior extensão ao seu irmão Gálio no livro “A Vida Feliz – De Vita Beata”. Essa carta é um excelente resumo de suas ideias sobre o que torna uma vida feliz: Viver segundo a natureza, em virtude.

Após dezenas de citações elogiosas a Epicuro, Sêneca bate pesado nos epicuristas ao categoricamente afirmar que prazeres e sua busca são ineficazes (e muita vezes contrários) a uma vida feliz:

A parte irracional da alma é dupla: uma parte é animada, ambiciosa, descontrolada; seu lugar está nas paixões; a outra é rasteira, indolente e dedicada ao prazer. Os filósofos epicuristas negligenciaram a primeira, que, ainda que desenfreada, ainda é melhor, e certamente é mais corajosa e mais digna de um homem, e consideraram a última, que é inútil e ignóbil, como indispensável para a vida feliz.” (XCII, 8)

Sêneca, como de costume, usa excelentes analogias para defender suas tesas. Para os estoicos, questões sensoriais (dor, doença, prazer, etc) não tem capacidade de influenciar a felicidade (positiva ou negativamente) e são como uma nuvem que encobrem o sol:

Desastres, e portanto, perdas e ofensas, têm apenas o mesmo poder sobre a virtude que uma nuvem tem sobre o sol.” (XCII, 18)

O segredo para a felicidade então é uma vida virtuosa, e uma busca a se tornar semelhantes aos deuses. Sêneca acreditava que nossa alma vinha de Deus, e com a morte, retornaria a Deus:

Seria uma grande tarefa abrir caminho para o céu; a alma, apenas retorna para lá. (…) A alma, afirmo, sabe que as riquezas são armazenadas em outro lugar do que nos cofres dos homens; é a alma que deve ser preenchida, e não o cofre.” (XCII,31)

(Imagem “Ulysses and the Sirens”, por Draper Herbert James)


XCII. Sobre a vida feliz

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você e eu concordaremos, penso eu, que as coisas externas são buscadas para a satisfação do corpo, que o corpo é apreciado por respeito à alma, e que na alma existem certas partes que nos auxiliam, permitindo-nos a mover e manter a vida, concedida a nós apenas para o proveito da nossa parte principal[2]. Nesta parte primária, há algo irracional e algo racional. A primeira obedece a última, esta não tem qualquer ponto de referência além de si própria, pelo contrário, serve ela de ponto de referência a tudo. Pois a razão divina também está em comando supremo de todas as coisas, e não está sujeita a nada; e até mesmo a razão que possuímos é assim, porque é derivada da razão divina.

2. Agora, se concordarmos neste ponto, é natural que também possamos concordar com o seguinte: a vida feliz depende disso e só disso: da obtenção da razão perfeita. Pois não é nada além disso, que impede a alma de se rebaixar, que luta firme contra a fortuna; seja qual for a condição de seus negócios, ela mantém os homens sem problemas. E ela sozinha é um bem que nunca está sujeito a deficiências. Esse homem, eu declaro, é feliz, já que nada o faz menos forte; ele se mantém nas alturas, não se apoiando em ninguém senão em si mesmo; pois quem se sustenta por qualquer suporte pode cair. Se o caso for contrário, então as coisas que não dizem respeito a nós começarão a ter uma grande influência sobre nós. Mas quem deseja que a fortuna tenha vantagem, ou que homem sensato se orgulha do que não é dele próprio?

3. O que é a vida feliz? É paz de espírito e tranquilidade duradoura. Isto será seu se você possuir grandeza de alma; será seu se você possuir a firmeza que se apega resolutamente a um bom julgamento recém atingido. Como um homem atinge essa condição? Ao obter uma visão completa da verdade, mantendo, em tudo o que faz, ordem, medida, aptidão e vontade que é inofensiva e gentil, que é atenta a razão e nunca se afasta dela, que conduz ao mesmo tempo ao amor e à admiração. Em suma, para lhe dar o princípio resumidamente, a alma do sábio deve ser tal como seria apropriada a um deus.

4. O que mais pode desejar alguém que possua todas as coisas honrosas? Pois, se coisas desonestas podem contribuir para um maior patrimônio, então haverá a possibilidade de uma vida feliz em condições que não incluam uma vida digna. E o que é mais vil ou tolo do que conectar o bem de uma alma racional com coisas irracionais?

5. Contudo, existem certos filósofos que afirmam que o Bem Supremo admite aumento, porque não está completo quando as dádivas da fortuna são adversas. Mesmo Antípatro, um dos grandes líderes da nossa escola, admite que atribui alguma influência aos extrínsecos, embora apenas uma influência muito pequena. Você vê, no entanto, que absurdo é em não se contentar com a luz do dia, a menos que seja aumentada por um pequeno fogo. Qual a importância de uma faísca no meio desta luz solar intensa?

6. Se você não está satisfeito com o que é honrado, terá forçosamente de lhe pôr ao lado ou o sossego como dizem os gregos(aokhlêsia), ou o prazer. Mas o primeiro pode ser alcançado em qualquer caso. Pois a mente está livre de distúrbios quando é totalmente livre para contemplar o universo, e nada a distrai da contemplação da natureza. O segundo, o prazer, é simplesmente o bem dos animais. Nós somos apenas o adicionado do irracional ao racional, o desonroso ao honrado. Uma sensação física agradável afeta essa nossa vida;

7. Por que, portanto, você hesita em dizer que tudo está bem com um homem, só porque tudo está bem com seu apetite? E você classifica, não vou dizer entre os heróis, mas entre os homens, a pessoa cujo Bem Supremo é uma questão de sabores, cores e sons? Não, deixe-o retirar-se destas fileiras, da classe mais nobre de seres vivos, segunda apenas aos deuses; deixe-o viver em rebanho com as bestas – um animal cujo prazer está na forragem!

8. A parte irracional da alma é dupla: uma parte é animada, ambiciosa, descontrolada; seu lugar está nas paixões; a outra é rasteira, indolente e dedicada ao prazer. Os filósofos epicuristas negligenciaram a primeira, que, ainda que desenfreada, ainda é melhor, e certamente é mais corajosa e mais digna de um homem, e consideraram a última, que é inútil e ignóbil, como indispensável para a vida feliz.

9. Eles ordenaram a razão a servir esta última; eles fizeram o Bem Supremo da vida mais nobre ser um assunto abjeto e mesquinho, e um híbrido monstruoso, também, composto de vários membros que harmonizam, mas estão doentes. Pois, como nosso Virgílio, descrevendo Cila,[3] diz:

“tem forma humana o seu corpo, donzela de peito formoso até à cinta, depois torna-se monstro gigantesco unindo caudas de golfinho ao ventre eriçado de lobos!”Prima hominis facies et pulchro pectore virgo Pube tenus, postrema inmani corpore pistrix Delphinum caudas utero commissa luporum.[4]
Eneida, de Virgílio.

E ainda assim, esta Cila é alinhavada nas formas de animais selvagens, terrível e rápida; mas a partir de que formas monstruosas esses pedantes epicuristas compuseram sabedoria!

10. A arte principal do homem é a própria virtude; há, unida a ela uma carne inútil e fugaz, apta apenas para a recepção de alimentos, como observa Posidônio. Esta virtude divina termina em impureza, e nas partes superiores, que são adoráveis e celestiais, está preso um animal lento e flácido. Quanto ao segundo desiderato, calmo, embora, de fato, não seja de si mesmo benéfico para a alma, mas aliviaria a alma dos obstáculos; prazer, pelo contrário, realmente destrói a alma e afrouxa todo o seu vigor. Quais elementos tão desarmoniosos como estes podem ser encontrados unidos? Aquilo que é mais vigoroso é unido ao que é mais lento, ao que é austero o que está longe de ser sério, ao que é mais sagrado com o que é destemperado até o ponto da impureza por incesto.

11. O que, então”, vem a réplica, “se a boa saúde, o descanso e a imunidade à dor não prejudicam a virtude, você não deve procurar tudo isso?” É claro que eu os procurarei, mas não porque sejam bens, eu os procurarei porque estão de acordo com a natureza e porque serão adquiridos por meio do exercício do bom juízo de minha parte. O que, então, será bom neles? Só isso – é bom escolhe-los. Pois, quando eu coloco um vestuário adequado, ou ando como devo, ou janto como devo jantar, não é o meu jantar, nem a minha caminhada, nem o meu traje que são bens, mas a escolha deliberada que mostro em relação a eles, como observo, em cada coisa que faço, um meio que está em conformidade com a razão.

12. Permita-me também acrescentar que a escolha de roupas limpas é um objeto apropriado dos esforços de um homem; pois o homem é, por natureza, um animal elegante e bem preparado. Daí a escolha de um traje limpo, e não um traje elegante em si mesmo, é um bem; uma vez que o bem não está no item selecionado, mas na qualidade da seleção. A moralidade está na nossa forma de agir, mas não as coisas reais que fazemos.

13. E você pode assumir que o que eu disse sobre vestes se aplica também ao corpo. Pois a natureza cercou nossa alma com o corpo como com uma espécie de roupa; o corpo é o seu manto. Mas quem computa o valor das roupas pelo guarda-roupa que as contem? A bainha não faz a espada boa ou ruim. Portanto, no que diz respeito ao corpo, devolver-lhe-ei a mesma resposta,  se eu escolher, escolherei saúde e força, mas o bem envolvido será o meu juízo sobre essas coisas, e não as próprias coisas.

14. Outra réplica é: “Admitindo que o sábio é feliz, no entanto, ele não alcança o bem supremo que definimos, a não ser que os meios que a natureza oferece para a sua realização estiverem a seu alcance. Então, quem possui a virtude não pode ser infeliz, mas não se pode ser perfeitamente feliz quem não possui as dádivas naturais como a saúde ou a integridade dos membros”.

15. Mas, ao dizer isso, você epicurista admite a alternativa que parece mais difícil de acreditar – que o homem que está em meio a uma dor incessante e extrema não é miserável, ou melhor, é feliz; E você nega o que é muito menos crítico, – que ele é completamente feliz. E, no entanto, se a virtude pode evitar que um homem seja miserável, será uma tarefa mais fácil para ela torná-lo completamente feliz. Pois a diferença entre felicidade e felicidade completa é menor do que entre miséria e felicidade. Pode ser possível que uma coisa que seja tão poderosa que retire um homem do desastre e o coloque entre os felizes, também não possa realizar o que falta e torná-lo extremamente feliz? A sua força falha no fim da subida?

16. Há coisas da vida que são vantajosas e desvantajosas, ambas além do nosso controle. Se um bom homem, apesar de ser castigado por todos os tipos de desvantagens, não é miserável, como não é extremamente feliz, não importa se não possui certas vantagens? Pois, como não é levado à miséria por seu fardo de desvantagens, então não é afastado da suprema felicidade por falta de vantagens; não, ele é tão supremamente feliz sem as vantagens, assim como ele está isento da miséria, apesar da carga de suas desvantagens. Caso contrário, se o seu bem pode ser reduzido, pode também ser retirado completamente.

17. Num trecho acima, observei que um pequeno fogo não aumenta a luz do sol. Pois, devido ao brilho do sol, qualquer outra luz que não seja a luz solar é apagada. “Mas,” pode-se dizer, “há certos objetos que bloqueiam o caminho mesmo da luz solar”. O sol, no entanto, não é prejudicado mesmo em meio a obstáculos, e, embora um objeto possa intervir e cortar nossa visão, o sol adere-se ao seu trabalho e segue seu curso. Sempre que ele brilha de entre as nuvens, não é menor, nem menos pontual, do que quando está livre de nuvens; uma vez que faz uma grande diferença se existe apenas algo no caminho de sua luz ou algo que interfira com o seu brilho.

18. Da mesma forma, os obstáculos não retiram nada da virtude; não fica menor, mas simplesmente brilha com menos esplendor. Em nossos olhos, talvez seja menos visível e menos luminosa do que antes; mas, no que se refere a si mesma, é inalterada e, assim como o sol quando está eclipsado, ainda continua produzindo sua força, embora em segredo. Desastres, e portanto, perdas e ofensas, têm apenas o mesmo poder sobre a virtude que uma nuvem tem sobre o sol.

19. Encontramos com uma pessoa que sustenta que um homem sábio que se encontre com infortúnio corporal não é nem miserável nem feliz. Mas ele também está errado, pois está colocando os resultados do acaso em uma paridade com as virtudes e atribui a mesma influência tanto a coisas que são honrosas quanto a coisas desprovidas de honra. Mas o que é mais detestável e mais indigno do que colocar coisas desprezíveis na mesma classe de coisas dignas de reverência! Pois reverência é devida à justiça, dever, lealdade, bravura e prudência; pelo contrário, esses atributos são inúteis pois homens mais desprezíveis são muitas vezes abençoados com os quais em maior medida, como uma perna robusta, ombros fortes, bons dentes e músculos saudáveis e sólidos.

20. Novamente, se um homem sábio de corpo enfermo não for considerado nem miserável nem feliz, mas deixado em uma espécie de posição a meio caminho, sua vida também não será desejável nem indesejável. Mas o que é tão tolo quanto dizer que a vida do homem sábio não é desejável? E o que está tão além dos limites da credibilidade quanto a opinião de que qualquer vida não é desejável nem indesejável? Novamente, se os males corporais não tornam um homem miserável, eles, consequentemente, permitem que ele seja feliz. Pois coisas que não têm poder para mudar sua condição para pior, também não têm o poder de perturbar essa condição quando está no seu auge.

21. “Mas”, alguém vai dizer, “sabemos o que é frio e o que é quente, uma temperatura morna se encontra no meio. Da mesma forma, A é feliz e B é miserável, e C não é nem feliz nem miserável”. Desejo examinar esta ilustração, que é colocada em jogo contra nós. Se eu adicionar a sua água morna uma quantidade maior de água fria, o resultado será água fria. Mas se derramar uma quantidade maior de água quente, a água finalmente ficará quente. No caso, no entanto, do seu homem que não é miserável nem feliz, não importa o quanto eu adicione aos seus problemas, ele não será infeliz, de acordo com sua argumentação; daí que sua ilustração não oferece analogia.

22. Mais uma vez, suponha que eu coloque diante de você um homem que não é miserável nem feliz. Eu acrescento cegueira a seus infortúnios; ele não está ficando infeliz. Eu o mutilo; ele não está ficando infeliz. Eu acrescento aflições que são incessantes e severas; ele não está ficando infeliz. Portanto, aquele cuja vida não se torna miserável por todos esses males também não é arrastado da vida feliz por eles.

23. Então, se, como você diz, o sábio não pode cair da felicidade para a miséria, ele não pode cair na falta de felicidade. Pois, alguém que começou a escorregar, consegue parar em qualquer lugar particular? O que o impede de escorregar para o fundo, o mantém em pé. Por que, você insiste, uma vida feliz não pode ser destruída? Nem sequer pode ser desarticulada; e por isso a própria virtude é suficiente para a vida feliz.

24. “Mas”, é dito, “o homem sábio não é mais feliz se viver mais tempo sem ser importunado por qualquer dor, do que alguém que sempre foi obrigado a lidar com a má fortuna?” Me responda agora, este é melhor ou mais honrado? Se não é, então também não é feliz. Para viver mais felizmente, ele deve viver com mais justiça; se não pode fazer isso, então também não pode viver mais feliz. A virtude não pode ser mais forte e, portanto, assim também a vida feliz, que depende da virtude. Pois a virtude é um bem tão forte que não é afetada por assaltos tão insignificantes como a vida curta, a dor e as várias vexações corporais. Pois o prazer não é coisa para que a virtude se digne sequer olhar.

25. Agora, qual a coisa principal na virtude? É a qualidade de não precisar de um único dia além do presente, e de não contar os dias que são nossos; no menor momento possível, a virtude completa uma eternidade de bem. Esses bens nos parecem incríveis e transcendem a natureza do homem; pois medimos sua grandeza pelo padrão de nossa própria fraqueza, e chamamos nossos vícios pelo nome da virtude. Além disso, não parece tão incrível que qualquer homem em meio ao sofrimento extremo possa dizer: “Eu estou feliz!”? E, no entanto, essa expressão foi ouvida no próprio laboratório do prazer[5], quando Epicuro disse: “Este é o meu dia mais feliz, o meu último dia, também!” Embora em um caso ele fosse torturado estrangúria[6] e, no outro, pela dor incurável de um estômago ulcerado.

26. Por que, então, os bens que a virtude nos concede são incríveis à nossa vista, que cultivamos a virtude, quando são encontrados mesmo naqueles que reconhecem o prazer como sua amante? Estes também, ignóbeis e rasteiros, como são, declaram que, mesmo no meio de dor excessiva e infortúnio, o sábio não será nem miserável nem feliz. E, no entanto, isso também é incrível, o que é ainda mais incrível do que o outro caso. Pois não entendo como, se a virtude cai de suas alturas, ela pode impedir de ser levada até o fundo. Ela deve ou preservar alguém na felicidade, ou, se expulsa dessa posição, não conseguirá impedir que nos tornemos infelizes. Se a virtude se mantem firme, ela não pode ser expulsa do campo; ela deve conquistar ou ser conquistada.

27. Mas alguns dizem: “Somente para os deuses imortais é dada virtude e a vida feliz, podemos alcançar apenas a sombra e a semelhança de bens como os deles. Nós nos aproximamos deles, mas nunca os alcançamos”. A razão, no entanto, é um atributo comum de deuses e homens; nos deuses já está aperfeiçoada, em nós é capaz de ser aperfeiçoada.

28. Mas são os nossos vícios que nos deixam desesperados; pois a segunda classe dos seres racionais, o homem, é de ordem inferior – um guardião, por assim dizer, que é muito instável para manter o que é melhor, seu julgamento ainda é vacilante e incerto. Ele pode exigir as faculdades de visão e audição, boa saúde, um exterior corporal que não seja repugnante e, além disso, maior duração de dias ungidos de saúde intacta.

29. Embora, por meio da razão, possa levar uma vida que não traga arrependimentos, ainda reside nesta criatura imperfeita, o homem, um certo poder que faz mal, porque ele possui uma mente que se move facilmente para a perversidade. Suponha, no entanto, que a maldade que está em plena visão, seja removida; o homem ainda não é um bom homem, mas ele está sendo moldado para o bem. Alguém, no entanto, em quem falte qualquer qualidade que traga a bondade, é mau.

30. Mas

Aquele em cujo corpo a virtude está presente em corpo e espírito,Sed Si cui virtus animusque in corpore praesens,[7]
Eneida, de Virgílio.

é igual aos deuses; consciente de sua origem, ele se esforça para voltar para lá. Nenhum homem erra ao tentar recuperar as alturas das quais ele desceu. E por que você não deve acreditar que existe algo de divino em alguém que faz parte de Deus? Todo esse universo que nos engloba é um, e é Deus; somos associados de Deus; nós somos seus membros. Nossa alma tem capacidades e é transportada para lá, se os vícios não a impedem. Assim como a natureza dos nossos corpos é se manter ereto e olhar para o céu, então a alma, que pode alcançar o máximo que desejar, foi moldada pela natureza para esse fim, que desejasse a igualdade com os deuses. E se faz uso de seus poderes e se estende a cima em sua própria região, não é por nenhum caminho desconhecido que luta em direção às alturas.

31. Seria uma grande tarefa abrir caminho para o céu; a alma, apenas retorna para lá. Quando uma vez encontra a estrada, ela marcha com audácia, desdenhosa de todas as coisas. Ela se lança, sem olhar para a riqueza; ouro e prata – coisas que são totalmente dignas da escuridão de onde saíram – não valem pelo brilho que ferem os olhos dos ignorantes, mas pela lama dos dias passados, de onde a nossa ganância primeiro os destacou e cavou. A alma, afirmo, sabe que as riquezas são armazenadas em outro lugar do que nos cofres dos homens; é a alma que deve ser preenchida, e não o cofre.

32. É a alma que os homens podem colocar em domínio de todas as coisas, e podem empossar como dona do universo, para que eles limitem suas riquezas somente pelos limites do Oriente e do Ocidente e, como os deuses, possam possuir todas coisas; e que, com seus próprios recursos vastos, olhe para os ricos, nenhum dos quais se alegra tanto em sua própria riqueza como se ressente da riqueza de outro.

33. Quando a alma se transporta para este alto sublime, também considera o corpo, uma vez que é um fardo que deve ser suportado, não como algo para amar, mas como uma coisa para supervisionar; nem é subserviente àquilo sobre o qual está configurado em seu domínio. Pois nenhum homem é livre, se é escravo do seu corpo. Na verdade, excluindo todos os outros mestres que são trazidos devido ao cuidado excessivo pelo corpo, o poder que o próprio corpo exerce é capcioso e enfadonho.

34. Por este corpo, a alma emerge, agora com espírito imperturbável, agora com exultação, e, uma vez que surgiu, não pergunta qual será o fim do dia desperto. Não; assim como não pensamos nas aparas de cabelo e da barba, da mesma forma que a alma divina, quando está a ponto de emergir do homem mortal, considera o destino de seu vaso terrestre – quer seja consumido pelo fogo, ou fechado por uma pedra, ou enterrado na terra, ou rasgado por bestas selvagens – como não sendo mais preocupante para si mesmo do que as secundinas[8] para uma criança que nasceu. E se este corpo deve ser jogado fora e picado em pedaços por pássaros, ou devorado quando

Dado aos cães marinhos como presa,Canibus data praeda marinis,[9]
Eneida, de Virgílio.

Como isso diz respeito a quem não é nada?

35. Nem mesmo quando está entre os vivos, a alma não teme nada que possa acontecer ao corpo após a morte; pois, embora tais coisas possam ter sido ameaças, não foram suficientes para aterrorizar a alma antes do momento da morte. Ela diz; “Não estou assustada com a espada do carrasco, nem com a mutilação revoltante do cadáver que estará exposto ao desprezo daqueles que testemunharão o espetáculo. Não peço a nenhum homem que realize os últimos ritos para mim, confio meus restos mortais a ninguém. A natureza providenciou para que ninguém fosse deixado sem um enterro. O tempo vai consumir aquele corpo que a crueldade gerou”. Estas foram palavras eloquentes que Mecenas[10] pronunciou:

Eu não quero tumba; Pois a natureza irá prover,Nec tumulum curo. Sepelit natura relictos.
Eneida, de Virgílio

Você imaginaria que este foi o ditado de um homem de princípios rígidos e pronto para a luta[11]. Ele era realmente um homem de nobres e robustos dons, mas em prosperidade ele comprometeu esses dons por permissividade[12].

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sêneca escreveu sobre este tópico tratado em maior extensão ao seu irmão Gálio no livro “A Vida Feliz – De Vita Beata”.

[2]ou seja, a alma. Veja Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1. 13: “É afirmado que a alma tem duas partes, uma irracional e outra dotada de razão.” Aristóteles subdivide a parte irracional em (1) o que faz crescer e aumentar, e (2) desejo (que irá, no entanto, obedecer a razão). Nesta passagem, Sêneca usa “alma” em seu sentido mais amplo.

[3] Cila (em grego: Σκύλλα, transl.: Skýlla), na mitologia grega, conforme Homero e Ovídio, era uma bela ninfa que se transformou em um monstro marinho.

[4] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[5] Sêneca se refere ao Jardim de Epicuro com “laboratório do prazer”. 

[6] Estrangúria é a eliminação lenta e dolorosa de urina em consequência de espasmo uretral ou vesical. Veja também carta LXVI.

[7] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[8] Placenta e membranas da mulher expelidas na fase terminal do parto;

[9] Trecho de Eneida, de Virgílio.

[10] Mais sobre Mecenas nas cartas XIX e CXX

[11] Literalmente. “um homem que tem o cinto bem apertado’” de modo a erguer as roupas e facilitar os movimentos, para a corrida ou para a luta (alte cinctum).

[12] A mesma imagem, literalmente: “lhe tivesse desapertado o cinto” deixando, portanto, que as vestes soltas o incapacitassem de lutar.

Carta 91: Sobre a lição a ser aprendida do incêndio de Lião

Após quase três semanas de férias, o Estoico volta às cartas de Sêneca.

Na carta 91 Sêneca aborda um tema frequentemente esquecido por nós: Precisamos estar preparados não só para “o que costuma acontecer, mas o que pode acontecer.” Ele usa como alegoria um incêndio que destruiu completamente Lião, capital da província romana da Gália.

Assim como a queda das torres gêmeas em 2001 ou a atual pandemia, o incêndio de tal capital veio inesperado e com resultado catastrófico:

“…apenas uma única noite se passou entre a cidade no seu auge e a cidade inexistente. Em suma, leva-me mais tempo para dizer que pereceu do que demorou para que perecesse. … pois é o inesperado que coloca a carga mais pesada sobre nós. O insólito aumenta o peso das calamidades e cada mortal sente dor maior como resultado daquilo que também traz surpresa. Portanto, nós, estoicos, nunca nos devemos deixar apanhar de improviso. Nossas mentes devem ser enviadas antecipadamente para atender a todos os problemas, e devemos considerar, não o que costuma acontecer, mas o que pode acontecer”. (XC, 2-4)

Sêneca, ensinando sobre o exercício estoico de praticar o infortúnio (premeditatio malorum) diz que, “devemos refletir sobre todas as contingências e fortalecer nossas mentes contra todas as eventualidades: Exílio, tortura por doenças, guerras, naufrágio, devemos pensar nisso.”

Quanto a tragédia em si, o conselho é manter a calma e tranquilidade, geralmente a realidade é menos severa que o imaginado à primeira notícia. Sêneca dá exemplo anedótico de um historiador da época:

Timágenes , que tinha rancor contra Roma e sua prosperidade, costumava dizer que a única razão pela qual se entristece quando incêndios ocorrem em Roma é devido ao seu conhecimento de que surgirão edifícios melhores no lugar daqueles que caem pelas chamas.

E, provavelmente, nesta cidade de Lião também, todos os seus cidadãos esforçar-se-ão para que tudo seja reconstruído melhor em tamanho e segurança do que o que perderam. Pode ser construído para prevalecer e, sob auspícios mais felizes, para uma existência mais longa!(XC, 13-14)

O que era verdade antes, continua verdade hoje. Em Nova Iorque as Torres Gêmeas foram substituídas por uma mais alta. Lião continua uma cidade próspera, a terceira maior da França. Logo o Covid será apenas mais um caso na história.

Imagem: Cole Thomas, O curso da destruição do império.


XCI. Sobre a lição a ser aprendida do incêndio de Lião

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Nosso amigo Liberal está agora abatido; pois ele acabou de ouvir do fogo que eliminou a colônia de Lião[1]. Tal calamidade pode chatear qualquer um, para não falar de um homem que ama muito seu país. Mas este incidente serviu para fazê-lo se perguntar sobre a força de seu próprio caráter, que ele treinou, suponho, apenas para encontrar situações que concebia como possíveis. Não me pergunto, no entanto, se ele estava preparado para o embate com um mal tão inesperado e praticamente inaudito como este, já que é sem precedentes. Pois o fogo já danificou muitas cidades, mas não aniquilou nenhuma. Mesmo quando o fogo é lançado contra os muros pela mão de um inimigo, a chama morre em muitos lugares, e embora continuamente renovada, raramente devora tão completamente que não deixa nada para a espada. Mesmo um terremoto quase nunca é tão violento e destrutivo que derrube cidades inteiras. Finalmente, nenhuma conflagração já resplandeceu tão selvagemente sobre uma cidade que nada tenha sobrado para uma segunda chance.

2. Tantos edifícios bonitos, um único dos quais faria uma cidade famosa, foram destruídos em uma noite. Em tempo de paz tão profunda, ocorreu um evento pior do que os homens poderiam temer mesmo em tempo de guerra. Quem pode acreditar? Quando as armas estão em repouso e quando a paz prevalece em todo o mundo, Lião, o orgulho da Gália, está desaparecida! A fortuna geralmente concede que todos os homens, quando os assalta coletivamente, tenham um pressentimento do que estavam destinados a sofrer. Toda grande criação concede um período de indulto antes da sua queda; mas neste caso, apenas uma única noite se passou entre a cidade no seu auge e a cidade inexistente. Em suma, leva-me mais tempo para dizer que pereceu do que demorou para que perecesse.

3. Tudo isso afetou nosso amigo Liberal, dobrando sua vontade, que geralmente é tão firme e ereta em face de suas próprias provações. E não sem razão foi abalado; pois é o inesperado que coloca a carga mais pesada sobre nós. O insólito aumenta o peso das calamidades e cada mortal sente dor maior como resultado daquilo que também traz surpresa.

4. Portanto, nós, estoicos, nunca nos devemos deixar apanhar de improviso. Nossas mentes devem ser enviadas antecipadamente para atender a todos os problemas, e devemos considerar, não o que costuma acontecer, mas o que pode acontecer. Pois o que há no mundo que a fortuna, quando ela quer, não derruba do alto da sua prosperidade? E o que é que ela não ataca mais violentamente quão mais brilhante é? O que é laborioso ou difícil para ela?

5. Ela nem sempre ataca da mesma maneira nem com a mesma força; as vezes, ela convoca nossas próprias mãos contra nós; em outro momento, contente com seus próprios poderes, ela não faz uso de nenhum agente para inventar perigos para nós. Nenhuma época está isenta; no meio de nossos próprios prazeres, brotam as causas do sofrimento. A guerra surge no meio da paz, e aquilo em que dependemos para proteção é transformado em causa de medo; O amigo se torna inimigo, o aliado se torna inimigo, a calma do verão é agitada por tempestades repentinas, mais selvagens do que as tempestades do inverno. Sem inimigos à vista, somos vítimas de destinos como os infligidos pelos inimigos, e se outras causas de desastre falham, a boa sorte excessiva os encontra por si só. Os mais comedidos são assolados pela doença, o mais forte por devastadora doença, o mais inocente pelo suplício, o mais isolado pela multidão barulhenta. A fortuna escolhe uma nova arma para levar sua força contra nós, principalmente quando esquecemos dela.

6. Qualquer que seja a estrutura criada por uma longa sequência de anos, ao custo do grande trabalho e pela grande bondade dos deuses, é espalhada e dispersa por um único dia. Não, aquele, que disse “um dia”, concedeu um adiamento muito longo ao infortúnio rápido; uma hora, um instante de tempo, basta para a derrubada dos impérios! Seria um consolo para a debilidade de nós mesmos e nossas obras, se todas as coisas perecessem tão devagar quanto demoram para surgir; mas, como é, os ganhos são de crescimento lento, mas o caminho para a ruína é rápido.

7. Nada, seja público ou privado, é estável; os destinos dos homens, nada menos que os das cidades, estão em um redemoinho. Em meio a maior calmaria o terror surge, e apesar de nenhuma agente externo agitar a baderna, ainda assim os males brotam de fontes de onde eram menos esperados. Os tronos que suportaram o choque de guerras civis e estrangeiras caíram ao chão, embora ninguém os tivessem feitos instáveis. Quão poucas cidades levaram a boa fortuna até o fim! Devemos, portanto, refletir sobre todas as contingências e fortalecer nossas mentes contra todas as eventualidades.

8. Exílio, tortura por doenças, guerras, naufrágio, devemos pensar nisso. O acaso pode retirá-lo de seu país ou seu país de você, ou pode exilá-lo ao deserto; este mesmo lugar, onde as multidões são sufocantes, pode se tornar um deserto. Posicionemos diante de nossos olhos em sua totalidade a natureza da fortuna do homem, e se não estivéssemos sobrecarregados, nem mesmo aturdidos, por esses males inusitados, como se fossem novos, convoquemos nossa mente de antemão, não um mal tão grande com às vezes acontece, mas o maior mal que possivelmente pode acontecer. Devemos refletir sobre a fortuna integralmente e completamente.

9. Com que frequência as cidades da Ásia Menor[2] ou na Acaia[3], cidades foram destruídas por um único choque de terremoto! Quantas cidades na Síria, quantas na Macedônia, foram engolidas! Quantas vezes esse tipo de devastação colocou Chipre em ruínas! Quantas vezes Pafos[4] entrou em colapso! Não raramente, as notícias nos são trazidas da destruição total de cidades inteiras; contudo, quão pequena parte do mundo somos, a quem essas novidades costumam vir! Levantemo-nos, portanto, para enfrentar as operações da Fortuna, e o que quer que aconteça, tenha a certeza de que não é tão grave como o rumor anuncia que seja.

10. Uma cidade rica foi posta em cinzas, a joia das províncias, contada como uma delas e ainda não incluída com elas; por mais rica que fosse, no entanto, estava situado em uma única colina, e essa não era muito grande. Mas de todas essas cidades, de cuja magnificência e grandeza você ouve hoje, os próprios vestígios serão apagados pelo tempo. Você não vê, na Acaia, que as fundações das cidades mais famosas já se desapareceram, de modo que não há nenhum indício para mostrar que elas um dia existiram?

11. Não só o que foi feito pelas mãos cai ao chão, não é só o que foi estabelecido pela arte e os esforços do homem que é derrubado pelos dias que passaram; Além deles, os picos das montanhas se dissolvem, áreas inteiras cedem e lugares que antes estavam longe da vista do mar estão agora cobertos pelas ondas. O poderoso poder das chamas comeu as colinas através de flancos resplandecentes, e aterrou picos que eram mais elevados – o consolo do marinheiro e seu farol. As próprias obras da própria natureza são acossadas; Portanto, devemos suportar com espírito tranquilo a destruição das cidades.

12. Elas estão em pé apenas para cair! Esta desgraça as espera, uma e todas; ou porque a força do ar violentamente comprimido no interior da terra, sob a pressão, faça um dia ir pelos ares o terreno que o comprime; ou porque uma torrente rebenta impetuosa do subsolo destruindo tudo o que encontra; ou porque a violência das chamas provoca largas fendas no solo; ou que a veemência das chamas estourará a armação da crosta terrestre; ou que o tempo, do qual nada está protegido, as reduzirá pouco a pouco; ou que um clima pestilento afaste seus habitantes e o bolor corroa seus muros desertos. Seria tedioso contar todas as maneiras pelas quais o destino pode vir; mas esta é uma coisa que eu sei: todas as obras do homem mortal são condenadas à mortalidade, e no meio das coisas que estão destinadas a morrer, nós vivemos!

13. Daí são pensamentos como esses, e desse tipo, que estou oferecendo como consolo para o nosso amigo Liberal, que queima com um amor por sua província que é incrível. Talvez a destruição tenha acontecido apenas para que possa ser levantada novamente a um destino melhor. Muitas vezes, um revés abre espaço para um futuro mais próspero. Muitas estruturas caíram apenas para subir mais alto. Timágenes[5], que tinha rancor contra Roma e sua prosperidade, costumava dizer que a única razão pela qual se entristece quando incêndios ocorrem em Roma é devido ao seu conhecimento de que surgirão edifícios melhores no lugar daqueles que caem pelas chamas.

14. E, provavelmente, nesta cidade de Lião também, todos os seus cidadãos esforçar-se-ão para que tudo seja reconstruído melhor em tamanho e segurança do que o que perderam. Pode ser construído para prevalecer e, sob auspícios mais felizes, para uma existência mais longa[6]! Este é, de fato, o centésimo ano desde que essa colônia foi fundada – nem mesmo o limite da vida de um homem. Instituida por Planco, as vantagens naturais de seu sítio tornaram-se fortes e atingiram os números que contém hoje; E ainda quantas calamidades da maior severidade sofreram no espaço da vida de um velho.

15. Portanto, mantenha a mente disciplinada para entender e suportar seu próprio destino, e deixar que ela tenha conhecimento de que não existe nada que a fortuna não se atreva – que ela tem a mesma jurisdição sobre os impérios que sobre os imperadores, o mesmo poder sobre as cidades quanto aos cidadãos que habitam nelas. Não devemos chorar em nenhuma dessas calamidades. Em tal mundo, entramos, e sob tais leis vivemos. Se você gosta, obedeça; se não, vá embora, se quiser. Grite com raiva se forem tomadas medidas injustas contra você individualmente; mas se essa lei inevitável é vinculativa do mais alto ao mais baixo, entre em harmonia com o destino, pelo qual todas as coisas são dissolvidas.

16. Você não deve estimar nosso valor por nossas tumbas fúnebres ou por esses monumentos de tamanho desigual que alinham na estrada; suas cinzas nivelam todos os homens! Somos desiguais no nascimento, mas somos iguais na morte. O que eu digo sobre cidades é o que eu também digo sobre seus habitantes. Árdea[7] foi capturada e também Roma. O grande criador da condição humana não fez distinções entre nós com base em linhagens altas ou de nomes ilustres, exceto enquanto vivemos. Quando, no entanto, chegamos ao fim que espera aos mortais, ele diz: “Saia, ambição! Pois sobre todas as criaturas que sobrecarregam a terra, aplique uma mesma lei”. Para suportar todas as coisas, somos iguais; ninguém é mais frágil do que outro, ninguém está mais seguro de sua própria vida no dia seguinte.

17. Alexandre, rei da Macedônia, começou a estudar a geometria; homem pequeno, porque ele assim saberia quão insignificante era aquela terra a qual ele havia capturado, apenas uma fração! Homem pequeno, repito, porque ele foi obrigado a entender que tinha um título falso. Pois quem pode ser Grande naquilo que é insignificante? As lições que lhe foram ensinadas eram intrincadas e só podiam ser aprendidas por dedicação assídua; elas não eram do tipo a ser entendidas por um tolo, que deixasse seus pensamentos ir além do oceano. “Ensina-me algo fácil!” Ele chora; mas seu professor responde: “Essas coisas são as mesmas para todos, tão difíceis para um quanto para outro”.

18. Imagine que a natureza está nos dizendo: “As coisas de que você reclama são as mesmas para todos. Não posso dar nada de mais fácil a nenhum homem, mas quem assim o desejar, vai facilitar as coisas para si mesmo”. De que maneira? Pela tranquilidade. Você deve sofrer dor, sede, fome e velhice, se uma longa permanência entre os homens lhe for concedida; você deve ficar doente, e você deve sofrer perda e morte.

19. No entanto, você não deve acreditar naqueles cujos clamores ruidosos o rodeiam; nenhuma dessas coisas é um mal, nada está além do seu poder de suportar. É apenas por opinião comum que existe algo formidável nelas. Seu medo da morte é, portanto, como seu medo da fofoca. Mas o que é mais tolo do que um homem com medo de palavras? Nosso amigo Demétrio costuma colocar com habilidade quando ele dizia: “Para mim, a conversa de homens ignorantes é como os ruídos que surgem da barriga”, pois, ele acrescenta, “que diferença me faz saber se tais rumores são provenientes de cima ou de baixo?

20. Que loucura é ter medo de descrédito no julgamento por pessoas desprezíveis! Assim como você não tem nenhuma razão para se encolher de terror com a conversa dos homens, você também não tem nenhuma causa para se encolher dessas coisas, que você nunca teria medo se sua conversa não tivesse forçado o medo sobre você. Será que há prejuízo a um bom homem ser manchado por fofocas injustas?

21. Então, não deixe esse tipo de coisa danificar a morte, também, em nossa estima a morte também está com mau cheiro. Mas ninguém daqueles que maldizem a morte a provou. Enquanto isso, é imprudente condenar o que você ignora. Esta única coisa, no entanto, você sabe – que a morte é útil para muitos, que ela livra muitos de torturas, doenças, sofrimentos e cansaço. Nós não estamos sob poder de nada quando temos a morte em nosso próprio poder!Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Lião, colônia romana na Gália, lá teria nascido o Imperador Cláudio.

[2] Ásia Menor é conhecida hoje como península da Anatólia, situada entre o mar Negro e o mar Mediterrâneo, e que corresponde aproximadamente ao território da Turquia, Arménia e Curdistão. Na Antiguidade era designada por Ásia Menor, mas durante o Baixo Império começou a ser apelidada de Anatólia pelos Bizantinos e pelos Turcos.

[3] Acaia é uma região da Grécia, na costa norte do Peloponeso. Foi também a denominação de uma antiga província romana.

[4] Pafos (ou Paphos) é uma cidade portuária no sudoeste da ilha de Chipre.

[5] Timágenes de Alexandria, foi um historiador grego do primeiro século A.D. Ele foi levado para Roma como prisioneiro em 55 D.C., compôs uma História da Gália e uma História dos Reis, que se perderam.

[6] Mais uma vez Sêneca se prova visionário, a cidade de Lião existe até hoje, Lyon, em francês, é a terceira maior cidade da França.

[7] Ardea é uma das cidades mais antigas da Europa ocidental, fundada durante o século VIII a.C. Segundo a tradição, era a capital dos Rútulos, e é descrita como tal na Eneida de Virgílio.

Carta 90: Sobre o papel da Filosofia no Progresso do Homem

Na intrigante carta 90, Sêneca aborda as origens da humanidade e o papel da filosofia no progresso humano. Vemos que, em sua visão, a humanidade regrediu ao valorizar o luxo e conforto corporal deixando para trás o desenvolvimento espiritual intelectual.

Expõe suas divergências com o filósofo Posidônio e defende o princípio estoico viver de acordo com a natureza, onde explica detalhadamente o significado deste conceito e afirmando que nos primórdios da humanidade isso era praticado:

Sêneca diz:

  • os homens deixam de possuir todas as coisas da natureza no momento em que desejam coisas particulares para si próprios. (XC,3)
  • Qualquer dádiva que a natureza produzia, os homens obtinham tanto prazer em revelá-la a outro como em tê-la descoberto. Não era possível para nenhum homem superar a outro ou ficar atrás dele; tudo o que havia, era dividido entre os amigos sem discussão. O mais forte ainda não havia começado a colocar as mãos sobre os mais fracos; ainda não havia o avarento, escondendo o que estava diante dele, afastando seu vizinho das necessidades da vida; cada um se importava tanto com o próximo quanto com sigo mesmo. (XC, 40)

Estaria Sêneca defendendo o socialismo?

Sêneca está sugerindo que o capitalismo é maligno e que todos deveriam adotar o socialismo? Eu diria “não“. Sêneca reconheceu que esta idílica “Era de Ouro” existiu até que a ganância tomou conta. Ele afirma que porque a ganância entrou na civilização com tanta força, nunca poderemos voltar a como as coisas eram.

Em teoria, a maioria dos sistemas econômicos parecem ser grandes “soluções” para os problemas da sociedade – mas o problema é que a ganância humana acaba corrompendo qualquer um desses sistemas, de modo que eles nunca se revelam tão bons na prática como no papel. Sêneca parece até mesmo dizer que é uma causa perdida tentar voltar a esse modo de vida original:

“… por mais que a vida dos homens daquela época fosse excelente e sem censura, eles não eram homens sábios; pois esse título está reservado para a maior conquista. … Pois a natureza não concede virtude; é uma arte tornar-se bom.” (XC, 44)

O luxo não está realmente ajudando muito nosso mundo físico, mas parece estar prejudicando nossas mentes e nosso senso de moral mais do que imaginamos.

(Imagem: Os romanos em sua decadência por Thomas Couture)


XC. Sobre o papel da Filosofia no Progresso do Homem

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Quem pode duvidar, meu querido Lucílio, que a vida é a dádiva dos deuses imortais, mas que viver bem é a dádiva da filosofia? Daí a ideia de que nossa dívida com a filosofia é maior do que a nossa dívida com os deuses, na medida em que uma boa vida é mais benéfica do que a mera vida, não fosse a própria filosofia é uma benção que os deuses nos deram. Eles não deram seu conhecimento a ninguém, mas a faculdade de adquiri-lo foi dada a todos.

2. Pois, se tivessem feito a filosofia também um bem geral, e se nós tivéssemos o conhecimento desde nosso nascimento, a sabedoria perderia seu melhor atributo: não ser um dos presentes da Fortuna. Pois, a característica preciosa e nobre da sabedoria é que ela não tenta nos encontrar, que cada um precisa se endividar por ela, e que não a buscamos nas mãos dos outros. O que haveria de digno na filosofia, se ela fosse uma coisa que viesse por doação?

3. Sua única tarefa é descobrir a verdade sobre coisas divinas e coisas humanas. Do seu lado, a religião nunca se afasta, nem o dever, nem a justiça, nem toda a companhia de virtudes que se apegam em comunhão. A filosofia nos ensinou a adorar o que é divino, a amar o que é humano; ela nos disse que com os deuses há autoridade e entre os homens, a camaradagem. Esta camaradagem permaneceu intocada por um longo tempo, até que a avareza rasgou a comunidade e se tornou a causa da pobreza, mesmo no caso daqueles que ela mesma havia enriquecido. Pois os homens deixam de possuir todas as coisas da natureza no momento em que desejam coisas particulares para si próprios.

4. Mas os primeiros humanos e aqueles que surgiram deles, ainda intactos, seguiram a natureza, tendo um homem como seu líder e sua lei, confiando-se ao controle de alguém melhor do que eles. Pois a natureza tem o hábito de sujeitar os mais fracos ao mais forte. Mesmo entre os animais brutos, aqueles que são maiores ou mais ferozes dominam. Não é um touro fraco que lidera o rebanho; é aquele que venceu os outros machos por seu poder e músculos. No caso dos elefantes, o mais alto é o primeiro; entre os homens, o melhor é considerado o superior. É por isso que é pela mente que um governante é designado; e por essa razão a maior felicidade recai sobre aqueles povos entre os quais um homem não pode ser o mais poderoso, a menos que seja o melhor. Pois este homem pode cumprir com segurança o que ele quer, já que pensa que não pode fazer nada exceto o que deva fazer.

5. Por conseguinte, naquela idade que é considerada como a idade de ouro, Posidônio sustenta que o governo estava sob a jurisdição do sábio. Eles mantiveram suas mãos sob controle e protegiam o mais fraco do mais forte. Eles deram conselhos, tanto para fazer quanto para não fazer; eles mostraram o que era útil e o que era inútil. Sua previdência, que a seus súditos nada faltasse; sua bravura afastou os perigos; sua bondade enriqueceu e adornou seus súditos. Pois o governo deles era um serviço, não um exercício de realeza. Nenhum governante pôs à prova seu poder contra aqueles a quem devia o início de seu poder; e ninguém tinha a inclinação, ou a desculpa, para fazer o mal, já que o governante governava bem e o súdito obedecia bem, e o rei não poderia proferir nenhuma ameaça maior contra um súdito desobediente do que seu banimento do reino.

6. Mas, uma vez que o vício foi introduzido e os reinados se transformaram em tiranias, surgiu a necessidade de leis e essas mesmas leis foram, por sua vez, moldadas pelos sábios. Sólon[1], que estabeleceu Atenas em bases firmes por leis justas, foi um dos sete homens[2] reconhecidos por sua sabedoria. Se Licurgo[3] vivesse no mesmo período, um oitavo teria sido adicionado a esse sagrado número sete. As leis de Zaleuco[4] e Carondas são louvadas; não estava no fórum ou nos escritórios de conselheiros qualificados, mas no silencioso e santo retiro de Pitágoras, que esses dois homens aprenderam os princípios de justiça que deveriam estabelecer na Sicília (que na época era próspera) e ao longo de toda Itália grega.

7. Até este ponto, concordo com Posidônio; mas que essa filosofia descobriu as artes úteis à vida em sua ronda diária eu me recuso a admitir. Também não atribuo a ela uma glória de artesão. Posidônio diz: “Quando os homens estavam espalhados pela terra, protegidos pelas cavernas ou pelo abrigo escavado em um penhasco ou pelo tronco de uma árvore oca, foi a filosofia que os ensinou a construir casas”. Mas eu, por minha parte, não considero que essa filosofia concebeu essas habitações astutamente inventadas que se levantam a andar sobre andar, onde as multidões da cidade se apinham, não mais do que tenha inventado as conservas de peixe, que são preparadas com o propósito de poupar a gula dos homens de ter que correr o risco de tempestades, e para que, por mais que o mar esteja furioso, o luxo possa ter seus portos seguros para engordar raças extravagantes de peixe.

8. O que! Foi filosofia que ensinou o uso de chaves e fechaduras? Não, o que foi, exceto dar uma dica para a avareza? Foi a filosofia que construiu todos esses edifícios altos, tão perigosos para as pessoas que habitam neles? Não seria suficiente para o homem proporcionar-se um teto de qualquer possibilidade de cobertura e inventar para si algum retiro natural sem a ajuda da arte e sem problemas? Acredite, essa era uma época feliz, antes dos dias dos arquitetos, antes dos dias dos construtores!

9. Todo esse tipo de coisa nasceu quando o luxo nasceu – essa questão de cortar madeira e criar uma viga com mão inflexível enquanto a serra passa pela linha marcada.

O homem primitivo com cunhas dividiu sua madeira branda.Nam primi cuneis scindebant fissile lignum.[5]

Porque eles não estavam preparando um telhado para um futuro salão de banquete; nem para tal uso, eles carregavam os pinheiros ou os abetos ao longo das ruas trêmulas com uma longa fileira de carroças – apenas para pendurar sobre eles tetos com painéis pesados de ouro.

10. Os mastros bifurcados erguidos em ambas as extremidades apoiam suas casas. Com ramos fechados e com folhas amontoadas e inclinadas, eles conseguiam uma drenagem para as chuvas mais pesadas. Sob essas moradias, moravam, mas moravam em paz. Um telhado de palha cobria um homem livre; sob o mármore e o ouro habita a escravidão.

11. Em outro ponto também eu discordo de Posidônio, quando ele sustenta que ferramentas mecânicas são a invenção dos homens sábios. Pois nessa base, pode-se sustentar que esses eram sábios que ensinavam as artes:

de colocação de armadilhas para caça e galhos de arapuca para os pássaros, e encerrando de matilhas os vales.Tunc laqueis captare feras et fallere visco Inventum et magnos canibus circumdare saltus.[6]

Foi a engenhosidade do homem, não sua sabedoria, que descobriu todos esses dispositivos.

12. E eu também me distancio dele quando diz que homens sábios descobriram nossas minas de ferro e cobre, “quando a terra, queimada por incêndios florestais, derreteu as veias de minério que se encontravam perto da superfície e provocavam o jorro do metal.” Não, o tipo de homem que descobre essas coisas é o tipo de homem que está ocupado com elas.

13. Também não considero essa questão tão sutil quanto Posidônio pensa, ou seja, se o martelo ou a tenaz foi a primeira a entrar em uso. Ambos foram inventados por algum homem cuja mente era ágil e afiada, mas não grande ou elevada; e o mesmo vale para qualquer outra descoberta que só pode ser feita por meio de um corpo curvado e de uma mente cujo olhar está no chão. O homem sábio era simples em sua maneira de viver. E porque não? Mesmo em nossos tempos, ele prefere ser o mais desimpedido possível.

14. Como, pergunto, você pode admirar tanto Diógenes[7] quanto Dédalo[8]? Qual desses dois parece ser um homem sábio – aquele que inventou a serra, ou aquele que, ao ver um menino beber água do oco de sua mão, imediatamente tirou o copo da carteira e quebrou-o, repreendendo-se com estas palavras: “Louco que eu sou, ter transportado bagagem supérflua todo esse tempo!” E então enrolou-se em seu barril e deitou-se para dormir?

15. Nestes nossos tempos, qual homem, lhe pergunto, julga o mais sábio – aquele que inventa um processo para pulverizar perfumes de açafrão a uma altura tremenda por tubos escondidos, que preenche ou esvazia canais por uma súbita onda de águas, quem constrói tão habilmente uma sala de jantar com um teto de painéis móveis que apresenta um padrão após o outro, o telhado mudando tão frequentemente quanto os pratos, ou aquele que prova aos outros, bem como a si mesmo, que a natureza colocou sobre nós nenhuma lei severa e difícil quando ela nos diz que podemos viver sem o cortador de mármore e o engenheiro, que podemos nos vestir sem o uso de tecidos de seda, que podemos ter tudo o que é indispensável para o nosso uso, desde que nós apenas estejamos contentes com o que a Terra colocou em sua superfície? Se a humanidade estivesse disposta a ouvir esse sábio, ela saberia que o cozinheiro é tão supérfluo quanto o soldado.

16. Aqueles eram sábios, ou pelo menos como os sábios, que descobriram que o cuidado do corpo um problema fácil de resolver. As coisas indispensáveis não exigem esforços elaborados para a aquisição; são apenas os luxos que exigem trabalho. Siga a natureza, e você não precisará de artesãos qualificados. A natureza não queria que fôssemos “especialistas”. Pois para tudo o que coagiu contra nós, ela nos equipou. “Mas o frio não pode ser suportado pelo corpo nu”. O que então? Não há peles de feras selvagens e outros animais, que podem nos proteger bem o suficiente, e mais do que o suficiente, do frio? Muitas tribos não cobrem seus corpos com a casca de árvores? Não são as penas de pássaros costuradas para servir roupas? Mesmo hoje, não existe uma grande porção da tribo Cítia em peles de raposas e camundongos, macia ao toque e impermeável aos ventos?

17. “Por tudo isso, os homens devem ter uma proteção mais espessa do que a pele, para evitar o calor do sol no verão”. O que então? A antiguidade não produziu muitos refúgios que, criados pela erosão pelo tempo ou por qualquer outra ocorrência, abriu em cavernas? O que então? Os antigos não pegaram galhos e os teceram à mão em tapetes de vime, esfregando-os com lama comum e, em seguida, com restolho e outras gramas selvagens construíram um telhado, e assim passavam seus invernos seguros, as chuvas escoadas por meio de espigões inclinados? O que então? Os povos que estão à beira do golfo de Sirte não habitam em casas escavadas e, de fato, todas as tribos que, por causa do brilho feroz do sol, não possuem proteção suficiente para evitar o calor, exceto o próprio solo ressequido?

18. A natureza não foi tão hostil ao homem que, quando deu a todos os outros animais um papel fácil na vida, tornou impossível para ele sozinho viver sem todos esses artifícios. Nada disso foi imposto por ela; nenhum deles deve ser buscado com dificuldade para que nossas vidas pudessem ser prolongadas. Todas as coisas estão prontas para nós no nosso nascimento; somos nós que tornamos tudo difícil para nós mesmos, através do nosso desdém pelo que é fácil. Casas, abrigo, conforto material, comida e tudo o que agora se tornou a fonte de grandes problemas, estavam prontos, livres de tudo e alcançáveis por pequeno esforço. Pois o limite em todos os lugares corresponde à necessidade; somos nós que fizemos todas essas coisas valiosas, nós que as fizemos admiráveis, nós que as fizemos ser procuradas por dispositivos extensivos e múltiplos.

19. A natureza é suficiente para o que exige. O luxo virou as costas para a natureza; cada dia ele se expande, em todas as épocas ele vem acumulando força e por sua sagacidade promovendo os vícios. No início, o luxo começou a cobiçar o que a natureza considerava supérfluo, então, o que era contrário à natureza; E, finalmente, fez da alma um fiador ao corpo, e pediu que fosse uma escrava total das luxúrias do corpo. Todas essas astúcias pelas quais a cidade é patrulhada – ou devo dizer mantida em tumulto – estão envolvidas no negócio do corpo; há tempo todas as coisas eram oferecidas ao corpo tanto quanto a um escravo, mas agora elas são preparadas para o corpo como para um soberano. Consequentemente, daí vieram as oficinas das tecelãs e dos carpinteiros; daí o saboroso cheiro dos cozinheiros profissionais; daí a despreocupação daqueles que ensinam danças sensuais e cantos lascivos e afetados. Pois essa moderação que a natureza prescreve, que limita nossos desejos por recursos restritos a nossas necessidades, abandonou o campo; agora chegou a isso – querer apenas o que é suficiente é um sinal de grosseria e de absoluta pobreza.

20. É difícil de acreditar, meu querido Lucílio, com que facilidade o encanto da eloquência cativa, mesmo grandes homens, para longe da verdade. Tomemos, por exemplo, Posidônio – que, na minha opinião, é do time daqueles que mais contribuíram para a filosofia – quando deseja descrever a arte de tecer. Ele diz como, primeiro, alguns fios são torcidos e alguns tirados da suave e frouxa massa de lã; Em seguida, como a urdidura[9] vertical mantém os fios esticados por meio de pesos pendurados; Então, como a linha inserida da estrutura, que suaviza a textura dura da teia que a segura de cada lado, é forçada pelo batente para fazer uma união compacta com a urdidura. Ele sustenta que mesmo a arte do tecelão foi descoberta por homens sábios, esquecendo que a arte mais complicada que ele descreveu foi inventada nos últimos dias – a arte em que

A trama é presa a moldura; distante agora O pente separa a urdidura. Entre as fibras é atirada a textura pelas lançadeiras carregadas; Os dentes bem entalhados do pente largo, em seguida conduzem.Tela iugo vincta est, stamen secernit harundo, Inseritur medium radiis subtemen acutis, Quod lato paviunt insecti pectine dentes.[10]

Suponhamos ter tido a oportunidade de ver o tear do nosso próprio dia, o que produz as vestes que não esconderão nada, a roupa que proporciona – não vou dizer nenhuma proteção ao corpo, mas nem mesmo a modéstia!

21. Posidônio passa para o fazendeiro. Com menos eloquência, ele descreve o solo que é revolvido e cruzado novamente pelo arado, para que a terra, assim afrouxada, possa permitir um desenvolvimento mais livre das raízes; então a semente é espalhada, e as ervas daninhas arrancam à mão, para que nenhum crescimento casual ou planta selvagem desenvolva e estrague a cultura. Este ofício também, ele declara, é a criação do sábio – como se os cultivadores do solo não estivessem neste momento, descobrindo inúmeros novos métodos para aumentar a fertilidade do solo!

22. Além disso, não limitando sua atenção a essas artes, ele até degrada o homem sábio enviando-o para o moinho. Pois ele nos diz como o sábio, ao imitar os processos da natureza, começou a fazer pão. “O grão”, diz ele, “uma vez que é levado na boca, é esmagado pelos dentes íngremes, que se encontram em um encontro hostil, e qualquer que seja o grão que deslize na língua volta para os mesmos dentes. Então é misturado em uma massa, para que possa mais facilmente passar pela garganta escorregadia. Quando isso chega ao estômago, é digerido pelo calor uniforme do estômago, então, e só então, é assimilado pelo corpo”.

23. Seguindo esse padrão, ele continua, “alguém colocou duas pedras ásperas, uma sobre a outra, imitando os dentes, um dos quais está parado e aguarda o movimento do outro conjunto. Então, ao esfregar a pedra uma contra a outra, o grão é esmagado e trazido de volta uma e outra vez, até por fricção frequentemente é reduzido a pó. Então este homem polvilhou o repasto com água, e com a manipulação contínua subjugou a massa e moldou o pão. Esta lâmina foi, no início, cozida por cinzas quentes ou por um vaso de barro em brasa; mais tarde, fornos foram gradualmente descobertos e os outros dispositivos cujo calor presta obediência à vontade do sábio”. Posidônio chegou muito perto de declarar que mesmo o ofício do sapateiro era a descoberta do homem sábio.

24. A razão, de fato, inventou todas essas coisas, mas não era razão correta. Foi o homem, mas não o sábio, que as descobriu; Assim como eles inventaram navios, nos quais atravessamos rios e mares – navios equipados com velas com a finalidade de pegar a força dos ventos, navios com lemes adicionados na popa para girar o curso do navio em uma direção ou outra. O modelo seguido foi o peixe, que se dirige por sua cauda, e por seu menor movimento desse ou daquele lado desvia seu curso rapidamente.

25. “Mas”, diz Posidônio, “o homem sábio realmente descobriu todas essas coisas, mas elas eram muito insignificantes para que ele próprio lidasse, e ele as confiou a seus mais desprezíveis assistentes”. Não foi assim; estas invenções iniciais não foram pensadas por nenhuma outra classe de homens senão aqueles que as têm sob comando hoje. Sabemos que certos dispositivos surgiram apenas em nossa própria memória – como o uso de janelas que admitem a luz através de telhas transparentes e, como os banhos instalados em estufas, com canos em suas paredes para difundir o calor que mantém a uma temperatura uniforme seus mais baixos, bem como seus mais altos espaços. Por que preciso mencionar o mármore com o qual nossos templos e nossas casas particulares são resplandecentes? Ou as massas arredondadas e polidas de pedra pelo qual erguemos colunatas e edifícios espaçosos o suficiente para multidões? Ou nossos sinais para palavras inteiras[11], que nos permite anotar um discurso, por mais rapidamente pronunciado, combinando a velocidade da língua com a velocidade da mão? Todo esse tipo de coisa foi planejado pela mais vil categoria de escravos.

26. O lugar da sabedoria é mais alto; ela não treina as mãos, mas é a amante das nossas mentes. Você saberia o que a sabedoria trouxe à luz, o que ela realizou? Não são as poses graciosas do corpo, nem as variadas notas produzidas por corneta e flauta, por qual a respiração é recebida e, à medida que vaza ou passa, é transformada em voz. Não é sabedoria que inventa armas, erguer muralhas ou instrumentos úteis à guerra; a voz dela é para a paz, e ela convoca toda a humanidade para a concórdia.

27. Não é ela, eu mantenho, quem é a artesã de nossos instrumentos indispensáveis ao uso diário. Por que você atribui a ela coisas insignificantes? Você vê nela a especialista em artesanato da vida. As outras artes, é verdade, a sabedoria tem sob seu controle; pois aquele a quem vida serve é servido também pelas coisas que equipam a vida. Mas o curso da sabedoria é para o estado de felicidade; de lá ela nos guia, e abre o caminho para nós.

28. Ela nos mostra quais coisas são do mal e o que é aparentemente mau; ela tira nossas mentes de ilusão vã. Ela nos confere uma grandeza que é substancial, mas ela reprime a grandeza que é orgulhosa, e que é vistosa, mas cheia de vazio; e ela não nos permite ignorar a diferença entre o que é ótimo e o que é nada, senão inchado; além disso, ela nos entrega o conhecimento de toda a natureza e de sua própria natureza. Ela nos revela o que são os deuses e de que qualidade eles são; quais são os deuses inferiores, as divindades domésticas e os espíritos protetores; quais são as almas que foram dotadas de vida duradoura e foram admitidas na segunda classe de divindades, onde é a sua morada e quais são suas atividades, poderes e vontade. Tais são os ritos de iniciação da sabedoria, por meio dos quais é destrancado, não um santuário de aldeia, mas o vasto templo de todos os deuses – o próprio universo, cujas aparições verdadeiras e aspectos verdadeiros ela oferece ao olhar de nossas mentes, já que nossa visão não alcança um tão grandioso espetáculo!

29. Então ela volta ao começo das coisas, à razão eterna que foi transmitida ao todo, e à força que é inerente a todas as sementes das coisas, dando-lhes o poder de modelar cada coisa de acordo com seu tipo. Então a sabedoria começa a indagar sobre a alma, de onde ela vem, onde ela habita, quanto tempo ela permanece, quantas divisões ela tem. Finalmente, ela volta sua atenção do corpóreo para o incorpóreo, e examina de perto a verdade e as marcas pelas quais a verdade é conhecida, investigando o seguinte, como aquilo que é ambíguo pode ser distinguido da verdade, seja na vida ou na linguagem; pois ambos são elementos do falso misturado com o verdadeiro.

30. É minha opinião que o homem sábio não se retirou, como Posidônio pensa, das artes que estávamos discutindo, mas que ele nunca as tomou. Pois ele teria julgado que nada vale a pena descobrir que não julgasse valer a pena sempre usar. Ele não aceitaria hoje coisas que devessem ser descartadas amanhã.

31. “Mas Anacársis[12]“, diz Posidônio, “inventou a roda do oleiro, cujo turbilhão dá forma aos vasos”. Então, como a roda do oleiro é mencionada por Homero, as pessoas preferem acreditar que os versos de Homero são falsos e não a história de Posidônio! Mas eu sustento que Anacársis não foi o criador desta roda; e mesmo que ele fosse, embora fosse um homem sábio quando o inventou, ainda assim ele não inventou isso como “homem sábio” – assim como há muitas coisas que os homens sábios fazem como homens e não como homens sábios. Suponhamos, por exemplo, que um homem sábio seja muito rápido nos pés; ele superará todos os corredores da competição em virtude de ser ligeiro, não em virtude de sua sabedoria. Gostaria de mostrar a Posidônio um soprador de vidro que, por sua respiração, molda o copo em múltiplas formas que mal poderiam ser feitas pela mão mais hábil. Mais que isso, essas descobertas foram feitas desde que nós os homens deixamos de descobrir a sabedoria.

32. Mas Posidônio novamente observa. “Dizem que Demócrito descobriu o arco de abóboda[13], cujo efeito foi que a linha curva de pedras, que gradualmente se inclinam uma para a outra, é unida pela pedra angular”. Estou disposto a pronunciar esta declaração falsa. Pois deveria haver, antes de Demócrito, pontes e portais em que a curvatura não começou até o topo.

33. Parece ter fugido de sua memória que este mesmo Demócrito descobriu como o marfim poderia ser amolecido por fervura, como um calhau poderia ser transformado em esmeralda, – o mesmo processo usado até hoje para colorir pedras que são submissas a este tratamento! Pode ter sido um homem sábio que descobriu todas essas coisas, mas não as descobriu por ser sábio; pois ele fez muitas coisas que vemos feitas tão bem, ou mesmo com mais habilidade e destreza, por homens totalmente deficientes de sabedoria.

34. Você pergunta o que, então, o sábio descobriu e o que ele trouxe à luz? Antes de tudo, a verdade a respeito da natureza; e a natureza ele não seguiu como fazem os outros animais, com os olhos muito entorpecidos para perceber o divino nela. Em segundo lugar, existe a lei da vida e a vida que ele fez para se adequar aos princípios universais; e ele nos ensinou, não apenas a conhecer os deuses, mas a segui-los e a receber as dádivas do acaso exatamente como se fossem comandos divinos. Ele nos proibiu de prestar atenção a opiniões falsas e ponderou o valor de cada coisa por um verdadeiro padrão de avaliação. Ele condenou os prazeres com os quais o remorso se mistura e elogiou os bens que sempre satisfazem; E ele explicitou a verdade que é mais feliz aquele que não precisa de felicidade, e que é mais poderoso aquele que tem poder sobre si mesmo.

35. Não falo dessa filosofia que coloca o cidadão fora de sua comunidade e os deuses fora do universo, e que aceita haver virtude no prazer[14], mas sim daquela filosofia que não dá valor a nada, exceto o que é honorável, uma que não pode ser persuadida pelos presentes, tanto do homem como da fortuna, uma cujo valor é que não pode ser comprada por qualquer valor[15]. Que esta filosofia tenha existido em uma época tão bruta, quando as artes e ofícios ainda eram desconhecidos e quando as coisas úteis só podiam ser aprendidas pela prática – isso eu me recuso a acreditar.

36. Em seguida, veio o período favorecido pela fortuna, quando as recompensas da natureza se abriram a todos, para o uso indiscriminado dos homens, antes que a avareza e o luxo quebrassem os laços que mantinham os mortais juntos, e eles, abandonando sua existência comunal, se separaram e se tornaram saqueadores. Os homens da segunda era não eram homens sábios, mesmo que fizessem o que os homens sábios deveriam fazer.

37. Na verdade, não há outra condição da raça humana que alguém considere mais altamente; e se Deus ordenasse a um homem para criar criaturas terrestres e conferir instituições aos povos, esse homem não aprovaria nenhum outro sistema que fosse distinto daquele dos homens dessa época, quando

Nenhum lavrador cultivou o solo, nem estava certo repartir ou delimitar a propriedade. Os homens compartilharam seus ganhos, e a Terra entregava mais livremente Suas riquezas para os filhos que não as procuravam.Nulli subigebant arva coloni, Ne signare quidem aut partiri limite campum Fas erat; in medium quaerebant, ipsaque tellus Omnia liberius nullo poscente ferebat.[16]

38. Que raça de homens foi mais bem-aventurada do que aquela raça? Eles gozavam de toda a natureza em parceria. A natureza era uma mãe para eles, agora a tutora, assim como antes era a mãe, de todos; e este seu presente consistia na posse garantida de cada homem dos recursos comuns. Por que eu não poderia chamar essa raça a mais rica entre os mortais, já que não conseguiria encontrar uma pessoa pobre entre eles? Mas a avareza invadiu uma situação tão felizmente organizada, e, por sua ânsia por tirar algo e transformá-lo em seu próprio uso privado, fez de tudo a propriedade dos outros e reduziu riquezas ilimitadas a uma carestia desmedida. Foi a avareza que introduziu a pobreza e, por desejar muito, perdeu tudo.

39. E, por isso, embora ela tente compensar a perda, embora ela adicione uma propriedade a outra, expulsando um vizinho tanto comprando-o ou prejudicando-o, embora ela estenda suas mansões ao tamanho das províncias e defina propriedade como significando uma extensa viagem através da própria propriedade, – apesar de todos esses esforços dela, nenhuma ampliação de nossas fronteiras nos trará de volta à condição de onde partimos.

40. O próprio solo era mais produtivo quando se não dividido e produzia mais do que o suficiente para os povos que se abstinham de despojar uns aos outros. Qualquer dádiva que a natureza produzia, os homens obtinham tanto prazer em revelá-la a outro como em tê-la descoberto. Não era possível para nenhum homem superar a outro ou ficar atrás dele; tudo o que havia, era dividido entre os amigos sem discussão. O mais forte ainda não havia começado a colocar as mãos sobre os mais fracos; ainda não havia o avarento, escondendo o que estava diante dele, afastando seu vizinho das necessidades da vida; cada um se importava tanto com o próximo quanto com sigo mesmo.

41. A armadura não era usada e a mão, não manchada pelo sangue humano, direcionava todo seu ódio contra animais selvagens. Os homens daquele dia, que haviam encontrado em uma proteção densa do bosque contra o sol, e a segurança contra o rigor do inverno ou da chuva em seus pobres esconderijos, passavam suas vidas sob os ramos das árvores e passavam noites tranquilas sem um suspiro. O luxo nos irrita em nossas vestes púrpuras, e nos afasta de nossas camas com as mais afiadas aguilhoadas; mas quão suave era o sono que a terra dura concedia aos homens daquele dia! Quando não há mais que possamos fazer, devemos possuir muito; mas antes nós possuíamos o mundo inteiro!

42. Nenhuma preocupação constante ou tetos luxuosos pendiam sobre eles, mas quando se deitavam debaixo do céu aberto, as estrelas deslizavam silenciosamente acima deles, e o firmamento, o nobre desfile noturno, marchava rapidamente, conduzindo sua poderosa tarefa em silêncio. Pois eles tinham, ao dia, assim como a noite, as visões desta morada mais gloriosa, livre e aberta. Era sua alegria observar as constelações enquanto se afundavam do meio do céu e outras, novamente, quando se levantavam de suas casas escondidas.

43. O que mais, além da alegria, poderia ser vagar entre as maravilhas que pontilhavam os céus em toda parte? Mas você, da época atual, estremece a cada som que sua casa faz, e enquanto se senta entre seus afrescos, o menor chiado o faz encolher de terror. Eles não tinham casas tão grandes quanto cidades. O ar, brisas soprando livremente através dos espaços abertos, a sombra flutuante do penhasco ou da árvore, água cristalinas e córregos não estragadas pelo trabalho do homem, seja por tubulações ou por qualquer confinamento, mas correndo à vontade, e prados lindos sem o uso da arte, – em meio a essas cenas estavam suas casas rudes, adornadas com mão rústica. Tal moradia estava em conformidade com a natureza; nesse lugar havia alegria de viver, sem temer a própria residência nem por sua segurança. Hoje, no entanto, nossas casas constituem uma grande parte do nosso medo.

44. Mas, por mais que a vida dos homens daquela época fosse excelente e sem censura, eles não eram homens sábios; pois esse título está reservado para a maior conquista. Ainda assim, eu não negaria que eles eram homens de espírito elevado e – eu posso usar a frase – recente entregue pelos deuses. Pois não há dúvida de que o mundo produziu uma descendência melhor antes de ser esgotado. No entanto, nem todos foram dotados de faculdades mentais de maior perfeição, embora em todos os casos seus poderes inatos fossem mais vigorosos do que os nossos e mais adequados para o trabalho. Pois a natureza não concede virtude; é uma arte tornar-se bom.

45. Eles, pelo menos, não procuraram na mais baixa escória da terra por ouro, nem ainda por prata ou pedras transparentes; e eles ainda eram misericordiosos mesmo com os animais brutos – tão longe era essa época do costume de matar o homem pelo homem, não com raiva ou com medo, mas apenas para fazer um show[17]! Ainda não tinham roupas bordadas nem teciam um pano de ouro; o ouro ainda não era minerado.

46. Qual é, então, a conclusão do assunto? Foi devido sua ignorância das coisas que os homens daqueles dias eram inocentes; e faz uma grande diferença se queremos pecar ou se não temos conhecimento para pecar. A justiça era desconhecida, a prudência desconhecida, desconhecidos também eram o autocontrole e a bravura; mas sua vida rude possuía certas qualidades parecidas com todas essas virtudes. A virtude não é concedida a uma alma, a menos que essa alma tenha sido treinada e ensinada, e pela prática incessante, trazida à perfeição. Para a obtenção desta benção, mas não na posse dela, nós nascemos; e mesmo no melhor dos homens, antes da iniciação filosófica, se pode haver matéria-prima para a virtude, não existe ainda a virtude.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Sólon (grego Σόλων, translit. Sólōn; (Atenas, 638 a.C. – 558 a.C.) foi um estadista, legislador e poeta grego antigo. Foi considerado pelos gregos como um dos sete sábios da Grécia antiga e, como poeta, compôs elegias morais-filosóficas. Em 594 a.C., iniciou uma reforma das estruturas social, política e econômica da pólis ateniense.

[2] No texto atribuído a Caio Higino, os sete sábios são: Pítaco de Mitilene, Periandro de Corinto, Tales de Mileto, Sólon de Atenas, Quílon de Esparta, Cleóbulo de Lindos e Bias de Priene. Plutarco lista os sete sábios como Tales, Bias, Pítaco, Sólon, Quílon, Cleóbulo e Anacarses. Platão, no diálogo intitulado Protágoras, expõe a seguinte lista: Tales, Pítacos, Bias, Sólon, Cleóbulo, Mison e Quílon.

[3] Licurgo foi um lendário legislador da pólis de Esparta. Nada se sabe seguramente sobre a existência deste personagem. Heródoto fala dele em meados do século V a.C., mas a vida do legislador deve ter decorrido no século VIII a.C., mas a sua memória seria correntemente mencionada na Esparta do século V, pois os seus habitantes nessa época sentiam a necessidade de atribuir a organização estatal que os regia a um ser humano, e não ao acaso. A organização estatal atribuída a Licurgo se compunha de rígido regime de formação possuía um caráter de obrigação social e imposição estatal, com o objetivo primordial de treinar cidadãos masculinos à vida militar espartana.

[4] Zaleuco de Locros (Locros, Século VII a.C.), foi um legislador do Período Arcaico da Magna Grécia. Zaleuco, sendo o primeiro legislador conhecido, promulgou c.644 a.C. um código de leis, usualmente designado por Código de Zaleuco.

[5] Trecho de Geórgicas, v. I, 144 de Virgílio.

[6] Trecho de Geórgicas, v. I, 139-140 de Virgílio.

[7] Diógenes de Sinope, também conhecido como Diógenes, o Cínico, foi um filósofo da Grécia Antiga.

[8] Dédalo, na mitologia grega, é um personagem natural de Atenas e descendente de Erecteu. Notável arquiteto e inventor, cuja obra mais famosa é o labirinto que construiu para o rei Minos, de Creta, aprisionar o Minotauro.

[9] Conjunto de fios de mesmo comprimento reunidos paralelamente no tear por entre os quais se faz a trama.

[10] Trecho de Metamorfoses, de Ovídio..

[11] Suetônio nos diz que um certo Ênio, um gramático da era de Augusto, foi o primeiro a desenvolver a estenografia em uma base científica, e que Tiro, o escravo liberto de Cícero, inventou o processo. Ele também menciona Sêneca como a autoridade mais científica e enciclopédica no assunto.

[12] Anacársis foi um filósofo cita que viajou de sua terra natal na costa norte do Mar Negro até Atenas no início do século VI a.C. e causou grande impressão como um “bárbaro” franco, sincero, aparentemente um precursor dos cínicos, embora nenhum de seus trabalhos tenha sobrevivido.

[13] A abóbada é uma construção em forma de arco com a qual se cobrem espaços compreendidos entre muros, pilares ou colunas. Compõe-se de peças lavradas em pedra especialmente para este fim, denominadas aduelas, ou de tijolos apoiados sobre uma estrutura provisória de madeira, o cimbre. Embora de uso generalizado no Império Romano, a construção de abóbadas constituiu o principal problema arquitetônico da Idade Média europeia. O desafio de construí-las foi um dos fatores que impulsionaram a evolução da arquitetura ocidental.

[14] Referência ao Epicurismo

[15] Em oposição, Sêneca apresenta síntese das posições estoicas.

[16] Trecho de Geórgicas, v. I, de Virgílio.

[17] Referência aos jogos de gladiadores.

Carta 89: Sobre as Partes da Filosofia

Esta carta é uma das mais voltadas para o debate teórico da filosofia, em contraste com a maioria das cartas que têm cunho mais prático. Sêneca inicia fazendo uma diferenciação entre sabedoria e filosofia:

A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou.” (LXXXIX, 4) Ou, de forma mais condensada: “A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.“(LXXXIX, 6).

A carta cita e comenta posições de Epicuro, Cícero, da escola peripatética e cirenaica sobre as partes da filosofia, chegando ao defendido pelos estoicos, que os principais ramos são ética, física e lógica: A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. (LXXXIX, 9).

Imagem: Mosaico Academia de Platão na vila de Siminius Stephanus em Pompeia.


LXXXIX. Sobre as Partes da Filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. É um fato útil que deseje saber, o que é essencial para aquele que busca a sabedoria – mais precisamente, as partes da filosofia e a divisão de seu todo em membros separados. Pois, ao estudar as partes, podemos ser trazidos com mais facilidade a entender o todo. Só desejo que a filosofia possa estar diante de nossos olhos em toda a sua plenitude, assim como toda a extensão do firmamento se mostra para que o possamos contemplar! Seria uma visão muito parecida com a do firmamento. Pois, certamente, a filosofia arrebataria todos os mortais pelo amor por ela; devemos abandonar todas aquelas coisas que, na nossa ignorância do que é excelente, acreditamos ser excelentes. No entanto, como isso não nos é dado graciosamente, devemos ver a filosofia exatamente como os homens contemplam os segredos do firmamento.

2. A mente do sábio, com certeza, abraça toda a estrutura da filosofia, examinando-a com um olhar não menos rápido do que nossos olhos mortais examinam os céus; nós, no entanto, que devemos atravessar a escuridão, nós, cuja visão falha mesmo para o que está próximo, podemos ser apresentados com maior facilidade a cada objeto em separado, apesar de ainda não sermos capazes de compreender o universo. Portanto, cumpro suas exigências e dividirei a filosofia em partes, mas não em migalhas. Pois é útil que a filosofia seja dividida, mas não cortada em pedaços mínimos. Assim como é difícil compreender o que é demasiadamente grande, também é difícil compreender o que é demasiadamente pequeno.

3. As pessoas são divididas em tribos, o exército em centúrias[1]. Tudo o que cresceu a um tamanho maior é mais facilmente identificado se for dividido em partes; mas as partes, como observei, não devem ser incontáveis em número e em tamanho diminuto. Pois a análise excessiva é defeituosa exatamente da mesma forma que nenhuma análise; o que quer que você corte tão bem que se torne pó é tão bom quanto misturado em uma massa novamente.

4. Em primeiro lugar, portanto, se você aprovar, vou traçar a distinção entre sabedoria e filosofia. A sabedoria é o bem perfeito da mente humana; a filosofia é o amor à sabedoria e o esforço para alcançá-la. A última se esforça para o objetivo que a primeira já alcançou. E é claro por que a filosofia[2] é assim chamada. Pois reconhece por seu próprio nome o objeto de seu amor.

5. Certas pessoas definem a sabedoria como o conhecimento das coisas divinas e das coisas humanas[3]. Outros ainda dizem: “A sabedoria é saber coisas divinas e coisas humanas, e suas causas também[4]”. Esta frase adicionada parece-me supérflua, uma vez que as causas das coisas divinas e as coisas humanas fazem parte do sistema divino. A filosofia também foi definida de várias maneiras; alguns a chamaram de “o estudo da virtude”, outros se referiram a ela como “um estudo sobre o modo de modificar a mente”, e alguns a chamaram de “busca da razão justa”.

6. Uma coisa está praticamente resolvida, que há alguma diferença entre filosofia e sabedoria. Também não é possível que o que é procurado e o que procura sejam idênticos. Como há uma grande diferença entre a avareza e a riqueza, sendo uma sujeito do desejo e a outra seu objeto, assim também entre filosofia e sabedoria. Pois uma é um resultado e uma recompensa da outra. A filosofia o faz caminhar, e a sabedoria é o destino.

7. A sabedoria é aquilo que os gregos chamam de σοφία[5]. Os romanos também costumavam usar essa palavra, sophia, no sentido em que eles agora usam a “filosofia” também. Isso é provado pelas nossas antigas peças de teatro de toga[6], bem como pelo epitáfio que está esculpido no túmulo de Dosseno: “Detenha-se, estranho, e leia de Dosseno a sofia”.[7]

8. Certos de nossa escola, embora a filosofia significasse para eles “o estudo da virtude”, e embora a virtude fosse o objeto buscado e a filosofia o buscador, sustentavam, no entanto, que as duas não podem ser separadas. Pois a filosofia não pode existir sem virtude, nem virtude sem filosofia. A filosofia é o estudo da virtude, por meio, no entanto, da própria virtude; mas a virtude não pode existir sem o estudo de si mesma, nem o estudo da virtude existe sem a própria virtude. Pois não é como tentar atingir um alvo em um longo ponto, onde o atirador e o objeto a ser atingido estão em diferentes lugares. Nem, como estradas que conduzem a uma cidade, nem são as abordagens da virtude situadas fora da própria virtude; o caminho pelo qual se alcança a virtude é por meio da própria virtude; a filosofia e a virtude se mantêm juntas.

9. Os maiores autores e o maior número de autores, sustentaram que existem três divisões de filosofia – moral, natural e lógica[8]. A primeira mantém a alma em ordem; a segunda investiga o universo; a terceira desenvolve os significados essenciais das palavras, suas combinações e as provas que impedem que a falsidade se instale e desloque a verdade. Mas também houve aqueles que dividiram a filosofia, por um lado, em menos divisões, por outro lado, em mais.

10. Certos da escola peripatética adicionaram uma quarta divisão, “filosofia política”, porque aplica-se a uma esfera especial de atividade e está interessada em um assunto diferente. Alguns acrescentaram um departamento para o qual eles usam o termo grego “οικονομία” (economia), a ciência de gerenciar o próprio patrimônio. Ainda outros fizeram um título distinto para os vários tipos de vida. Não há nenhuma dessas subdivisões, no entanto, que não sejam encontradas sob o ramo “moral” da filosofia.

11. Os epicuristas sustentavam que a filosofia era dupla: natural e moral; eles acabaram com o ramo lógico. Então, quando foram compelidos pelos próprios fatos a distinguir entre ideias equívocas e a expor falácias escondidas sob a capa da verdade, eles também introduziram um título para o qual eles dão o nome “forense e reguladora[9]”, que é meramente “lógica” sob outro nome, embora considerem que esta seção é suplementar ao departamento de filosofia “natural”.

12. A Escola Cirenaica[10] aboliu o departamento natural e lógico, e estava contente com o lado moral sozinho; e, no entanto, esses filósofos também incluem sob outro título o que eles rejeitaram. Pois dividem a filosofia moral em cinco partes: (1) O que evitar e o que procurar, (2) As paixões, (3) Ações, (4) Causas, (5) Prova. Agora, as causas das coisas realmente pertencem à divisão “natural”, as provas a “lógica”.

13. Aristo de Quios[11] observou que o natural e a lógica não eram apenas supérfluos, mas também eram contraditórios. Ele até mesmo limitou a “moral”, que era tudo o que lhe restava; pois aboliu esse título que abraçou o conselho, sustentando que era o negócio do pedagogo e não do filósofo – como se o homem sábio fosse outra coisa senão o pedagogo da raça humana!

14. Uma vez que, portanto, a filosofia é tripla, primeiro comecemos a definir o lado moral. Foi acordado que esse deveria ser dividido em três partes. Primeiro, temos a parte reflexiva, que atribui a cada coisa sua função particular e pesa o valor de cada uma; é o mais alto em termos de utilidade. Pois o que é tão indispensável como dar a tudo seu valor adequado? O segundo tem que ver com impulso, o terceiro com ações. Pois o primeiro dever é determinar separadamente o que vale a pena; o segundo, conceber em relação a eles um impulso regulado e ordenado; o terceiro, fazer seu impulso e suas ações se harmonizar, de modo que sob todas essas condições você possa ser consistente consigo mesmo.

15. Se algum dos três estiver com defeito, há confusão no resto também. Pois que benefício há em ter todas as coisas avaliadas, cada uma em suas relações adequadas, se você ultrapassar seus impulsos? Qual o benefício que existe ao ter controlado seus impulsos e em ter seus desejos sob seu próprio controle, se, quando você chegar à ação, você desconhece os horários e as épocas adequadas, e se você não sabe quando, onde e como cada ação deve ser realizada? Uma coisa é entender os méritos e os valores dos fatos, outra coisa conhecer o momento preciso para a ação, e ainda outra refrear os impulsos e prosseguir, em vez de se precipitar, para o que está para ser feito. Por isso, a vida está em harmonia com ela mesma somente quando a ação não abandona o impulso, e quando o impulso para um objeto surge em cada caso do valor do objeto, sendo lânguido ou mais ansioso, conforme o caso, de acordo com os objetos que o despertam valem a pena procurar.

16. O lado natural da filosofia é duplo: corporal e não corporal. Cada um é dividido em seus próprios graus de importância, por assim dizer. O tópico sobre os corpos aborda, primeiro, com estas duas classes: o criativo e o criado; e as coisas criadas são os elementos. Agora, esse mesmo tópico dos elementos, de acordo com alguns escritores, é integral; com outros, é dividido em matéria, a causa que move todas as coisas e os elementos.

17. Resta para mim dividir a filosofia lógica em suas partes. Toda a fala é contínua ou dividida entre questionador e respondedor. Foi definido que a primeira deveria ser chamada de ῥητορικὴ (retórica), e a última διαλεκτική (dialética). A retórica trata de palavras, significados e arranjos. A dialética é dividida em duas partes: palavras e seus significados, isto é, nas coisas que são ditas, e as palavras em que são ditas. Então vem uma subdivisão de cada uma – e é de grande extensão. Portanto, eu vou parar neste ponto, e

Percorrer o clímax;Summa sequar fastigia rerum;[12]

Pois, se eu tivesse vontade de dar as subdivisões, minha carta se tornaria o manual de um debatedor!

18. Não estou tentando desencorajá-lo, excelente Lucílio, de ler sobre este assunto, desde que você esteja pronto para praticar tudo o que ler. É sua conduta que você deve manter em controle; você deve despertar o que está dormente em você, tencionar rapidamente o que se tornou relaxado, conquistar o que é obstinado, acossar seus apetites e os apetites da humanidade, tanto quanto você pode; e para aqueles que dizem: “Por quanto tempo essa conversa sem fim continuará?” Responda com as palavras:

19. “Eu é quem deveria estar perguntando: Por quanto tempo esses pecados sem fim continuarão?Você realmente deseja que meus remédios parem antes de seu vício? Mas devo falar mais de meus remédios, e apenas porque você oferece objeções, eu continuarei falando. A medicina começa a fazer o bem no momento em que um toque faz com que o corpo doente arda com dor. Devo pronunciar palavras que ajudarão os homens até mesmo contra a vontade deles. Às vezes, você deve permitir que outras palavras além de elogios atinjam seus ouvidos e se, como indivíduo, você não estiver disposto a ouvir a verdade, ouça coletivamente.

20. Quão longe você estenderá os limites de suas propriedades? Uma fazenda que mantenha uma nação é muito limitada para um único senhor. Até que ponto você avançará seus campos arados – você que não está contente em confinar a medida de suas fazendas mesmo dentro da amplitude das províncias? Você tem rios nobres que atravessam seus terrenos privados; você tem rios poderosos – fronteiras de nações poderosas – sob seu domínio do início ao fim. Isso também é muito pequeno para você, a menos que também envolva mares inteiros com seus estados, a menos que seu administrador mantenha influência do outro lado do mar Adriático, da Jônia e do mar Egeu, a menos que as ilhas, casas de chefes famosos, sejam contadas por você como o mais insignificante dos bens! Espalhe-os tão amplamente quanto você quiser, se puder ter como “fazenda” o que uma vez foi chamado de império; faça seu o que quiser, desde que seja mais do que o do seu vizinho!

21. E agora por uma palavra contigo, cujo luxo se espalha tão amplamente quanto a ganância daqueles a quem acabei de referir. Para você, eu digo: “Este costume continuará até que não haja lago sobre o qual os pináculos de suas casas de campo não atinjam? Até que não haja um rio cujas margens não sejam limitadas por suas estruturas senhoriais? Onde águas quentes possam surgir, onde as margens se curvem em uma baía, você estará pronto para estabelecer fundações e, não contente com nenhuma terra que não tenha sido trabalhada pela engenharia, você irá trazer o mar dentro de seus limites. De cada lado, deixará suas casas brilharem ao sol, agora colocadas em picos nas montanhas, onde elas procuram uma visão extensa sobre o mar e a terra, agora levantadas da planície até o alto das montanhas, construirá suas múltiplas estruturas, suas imensas pilhas, vocês são, no entanto, apenas indivíduos e insignificantes com isso! O que você ganha em ter várias camas? Você dorme em uma. Nenhum lugar é seu, onde você não esteja”.

22. “Em seguida, eu passo para você, você cuja boca insaciável e sem fundo explora, por um lado, os mares, do outro, a terra, com um enorme trabalho, caçando sua presa, agora com anzol, agora com armadilha, agora com redes de vários tipos, nenhum animal tem paz, exceto quando você está empanturrado dele. E quão pequena é uma parte desses banquetes, preparado para você por tantas mãos, que você prova com seu paladar fatigado de prazer! Quão pequena parte de toda essa carne de caça, cuja captura esteve repleta de perigo, o paladar doente e cheio de melindre chega ao estômago? Quão pequena porção de todos os peixes, importados de longe, escorrega para aquela insaciável garganta? Pobres desgraçados, vocês não sabem que seus apetites são maiores que suas barrigas?

23. Fale assim com outros homens, desde que você enquanto falar também escute; escreva assim, desde que, enquanto escreve, lê, lembrando que tudo o que você ouve ou lê, deve ser aplicado para conduzir e para aliviar a fúria da paixão. Estude, não para adicionar nada ao seu conhecimento, mas para melhorar seu conhecimento.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Centúria era uma unidade de infantaria do exército romano, que continha oitenta legionários, correspondendo a dez contubérnios (a unidade mínima do exército romano, constituída de oito a dez soldados).

[2] Pitágoras foi, segundo Diógenes de Laércio, o primeiro a utilizar a palavra «filosofia», que é decomposta em duas: filo (amizade) e sofia (saber); o filósofo é, portanto, o amigo ou o amante do saber – esta é a significação com que a palavra aparece também em Sócrates e Platão.

[3] “Θείων τε καὶ ἀνθρωπίνων ἐπιστήμη”, citado por Plutarco, De Plac. Phil. 874 E.

[4] Cicero, De Officiis, “Sobre os Deveres”, II,ii, 5.

[5]sofia” equivalente em grego (Σοφία)

[6] Fabula togata, comédia “de toga”, distingue-se da comédia de imitação grega, “fabula palliata” apenas na atuação, o local e os personagens são romanos, ao contrário do que sucede com a palliata, em que se conservam os nomes gregos e a acão ocorre em locais vários do mundo grego.

[7] Hospes resiste et sophian Dossenni lege.

[8] Também traduzido como ética, física e lógica.

[9] Sêneca usa o termo latino “de iudicio” traduzindo o adjetivo grego δικανικός, “aquilo que tem a ver com os tribunais”, e por “de regula” a palavra κανονικός, “aquilo que tem a ver com regras”, aqui as regras da lógica. Os Epicuristas usavam para a lógica κανονική, em contraste com Aristóteles e seus sucessores, que usaram λογική. No latim, racionalis é uma tradução deste último.

[10] Aristipo de Cirene foi o fundador da Escola Cirenaica de filosofia, assim denominada devido à cidade de Cirene na qual foi fundada, floresceu entre 400 a.C. e 300 a.C., e tinha como a sua característica distintiva principal o hedonismo, ou a doutrina de que o prazer é o bem supremo. Como os cínicos se desenvolveram para os estoicos, assim os cirenaicos se desenvolveram para os Epicuristas.

[11] Aríston ou Aristo de Quios foi um filósofo estoico e discípulo de Zenão de Cítio. Esboçou um sistema de filosofia estoica que esteve, em muitos aspectos, mais próximo da anterior filosofia cínica. Rejeitou o lado lógico e físico da filosofia aprovada por Zenão e enfatizou a ética.

[12] Eneida, I, 342,  de Virgílio.

Carta 88: Sobre estudos liberais e vocacionais

A carta 88 é bastante interessante, nela Sêneca critica os “estudo liberais“, o que poderia ser traduzido no nosso tempo como formação universitária. Para Sêneca o conhecimento técnico é apenas isso, uma ferramenta para o trabalho diário e venal, não um fim em si mesmo ou um certificado de excelência, inteligência ou sabedoria. A crítica e conclusão são atuais e podem ser aplicadas igualmente aos intelectuais contemporâneos.

“O intelectual se ocupa com investigações sobre o idioma, e se for seu desejo de ir mais longe, ele trabalha na história ou, se ele estender seu alcance para os limites mais distantes, sobre a poesia. Mas qual destes abre caminho à virtude? Pronunciando sílabas, investigando palavras, memorizando peças, ou fazendo regras para o exame crítico da poesia, o que existe em tudo isso que livra alguém do medo, refreia o desejo ou elimina as paixões?” (LXXXVIII, 3)

No texto Sêneca cita a Odisseia e Ilíada de Homero bem como vários filósofos e escolas filosóficas da antiguidade. Ao final do texto, Sêneca volta suas baterias contra alguns filósofos, mais uma vez se mostrando atual – ou comprovando que a natureza humana se manteve inalterada em 2000 anos:

“Tenho falado até agora de estudos liberais; mas pense quanto de matéria supérflua e pouco prática que os filósofos contêm! Por sua própria conta, eles também se rebaixam para estabelecer boas divisões de sílabas, para determinar o verdadeiro significado de conjunções e preposições; eles têm inveja dos estudiosos, inveja dos matemáticos. Eles passaram a usar em sua própria arte todas as superfluidades dessas outras artes; o resultado é que eles sabem mais sobre falar meticulosamente do que sobre uma vida meticulosa.” (LXXXVIII, 42)

Imagem: Ulisses e as Sereias, por John William Waterhouse.


LXXXVIII. Sobre estudos liberais e vocacionais

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Você tem desejado conhecer os meus pontos de vista em relação aos estudos liberais[1]. A minha resposta é a seguinte: não admiro nenhum estudo e não considero um bom estudo, o que resulta na criação de dinheiro. Tais estudos são ocupações condutoras de lucro, úteis apenas na medida em que dão à mente uma preparação e não a ocupam permanentemente. Deve se demorar sobre eles apenas enquanto a mente não se ocupa com nada maior; eles são nosso aprendizado, não nosso trabalho real.

2. Então você vê por que os “estudos liberais” são chamados assim; é porque eles são estudos dignos de um cavalheiro nascido livre. Mas há apenas um estudo realmente liberal, o que dá a um homem sua liberdade. É o estudo da sabedoria, e isso é elevado, corajoso e de grande alma. Todos os outros estudos são insignificantes e pueris. Você certamente não acredita que exista algo bom em qualquer um dos assuntos cujos professores são, como você vê, os homens do selo mais ignóbil e vil? Não devemos estar aprendendo essas coisas; devíamos ter concluído com aprendê-las. Certas pessoas decidiram que o ponto em questão em relação aos estudos liberais é se eles fazem os homens bons; mas eles nem professam ou visam o conhecimento desse assunto em particular.

3. O intelectual[2] se ocupa com investigações sobre o idioma, e se for seu desejo de ir mais longe, ele trabalha na história ou, se ele estender seu alcance para os limites mais distantes, sobre a poesia. Mas qual destes abre caminho à virtude? Pronunciando sílabas, investigando palavras, memorizando peças, ou fazendo regras para o exame crítico da poesia, o que existe em tudo isso que livra alguém do medo, refreia o desejo ou elimina as paixões?

4. A questão é: tais homens ensinam a virtude, ou não? Se eles não ensinam, então nem sequer a transmitem. Se ensinam, são filósofos. Gostaria de saber como aconteceu que eles não tomaram a cátedra com o propósito de ensinar a virtude? Veja como é diferente de seus assuntos; e, no entanto, seus assuntos se assemelhariam se ensinassem a mesma coisa[3].

5. Pode ser, talvez, que eles façam você acreditar que Homero era um filósofo[4], embora refutem isso pelos argumentos através dos quais procuram provar isso. Pois às vezes fazem dele um estoico, que não aprova nada além de virtude, evita prazeres e se recusa a renunciar à honra mesmo ao preço da imortalidade[5]; às vezes o fazem um epicurista, louvando a condição de um estado de repouso, que passa seus dias em festa e canção[6]; às vezes um peripatético, classificando o bem de três maneiras[7]; às vezes um Acadêmico, afirmando que todas as coisas são incertas. É claro, no entanto, que nenhuma dessas doutrinas deve ser concebida sobre Homero, só porque estão todas lá; pois são irreconciliáveis umas com as outras. Podemos admitir a esses homens, de fato, que Homero era um filósofo; ainda assim ele se tornou um homem sábio antes de ter algum conhecimento de poesia. Então, vamos aprender as coisas particulares que fizeram Homero sábio.

6. Não é mais importante, claro, que eu investigue se Homero ou Hesíodo era o poeta mais velho, do que saber por que Hécuba[8], embora mais jovem do que Helena, mostrou seus anos tão lamentavelmente. O que, na sua opinião, eu pergunto, seria o ponto em tentar determinar as respectivas idades de Aquiles e Patroclos[9]?

7. Você levanta a questão: “Por quais regiões Ulysses se extraviou?” Em vez de tentar evitar que nos desviemos a todo momento? Não temos tempo para ouvir palestras sobre a questão de saber se ele se mantinha no mar entre a Itália e a Sicília, ou fora do nosso mundo conhecido (de fato, uma peregrinação tão longa não poderia ter ocorrido dentro de limites tão estreitos); Nós nos encontramos com tempestades do espírito, que nos perturbam diariamente, e nossa depravação nos leva a todos os males que perturbavam Ulysses. Para nós nunca falta a beleza para tentar nossos olhos, ou o inimigo para nos assaltar; desse lado estão monstros selvagens que se deleitam com o sangue humano, daquele lado os traiçoeiros encantos de orelha, e acolá está o naufrágio e toda variada categoria de infortúnios. Mostre-me, pelo exemplo de Ulysses, como eu amo meu país, minha esposa, meu pai e como, mesmo depois de sofrer um naufrágio, eu poderei singrar na via da honestidade.

8. Por que tentar descobrir se Penélope era um padrão de pureza, ou se ela era motivo de risada de seus contemporâneos? Ou se ela suspeitava que o homem em sua presença era Ulysses, antes que ela soubesse que era ele? Ensine-me, em vez disso, o que é a pureza e quão grande é o bem que temos nela e se está situada no corpo ou na alma.

9. Agora vou transferir minha atenção para o músico. Você, senhor, está me ensinando como os agudos e os graves estão de acordo um com o outro e como, embora as cordas produzam notas diferentes, o resultado é uma harmonia; em vez disso, coloque a minha alma em harmonia consigo mesmo, e não permita que meus propósitos estejam fora de sintonia. Você está me mostrando quais são as teclas lúgubres; mostre-me um pouco como, no meio da adversidade, eu posso evitar de pronunciar uma nota lúgubre.

10. O matemático ensina-me a definir as dimensões dos meus imóveis; mas eu prefiro aprender como descrever o que é suficiente para um homem possuir. Ele me ensina a contar, e adapta meus dedos para a avareza; mas eu deveria preferir que ele me ensine que não há nenhum sentido em tais cálculos, e alguém não é o mais feliz por cansar os contadores com seus bens – ou melhor, como é inútil a propriedade de qualquer homem que acharia a maior desgraça se fosse obrigado a calcular, por sua própria inteligência, o valor de suas participações.

11. O que é proveitoso para mim em saber como lotear um terreno, se eu não sei como dividi-lo com meu irmão? O que há de bom em calcular em minúcia as dimensões de um acre e na detecção do erro se uma pequena parte tiver escapado da minha régua de medição, se eu fico amargurado quando um vizinho mal-intencionado simplesmente arranca um pouco de minha terra? O matemático me ensina como eu não posso perder meus limites; no entanto, eu procuro aprender a perder todos com um coração leve.

12. “Mas”, vem a resposta: “Estou sendo expulso da fazenda que meu pai e meu avô foram donos!” Sim! Quem possuía a terra antes de seu avô? Você pode explicar que pessoas (eu não direi que pessoa) a mantinha originalmente? Você não entrou como proprietário, mas apenas como inquilino. E quem é seu inquilino? Se sua reivindicação for bem-sucedida, você é inquilino do herdeiro. Os juristas dizem que a propriedade pública não pode ser adquirida por particular por usucapião; ao que você se apega e chama de seu é propriedade pública – na verdade, ela pertence à humanidade em geral.

13. Oh, que habilidade maravilhosa! Você sabe como medir o círculo; você encontra a área de qualquer forma que esteja desenhada a sua frente; você calcula as distâncias entre as estrelas; não há nada que não chegue ao alcance de seus cálculos. Mas se você é um verdadeiro mestre de sua profissão, meça a mente do homem! Diga-me o quão grande é, ou o quão insignificante! Você sabe o que é uma linha reta; Mas como isso lhe beneficia se não sabe o que é reto na nossa vida?

14. Vamos agora para aquela pessoa que se vangloria de seu conhecimento dos corpos celestes, aquele que sabe

Aonde a esmerada estrela de Saturno esconde, E através de qual órbita Mercúrio se afasta.Frigida Saturni sese quo stella receptet, Quos ignis caeli Cyllenius erret in orbes.[10]

De que benefício será saber isso? Para que eu seja perturbado porque Saturno e Marte estão em oposição, ou quando Mercúrio se instala ao fim da tarde em vista de Saturno, ao invés de aprender que essas estrelas, onde quer que estejam, são benignas[11] e que não estão sujeitas a mudanças?

15. Elas são conduzidas por um ciclo infinito de destino, num curso do qual elas não podem se desviar. Elas retornam nas estações indicadas; elas se iniciam, ou marcam os intervalos do trabalho de todo o mundo. Mas se elas são responsáveis pelo que quer que aconteça, como isso ajudará você a conhecer os segredos do imutável? Ou se elas apenas dão indicações, o que há de bom em prever o que você não pode escapar? Se você conhece essas coisas ou não, elas acontecerão.

16. Veja o sol fugaz,

Se reparar as estrelas que seguem em seu trem, Nunca o amanhã nunca me engana, Ou é enganado por noites serenas.Si vero solem ad rapidum stellasque sequentes Ordine respicies, numquam te crastina fallet Hora nec insidiis noctis capiere serenae.[12]

Contudo, foi suficientemente e totalmente estabelecido que eu esteja a salvo de qualquer coisa que possa me enganar.

17. “O que”, você diz, “o amanhã nunca me enganará. O que acontece sem o meu conhecimento me deixa enganado.” Eu, pela minha parte, não sei o que será, mas sei o que pode acontecer. Não terei desconfiança sobre este assunto; aguardo o futuro na sua totalidade; e se houver qualquer redução em sua gravidade, eu aproveito ao máximo. Se o dia seguinte me tratar gentilmente, é uma espécie de decepção; mas não me engana mesmo nisso. Pois eu sei que todas as coisas podem acontecer, então eu sei, também, que elas não acontecerão em todos os casos. Estou pronto para eventos favoráveis, mas estou preparado para o pior.

18. Nesta discussão você deve me suportar se não seguir o curso normal. Pois não aceito admitir a pintura na lista de artes liberais, não mais do que escultura, marmoraria e outras ajudas para o luxo. Também excluo dos estudos liberais a luta livre e todo conhecimento que é composto de óleo e lama; caso contrário, eu seria compelido a admitir perfumistas também, e cozinheiros, e todos os outros que prestam sua inteligência ao serviço de nossos prazeres.

19. Qual elemento “liberal” existe nesses tomadores de eméticos[13] vorazes, cujos corpos são alimentados a gordura enquanto suas mentes são magras e estúpidas? Ou acreditamos realmente que o treinamento que eles dão é “liberal” para os jovens de Roma, que costumavam ser ensinados pelos nossos antepassados a ficarem retos e a arremessar um dardo, a empunhar uma lança, a guiar um cavalo e a lidar com armas? Nossos antepassados costumavam ensinar a seus filhos nada que pudesse ser aprendido enquanto em repouso. Mas nem o novo sistema nem o antigo ensina ou nutre a virtude. Por que qual bem nos faz montar um cavalo e controlar sua velocidade com a guia, e depois descobrir que nossas próprias paixões, totalmente descontroladas, se aferram a nós? Ou vencer muitos oponentes em luta ou boxe, e depois descobrir que nós mesmos somos espancados pela raiva?

20. “O que, então,” você diz, “os estudos liberais não contribuem com nosso bem-estar?” Muito em outros aspectos, mas nada em termos de virtude. Pois mesmo essas artes das quais eu falei, embora reconhecidamente de baixo grau – dependendo do trabalho feito – contribuem grandemente para a aparelhagem da vida, mas, no entanto, não têm nada a ver com a virtude. E se você perguntar: “Por que, então, educamos nossos filhos nos estudos liberais?” Não é porque eles podem conferir virtude, mas porque preparam a alma para receber a virtude. Assim com esse “curso primário”, como os anciãos o chamavam, na gramática, que dá aos meninos o seu treinamento elementar, não lhes ensina as artes liberais, mas prepara o terreno para a aquisição precoce dessas artes, então as artes liberais não conduzem a alma até a virtude, mas simplesmente aponta naquela direção.

21. Posidônio divide as artes em quatro classes: primeiro temos as que são comuns e baixas, então as que servem para diversão, depois as que se referem à educação dos meninos e, finalmente, às artes liberais. O tipo comum pertence aos trabalhadores e são meros trabalhos manuais; elas estão preocupadas em equipar a vida; não há pretensões de beleza ou honra.

22. As artes da diversão são aquelas que visam agradar os olhos e ouvidos. Para esta classe, você pode atribuir os engenheiros de palco, que inventam andaimes que se vão por conta própria, ou pisos que se elevam silenciosamente no ar e muitos outros dispositivos surpreendentes, como quando os objetos que se encaixam, depois se desmontam ou objetos que são separados, em seguida, juntam-se automaticamente, ou objetos que ficam eretos, em seguida, colapsam gradualmente. O olho dos inexperientes é surpreendido por essas coisas; pois tais pessoas se maravilham com tudo o que ocorre sem aviso prévio, porque elas não conhecem as causas.

23. As artes que pertencem à educação dos meninos, e são algo similar às artes liberais, são aquelas que os gregos chamam de “ciclo de estudos”, mas que nós, romanos, chamamos de “liberal[14]”. No entanto, as únicas que realmente são liberais – ou melhor, para dar-lhes um nome mais verdadeiro, “livre” – são aquelas cuja preocupação é a virtude.

24. “Mas,” dizemos, “assim como há uma parte da filosofia que tem a ver com a natureza, e uma parte que tem a ver com a ética, e uma parte que tem que ver com o raciocínio, então esse grupo de artes liberais também reivindicam por si mesmo um lugar na filosofia. Quando se aborda questões que lidam com a natureza, uma decisão é alcançada por meio de uma palavra do matemático. Portanto, a matemática é um departamento desse ramo que auxilia”.

25. Mas muitas coisas nos ajudam e ainda não são partes de nós mesmos. Não, se fossem, elas não nos ajudariam. A comida é um auxílio para o corpo, mas não é parte dele. Recebemos alguma ajuda do serviço que a matemática faz; e a matemática é tão indispensável para a filosofia quanto o carpinteiro é para o matemático. Mas o carpinteiro não faz parte da matemática, nem a matemática é parte da filosofia.

26. Além disso, cada um tem seus próprios limites; pois o sábio investiga e aprende as causas dos fenômenos naturais, enquanto o matemático segue e calcula seus números e suas medidas. O homem sábio conhece as leis pelas quais os corpos celestes persistem, quais poderes lhes pertencem e quais atributos; O astrônomo observa apenas as suas idas e vindas, as regras que regem seus nasceres e poentes, e os períodos ocasionais durante os quais parecem ficar imóveis, embora, de fato, nenhum corpo celestial possa ficar quieto.

27. O sábio saberá o que causa a reflexão no espelho; mas, o matemático pode simplesmente dizer-lhe o quão longe o corpo deve estar da reflexão, e que forma de espelho produzirá uma reflexão dada. O filósofo irá demonstrar que o Sol é um corpo grande, enquanto o astrônomo calcula o quão grande, progredindo no conhecimento por seu método de tentativa e experimentação; mas, para progredir, deve convocar certos princípios para ajudar. Nenhuma arte, no entanto, é suficiente para si mesmo, se o fundamento sobre o qual ela se baseia depende de um simples favor.

28. Agora a filosofia não pede favores de nenhuma outra fonte; ela constrói tudo em seu próprio solo; mas a ciência dos números é, por assim dizer, uma estrutura construída sobre a terra de outro homem – ela se baseia em tudo sobre o solo alheio[15]; aceita os primeiros princípios, e por seu favor chega a conclusões adicionais. Se pudesse marchar sem ajuda para a verdade, se pudesse entender a natureza do universo, devo dizer que isso proporcionaria muita ajuda às nossas mentes; pois a mente cresce pelo contato com as coisas celestiais e desenha em si algo de elevado. Há apenas uma coisa que traz a alma à perfeição – o conhecimento inalterável do bem e do mal. Mas não há outra arte que investigue o bem e o mal. Gostaria de passar em revista as várias virtudes.

29. A bravura é um escarnecedor de coisas que inspiram o medo; olha de cima, desafia e esmaga os poderes do terror e tudo que levaria nossa liberdade sob o jugo. Mas os “estudos liberais” fortalecem essa virtude? A lealdade é o bem mais sagrado do coração humano; é impossível ser forçada a traição, e é subornada por nenhuma recompensa. A lealdade clama: “Queime-me, mate-me, destrua-me! Não vou trair a minha confiança, e quanto mais a tortura procurar encontrar o segredo, mais profundo no meu coração, eu o enterrarei!” As “artes liberais” podem produzir esse espírito dentro de nós? Temperança controla nossos desejos; alguns odeia e espanta, outros rege e restaura a uma medida saudável, nem se aproxima de nossos desejos por seu próprio interesse. Temperança sabe que a melhor medida dos apetites não é o que você quer tomar, mas o que você deve tomar.

30. A bondade proíbe que você sobrecarregue seus associados, e ela proíbe que você seja prepotente. Em palavras e em ações e em sentimentos, ela se mostra gentil e atenciosa com todos os homens. Não contabiliza nenhum mal como outro apenas. E a razão pela qual ela ama o seu bem próprio é principalmente porque algum dia será o bem de outro. Os “estudos liberais” ensinam um caráter desse? Não; Não mais do que ensinam simplicidade, moderação e autocontrole, frugalidade e economia, e essa bondade que poupa a vida de um vizinho como se fosse própria e sabe que não é correto o homem desperdiçar o uso de seus semelhantes.

31. “Mas,” diz-se, “porque você declara que a virtude não pode ser alcançada sem os ‘estudos liberais’, como é que você nega que eles ofereçam alguma ajuda à virtude?” Porque você também não pode alcançar a virtude sem comida; e, no entanto, a comida não tem nada a ver com a virtude. A madeira não oferece assistência a um navio, embora um navio não possa ser construído sem madeira. Não há razão, eu digo, para que você pense que qualquer coisa é feita com a assistência daquilo com a qual não possa ser feita.

32. Podemos até mesmo afirmar que é possível alcançar a sabedoria sem os “estudos liberais”; pois, embora a virtude seja uma coisa que deva ser aprendida, não é aprendida por meio desses estudos. Que motivo tenho, no entanto, para supor que alguém que ignore as letras nunca será um homem sábio, já que a sabedoria não pode ser encontrada em letras? A sabedoria comunica fatos e não palavras; e pode ser verdade que a memória é mais confiável quando não tem suporte externo.

33. A sabedoria é uma coisa grande e espaçosa. É necessário muito espaço livre. É preciso aprender sobre coisas divinas e humanas, o passado e o futuro, o efêmero e o eterno; e é preciso aprender sobre o tempo. Veja quantas questões surgem somente sobre o tempo: em primeiro lugar, se é algo em si e por si só; em segundo lugar, se existe alguma coisa antes do tempo ou sem o tempo; e novamente, o tempo começou com o universo, ou, porque havia algo antes do início do universo, o tempo também já existia?

34. Há inúmeras questões sobre a alma: de onde vem, qual é a sua natureza, quando começa a existir e quanto tempo existe; se ela passa de um lugar para outro e muda sua habitação, sendo transferida sucessivamente de uma forma de animal para outra, ou se é escrava apenas uma vez, vagando pelo universo depois que é liberada; seja ela corpórea ou não; o que será dela quando deixar de nos usar como meio; como usará sua liberdade quando escapar da presente prisão; se esquecerá todo o seu passado, e nesse momento começa a se conhecer quando, liberada do corpo, se retira para o céu.

35. Assim, seja qual for a fase das coisas humanas e divinas que você tenha apreendido, você ficará cansado pelo grande número de coisas a serem respondidas e coisas a serem aprendidas. E para que esses sujeitos múltiplos e poderosos possam ter entretenimento gratuito em sua alma, você deve remover de lá todas as coisas supérfluas. A virtude não se renderá a esses limites estreitos; um grande assunto precisa de um amplo espaço para se mover. Deixe que todas as outras coisas sejam expulsas, e deixe o peito ser esvaziado para receber a virtude.

36. “Mas é um prazer estar familiarizado com muitas artes”. Portanto, deixe-nos manter apenas o essencial delas. Você considera culpado, o homem que coloca as coisas supérfluas no mesmo pé das coisas úteis, e em sua casa faz uma exibição pródiga de objetos caros, mas não considera errado quem se permitiu absorver o mobiliário do aprendizado inútil? Esse desejo de saber mais do que o suficiente é uma espécie de intemperança.

37. Por quê? Como essa busca indecorosa das artes liberais torna os homens maçantes, prolixos, sem tato, chatos auto-satisfeitos, que não conseguem aprender o essencial apenas porque aprenderam o não essencial. Dídimo Calcêntero[16], o erudito, escreveu quatro mil livros. Eu deveria sentir pena por ele se ele tivesse lido apenas o mesmo número de volumes supérfluos. Nesses livros, ele investiga o local de nascimento de Homero, quem era realmente a mãe de Eneias, se Anacreonte era mais um libertino ou mais um bêbado, se Safo era uma prostituta e outros problemas, as respostas para as quais, se encontradas, eram imediatamente esquecidas. Convenhamos, não me diga que a vida é longa!

38. Não, quando você considera nossos próprios compatriotas também, posso mostrar-lhe muitas obras que deveriam ser cortadas com o machado. É o custo de um vasto gasto de tempo e de grande desconforto para os ouvidos dos outros que ganhamos tanto elogio como este: “Que homem culto você é!” Deixe-nos contentar com esta recomendação, menos urbana que seja: “Que homem bom você é!

39. Quero realmente dizer isso? Bem, você teria que desenrolar os anais da história do mundo e tentar descobrir quem primeiro escreveu poesia. Ou, na ausência de registros escritos, devo fazer uma estimativa do número de anos entre Orfeu e Homero? Ou devo fazer um estudo sobre as escritas absurdas de Aristarco[17], onde ele plagiou o texto dos versos de outros homens e gastar minha vida nas sílabas? Deveria então revestir-me na poeira dos geómetras[18]? Até agora esqueci essa serra útil? Economizei seu tempo? Preciso saber essas coisas? E o que posso escolher para não saber?

40. Apião, o erudito, que atraiu multidões para suas palestras em toda a Grécia nos dias de Caio César e foi aclamado homérico por todos os estados, costumava defender que Homero, quando terminou seus dois poemas, a Ilíada e a Odisseia, acrescentou um poema preliminar ao seu trabalho, onde abraçou toda a guerra de Tróia. O argumento que Apião aduziu para provar esta afirmação foi que Homero introduziu intencionalmente na primeira linha duas letras que continham uma chave para o número de seus livros.

41. Um homem que deseja saber muitas coisas deve conhecer coisas como essas, e não deve pensar em todo o tempo que perde por saúde, deveres públicos, deveres privados, deveres diários e sono. Aplique a régua aos anos de sua vida; eles não têm espaço para todas essas coisas.

42. Tenho falado até agora de estudos liberais; mas pense quanto de matéria supérflua e pouco prática que os filósofos contêm! Por sua própria conta, eles também se rebaixam para estabelecer boas divisões de sílabas, para determinar o verdadeiro significado de conjunções e preposições; eles têm inveja dos estudiosos, inveja dos matemáticos. Eles passaram a usar em sua própria arte todas as superfluidades dessas outras artes; o resultado é que eles sabem mais sobre falar meticulosamente do que sobre uma vida meticulosa.

43. Deixe-me dizer-lhe quais males são devidos a uma exagerada exatidão, e que inimigo é da verdade! Protágoras declara que se pode tomar qualquer lado em qualquer questão e debatê-la com igual sucesso – mesmo nesta nossa questão, que qualquer assunto pode ser debatido de qualquer ponto de vista. Nausífanes[19] sustenta que, nas coisas que parecem existir, não há diferença entre existência e não-existência.

44. Parmênides sustenta que nada existe de tudo isso que parece existir, exceto o universo exclusivamente. Zenão de Eleia removeu todas as dificuldades removendo uma; pois ele declara que não existe nada. As escolas Pirrônica[20], Megárica[21], Eretrian[22] e Acadêmica estão empenhadas praticamente na mesma tarefa; elas introduziram um novo conhecimento, o não-conhecimento.

45. Você pode varrer todas essas teorias com as tropas supérfluas de estudos “liberais”; uma classe de homens me dá um conhecimento que não servirá de nada, a outra classe acabou com qualquer esperança de alcançar o conhecimento. É melhor, é claro, conhecer coisas inúteis do que não saber nada. Um conjunto de filósofos não oferece luz para que eu possa dirigir meu olhar para a verdade; o outro arranca meus próprios olhos e me deixa cego. Se eu seguir Protágoras, não há nada no esquema da natureza que não seja duvidoso; se eu me segurar com Nausífanes, tenho certeza apenas disso – de que tudo é incerto; se com Parmênides, não há nada exceto o Um; se com Zenão, não existe nem o Um.

46. O que somos, então? O que se torna de todas essas coisas que nos cercam, nos apoiam, nos sustentam? O universo inteiro é então uma sombra vã ou enganosa. Não posso prontamente dizer se estou mais contrariado com aqueles que querem que não conheçamos nada, ou com aqueles que não nos deixariam até mesmo esse privilégio.Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] O círculo regular de educação, incluindo gramatica, música, geometria, aritmética, astrologia e certas fases de retórica e dialética, é colocado em contraste com estudos liberais – aqueles que têm como objeto a busca da virtude. Sêneca interpreta “studia liberalia” em um senso superior do que o esperado por seu contemporâneo.

[2] Grammaticus em grego clássico significa “um que está familiarizado com o alfabeto”; na era de Alexandre, um “aluno da literatura”; na era romana o equivalente a litteratus. Sêneca usa aqui como “especialista em ciência linguística”.

[3] Ou seja, a filosofia.

[4] Esta teoria foi aprovada por Demócrito, Hípias de Élis e os intérpretes alegóricos; Xenófanes, Heráclito e Platão condenaram Homero por suas supostas fabricações não filosóficas.

[5] Referência ao episódio em que Calipso oferece a Ulisses a imortalidade, que o herói rejeita. Ver (Odisseia, V, 206

[6] A ilha de Calipso seria um verdadeiro “jardim de Epicuro” (Odisseia, V, 63.); assim como a vida no palácio de Alcínoco (Odisseia, IX, 5.)

[7] “tripartição dos bens” é mencionada em Ilíada, XXIV, 376-7: entre bens do corpo, bens do espírito e bens externos.

[8] Hécuba, na mitologia grega e romana, é mulher de Príamo e mãe de dezenove filhos, entre os quais se contam Heitor, Páris e Cassandra.

[9] Patroclos ou Pátroklos (em grego: Πάτροκλος, “glória do pai”) é um dos personagens centrais da Ilíada, primo e às vezes considerado amante de Aquiles.

[10] Trecho de Georgicas, v. I, de Virgílio.

[11] Saturno e Marte eram consideradas estrelas desafortunadas. Astrologia, que remonta além de 3000 aC. na Babilônia, foi desenvolvida pelos gregos da era de Alexandre e conseguiu um ponto de apoio em Roma, floresceu no século II aC.

[12] Trecho de Georgicas, v. I, de Virgílio. “ignis caeli Cyllenius” é o planeta Mercúrio.

[13] Medicamento usado para provocar o vômito. Os eméticos servem para que o estômago se livre de venenos ou de alimentos que o estejam irritando. Eram usados após banquetes em Roma.

[14] Referidas por Sêneca no início da carta, ou seja, gramática, música, matemática e astronomia.

[15] De acordo com o direito romano, superficies solo cedit, “o prédio vai com o solo”.

[16] Dídimo Calcêntero ou Dídimo de Alexandria (em grego: Διδύμος χαλκέντερος) foi um gramático grego que viveu em Alexandria. Junto a outros quatro gramáticos de Alexandria, nomeadamente Aristônico, Seleuco e Filoxeno, dedicou-se ao estudo dos textos de Homero.

[17] Aristarco da Samotrácia (falecido ca. 144 a.C.) foi um gramático e filólogo Grécia Antiga, pertencente à escola alexandrina, O mais célebre dos seus gramáticos alexandrinos, autor de edições famosas de Homero, Hesíodo e outros poetas.

[18] Os geómetras resolviam os seus problemas desenhando numa superfície coberta de areia as figuras que estudavam

[19] Nausífanes (c. 325 a.C.), nativo de Téos, era ligado à filosofia de Demócrito e seguidor de Pirro de ÉlisTinha um grande número de seguidores, e foi particularmente famoso como retórico. Epicuro foi um dos seus ouvintes, mas insatisfeito com ele, teve uma posição hostil nos seus escritos.

[20] Pirronismo também conhecido como ceticismo pirrônico, foi uma tradição da corrente filosófica do ceticismo fundada por Enesidemo de Cnossos no século I d.C., e registrada por Sexto Empírico no século III. Toma o seu nome de Pirro de Élis, um cético que viveu cerca de 360 a 270 a.C. “Nada pode ser conhecido, nem mesmo isto”.

[21] Escola Megárica foi uma escola filosófica fundada por Euclides de Mégara, combinava as teorias do eleatas e dos socráticos.

[22] A escola de filosofia Eretriana era originalmente Escola de Elis, onde havia sido fundada por Fédon de Elis; Foi posteriormente transferida para Eretria por seu aluno Menedemus.

Carta 87: Alguns argumentos em favor da vida simples

Na carta 87 Sêneca retoma o debate sobre a natureza da riqueza, defendendo o princípio estoico que é um “indiferente“, ou seja, nem um bem nem um mal em si mesmo.

Começa contando uma anedota pessoal, de uma viajem feita sem luxos, onde dormiu no chão e as refeições eram pão e figos secos, e mesmo assim diz ter sido uma viagem muito feliz, que o fez perceber que:

quanto do que nós possuímos é supérfluo; temos tantas coisas de que nem sentiríamos a falta se delas fossemos privados pela força das circunstâncias.” (LXXXVII, 1)

A carta é longa, mas muito interessante, debate a posição dos peripatéticos, ou seja, dos seguidores de Aristóteles em oposição à escola estoica sobre o valor da riqueza, e se ela é uma virtude ou vício.

O assunto é atual e a resposta de Sêneca não poderia ser mais apropriada:

“Se alguma vez tivermos muito tempo livre, investigaremos a questão: qual é a essência da riqueza e qual a essência da pobreza; mas quando chegar a hora, também devemos considerar se não é melhor tentar mitigar a pobreza, e aliviar a riqueza de sua arrogância, do que discutir as palavras como se a questão, das coisas já estivessem decididas.” ( LXXXVII, 40)

imagem: Relevo romano em terra cotta do primeiro século – Museu Britânico.


LXXXVII. Alguns argumentos em favor da vida simples

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. “Eu era um náufrago antes de subir a bordo[1]”. Não vou acrescentar como isso aconteceu, para que não considere isso também como outro dos paradoxos estoicos; e, no entanto, sempre que estiver disposto a ouvir, ou melhor, mesmo que não esteja disposto, demonstrarei que essas palavras não são falsas, nem tão surpreendentes como se pensa à primeira vista. Entretanto, a viagem me mostrou isso: quanto do que nós possuímos é supérfluo; temos tantas coisas de que nem sentiríamos a falta se delas fossemos privados pela força das circunstâncias.

2. Meu amigo Máximo e eu passamos um período muito feliz de dois dias, levando conosco muito poucos escravos – apenas os que cabiam em uma carruagem – e nenhuma parafernália, exceto o que usamos em nossos corpos. O colchão jaz ao chão, e eu sobre o colchão. Há duas mantas – uma espalhada no solo e uma para nos cobrir.

3. Nada poderia ser subtraído do nosso almoço; não demorou mais de uma hora para preparar, e não estávamos destituídos de figos secos, nunca sem tabuleta de escrita. Se eu tenho pão, eu uso figos como um deleite; se não, considero os figos como um substituto do pão. Por isso, eles me trazem um banquete de Ano Novo todos os dias, e faço o Ano Novo feliz e próspero pelos bons pensamentos e grandeza da alma; pois a alma nunca é maior do que quando deixa de lado todas as coisas externas, e assegura a paz por si mesmo, sem temer nada, e é rica por não desejar riquezas.

4. O veículo no qual tomei meu lugar é uma carroça de agricultor. Apenas caminhando as mulas mostram que estão vivas. O cocheiro está descalço, e não porque é verão. Não consigo me forçar a desejar que outros considerem que esta minha carroça seja minha. O meu constrangimento com a verdade ainda resiste, veja você; e sempre que nos encontramos com um grupo mais suntuoso, ruborizo-me involuntariamente – prova de que essa conduta que eu aprovo e aplaudo ainda não ganhou uma habitação firme e resoluta dentro de mim. Aquele que se ruboriza em andar em uma carripana[2] se vangloriará quando passear com estilo.

5. Então, meu progresso ainda é insuficiente[3]. Ainda não tenho a coragem de reconhecer a minha frugalidade. Ainda estou incomodado com o que outros viajantes pensam de mim. Mas, em vez disso, eu realmente deveria ter pronunciado uma opinião contra aquilo em que a humanidade acredita, dizendo: “Você está louco, você está enganado, sua admiração se dedica a coisas supérfluas! Você não estima nenhum homem em seu valor real. Quando a propriedade é considerada, você avalia com o cálculo mais escrupuloso aqueles a quem você deve emprestar dinheiro ou benefícios, pois você incorpora benefícios também como pagamentos em seu livro caixa.”

6. Você diz: “Seu patrimônio é amplo, mas suas dívidas são grandes”. “Ele tem uma bela casa, mas ele construiu com capital emprestado”. “Nenhum homem exibirá um séquito mais brilhante de última hora, mas ele não pode quitar suas dívidas”. “Se pagar seus credores, ele não terá mais nada”. Então, você também deve se sentir obrigado a fazer o mesmo em todos os outros casos – descobrir por eliminação a quantidade de bens reais de cada homem.

7. Suponho que você chame um homem rico apenas porque leva consigo seu peitoral de ouro, mesmo em suas viagens, porque planta terras em todas as províncias, porque desenrola um grande livro-caixa, porque possui propriedades perto da cidade tão grande que os homens invejariam seus bens nas terras distantes da Apúlia[4]. Mas depois de ter mencionado todos esses fatos, ele é pobre. E porque? Ele está em dívida. “Até que ponto?” Você pergunta. Por tudo o que ele tem. Ou por acaso você pensa que importa se alguém emprestou de outro homem ou da Fortuna?

8. Que bem há em mulas gordas, todas da mesma cor? Para quê essas carruagens com baixos relevos em metal?

Corceis recobertos de púrpura, e coloridos panejamentos: são em ouro os arreios que lhes pendem sobre o peito, e, de ouro cobertos, é de ouro fulvo ainda o freio que mordemInstratos ostro alipedes pictisque tapetis, Aurea pectoribus deraissa monilia pendent, Tecti auro fulvom mandunt sub dentibus aurum.[5]

Nem o mestre nem a mula são melhorados por esses ornamentos.

9. Marco Catão, o Censor, cuja existência ajudou o Estado tanto quanto Cipião – pois enquanto Cipião lutou contra nossos inimigos, Catão lutou contra nossa má moral – costumava montar um burro e um burro daquele que carregava bolsas de sela contendo as necessidades do mestre. O como eu gostaria de vê-lo encontrar hoje na estrada um dos nossos janotas, com seus batedores e Numídios, e uma grande nuvem de poeira antes dele! Seu janota, sem dúvida, parece refinado e bem atendido em comparação com Marco Catão, seu janota, que, no meio de toda sua luxuosa parafernália, se preocupa principalmente com a espada ou com a faca de caça[6].

10. Que glória aos tempos em que vivia, pois, um general vitorioso, um censor e o que é mais notável de todos, um Catão, se contentava com um único pangaré, e com menos que um pangaré inteiro já que uma parte do animal era ocupada pela bagagem que pendia em ambos os lados. Você não preferiria, portanto, o corcel de Catão, aquele corcel único, selado pelo próprio Catão, ao séquito inteiro de póneis roliços, garanhões trotadores do janota?

11. Eu vejo que não haverá fim em lidar com esse tema, a menos que eu acabe com ele. Então, eu vou ficar em silêncio, pelo menos com referência a coisas supérfluas como estas; sem dúvida, o homem que primeiro as chamou de “impedimentos[7]“ teve uma suspeita profética de que seriam o tipo de coisa que agora são. No presente, gostaria de entregar-lhe os silogismos, ainda poucos, pertencentes à nossa escola sobre a questão da virtude, o que, em nossa opinião, é suficiente para a vida feliz.

12. “O que é bom faz os homens serem bons. Por exemplo, o que é bom na arte da música faz o músico. Mas os acontecimentos fortuitos não fazem um homem bom, portanto, os eventos de fortuna não são bens”. Os Peripatéticos respondem a isso dizendo que a premissa é falsa; que os homens, não em todos os casos, se tornam bons por meio do que é bom; que na música há algo de bom, como uma flauta, uma harpa ou um órgão adequado para acompanhar o canto; Mas que nenhum desses instrumentos faz o músico.

13. Devemos então responder: “Você não entende em que sentido usamos a frase ‘o que é bom na música’. Pois não queremos dizer o que equipa o músico, mas o que faz o músico, você, no entanto, está se referindo aos instrumentos da arte e não à arte propriamente. Se, no entanto, qualquer coisa na arte da música é boa, isso em todos os casos fazer o músico “.

14. E gostaria de colocar esta ideia ainda mais claramente. Definimos o bem na arte da música de duas maneiras: o que faz de um músico um executante, por outro, o que faz dele um artista. Agora, os instrumentos musicais têm a ver com sua performance, como flautas e órgãos e harpas; mas eles não têm que ver com a própria arte do músico. Pois ele é um artista mesmo sem eles; talvez ele esteja em falta com a habilidade de praticar sua arte. Mas o bem no homem não é duplo no mesmo modo; pois o bem do homem e o bem da vida são os mesmos.

15. “O que pode entrar na posse de qualquer homem, não importa o quão vil ou desprezado possa ser, não é um bem. Mas a riqueza vem ao cafetão e ao treinador de gladiadores, portanto, a riqueza não é um bem.” “Outra premissa errada”, dizem eles, “porque notamos que os bens entram na posse do homem mais vil, não só na arte do erudito, mas também na arte da cura ou na arte de navegar”.

16. Essas artes, no entanto, não fazem nenhuma declaração solene de grandeza da alma; elas não se levantam em nenhuma altura nem franzem o cenho sobre o que a fortuna pode trazer. É a virtude que levanta o homem e coloca-o superior ao que os mortais consideram caro; A virtude não anseia demais nem teme ao excesso o que é chamado de bem ou o que se chama de mau. Quelidon, um dos eunucos de Cleópatra, possuía uma grande riqueza; e ainda recentemente Natal – um homem cuja língua era tão sem vergonha quanto suja, um homem cuja boca empreendia os mais torpes ofícios – foi o herdeiro de muitos e também fez muitos herdeiros dele. O que então? Foi o dinheiro dele que o deixou impuro, ou ele próprio manchava seu dinheiro? O dinheiro cai nas mãos de certos homens assim como um denário[8] rola pelo esgoto.

17. A virtude está acima de todas essas coisas. É avaliada em moeda de sua própria cunhagem; e não considera que nenhum desses ganhos aleatórios sejam um bem. Mas a medicina e a navegação não proíbem a si e a seus seguidores de se maravilharem com essas coisas. Aquele que não é um homem bom pode, no entanto, ser um médico, um piloto ou um erudito, sim, tanto quanto pode ser um cozinheiro! Aquele que possui algo que não é de ordem aleatória, não pode ser chamado de tipo aleatório de homem: uma pessoa é do mesmo tipo do que possui.

18. Uma caixa forte vale apenas o que detém; ou melhor, é um mero acessório do que detém. Quem estabeleceu algum preço em uma carteira cheia, exceto o preço estabelecido pela contagem do dinheiro depositado na mesma? Isso também se aplica aos proprietários de grandes propriedades: são apenas acessórios e suplementos para suas posses. Por que, então, o homem sábio é grandioso? Porque ele tem uma grande alma. Consequentemente, é verdade que o que está ao alcançe mesmo da pessoa mais desprezível não é um bem.

19. Assim, nunca deveríamos considerar a passividade como um bem; pois mesmo a rã e a pulga possuem essa qualidade. Também não devemos considerar o ócio e a liberdade como um bem; pois o que é mais ocioso do que um verme? Você pergunta o que é que produz o homem sábio? O mesmo que produz um deus. Você deve admitir que o sábio tenha nele um elemento de piedade, santidade, grandeza. O bem não vem para todos, nem permite que qualquer pessoa aleatória o possua.

20. Observe:

Quais frutos cada país carrega ou não suportará; Aqui o milho, e lá a videira, ficam mais ricos. E em outros lugares ainda a arvore tenra e a grama espontaneamente vêm-se em verde. Veja como Tmolo envia seus perfumes de açafrão, E o marfim vem da Índia; os moles Sabeus enviam seu incenso e os Cálibes nus o ferro?.Et quid quaeque ferat regio et quid quaeque recuset: Hic segetes, illic veniunt felicius uvae. Arborei fetus alibi atque iniussa virescunt Graraina. Nonne vides, croceos ut Tmolus odores, India mittat ebur, molles sua tura Sabaei?  At Chalybes nudi ferrum.[9]

21. Estes produtos são divididos em países separados, a fim de que os seres humanos possam ser forçados a negociar entre si, cada um buscando algo de seu vizinho, por sua vez. Assim, o Bem Supremo também possui sua própria morada. Não cresce onde o marfim cresce, ou o ferro. Você pergunta onde o bem supremo mora? Na alma. E a menos que a alma seja pura e sagrada, não há espaço para o divino.

22. “O bem não resulta do mal. Mas as riquezas resultam da ganância, portanto, as riquezas não são boas”. “Não é verdade”, eles dizem, “que o bem não resulta do mal. Porque o dinheiro vem do sacrilégio e do roubo. Assim, embora o sacrilégio e o roubo sejam malignos, são maus apenas porque criam mais mal do que bem. Eles trazem ganho, mas o ganho é acompanhado pelo medo, ansiedade e tortura da mente e do corpo“.

23. Quem diz isso deve necessariamente admitir que o sacrilégio, apesar de ser um mal, porque cria muito mal, é ainda parcialmente bom, porque realiza uma certa quantidade de bem. O que pode ser mais monstruoso do que isso? Nós certamente convencemos o mundo de que o sacrilégio, o roubo e o adultério devem ser considerados como bens. Quantos homens há que não se envergonham do roubo, quantos se vangloriam de ter cometido adultério! Pois o sacrilégio insignificante é punido, mas o sacrilégio em grande escala é homenageado por uma procissão triunfal.

24. Além disso, o sacrilégio, se é totalmente bom em algum aspecto, também será honrado e será chamado de conduta correta; pois é uma conduta que nos interessa. Mas nenhum ser humano, em consideração séria, admite essa ideia. Portanto, bens não podem surgir do mal. Pois, se você se opuser, o sacrilégio é um mal pela única razão que traz muito mal, se você absolver o sacrilégio de sua punição e prometer imunidade, o sacrilégio será totalmente bom. E, no entanto, a maior punição para o crime, contudo, reside no próprio crime.

25. Você está enganado, eu afirmo, se propõe reservar suas punições para o carrasco ou a prisão; o crime é punido imediatamente após o ser cometido; ou melhor, no momento em que é cometido. Portanto, o bem não brota do mal, não mais do que os figos crescem das oliveiras. As coisas que crescem correspondem à sua semente; e os bens não podem se afastar da sua classe. Como o que é honorável não cresce a partir daquilo que é vil, então tampouco o bem cresce do mal. Pois os honoráveis e os bons são idênticos.

26. Certos membros de nossa escola se opõem a esta declaração da seguinte maneira: “Suponhamos que dinheiro obtido de qualquer fonte seja bom, mesmo que seja tomado por um ato de sacrilégio, o dinheiro não por essa razão deriva sua origem do sacrilégio. Você pode entender o que quero dizer através da seguinte ilustração: na mesma botija há um pedaço de ouro e há uma serpente. Se você pegar o ouro da botija, não é apenas porque a serpente também está, eu digo, que a botija me produz o ouro – porque também contém a serpente – mas cede o ouro, apesar de conter a serpente também. Igualmente, ganhos resultam do sacrilégio, não apenas porque o sacrilégio é um ato vil e maldito, mas porque contém ganho também. Como a serpente na botija é um mal, e não o ouro que fica ali, ao lado da serpente, então, em um ato de sacrilégio, é o crime, não o lucro, que é o mal”.

27. Mas eu me distingo desses homens; pois as condições em cada caso não são iguais. Em um caso, eu posso pegar o ouro sem a serpente, na outra, não posso ter o lucro sem cometer o sacrilégio. O ganho no último caso não está lado a lado com o crime; está indissociavelmente ligado com o crime.

28. “Aquilo que, enquanto desejamos alcançá-lo, envolve-nos em muitos males, não é um bem. Mas enquanto desejamos alcançar riquezas, nos envolvemos em muitos males, portanto, as riquezas não são um bem”, “Sua primeira premissa”, eles dizem, “contém dois significados: um é: nos envolvemos em muitos males enquanto desejamos alcançar riquezas. Mas também nos envolvemos em muitos males enquanto desejamos alcançar a virtude. Um homem, enquanto viaja para levar a cabo seus estudos, sofre naufrágio e outro é levado em cativeiro.

29. O segundo significado é o seguinte: aquilo através pelo qual nos envolvemos em males não é um bem. E não fluirá por lógica do nosso teorema que nos tornamos envolvidos nos males através das riquezas ou do prazer, caso contrário, se é através das riquezas que nos envolvemos em muitos males, as riquezas não só não são boas, mas são positivamente um mal. Você, no entanto, defende apenas que não são um bem. Além disso, o antagonista diz, você concede que as riquezas são de alguma utilidade. Você as conta entre as vantagens; e, ainda assim, não podem ser uma vantagem, pois é através da busca por riquezas que sofremos muitas desvantagens”.

30. Alguns homens respondem a esta objeção da seguinte maneira: “Você está enganado se atribuir desvantagens à riqueza. As riquezas não ferem ninguém; é a própria loucura de um homem, ou a iniquidade do seu vizinho, que o prejudica em cada caso, assim como uma espada por si só não mata; é apenas a arma usada pelo assassino. As próprias riquezas não o prejudicam, apenas por causa da riqueza é que você sofre danos”.

31. Eu penso que o raciocínio de Posidônio[10] é melhor: ele sustenta que as riquezas são uma causa do mal, não porque, por si mesmas, façam algum mal, mas porque encaminham os homens para que estejam prontos para fazer o mal. Pois o motivo eficiente, que necessariamente causa danos imediatamente, é uma coisa, e o motivo antecedente é outra. É essa causa antecedente que é inerente às riquezas; elas incham o espírito e engendram o orgulho, elas provocam impopularidade e perturbam a mente até tal ponto que a mera reputação de ter riqueza, embora devesse nos prejudicar, no entanto, oferece prazer.

32. Todos os bens, no entanto, deveriam ser livres de culpa; eles são puros, eles não corrompem o espírito, e eles não nos tentam. Eles, de fato, levantam e ampliam o espírito, mas sem infla-lo. As coisas que são bens produzem confiança, mas as riquezas produzem desprezo. As coisas que são bens nos dão grandeza de alma, mas a riqueza nos dá arrogância. E a arrogância não é senão uma falsa exibição de grandeza.

33. “De acordo com esse argumento”, diz ele: “as riquezas não são apenas um não bem, mas são um mal positivo”. Agora, elas seriam um mal se elas próprias causassem o mal, e se, como observei, fossem causa eficiente inerente a ele; na verdade, no entanto, é a causa antecedente que é inerente às riquezas, e, de fato, é essa a causa que, longe de simplesmente despertar o espírito, realmente o arrasta pela força. Sim, a riqueza derrama sobre nós uma aparência de bem, que é como a realidade e ganha credibilidade aos olhos de muitos homens.

34. A causa antecedente também é inerente em virtude; é isso que traz inveja – pois muitos homens se tornam impopulares por causa de sua sabedoria e muitos homens por causa de sua justiça. Mas essa causa, embora seja inerente à virtude, não é o resultado da própria virtude, nem é uma mera aparência da realidade; e, pelo contrário, muito mais similar à realidade é aquela visão que é exibida pela virtude sobre os espíritos dos homens, convocando-os a amá-la e se maravilhar com isso.

35. Posidônio pensa que o silogismo deve ser enquadrado na seguinte forma: “coisas que não conferem à alma grandeza ou confiança ou liberdade não são bens. Mas a riqueza, a saúde e condições semelhantes não fazem isso, portanto, riquezas e saúde não são bens“. Este silogismo, então, continua a se estender ainda mais da seguinte maneira: “As coisas que conferem à alma nenhuma grandeza ou confiança ou liberdade, mas, por outro lado, criam nela arrogância, vaidade e insolência, são males. As coisas que são presentes da Fortuna nos conduzem a esses caminhos do mal. Portanto, essas coisas não são bens“.

36. “Mas”, diz o objetor, “por tal raciocínio, as coisas que são presente da Fortuna nem sequer serão vantagens”. Não, as vantagens e os bens estão em uma situação diferente. Uma vantagem é aquilo que contém mais utilidade do que inconveniência. Mas um bem deve ser puro e sem nenhum elemento de nocividade. Uma coisa não é boa se contiver mais benefícios do que lesões, mas apenas se não contém nada além de benefício.

37. Além disso, as vantagens podem ser predicados de animais, de homens que são menos do que perfeitos e de tolos. Portanto, o vantajoso pode ter um elemento de desvantagem misturado com ele, mas a palavra “vantajosa” é usada do composto porque é julgada pelo seu elemento predominante. O bem, no entanto, somente pode ser predicado do homem sábio; é obrigado a ser puro, sem mistura.

38. Tenha bom ânimo; há apenas um nó para você desembaraçar, embora seja um nó para um Hércules: “O bem não resulta do mal. Mas as riquezas resultam de numerosos casos de pobreza, portanto, as riquezas não são boas”. Este silogismo não é reconhecido pela nossa escola, mas os Peripatéticos o criaram e deram sua solução. Posidônio, no entanto, observa que esta falácia, que tem sido discutida entre todas as escolas da dialética, é refutada por Antípatro[11] da seguinte maneira:

39. “A palavra ‘pobreza’ é usada para denotar, não a posse de algo, mas a não-possessão ou, como os antigos colocaram, privação, (pois os gregos usam a frase ‘por privação’, com o significado de ‘negativamente’”). ‘Pobreza’ afirma, não o que um homem tem, mas o que ele não tem. Consequentemente, não pode haver plenitude resultante de uma infinidade de vazios, muitas coisas positivas, e não muitas deficiências, compõem riquezas”. “Você tem”, diz ele, “uma noção errada do significado do que é a pobreza. Pois a pobreza não significa a posse de pouco, mas a falta de posse de muito, é usada, portanto, não para o que um homem tem, mas para o que ele não tem”.

40. Posso expressar minha tese mais facilmente se houvesse uma palavra em latim que pudesse traduzir a palavra grega que significa “ανύπαρκτο” (inexistência). Antípatro atribui essa qualidade à pobreza, mas, por minha parte, não consigo ver o que mais é a pobreza do que a posse de pouco. Se alguma vez tivermos muito tempo livre, investigaremos a questão: qual é a essência da riqueza e qual a essência da pobreza; mas quando chegar a hora, também devemos considerar se não é melhor tentar mitigar a pobreza, e aliviar a riqueza de sua arrogância, do que discutir as palavras como se a questão, das coisas já estivessem decididas.

41. Suponhamos que fomos convocados para uma assembleia; uma lei sobre a abolição das riquezas foi apresentada perante o grupo. Devemos apoiá-la, ou nos opor, se usarmos esses silogismos? Será que esses silogismos nos ajudam a fazer com que o povo romano exija a pobreza e a elogie a pobreza  – o fundamento e a causa de seu poderio! – e, por outro lado, encolher-se-ão com medo da riqueza atual, refletindo que eles a descobriram entre as vítimas de suas conquistas, que a riqueza é a fonte da qual a politica, o suborno e a desordem irromperam por uma cidade, uma vez caracterizada pelo maior escrúpulo e sobriedade, e que, por causa da riqueza, uma exposição muito esbanjadora é feita dos despojos das nações conquistadas. Refletindo, finalmente, que tudo o que um povo arrancou de todo o resto ainda pode ser mais facilmente arrebatado de um indivíduo? Não, seria melhor apoiar esta lei por nossa conduta e subjugar nossos desejos por agressão direta ao invés de rodeá-los pela lógica. Se pudermos, falemos com mais ousadia; se não, vamos falar mais francamente.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] isto é, na minha jornada, viajei com equipamento quase tão escasso como os de um náufrago.

[2] Veículo velho ou de má qualidade

[3] Sêneca, está longe de se considerar a si mesmo um sábio (sapiens); com modéstia ele se considera um homem que sabe qual a meta ideal a atingir, e para caminha neste rumo com empenho, sabendo  que ainda falta muito a percorrer. Ele tem-se por proficiens.

[4] É a região mais oriental de Itália. A sua parte mais a sul, a península de Salento, constitui o chamado “salto da bota italiana”.

[5] Trecho de Virgílio, Eneida, VII, descrevendo os presentes enviados pelo rei Latinus.

[6] Ou seja, atuar como gladiador ou caçador de feras. Crítica de Sêneca a sociedade da época: não era raro aristocratas que, por esnobismo, decidiam exibir-se no circo (ver, carta XCIX, 13). A paixão pelos espectáculos levou Nero a atuar no Circo Máximo como condutor de quadrigas (Suetônio, Nero XXII e Juvenal, II, 143). Até as mulheres participavam, por vezes, como a Mévia que caçava javalis na arena, conforme diz o mesmo Juvenal (I, 22-3).

[7] Do latim “impedimenta”, cujo significado literal é bagagem

[8] Moeda de baixo valor.

[9] Trecho de Geórgicas, I, 53-58, de Virgílio.

[10] Posidônio  (c. 135 a.C. – ca. 51 a.C.) foi um político, astrônomo, geógrafo, historiador e filósofo estoico grego. Ver Diógenes Laércio, Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres – Livro VII

[11] Antípatro de Tarso (em grego: Ἀντίπατρος; morto em 130/129 a.C.) foi um filósofo estoico, discípulo e sucessor de Diógenes da Babilônia na escola estoica além de professor de Panécio de Rodes.

Carta 86: Sobre a Vila de Cipião

Na carta 86 temos outro fantástico relato da vida romana, com o paralelo entre os costumes da época de Sêneca, no Século I com a época de Cipião Africano, quase 3 séculos antes.

A carta critica o hedonismo da época de Sêneca e mostras como os romanos eram mais fortes e resistentes no passado. Nesse relato, vemos como o império romano era desenvolvido, pois os comentários de Sêneca sobre 200 anos no passado poderiam ser repetidos igualmente por qualquer morador do ocidente:

“Amigo, se você fosse mais sábio, você saberia que Cipião não se banhava todos os dias. É afirmado por aqueles que nos relatam os costumes da Roma antiga que os romanos lavavam apenas os braços e as pernas diariamente – porque esses eram os membros que reuniam a sujeira em seu trabalho diário – e banhavam-se completamente uma vez por semana. Aqui alguém replicará: “Sim, eram indivíduos evidentemente muito sujos! Como eles deveriam ter cheirado!” Mas eles cheiravam à batalha, à fazenda e ao heroísmo.” (LXXXVI, 12)

Na parte final Sêneca aborda técnicas de agricultura sobre cultivo de oliveiras, monstrando seu amor pela ciência e tecnologia.

(imagem: Cipião Africano Libertando Massiva por Giovanni Battista Tiepolo)


LXXXVI. Sobre a Vila de Cipião

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1. Eu estou descansando na casa de campo que uma vez pertenceu ao próprio Cipião Africano[1]; e escrevo-lhe depois de reverenciar seu espírito e um altar que estou inclinado a pensar ser o túmulo daquele grande guerreiro. Que a sua alma realmente retornou aos céus, de onde veio, estou convencido, não porque ele comandou exércitos poderosos – porque Cambises[2] também tinha poderosos exércitos, e Cambises era um louco que fez uso bem-sucedido de sua loucura – mas porque ele mostrou moderação e um senso de dever de maravilhosa amplitude. Considero este traço nele como mais admirável após sua retirada de sua terra natal do que enquanto ele estava defendendo-a; pois havia a alternativa: Cipião deveria permanecer em Roma, ou Roma deveria permanecer livre.

2. “É meu desejo“, disse ele, “não infringir o mínimo de nossas leis, ou de nossos costumes; que todos os cidadãos romanos tenham direitos iguais. Oh meu país, goza o máximo do bem que eu fiz, mas sem mim, eu fui a causa de sua liberdade, e eu serei também a sua prova, eu vou para o exílio, se é verdade que eu cresci além do que é a sua necessidade!

3. O que posso fazer senão admirar essa magnanimidade, que o levou a se retirar para o exílio voluntário e aliviar o Estado de sua carga? As coisas haviam ido tão longe que a liberdade prejudicaria Cipião, ou Cipião à liberdade. Qualquer uma dessas coisas era errada frente aos céus. Então ele cedeu às leis e retirou-se para Literno, pensando em fazer o Estado um devedor por seu próprio exílio não menos do que pelo exílio de Aníbal.

4. Eu inspecionei a casa, que é construída de pedra cortada; o muro que encerra um bosque; as torres também, fortificada em ambos os lados com a finalidade de defender a casa; o poço, escondido entre edifícios e arbustos, grande o suficiente para manter todo um exército fornecido; e o pequeno banho, sepultado na escuridão de acordo com o estilo antigo, pois nossos antepassados não pensavam que poderiam ter um banho quente, exceto fora de vista. Foi, portanto, um grande prazer eu comparar os costumes de Cipião com os nossos.

5. Pense, neste pequeno retiro, o “terror de Cartago”, a quem Roma deveria agradecer por não ter sido capturada mais de uma vez[3], costumava banhar um corpo cansado de trabalho nas batalhas! Pois ele estava acostumado a manter-se ocupado e a cultivar o solo com as próprias mãos, como os bons e antigos romanos costumavam fazer. Debaixo deste teto esquálido, ele esteve em pé; e este piso, medíocre como é, suportou seu peso.

6. Mas quem, nesses dias de hoje, poderia suportar banhar-se de tal maneira? Nós nos achamos pobres e mesquinhos se nossas paredes não são resplandecentes com espelhos grandes e dispendiosos; se os nossos mármores de Alexandria não são desencadeados por mosaicos de pedra numidiana[4], se suas molduras não são enfeitadas em todos os lados com padrões complexos, dispostos em muitas cores como pinturas; se os nossos tetos abobadados não estão cobertos por cristal; Se as nossas piscinas não estiverem revestidas com mármore de Tasos[5], antigamente uma ocorrência rara e maravilhosa em piscinas de templos, em que descemos nossos corpos depois de terem sido drenados por transpiração abundante; e, finalmente, se a água não verte por cumeeiras de prata.

7. Até agora tenho falado sobre os estabelecimentos de banhos comuns; o que devo dizer quando mencionar aqueles dos libertos[6]? Que grande número de estátuas, de colunas que não suportam nada, mas são construídas para decoração, apenas para gastar dinheiro! E que massas de água que caem de nível em nível! Nós nos tornamos tão luxuosos que não temos nada além de pedras preciosas para caminhar.

8. Neste banho de Cipião há pequenas fendas – você não pode chamá-las de janelas – cortadas do muro de pedra de modo a admitir a luz sem enfraquecer as fortificações; hoje em dia, no entanto, as pessoas consideram que os banhos servem apenas para as mariposas se não estiverem dispostos a receber o sol durante todo o dia através de largas janelas, se os homens não puderem tomar banho e se bronzear ao mesmo tempo e se não podem olhar para fora de suas banheiras sobre extensões de terra e mar. Assim vai; os estabelecimentos que haviam atraído multidões e ganharam admiração quando foram abertos pela primeira vez são evitados e colocados de volta na categoria de antiguidades veneráveis, assim que o luxo tenha criado algum dispositivo novo.

9. Nos dias de antigamente, no entanto, haviam poucos banhos[7], e eles não estavam equipados com qualquer ostentação. Por que os homens devem elaborar o que custa apenas um centavo, e foi inventado para uso, não apenas para o deleite? Os banhistas daqueles dias não tinham água jogada sobre eles, nem sempre corria pura como se de uma fonte termal; e eles não acreditavam que importava o quão perfeitamente pura era a água na qual eles deveriam deixar a sua sujeira.

10. Oh deuses, que prazer é entrar nesse banho escuro, coberto com um tipo comum de telhado, sabendo que ali o seu herói Catão como edil[8], ou Fabio Máximo, ou um dos Cornélios[9], aqueceu a água com suas próprias mãos! Pois isso também costumava ser o dever dos edis mais nobres – entrar nos lugares os quais a população utilizava e exigir que fossem limpos e aquecidos a uma temperatura exigida por considerações de uso e saúde, e não a temperatura que os homens recentemente usam, tão intensa como uma conflagração – tanto assim, de fato, que um escravo condenado por alguma ofensa criminal agora deve ser banhado vivo! Parece-me que hoje em dia não há diferença entre “o banho está escaldante” e “o banho está quente“.

11. Como algumas pessoas hoje condenam Cipião como provinciano, porque ele não deixou a luz do dia em sua sala de banho através de janelas largas, ou porque ele não se tostou na luz do sol forte e vacilou até estar cozido na água quente! “Pobre tolo“, eles dizem, “ele não sabia como viver! Ele não se banhou em água filtrada, muitas vezes era turva e depois de fortes chuvas quase lamacentas!” Mas não importava muito a Cipião se tivesse que banhar-se dessa maneira; ele foi lá para lavar o suor e não para ser ungido.

12. E como você acha que algumas pessoas me responderão? Elas dirão: “Eu não invejo Cipião, tinha verdadeiramente uma vida de exilado – suportar banhos como esses!” Amigo, se você fosse mais sábio, você saberia que Cipião não se banhava todos os dias. É afirmado por aqueles que nos relatam os costumes da Roma antiga que os romanos lavavam apenas os braços e as pernas diariamente – porque esses eram os membros que reuniam a sujeira em seu trabalho diário – e banhavam-se completamente uma vez por semana. Aqui alguém replicará: “Sim, eram indivíduos evidentemente muito sujos! Como eles deveriam ter cheirado!” Mas eles cheiravam à batalha, à fazenda e ao heroísmo. Agora que os estabelecimentos de banho reluzentes foram planejados, os homens são realmente mais nauseabundos do que anteriormente.

13. O que diz Horácio Flaco[10], quando desejou descrever um canalha, que era notório por seu luxo extremo? Ele diz. “Bucílio cheira a perfume[11]. Mostre-me um Bucílio nestes dias; seu cheiro seria o verdadeiro cheiro de cabra – ele tomaria o lugar do Gargónio com quem Horácio na mesma passagem o comparava. Hoje em dia não é suficiente usar perfume, a menos que você coloque um casaco novo duas ou três vezes por dia, para evitar que o cheiro da transpiração do corpo. Mas por que um homem deve se orgulhar desse perfume como se fosse dele próprio?

14. Se o que estou dizendo parecer a você muito pessimista, compare com a casa de campo de Cipião, onde aprendi uma lição de Egíalo, um chefe de família muito cuidadoso e agora dono dessa propriedade; ele me ensinou que uma árvore pode ser transplantada, não importa quão idosa. Nós, velhos, devemos aprender este preceito; pois não há nenhum de nós que não esteja plantando um jardim de oliveiras para o seu sucessor. Eu as vi ter frutos após três ou quatro anos de improdutividade

15. E você também deve ser sombreado pela árvore que

cresce lentamente, mas dará sombra aos seus futuros netos,Tarda venit seris factura nepotibus umbram,[12]

Como diz nosso poeta Virgílio. Virgílio procurou, no entanto, não o que estava mais próximo da verdade, mas o que era mais apropriado e direcionado, não a ensinar o fazendeiro, mas a agradar o leitor.

16. Por exemplo, ao omitir todos os outros erros dele, citarei a passagem em que incumbe hoje a mim detectar uma falha:

Na primavera semeia feijão, então, também, trevo, Vocês são bem-vindos pelos sulcos em ruínas; e O milhete pede cuidados anuaisVere fabis satio est: tunc te quoque, medica, putres Accipiunt sulci, et milio venit annua cura.[13]

Você pode julgar pelo seguinte incidente se essas plantas devem ser plantadas ao mesmo tempo ou se ambas devem ser semeadas na primavera. É junho no presente escrito, e estamos quase em julho; e eu vi neste momento os agricultores colhendo feijão e semeando milhete[14].

17. Mas para retornar ao nosso jardim de oliveiras novamente. Eu as vi sendo plantadas de duas maneiras. Se as árvores forem grandes, Egíalo pega seus troncos e corta os ramos até o comprimento de um pé cada; ele então transplanta junto com a base, depois de cortar as raízes, deixando apenas o bolbo, a parte grossa da qual as raízes se penduram. Ele mistura isso com esterco, e insere no buraco, não só cobrindo de terra, mas compactando e pressionando-a.

18. Não há nada, diz ele, mais eficaz do que este processo de embalagem; em outras palavras, afasta o frio e o vento. Além disso, o tronco não é muito abalado e, por esse motivo, a embalagem faz com que as raízes jovens cresçam e se firmem no solo. Essas são necessariamente ainda frágeis; elas provêm apenas uma leve fixação, e um pouco de agitação as arranca do lugar. Esta base, além disso, Egíalo desbasta antes de cobri-la. Pois ele afirma que novas raízes brotam de todas as partes que foram podadas. Além disso, o tronco em si não deve ficar a mais de três ou quatro pés do chão. Pois assim haverá, ao mesmo tempo, um crescimento espesso do fundo, e evitará um grande tronco, todo seco e murchado, como é o caso dos velhos olivais.

19. A segunda maneira de transplanta-las era a seguinte: ele colhe ramos de tipo semelhante que são fortes e de casca macia, como costumam ser as de jovens mudas. Estes crescem um pouco mais devagar, mas, como eles brotam do que é praticamente um corte, não há rugosidade ou feiura neles.

20. Isso também já vi recentemente – uma videira envelhecida transplantada de sua própria plantação. Neste caso, as radículas também devem ser reunidas, se possível, e então você deve encobrir a haste da videira de forma mais generosa, de modo que as raízes possam surgir mesmo do cepo. Eu vi tais plantações feitas não só em fevereiro, mas no final de março; as plantas tomam controle e abraçam os troncos dos ulmeiros.

21. Mas todas as árvores, ele declara, que são, por assim dizer, “espessas”, devem ser auxiliadas com irrigação; se tivermos essa ajuda, somos nossos próprios criadores de chuva. Eu não pretendo contar mais nada desses preceitos, com medo de que, como Egíalo fez comigo, talvez eu esteja lhe treinando-lhe para ser meu concorrente.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Veja Carta. LI, Cartas de um estoico, volume IPúblio Cornélio Cipião Africano (m. 183 a.C.; em latim: Publius Cornelius Scipio Africanus Maior), mais conhecido apenas como Cipião Africano, foi um político da família dos Cipiões da gente Cornélia da República Romana eleito cônsul por duas vezes, em 205 e 194 a.C.. Um dos maiores generais romanos de toda a história, derrotou Aníbal na Batalha de Zama, encerrando a Segunda Guerra Púnica. Quando Cipião morreu em meio a acusações de seus rivais de ter aceitado suborno do rei da Síria selêucida, Antíoco III, a quem havia derrotado na Ásia Menor, auto-exilado em sua villa na Campânia, teria dito: “Minha pátria ingrata não terá meus ossos antes de morrer”.

[2] Cambises foi imperador da Pérsia pertencente à dinastia Aquemênida, que reinou entre 580 e 559 a.C..

[3] Até então, ao longo da história de Roma a cidade só fora conquistada uma única vez, durante as invasões gaulesas na guerra de 390-38 3 a.C..

[4] Numídia é o antigo nome de uma região do norte da África localizada no território onde hoje estão a Argélia e, em menor proporção, a Tunísia ocidental. O nome foi utilizado pela primeira vez por Políbio e outros historiadores durante o século III a.C. para indicar o território a oeste de Cartago

[5] Tasos, Tasso ou Tassos (grego: Θάσος, transl. Thássos;) é uma ilha grega no mar Egeu, próxima à costa da Macedônia. Era famosa devido a suas minas de ouro e mármore.

[6] Sobretudo no tempo do imperador Cláudio, os escravos libertos, em especial os do imperador, adquiriram uma enorme importância política e social e acumularam fortunas consideráveis. O imperador Cláudio manteve 4 libertos com ministros de estado. O comportamento de “novos ricos” dos libertos ficou imortalizado na literatura pelo Trimalquião de Petrónio (Satiricon, XXVI, 7). Uma das ações conduzidas pela classe senatorial no início do governo de Nero consistiu em reduzir a influência enorme desses.  O próprio Sêneca escreveu no ano 44 uma carta de consoloção ao liberto Políbio, na tentativa de escapar do exílio, ver Consolação a Políbio.

[7] Houve um profusão de balneários no reinado de Augusto: em 33 a.C. uma contagem efecruada por Agripa recenseava, só em Roma, 170 banhos públicos.

[8] Na Roma Antiga, Edil era um funcionário ou magistrado responsável por assegurar o bom estado e funcionamento dos edifícios, dos bens e dos serviços públicos.

[9] A gente Cornélia (em latim: gens Cornelia; pl. Cornelii) foi a mais distinta de todas as gentes da Roma Antiga, especialmente por ter produzido a maior quantidade de pessoas ilustres entre todas as grandes casas de Roma. Juntamente com os Fábios e Valérios, os Cornélios competiam pelos cargos mais altos da magistratura romana do século III a.C. em diante e muitos dos grandes generais romanos também eram Cornélios.

[10] Quinto Horácio Flaco, em latim Quintus Horatius Flaccus, (65 a.C. — 27 de novembro de 8 a.C.) foi um poeta lírico e satírico romano, além de filósofo. É conhecido por ser um dos maiores poetas da Roma Antiga.

[11] Horácio, Sátiras., 1, 2, 27.

[12] Trecho de Geórgicas, v. II, 58 de Virgílio.

[13] Trecho de Geórgicas, v. I, 215-216 de Virgílio.

[14] O milhete, milho-miúdo, milho-alvo ou painço são denominações dadas a várias espécies cerealíferas produzidas um pouco por todo o mundo para alimentação humana e animal. Estas espécies não formam um grupo taxonômico mas antes um grupo agronômico, baseado em características e usos similares.