Meditações, entrevista de Aldo Dinucci à Veja

Com o lançamento da tradução das Meditações por Aldo Dinucci a resvista Veja publicou uma resenha e pequena entrevista. Segue entrevista:

Com a palavra, o tradutor das Meditações, Aldo Dinucci.

Meditações é daqueles livros que se tornaram um best-seller atemporal e universal. A que o senhor atribui tamanho êxito?
O diário de Marco Aurélio permaneceu praticamente perdido por séculos e séculos, com esparsas notícias ao longo da Antiguidade Tardia e da Idade Média, sendo publicado na Europa apenas no século XVI, com inúmeras edições em línguas modernas a partir de então. No seu libelo, Marco dialoga consigo mesmo, de modo similar ao que fazem amigos íntimos ao trocarem impressões entre si sobre temas relativos à vida.
Esse sentimento de intimidade é muito evidente no texto, razão pela qual costuma ser lido por algumas pessoas dezenas de vezes, estabelecendo-se assim laços afetivos de amizade entre o leitor vivo e o filósofo que há muito se foi. A extraordinária sensibilidade de Marco ilumina temas que concernem à humanidade como um todo, como a reflexão sobre o que é a vida plena, sobre a fraternidade humana, sobre a morte, sobre o lugar do humano no Cosmos, tudo isso entre belíssimas imagens da natureza e da nossa vida cotidiana.

O diário de Nos últimos anos, tivemos o lançamento de muitos livros que beberam, de forma evidente ou nem tanto, de lições do estoicismo para promover discursos de autoajuda ou do tipo “como vencer na vida”. O senhor acredita que, muito embora ajudem a popularizar essa corrente filosófica, eles também possam deturpar ideias e intenções caras à escola estoica?
O mercado cultural afeta hoje quase todos os aspectos de nossa vida: vestuário, cinema, música, alimentação, religião… Tudo acaba se transformando em mercadoria para consumidores cada vez mais existencialmente vazios. Essas mercadorias são niveladas por baixo no que se refere ao aspecto cultural propriamente dito, razão pela qual muitos dizem haver acabado a boa música, o bom cinema, a boa literatura. Isso ocorre porque o mercado cultural almeja não a qualidade de seus produtos, mas meramente a quantidade de consumidores e de renda arrecadada.

O estoicismo, assim como tudo mais, acabou sendo transformado em produto nesse contexto do capitalismo tardio em que vivemos, apresentado por meio de simplificações grosseiras e evidentes deturpações, mais ou menos como a teologia da prosperidade o faz em relação ao cristianismo. A filosofia do Pórtico (como é também conhecido o estoicismo), na Antiguidade, jamais foi uma técnica individualista para buscar o sucesso pessoal, mas sempre se tratou de uma doutrina de amor à humanidade que busca conectar os humanos entre si por sentimentos fraternos e reconectar o humano ao Cosmos, exortando seus seguidores a ações que concorram não para o sucesso individual, mas para o bem comum, como Marco não se cansa de repetir em seu diário.

Que mensagem do livro de Marco Aurélio o senhor julga a mais preciosa para estes tempos pós-modernos, pós-pandêmicos, regidos pela tal pós-verdade?
Cada vez mais, estamos, humanos das ruas, fartos do dogmatismo e do cinismo de certos filósofos e intelectuais modernos e contemporâneos: ou temos aqueles que se creem donos da verdade e querem nos fazer passar essa suposta verdade goela abaixo, ou temos os cínicos no pior sentido do termo, os que não creem em nada e se resignam a uma atitude irreverente e malévola diante das vicissitudes humanas. Marco não vai nem por um caminho nem por outro. Nosso imperador não é jamais dogmático, mas se questiona frequentemente quanto aos mais centrais princípios filosóficos, como quando, por exemplo, se indaga se há providência divina (a tese estoica) ou apenas átomos (a tese atomista e epicurista), refletindo e nos fazendo refletir simultaneamente sobre as duas possibilidades.

Sua ideia mais importante (e menos conhecida) é que a humanidade é uma grande fraternidade, e que devemos alimentar em nós esse pensamento para que possamos agir visando ao bem comum, seja o de nossa comunidade imediata, seja o da humanidade como um todo, seja o do Cosmos. Para Marco, o humano é um animal racional e político, que só pode alcançar seu fim (quer dizer, sua plenitude e sua realização) agindo de forma comunitária por meio da interpretação adequada dos papéis que lhe cabem na sociedade e no Cosmos, tais como os de ser racional, filho ou filha, irmã ou irmão, pai, mãe, vizinho, político, entre tantos personagens que são atribuídos a nós, humanos, em nossas breves existências.

Texto completo em:
https://veja.abril.com.br/coluna/conta-gotas/o-sucesso-atemporal-das-meditacoes-do-imperador-filosofo/

Pensamento 93: Mente sã num corpo são

O estoicismo é uma filosofia integral, e como no ditado de Juvenal, “Mens sana in corpore sano“, sustenta que estar fisicamente bem preparado e saber se defender é uma característica do sábio.

Sócrates, o grande modelo de sábio dos estoicos, foi um soldado. Cleantes de Assos, o segundo escolarca da escola estoica de Atenas, foi um boxeador profissional. Marco Aurélio liderou legiões romanas em guerras contras os germânicos.



Livros citados:



* Parece que esta frase da imagem está mal atribuída, sendo de um general inglês do século XIX ao invés de Tucídides.

Princípio: Conceito de Paixão para os estoicos

Para os estoicos paixão é entendida como sentimento ou emoção levados a um alto grau de intensidade, sobrepondo-se à lucidez e à razão; entre esses sentimentos, a ira, por exemplo.

Ou seja, o termo “paixão”, ao contrário do uso contemporâneo, é sempre negativo, é um vício, não virtude.

Marco Aurélio usa o termo inúmeras vezes em suas meditações, como em:

a mente livre de paixões é uma cidadela[1] [fortaleza], pois o ser humano não tem nada mais seguro para o qual possa se refugiar e para o qual o futuro seja inexpugnável. Aquele, pois, que não viu isso é um homem ignorante; mas aquele que o viu e não rumou a esse refúgio é um infeliz.” (VIII,48)

Pois no mesmo grau em que a mente de um homem está mais próxima da liberdade de toda a paixão, no mesmo grau também está mais próxima da força: e como o sentido da dor é uma característica da fraqueza, assim é também a raiva.“( XI, 18)

Sêneca também condena a paixão em seus textos:

A estupidez[2] é vil, abjeta, má, servil e exposta a muitas das paixões mais cruéis. Essas paixões, que são severas capatazes, às vezes governam em turnos e às vezes juntas, porém podem ser banidas de você pela sabedoria, que é a única liberdade real. Há apenas um caminho que leva para lá e é um caminho reto: você não se extraviará. Prossiga com passo firme e se você tiver todas as coisas sob seu controle, coloque-se sob o controle da razão, se a razão se tornar sua governante, você se tornará governador de muitos. ” (XXXVII, 4)


Livros citados:


Notas:

[1] Essa passagem deu título ao excelente livro de Pierre Hadot “La citadelle intérieure. Introduction aux Pensées de Marc Aurèle”

[2] Na linguagem do estoicismo, a estupidez, “stultitia”, é a antítese da “sapientia”, sabedoria. Lembre que por ‘estupidez’ não deve entender-se meramente a ausência de conhecimentos, mas antes o estado de quem vive à margem dos princípios morais estabelecidos pela filosofia.


Suspensão de juízo no estoicismo

No artigo “Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações 2.1?” Aldo Dinucci explica o que é “suspensão de juízo” e como conciliar ensinamentos aparentemente contraditórios de Epicteto e Marco Aurélio.

Suspensão de juízo é em resumo entender antes de adjetivar, só dar nossa opinião sobre fatos ou atos depois de entender profundamente seus motivos. Muito relevante nessa época de cancelamentos sumários.

Os atos de julgar e adjetivar, mais uma vez, nos afastam da realidade, razão pela qual nos tornamos incapazes de compreender os demais justamente quando pensamos compreender suas ações. Prova disso é que nos tornamos intolerantes e agressivos com elas.

Artigo publicado originalmente em Estoicismo Artesanal em 29 de outubro de 2021.


Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações 2.1?

Aldo Dinucci

Danilo Gavião, que conheci em um grupo de estudos de estoicismo dirigido por Donato Ferrara, me fez uma pergunta relacionada àquela que me foi feita recentemente por Selmo Gliksman, meu colega dos tempos de pós na PUC/RJ, e que respondi em um post anterior

Danilo indaga: Como conciliar a suspensão de juízo proposta por Epicteto ao que diz Marco Aurélio em suas Meditações: 

Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Prediga a si mesmo na alvorada: encontrarei um inquisitivo, um ingrato, um insolente, um traiçoeiro, um caluniador, um indivíduo antissocial.  (Tradução: Aldo Dinucci)

Isso parece se contrapôr ao que Epicteto diz no Manual:

Epicteto, Manual, XLV: Alguém se banha de modo apressado: não digas que ele se banha de modo ruim, mas de modo apressado. Alguém bebe muito vinho: não digas que ele bebe de modo ruim, mas muito. Pois, antes que compreendas a opinião [dele], por que pensas que ele o faz de modo ruim? Assim, não te acontecerá, <ao> apreenderes as impressões compreensivas de algumas coisas, dares assentimento a outras. (IN: Epicteto, Manual Edição original de 2007,  Tradução dos originais em grego: Aldo Dinucci) 

Epicteto nos ensina que não devemos qualificar pessoas e suas ações como boas ou más sem sabermos por qual razão agem assim. Isso lembra o que Jesus Cristo teria dito sobre não julgarmos para não sermos julgados, mas em Epicteto o sentido é outro. O que Epicteto está dizendo é que estas palavras ‘bem’ ou ‘mal’ são usadas de forma inapropriada e acabam nos impedindo acesso à realidade (a ‘impressão compreensiva’ que podemos ter das coisas), pois seu uso nos faz crer possuir um conhecimento que efetivamente não temos sobre ações e pessoas.

Assim, o ‘banho ruim’ de alguém pode ser sido feito por uma série de razões que nos escapam e que fariam do banho rápido um ato adequado. Da mesma forma, o ‘beber mal’ pode estar associado da mesma forma a estados mentais de um indivíduo que podem tornar compreensível e justificável o seu modo de beber.

Epicteto está dizendo que usar essas palavras não nos confere nenhum conhecimento sobre a realidade, só evidenciando, de fato, nossa ignorância sobre a ação e a pessoa. Assim, ao invés de usarmos adjetivos tais como ‘bom, ótimo, excelente, péssimo, ruim’ etc, devemos procurar entender o que está acontecendo, descrevendo da melhor forma possível a ação e a pessoa e, ao mesmo tempo, estabelecendo os limites de nosso conhecimento do caso, suspendendo o juízo sobre o que não sabemos. Exemplos:

Fulano banhou-se rápido e saiu. Não compreendo por qual razão ele agiu assim. É possível que estivesse apressado para outro compromisso. 

Fulano bebeu muito na festa de ontem. Estará ele comemorando alguma vitória? Estará ele triste com algum fato? Não sei a razão pela qual ele agiu assim. No momento, só posso fazer conjecturas.  

Isso pode ser aplicado também ao modo como falamos aos nossos alunos sobre seus trabalhos e provas. Ao invés de um mero ‘excelente’, devemos descrever o trabalho e suas qualidades. Exemplo:

Seu trabalho foi escrito de acordo com as normas ortográficas e de forma escorreita, demonstrando conhecimento da linguagem culta. Você tratou o tema com precisão e senso crítico etc.

E o mesmo vale para os defeitos dos trabalhos. Voltemo-nos agora à passagem de Marco, que é um exemplo de praemeditatio malorum, do que falamos no outro post. Marco começa a passagem adjetivando um série de indivíduos que encontraria pela frente durante o seu dia. No entanto, na linha seguinte, ele mesmo rechaça essas adjetivações, afirmando uma causa comum para agirem de modo inadequado:

Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Prediga a si mesmo na alvorada: encontrarei um inquisitivo, um ingrato, um insolente, um traiçoeiro, um caluniador, um indivíduo antissocial. Todas essas coisas lhes ocorrem pela ignorância dos bens e dos males. (Tradução: Aldo Dinucci)

Marco, mais à frente, na mesma citação, afirma um preceito básico do estoicismo e do socratismo: a ação inadequada é fruto da ignorância. Para Sócrates e para os estoicos, não há algo como pessoas naturalmente malignas. O que há são pessoas ignorantes ou mentalmente enfermas (os limites entre a loucura epistêmica e a psíquica são, para estoicos, imprecisos, e muitas vezes uma implica a outra):   

Marco Aurélio, Meditações, 2.1: Mas eu teorizei a natureza do bem e do mal… e que a natureza do que erra é da minha mesma estirpe, não segundo o sangue ou o mesmo esperma, mas que partilho o mesmo espírito e a mesma porção divina… Nascemos, pois, para agir conjuntamente como os pés, como as mãos, como as pálpebras… estarmos em conflito uns contra os outros é contra a natureza: entrar em conflito e irritar-se é, portanto,  opôr~se <à natureza>. (Tradução: Aldo Dinucci)

Marco Aurélio, portanto, substitui os adjetivos que usara no princípio de sua reflexão pela compreensão de que tais pessoas agem inadequadamente por ignorância. E acrescenta que, na verdade, os que erram são de nossa mesma estirpe, razão pela qual devemos não nos opor a eles, mas tentar colaborar com eles apesar dos defeitos que venham a ter.

O movimento, aqui, é essencialmente o mesmo que vemos no Manual de Epicteto: partimos de adjetivações que pretendem descrever a realidade, mas que só escondem nossa incompreensão dos fatos, das ações e das pessoas, nos afastando e nos pondo em oposição a elas, e rumamos para uma compreensão real das pessoas e de seus possíveis erros, não mais nos opondo ou julgando, mas, através de uma atitude verdadeiramente compreensiva, buscando agir conjuntamente com elas.

Os atos de julgar e adjetivar, mais uma vez, nos afastam da realidade, razão pela qual nos tornamos incapazes de compreender os demais justamente quando pensamos compreender suas ações. Prova disso é que nos tornamos intolerantes e agressivos com elas. Pois se os compreendêssemos realmente, jamais o seríamos.

Aldo Dinucci

Foto de Anastasia Zhenina no Pexels

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Carnuntum 2021: Festival da antiguidade tardia

A 60km de Viena estão as ruínas da antiga cidade romana de Carnuntum. Lá o imperador Marco Aurélio escreveu o segundo livro suas meditações.

Reconstruíram uma parte das ruínas, para mostrar como eram as construções da época. Semana passada houve uma encenação do cotidiano da época do fim do império Romano. Para aqueles que tiverem oportunidade de vir a Viena, vale muito a pena uma visita.

Abaixo texto completo das Meditações de Marco Aurélio escrito na cidade.

Gosto especialmente do trecho sobre autoconhecimento:

O fracasso em observar o que está na mente de outro raramente fez um homem infeliz; mas aqueles que não observam os movimentos de suas próprias mentes devem ser necessariamente infelizes.

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LIVRO II

1. Comece a manhã dizendo a si mesmo, eu me encontrarei com o intrometido, o ingrato, arrogante, enganador, invejoso, anti-social. Tudo isso acontece com eles por causa de sua ignorância do que é bom e mau. Mas eu, que vi a natureza do bem que é belo, e do mal que é feio, e a natureza do que é maligno, que é semelhante a mim; não [só] do mesmo sangue ou semente, mas que participa da [mesma] inteligência e [mesma] parte da divindade, não posso ser ferido por nenhum deles, pois ninguém pode prender em mim o mal, nem posso ficar bravo com meu próximo, nem o odiar. Porque somos feitos para a cooperação, assim como pés, como mãos, como pálpebras, como as linhas dos dentes superiores e inferiores[1]. Agir uns contra os outros, portanto, é contrário à natureza; e agir uns contra os outros é importunar-se e desviar-se.

2. O que quer que eu seja, eu sou um pouco de carne, sopro de vida[2] e a parte que reina. Jogue fora os seus livros; não se distraia mais; isso não é permitido; mas, como se estivesse agora morrendo, despreze a carne; é sangue, ossos e tecido, uma conjuntura de nervos, veias e artérias. Veja também o sopro, que tipo de coisa é; ar, e nem sempre o mesmo, mas cada momento emitido e novamente aspirado. O terceiro, então, é a parte que rege; considere assim: Você é um homem de idade; não mais deixe que isso seja escravizador, não mais seja puxado pelas linhas como um fantoche para movimentos anti-sociais, não fique mais insatisfeito com sua sorte atual, ou hesite com o futuro.

3. Tudo o que vem dos deuses está cheio de providência. O que é da fortuna não está separado da natureza ou sem interligação e inflexão com as coisas que são ordenadas pela providência. De lá todas as coisas fluem; e há além da necessidade, e aquilo que é para a vantagem de todo o universo, do qual você é uma parte. Mas isso é bom para cada parte da natureza que a natureza do todo traz, e o que serve para sustentar esta natureza. Agora o universo é preservado, assim como pelas mudanças dos elementos, assim como pelas mudanças das coisas compostas dos elementos. Que estes princípios sejam suficientes para você; que sejam sempre opiniões firmes. Mas rejeite a sede dos livros, para que não morra murmurando, mas alegremente, verdadeiramente, e de coração seja grato aos deuses.

4. Lembre-se de quanto tempo você tem postergado estas coisas, e quantas vezes você tem recebido uma oportunidade dos deuses, e ainda assim não a tem usado. Você deve agora finalmente perceber de que universo você é uma parte, e de que mestre do universo sua existência é um efluxo, e que um limite de tempo foi fixado para você, que se você não o usar para limpar as nuvens de seu espírito, ele vai, e você vai, e ele nunca mais voltará.

5. Cada momento pense firmemente como um romano e homem para fazer o que você tem em mãos com perfeita e simples dignidade, e sentimento de afeto, e liberdade, e justiça, e para dar a si mesmo o descanso de todos os outros pensamentos. E você se aliviará se fizer cada ato de sua vida como se fosse o último, deixando de lado todo descuido e aversão passional aos mandamentos da razão, e toda hipocrisia, egoismo e insatisfação com a parte que foi dada a você. Você vê quão poucas são as coisas às quais um homem precisa seguir para ser capaz de viver uma vida que flui em tranquilidade como a dos deuses; pois os deuses por sua parte não exigirão nada mais daquele que observa essas coisas.

6. Faça mal a você mesma, faz mal a você mesma, minha alma, mas não terá mais a oportunidade de honrar-se a si mesma[3]. A vida de cada homem é suficiente.  † Mas a sua está quase terminada, embora a sua alma não reverencie a si mesma, mas coloque a sua felicidade nas almas dos outros.

7. As coisas externas que recaem sobre você o distraem? Dê a si mesmo tempo para aprender algo novo e bom, e deixe de ser rodopiado como um pião. Mas então você também deve evitar ser levado para o outro lado; pois esses também são insignificantes que se cansaram na vida pela sua atividade, e ainda não têm nenhum objeto ao qual dirigir cada um dos seus passos, e, em uma palavra, todos os seus pensamentos.

8. O fracasso em observar o que está na mente de outro raramente fez um homem infeliz; mas aqueles que não observam os movimentos de suas próprias mentes devem ser necessariamente infelizes.

9. Isto você deve sempre ter em mente, qual é a natureza do todo, e qual é a minha natureza, e como isto está relacionado com aquilo, e que tipo de parte é de que tipo de todo, e que não há ninguém que o impeça de sempre fazer e dizer as coisas que são de acordo com a natureza da qual você é uma parte.

10. Teofrasto[4], em sua comparação de maus feitos —  uma comparação como se faria de acordo com as noções comuns da humanidade —  diz, como um verdadeiro filósofo, que as ofensas que são cometidas pelo desejo são mais culpáveis do que aquelas que são cometidas pela ira. Pois aquele que se excita com a ira parece afastar-se da razão com uma certa dor e contração inconsciente; mas aquele que ofende pelo prazer, sendo dominado pelo prazer, parece estar de uma maneira mais desmedida e mais feminina em suas ofensas. Com razão, então, e de uma forma digna de filosofia, ele disse que a ofensa que é cometida por prazer é mais censurável do que aquela que é cometida pela dor, e no conjunto, uma é mais como uma pessoa que foi injustiçada primeiro e através da dor é compelida a ficar irritada, mas a outra é movida pelo seu próprio impulso de fazer o mal, sendo levada a fazer algo pelo prazer.

11. Uma vez que é possível que se retire da vida neste exato momento[5], controle todos os atos e pensamentos em concordância[6]. Mas sair do meio dos homens, se há deuses, não é uma coisa a temer, pois os deuses não o envolverão no mal; mas se realmente não existem, ou se eles não têm preocupação com assuntos humanos, o que é para mim viver em um universo sem deuses ou sem providência? Mas na verdade eles existem, e eles se importam com as coisas humanas, e eles puseram todos os recursos ao alcance do homem para capacitá-lo a não cair em males reais. E, quanto ao resto, se existisse algo de mal, eles teriam providenciado para que isso também estivesse totalmente no poder de um homem de não cair nele. Agora, o que não torna um homem pior, como pode piorar a vida de um homem? Mas nem por ignorância, nem tendo o conhecimento, mas não o poder de proteger contra ou corrigir essas coisas, é possível que a natureza do universo tenha negligenciado essas coisas, nem é possível que ela tenha cometido um erro tão grande, seja por falta de poder ou falta de habilidade, que o bem e o mal devem ocorrer indiscriminadamente para o bom e o mau. Mas a morte certamente, e a vida, a honra e a desonra, a dor e o prazer, todas essas coisas acontecem igualmente aos homens bons e maus, sendo coisas que não nos tornam nem melhores nem piores. Portanto, não são nem boas nem ruins.

12. Quão rapidamente todas as coisas desaparecem, no universo os próprios corpos, mas com o tempo a lembrança deles. Qual é a natureza de todas as coisas sensatas, e particularmente aquelas que atraem com a sedução do prazer ou aterrorizam pela dor, ou são apregoadas pela fama vaporosa; quão sem valor, e desprezíveis, e sórdidas, e perecíveis, e mortas elas estão, tudo isso é parte da faculdade intelectual de observação. Observe também de quem são essas opiniões e vozes, o que é a morte, e o fato de que, se o ser humano olhar para ela em si mesmo, e pela força abstrata da reflexão determinar em suas partes todas as coisas que nela se apresentam à imaginação, então a considerará como nada mais que uma atividade da natureza; e se alguém tiver medo de uma atividade da natureza, será uma criança. No entanto, essa não é apenas uma atividade da natureza, mas é também uma coisa que conduz aos propósitos da natureza. Observe também como o homem se aproxima da Divindade…[7]

13. Nada é mais miserável do que um homem que atravessa tudo em círculos e se empenha nas coisas debaixo da terra, como diz o poeta[8], e procura por conjectura o que está na mente de seus semelhantes, sem perceber que basta cuidar do daemon[9] dentro dele, e reverenciá-lo sinceramente. E a reverência do daemon consiste em mantê-lo livre de paixão e inconsciência, e de insatisfação com o que vem dos deuses e dos homens. Pois as coisas dos deuses merecem veneração por sua excelência; e as coisas dos homens devem ser-nos queridas em razão do parentesco; e às vezes até, de certo modo, elas despertam nossa piedade em razão da ignorância dos homens do bem e do mal; sendo este defeito não menos do que a cegueira que nos priva do poder de distinguir as coisas brancas e negras.

14. Ainda que você vá viver três mil anos, e tantas vezes dez mil anos, lembre-se ainda que nenhum homem perde outra vida além da que agora vive, nem outra vida além da que agora perde. O mais longo e o mais curto são assim levados ao mesmo. Porque o presente é o mesmo para todos, embora o que perece não seja o mesmo; e assim o que está perdido parece ser um mero momento. Pois um homem não pode perder nem o passado nem o futuro: pois aquilo que um homem não tem, como pode alguém tirar-lho? Estas duas coisas, então, você deve ter em mente: a primeira, que todas as coisas desde a eternidade são de semelhantes formas e vêm em círculos, e que não faz diferença se um homem deve ver as mesmas coisas durante cem anos, ou duzentos, ou um tempo infinito; e a segunda, que o que tem maior longevidade e aquele que vai morrer logo perderão exatamente a mesma coisa. Porque o presente é a única coisa de que um homem pode ser privado, se é verdade que isto é a única coisa […].

15. Lembre-se que tudo é opinião. Pois o que foi dito pelo cínico Mônimo[10] é evidente: e também evidente é a utilidade do que foi dito, se um homem se apropria do essencial.

16. A alma do homem comete atos de violência contra si mesma, antes de mais nada, quando se torna um tumor e, por assim dizer, uma excrescência no universo. Pois ser incomodado com tudo o que acontece é uma dissociação de nós mesmos da natureza, em alguma parte da qual estão contidas as naturezas de todas as outras coisas. Em segundo lugar, a alma violenta-se a si mesma quando se afasta de qualquer ser humano, ou mesmo se dirige a ele com a intenção de ferir, como o são as almas dos que se enfurecem. Em terceiro lugar, a alma comete violência a si mesma quando é dominada pelo prazer ou pela dor. Em quarto lugar, quando ela desempenha um papel, e faz ou diz qualquer coisa dissimulada e indisciplinada. Em quinto lugar, quando permite que qualquer ato próprio e qualquer ação seja sem finalidade, e faz qualquer coisa sem pensar e sem considerar o que é, sendo certo que mesmo as menores coisas sejam feitas com referência a um fim; e a finalidade das criaturas racionais é seguir a razão e a lei mais venerada.

17. Da vida humana o tempo é um ponto, e a substância está em fluxo, e a percepção difícil, e a composição do corpo como um todo sujeita à putrefação, e a alma um turbilhão, e a fortuna difícil de ser revelada, e a fama uma coisa sem discernimento. E, para dizer tudo em uma palavra, tudo o que pertence ao corpo é uma torrente, e o que pertence à alma é um sonho e um vapor, e a vida é uma guerra e uma viagem ao estrangeiro, e depois da fama está o esquecimento. O que é então aquilo que é capaz de conduzir um homem? Uma coisa, e só uma, é a filosofia. Mas isto consiste em manter o daemon, dentro de um homem livre de violência e ileso, superior às dores e prazeres, não fazendo nada sem um propósito, nem ainda falsamente e com hipocrisia, não sentindo a necessidade de outro homem fazer ou não fazer nada; e além disso, aceitando tudo o que acontece, e tudo o que lhe é atribuído, como vindo de lá, de onde quer que esteja, de onde ele mesmo veio; e, finalmente, esperando a morte com uma mente alegre, como sendo nada mais que uma dissolução dos elementos de que todo ser vivo é composto. Mas, se não há malefício para os próprios elementos em cada um deles, que se transformam continuamente em outros, por que haveria o ser humano de ter qualquer receio da mudança e da dissolução de todos os elementos? Pois isso está de acordo com a natureza, e nada existe de mal que esteja de acordo com a natureza.

Isso foi escrito em Carnuntum[11].


[1] Xenofonte, Memorabilia. Livro II. 3, 18

[2] Pneuma: na filosofia estoica é o conceito de “sopro de vida”, uma mistura dos elementos ar (em movimento) e fogo (como calor).

[3] Talvez devesse ser: “Estás a fazer violência a ti mesmo“. ὑβρίζείς

[4]Teofrasto (Eresos, 372 a.C. — 287 a.C.) foi um filósofo da Grécia Antiga, sucessor de Aristóteles na escola peripatética. Era oriundo de Eressos, em Lesbos, seu nome original era Tirtamo, mas ficou conhecido pela alcunha de ‘Teofrasto’, que lhe foi dada por Aristóteles, segundo se diz, para indicar as qualidades de orador.

[5]Ou pode significar, “uma vez que está em seu poder partir;” o que dá um significado um pouco diferente.

[6]Ver Cícero, Discussões Tusculanas, I, 49.

[7]Trecho não disponível.  Ver também Livro VI. 28.

[8]Píndaro também conhecido como Píndaro de Cinoscefale ou Píndaro de Beozia, foi um poeta grego, autor de Epinícios ou Odes Triunfais.  Veja em Teeteto de Platão, XI,1.

[9]Daemon (em grego δαίμων, transliteração daímôn)  tradução “divindade”, “espírito”, no plural daemones. A palavra daímôn se originou com os gregos na Antiguidade; no entanto, ao longo da História, surgiram diversas descrições para esses seres. O nome em latim é daemon, que veio a dar o vocábulo em português demônio. A palavra grega que designa o fenômeno da felicidade é Eudaimonia (εὐδαιμονία). Ser feliz para os gregos é viver sob a influência de um bom daemon. Assim é a forma como Sócrates se refere a seu daemon.

[10] Mônimo de Siracusa foi um filósofo cínico de Siracusa. De acordo com Diógenes Laércio, Mônimo foi escravo de um cambista de coríntio. A fim de que pudesse se tornar um aluno de Diógenes, Mônimo fingiu ter enlouquecido e começou a atirar dinheiro para a rua até que seu senhor o descartou.

[11] Carnuntum era uma cidade de Panónia, no lado sul do Danúbio, a cerca de trinta milhas a leste de Vindobona (atual Viena).

Marco Aurélio perseguiu cristãos?

Com certa frequência perguntam se Marco Aurélio perseguiu cristãos. Em suas Meditações, há apenas uma referência aos cristãos na qual, indiretamente, os critica por não fazerem uso da razão:

Que grande alma é aquela que está pronta, em qualquer momento necessário, para ser separada do corpo e depois extinguida ou dispersa ou continuar a existir; mas de modo que esta disponibilidade venha do próprio julgamento do homem, não de mera obstinação, como com os cristãos, mas com ponderação e dignidade e de modo a convencer outro, sem demonstração dramática!” ( Livro XI, 3)

Donald Robertson, autor do excelente livro “Pense como um imperador“, escreveu um artigo sobre o assunto. Abaixo minha tradução, autorizada por Donaldson.

(imagem: As Tochas de Nero, por Henryk Siemiradzki. De acordo com Tácito, Nero usou cristãos como tochas humanas)


Marco Aurélio perseguiu cristãos?

Artigo que examina algumas das evidências a favor e contra a afirmação de que Marco Aurélio perseguia cristãos.

E em minha defesa das inúmeras críticas feitas a Marco por escritores antigos e modernos, dou de longe o maior espaço aos mais severos, que ele perseguiu os cristãos, pois acho que nenhuma acusação o teria surpreendido mais, ou lhe teria parecido mais irracional. (Henry Dwight Sedgwick)

Diz-se frequentemente na Internet, e ocasionalmente em livros, que Marco Aurélio, de alguma forma, perseguiu os cristãos.  No entanto, acho que, muitas vezes, faltam detalhes específicos.  Na verdade, há duas questões que vale a pena considerar aqui:

  1. Será que o imperador estoico Marco Aurélio perseguiu ativamente os cristãos pessoalmente?
    A maioria dos estudiosos modernos pensa que ele quase certamente não o fez.
  2. Será que Marco permitiu que outros perseguissem os cristãos?
    Isto é mais difícil de responder, embora o peso da evidência sugira que Marco Aurélio realmente tentou evitar que outros perseguissem os cristãos.  Certamente houve perseguição aos cristãos durante seu reinado, mas não está claro o quanto, até que ponto ele estava ciente disso, e que chance ele teria tido de impedi-la.

Após rever os relatos da perseguição aos cristãos durante o reinado de Marco Aurélio, H.D. Sedgewick[1] constatou:

A única evidência de que Marco Aurélio tinha alguma relação direta com qualquer destes casos é esta declaração em Eusébio[2] que, durante o julgamento em Lyon, o governador escreveu para pedir instruções a ele.

Portanto, vejamos as principais evidências, começando com esta declaração de Eusébio sobre os supostos eventos em Lyon…

Eusébio

A perseguição mais famosa aos cristãos durante o reinado de Marco Aurélio foi supostamente em Lyon, na Gália, em 177 d.C.  A primeira e única evidência deste incidente vem do historiador cristão Eusébio, que cita uma carta bastante curiosa em sua História Eclesiástica, descrevendo os eventos da seguinte forma:

A grandeza da tribulação nesta região, e a fúria dos pagãos contra os santos, e os sofrimentos das testemunhas abençoadas, não podemos relatar com exatidão, nem mesmo poderiam ser registrados.  Pois com todas as suas forças o adversário [Satanás] caiu sobre nós, dando-nos uma amostra de sua atividade desmedida na sua vinda futura. Ele se esforçou de todas as maneiras para praticar e usar seus servos contra os servos de Deus, não apenas nos expulsando de casas, banhos e mercados, mas proibindo qualquer um de nós de ser visto em qualquer lugar que seja.  Mas a graça de Deus conduziu o conflito contra ele, e libertou os fracos, e os colocou como pilares firmes, capazes por paciência de suportar toda a ira do Maligno.
E se uniram a Ele, sofrendo todo tipo de vergonha e ferimentos; e considerando seus grandes sofrimentos como pouco, agarraram-se a Cristo, manifestando verdadeiramente que “os sofrimentos deste tempo presente não são dignos de serem comparados com a glória que nos será revelada depois”. [Romanos 8:18 7]. Antes de tudo, eles suportaram nobremente os ferimentos que lhes foram infligidos pela multidão; clamores e golpes e arrastões e roubos e apedrejamentos e prisões, e todas as coisas que uma multidão enfurecida se deleita em infligir a inimigos e adversários. Então, sendo levados ao fórum pelo chiliarch [comandante da guarnição?] e pelas autoridades da cidade, foram examinados na presença de toda a multidão, e tendo confessado, foram presos até a chegada do governador.

A carta continua a descrever numerosas torturas sangrentas com um nível de detalhe que pode parecer um tanto excessivo e pitoresco.  Muitos leitores modernos consequentemente acham o estilo como indicativo de ficção, ou pelo menos de exagero.

Além disso, há vários problemas muito marcantes enfrentados por aqueles que querem tentar usar esta carta como prova para a alegação de que Marco perseguia os cristãos:

  1. Eusebius terminou de escrever a História Eclesiástica em cerca de 300 d.C., mais de cento e vinte anos após o suposto incidente.  Não há indicação de quando a carta que ele está citando foi realmente escrita.  Entretanto, ele alega que os eventos descritos nela aconteceram muito antes mesmo de ele nascer.  Portanto, ele não tinha conhecimento em primeira mão, mas confiava inteiramente na narrativa fornecida pela duvidosa carta citada.
  2. Os historiadores têm que levar em conta o “argumento baseado no silêncio”: nenhum outro autor pagão ou cristão do período faz qualquer menção a esses eventos, apesar de sua natureza marcante e dramática.  É altamente notável que nenhum outro autor cristão do período se refira de fato a este incidente.  De fato, o primeiro autor na Gália a mencionar este evento foi Sulpício Severo[3], escrevendo 400 anos depois, e sua única fonte parece ser Eusébio.
  3. O pai da igreja Irineu[4], bispo cristão de Lyon, onde o incidente supostamente ocorreu, escreveu seu gigantesco Adversus Haereses de cinco volumes em 180 d.C., três anos após a suposta perseguição.  E ainda assim, ele não faz absolutamente nenhuma menção a este incrível evento que aconteceu em sua cidade.  Na realidade, ao contrário, ele diz: “Os romanos deram paz ao mundo, e nós [cristãos] viajamos sem medo pelas estradas e através do mar onde quer que seja”. (Contra Heresias, Livro IV, Capítulo 30, Sentença 3).
  4. O pai da igreja, Tertuliano[5], tinha cerca de vinte anos na época em que o incidente em Lyon supostamente aconteceu.  Como veremos, embora ele estivesse realmente vivo na época, ele também não faz nenhuma menção à perseguição em Lyon, e na verdade diz muito enfaticamente que Marco Aurélio era um “protetor” dos cristãos.
  5. A carta citada por Eusébio começa culpando as ações da turba do ” o adversário ” ou no “Maligno”, pelo qual os autores claramente queriam dizer Satanás. Ela continua descrevendo como os mártires cristãos sobreviveram a torturas inconcebíveis e feridas extensas, foram milagrosamente curados e restaurados à saúde quando esticados na cremalheira, e até mesmo ressuscitados dos mortos.  Isto acrescenta um elemento sobrenatural ou implausível ao relato, que muitos leitores modernos podem achar indicativo de falsidade ou exagero.
  6. A carta realmente conclui culpando a multidão e as autoridades da cidade de Lyon – ela não atribui responsabilidade a Marco Aurélio ou a Roma.  Quando este evento supostamente aconteceu, a propósito, Marco estava ocupado em campanha na fronteira norte, a cerca de três semanas de marcha longe de Lyon.
  7. Temos o texto sobrevivente de um édito imperial de Marco Aurélio que fornece provas de que ele realmente tentou evitar a perseguição dos cristãos pelas autoridades provinciais (veja abaixo).
  8. Finalmente, e bizarramente, o próprio Eusébio admitiu várias vezes que sua história eclesiástica continha “falsidades” deliberadas ou fraudes piedosas.  Ele é, portanto, frequentemente visto como uma fonte muito pouco confiável para este tipo de informação.

Edward Gibbon, por exemplo, autor de A História do Declínio e da Queda do Império Romano, gostava de ressaltar que Eusébio admitiu empregar a desinformação deliberada para promover a mensagem cristã.  Um dos cabeçalhos dos capítulos de Eusébio era: “Que às vezes será necessário usar a falsidade como um remédio para o benefício daqueles que requerem tal modo de tratamento”.  O historiador Jacob Burckhardt, portanto, descreveu Eusébio como “o primeiro historiador completamente desonesto da antiguidade”.  De fato, seria mais apropriado referir-se a Eusébio como um propagandista cristão do que como historiador.

Em resumo, por estas e outras razões, Eusébio é considerado por muitos estudiosos modernos como uma fonte extremamente pouco confiável.  Seus relatos de martírio cristão referem-se a eventos várias gerações antes mesmo de ele nascer, como vimos, e são embelezados com detalhes extravagantes que têm o ar de ficção.  Por exemplo, a perseguição não é retratada como esporádica, mas infligida por Satanás em miríades de cristãos em todo o império.  A escala e severidade desta perseguição é totalmente incompatível com o testemunho de outros cristãos vivos na época e difícil de reconciliar com a escassez de provas de outros autores.  Além disso, ele inclui muitas reivindicações sobrenaturais que minam a credibilidade de seus relatos aos olhos dos leitores modernos.  Por exemplo, ele afirma como fatos milagres como o de que mártires cristãos sobreviveram dentro dos estômagos dos leões depois de serem comidos ou que levitavam centenas de metros no ar pela graça de Deus.  Como foi observado acima, a própria carta também descreve a cura milagrosa de mártires gravemente feridos em Lyon, e até mesmo sua ressurreição da morte.  Se questionarmos estas reivindicações sobrenaturais, é difícil saber que outros aspectos da carta devem ser levados a sério.

Eusébio também se mostra particularmente pouco confiável em relação a esta época da história romana porque, notavelmente, em vários pontos ele realmente confunde Marco Aurélio tanto com seu irmão adotivo Lúcio Vero, quanto com seu pai adotivo Antonino Pio.  Além disso, é frequente que os documentos (cartas, etc.) citados em fontes antigas não sejam considerados confiáveis por acadêmicos, porque muitas falsificações circulavam na época e os autores antigos muitas vezes não tinham os recursos para autenticá-los.  Os estudiosos, de fato, já identificaram numerosos documentos citados nos escritos de Eusébio como falsificações definitivas.  Nesta carta em particular, excepcionalmente, nenhuma data é dada na rubrica citada, portanto não está claro em que base Eusébio poderia ter chegado à conclusão de que a intenção era se referir a eventos durante o reinado de Marcus Aurelius.  A própria carta emprega apenas o título genérico de César, para o Imperador.  Eusébio pode estar apenas adivinhando a data, e que o César em questão é Marco Aurélio, embora francamente pareça provável que a carta inteira seja uma falsificação.  Como foi observado acima, porém, este documento é a única e única prova da suposta perseguição em Lyon.

Tertuliano

De fato, as únicas fontes que descrevem a perseguição durante o reinado de Marco Aurélio vêm de gerações posteriores de autores cristãos, que não foram testemunhas dos eventos que eles descrevem.  Nenhum deles realmente atribui responsabilidade a Marco.  O relato mais famoso é a perseguição de Lyon, que, como vimos, é de autenticidade altamente questionável.

Em contraste, o pai da igreja Tertuliano foi na verdade um contemporâneo de Marco Aurélio e seu testemunho é que ele fora enfaticamente um “protetor” dos cristãos.

Mas de tantos príncipes desde aquele tempo até o presente, homens versados em todos os sistemas de conhecimento, produzem se você quiser, um perseguidor dos cristãos. Nós, entretanto, podemos, do outro lado, produzir um protetor, se as cartas do mais sério imperador Marco Aurélio forem revistadas, nas quais ele testemunha que a conhecida seca germânica foi dissipada pela chuva obtida através das orações dos cristãos que por acaso estavam no exército. ( Apologia, 5)

Isto parece criar uma contradição interna na literatura cristã, pelo menos para aqueles que (duvidosamente) desejam ler outros relatos cristãos que culpem Marco pela perseguição a cristãos.  (Como vimos, a carta citada por Eusébio não parece realmente responsabilizar).  Na verdade, nenhum autor, cristão ou pagão, parece citar qualquer édito de Marco que condene os cristãos.  Isto é digno de nota porque se ele tivesse realmente emitido um, eles certamente o teriam mencionado.

Carta de Marco para as Províncias Asiáticas

Temos, no entanto, um decreto sobrevivente atribuído a Marco e intitulado Carta de Antonino à Assembléia Comum da Ásia, que parece fornecer provas de que ele interveio ativamente para evitar a perseguição dos cristãos.  Ela é datada de 161 d.C., e emitida por Marco na qualidade de Imperador, o que sugere que foi uma de suas primeiras ações logo após ter sido aclamado ao trono.

Ele se refere explicitamente ao problema dos cristãos que são considerados pelos romanos como ateus porque eles não adoram os deuses pagãos convencionais.  Marco adverte as autoridades provinciais: “você molesta esses homens e os endurece em suas convicções, às quais se apegam, ao acusá-los de serem ateus”.  Ele afirma que os governadores provinciais escreveram muitas vezes a seu pai adotivo, o imperador Antonino Pio, cuja resposta foi sempre “não molestar tais pessoas”, a menos que eles estivessem realmente fazendo tentativas de prejudicar o governo romano.  Marco diz que ele mesmo, como Imperador, também repete com frequência esta política de não assédio a eles.  Na verdade, ele chega ao ponto de dizer: “E se alguém persistir em trazer qualquer pessoa [cristã] a problemas por ser o que é, que ele, contra quem a acusação é feita, seja absolvido mesmo que a acusação seja feita, mas que aquele que traz a acusação seja chamado a prestar contas”.  Em outras palavras, ele sugere que as autoridades provinciais possam ser punidas por Roma por perseguir os cristãos somente com base em sua religião.

C.R. Haines, que publicou este édito como um apêndice a sua tradução da Loeb das Meditações, incluiu um ensaio intitulado “Nota sobre a Atitude de Marco para com os Cristãos”.  Ele começa “Nada fez tanto mal ao bom nome de Marco quanto sua suposta atitude intransigente para com os cristãos” e conclui:

De fato, Marco foi acusado como perseguidor dos cristãos por razões puramente circunstanciais e bastante insuficientes.  O testemunho geral dos escritores cristãos contemporâneos é contra a suposição.  O mesmo acontece com o caráter conhecido de Marco.

Ele continua argumentando que a afirmação retrospectiva de Eusébio sobre inúmeras miríades de cristãos sendo perseguidos e horrivelmente torturados até a morte em todo o Império Romano dois séculos antes também é inconsistente com numerosos fatos históricos – frequentemente citados pelo próprio Eusébio e outros autores cristãos.  Por exemplo, a presença de um bispo à frente de uma comunidade de cristãos foi tolerada até mesmo em Roma, havia vários cristãos a serviço da própria casa de Marco, e provavelmente até mesmo cristãos no Senado romano.  Segundo Eusébio e outras três fontes cristãs, por exemplo, o senador Apolônio de Roma foi condenado à morte, sob o regime de Commodus.  Entretanto, isso implica que durante o reinado de Marco Apolônio foi permitido servir no Senado, apesar de ser cristão.  Várias fontes, incluindo Tertuliano, atestam que a Legião Fulminante[6] (Legio XII Fulminata) comandada por Marco na fronteira norte era composta em grande parte por soldados cristãos.

A obsessão de Marco Aurélio pela bondade, justiça e clemência é claramente demonstrada ao longo de toda Meditações.  Entretanto, isto é reforçado por numerosas referências a seu caráter nos escritos de outros autores romanos.  Marco é retratado com notável consistência como sendo um homem de excepcional clemência e humanidade – essa era sua reputação universal.  Os autores latinos tipicamente usavam a palavra humanitas (bondade) para descrever seu caráter; em grego a palavra filantropia (amor à humanidade) era preferida.

Haines, portanto, também acha implausível que alguém tão universalmente considerado como um homem de bondade e clemência excepcionais tivesse “encorajado a multidão contra pessoas inofensivas, ordenado a tortura de mulheres e meninos inocentes, e violado os direitos de cidadania”.  De fato, como vimos, não parece haver qualquer evidência de que Marco tenha sido realmente responsável pela perseguição dos cristãos.  O peso das provas, ao contrário, sugere que ele era, como afirma Tertuliano, um “protetor” dos cristãos, e tentou impedir as autoridades provinciais de persegui-los.

Podemos também olhar para o reinado de Antonino Pio, pai adotivo de Marco e predecessor como imperador, em busca de provas.  Desde que Marco foi nomeado César em 140 DC até a morte de Antonino Pio em 161 DC, por mais de vinte anos, Marco foi seu braço direito e praticamente co-regente ao seu lado.  De fato, Marco ajudou Antonino Pio a governar por mais tempo do que ele mesmo reinou, pois ele morreu em 180 DC, após dezenove anos no trono.  Tanto quanto sabemos, eles estavam de acordo em todos os assuntos, e cerca de uma década após sua morte, nas suas Meditações, Marco ainda se lembra de viver como um “discípulo de Antonino”.

De acordo com o epítome da História Romana de Cassius Dio feita por Xifilino:[7]

Antonino é reconhecido por todos como tendo sido nobre e bom, nem opressivo para os cristãos nem violento perante nenhum de seus outros súditos; ao invés disso, ele mostrou aos cristãos grande respeito e acrescentou à honra na qual Adriano costumava mantê-los. (Historia Romana)

Portanto, seria altamente notável se Marco (de todas as pessoas!) que tinha sido o braço direito nesta administração de Antonino, tivesse de repente levado a cabo uma reviravolta política dramática em relação aos cristãos e começasse a persegui-los ativamente em grande escala.

Na verdade, a forma de cristianismo que mais cresceu durante o reinado de Marco foi o Montanismo[8].  Sabemos que os Montanistas foram erradicados da história não porque foram perseguidos por Marco Aurélio ou pelas autoridades romanas, mas porque foram perseguidos e excomungados por outros cristãos, possivelmente incluindo os líderes da igreja ortodoxa de Lião.


[1] Henry Dwight Sedgwick III (24 de setembro de 1861 – 5 de janeiro de 1957) foi um advogado e autor americano. Escreveu uma biografia de Marco Aurélio, obra muito popular.

[2] Eusébio de Cesareia (ca. 265, 30 de maio de 339) (chamado também de Eusebius Pamphili) foi bispo de Cesareia e é referido como o pai da história da Igreja porque nos seus escritos estão os primeiros relatos quanto à história do cristianismo primitivo.

[3] Sulpício Severo (em latim: Sulpicius Severus; c. 363 — ca. 425) foi um escritor cristão nascido na Aquitânia. Ele é conhecido por sua História Sacra, ou a história do mundo desde a criação até seu tempo, e também por sua biografia de Martinho de Tours.

[4] Ireneu ou Irineu de Lyon ou Lião, em grego Εἰρηναῖος [pacífico] transliterado [Eirenaios], em latim Irenaeus, (ca. 130 – 202) foi um bispo grego, teólogo e escritor que nasceu, segundo se crê, na província romana da Ásia Menor Proconsular – a parte mais ocidental da actual Turquia – provavelmente Esmirna. O livro mais famoso de Ireneu, Sobre a detecção e refutação da chamada Gnosis, também conhecido como Contra Heresias (Adversus haereses, ca. 180 d.C.) é um ataque minucioso ao gnosticismo, que era então uma séria ameaça à Igreja primitiva e, especialmente, ao sistema proposto pelo gnóstico Valentim

[5] Tertuliano (em latim: Quintus Septimius Florens Tertullianus; c. 160 — c. 220 (60 anos)) foi um prolífico autor das primeiras fases do Cristianismo, nascido em Cartago na província romana da África Proconsular. Ele foi o primeiro autor cristão a produzir uma obra literária (corpus) em latim. Ele também foi um notável apologista cristão e um polemista contra a heresia.

[6] Legio duodecima Fulminata ou Legio XII Fulminata (“Décima-segunda legião, armada com raios”), também conhecida como “Paterna”, “Victrix”, “Antiqua”, “Certa Constans” e “Galliena”, foi uma legião romana, formada por Júlio César em 58 a.C. e que o acompanhou nas Guerras gálicas até 49 a.C. A unidade permanecia guardando um vau do rio Eufrates perto de Melitene no início do século V d.C. O emblema da legião era um raio (fulmen). Nos séculos finais de sua existência passou a ser conhecida corriqueiramente – e incorretamente – como Legio Fulminatrix, a Legião Fulminante.

[7] João Xifilino (em grego: Ἰωάννης Η΄ Ξιφιλῖνος; em latim: Joannes Xiphilinus), dito Epitomator por sua epítome de Dião Cássio, viveu em Constantinopla durante segunda metade do século XI. Ele foi um monge e era sobrinho do patriarca João VIII de Constantinopla, um pregador renomado.

[8] O montanismo foi um movimento cristão fundado por Montano por volta de 156-157 (ou 172), que se organizou e difundiu em comunidades na Ásia Menor, em Roma e no Norte de África. Por ter se originado na região da Frígia, Eusébio de Cesareia relata em sua História Eclesiástica (V.14-16) que ela era chamada de “Heresia Frígia” na época.

Resenha: Consolação a Márcia

Na Antiguidade, a carta de consolação era um gênero literário popular, sendo essencialmente um veículo para apresentar aspectos cruciais de uma escola filosófica e ao mesmo tempo dar conselhos reais sobre como lidar com a perda e o luto. O gênero literário Consolação foi cultivado por todas as grandes escolas, nela, o filósofo procura entender a dor que abala a pessoa a ser consolada e, ainda, compreender sua visão de mundo para assim expor sua filosofia, de forma que seja melhor assimilada pelo espírito em luto. Cleonice van Raij, diz:

Entre os filósofos e retores romanos o primeiro que se ocupou desse gênero foi Cícero, por ocasião da morte de sua filha Túlia, quando escreveu uma Consolação, a fim de abrandar a própria dor. Tal Consolação, infelizmente, não chegou até nós, restando dela apenas alguns fragmentos conservados nas Tusculanas. Sêneca, sem a menor dúvida, foi o mais fecundo escritor latino de Consolações, se considerarmos não só os textos conhecidos sob esse nome, mas também os vários tratados de alto teor consolatório, como Sobre a brevidade da vidaSobre a tranquilidade da alma, De remediis fortuitorum (Sobre os remédios dos acontecimentos fortuitos) e as cartas que, em grande parte, pertencem a esse gênero, como as LXIII, LXXXIXCIII e CVII, dirigidas a Lucílio. No entanto, as genuínas Consolações, ou seja, aquelas que mais respondem às exigências da tradição consolatória, são três: A MárciaA Hélvia e A Políbio.

Consolação a Márcia, Ad Marciam, De Consolatione”, é a primeira carta de consolação de Sêneca, escrita aproximadamente no ano 40, sendo a obra conhecida mais antiga do filósofo. A carta é endereçada a Márcia, filha do proeminente historiador Aulo Cremúcio Cordo[1].

Sêneca lhe escreve porque seu luto pela morte de seu filho Metílio parecia ter se tornado crônico, continuando três anos após a tragédia. Sêneca adverte Márcia, desde o início, que ele não será gentil:

Que outros usem medidas suaves e carícias; decidi lutar com sua dor, e vou secar esses olhos cansados e exaustos, que já, para dizer a verdade, choram mais por hábito do que por tristeza… Não posso agora influenciar uma dor tão forte por medidas educadas e suaves: ela deve ser destruída pela força”(I, 5, 8) .

Ele então lembra a sua amiga que todos os remédios normais contra seu luto prolongado têm falhado até agora: o consolo de seus amigos, a distração de bons livros, nem mesmo o próprio tempo. Ele teme que neste momento a dor tenha tomado uma morada permanente em sua alma, e que somente a filosofia esteja à altura do trabalho de restaurá-la a uma vida normal, caso contrário “alma infeliz toma uma espécie de mórbido deleite no pesar”.

Esta admirável peça de consolação oferece argumentos da filosofia estoica e sua visão de mundo, a fim de ajudar os enlutados e desolados a considerar outros aspectos da perda e também reconhecer a inevitabilidade da morte. Sêneca tenta transformar a tristeza paralisante de Márcia em belas e agradáveis lembranças do tempo que passaram juntos.

A primeira abordagem utilizada por Sêneca é a de recordar a Márcia dois exemplos contrastantes de luto em duas outras famosas mulheres romanas: Otávia e Lívia, respectivamente irmã e esposa de Otávio Augusto (o primeiro imperador). Ambas haviam perdido um filho, mas reagiram de maneira muito diferente: Otávia fez como Márcia, nunca emergindo de sua dor, negligenciando seus deveres familiares e sociais, e até mesmo ressentindo-se do filho sobrevivente de Lívia.

Sêneca então diz sem rodeios a Márcia que ela tem duas alternativas: seguir uma delas. Por que o caminho de Lívia é melhor que o de Otávia? “Que loucura é essa, castigar a si mesma porque é infeliz, e não para diminuir, mas para aumentar seus males! Você deve mostrar, também neste assunto, aquele comportamento decente e modéstia que tem caracterizado toda a sua vida: pois existe algo como autodomínio no luto também” (IV, 5). Note que este é um bom argumento contra aqueles que acusam os estoicos de reprimir as emoções. Não se trata de reprimir mas sim de administrar de forma razoável. Ter emoções é humano, ser possuído e controlado por elas é o caminho para a própria destruição. Com efeito, Sêneca é explícito a respeito disto:

nem vou tentar secar os olhos de uma mãe no próprio dia do enterro de seu filho. Eu irei me apresentar diante de um árbitro: o assunto sobre o qual iremos nos unir é, se o luto deve ser profundo ou incessante” (IV, 1)

Na sequencia, Sêneca aplica três estratégias contra a dor: Primeiro, ele lembra Márcia que seus próprios amigos agora não sabem como se comportar em sua presença. Em segundo lugar, argumenta que é uma má escolha não considerar a totalidade da vida de seu filho, e concentrar-se apenas no seu fim. Finalmente , ele traz o argumento estoico de que a verdadeira coragem só é testada em águas agitadas:

não há grande crédito em comportar-se corajosamente em tempos de prosperidade, quando a vida desliza facilmente com uma corrente favorável: nem um mar calmo e um vento suave exibem a arte do piloto: algum mau tempo é desejado para provar sua coragem” (V, 5).

Na décima seção Sêneca antecipa o famoso argumento de Epicteto de que não possuímos realmente coisas ou pessoas, elas são simplesmente emprestadas a nós pelo universo, e que “é nosso dever sempre poder colocar nossas mãos sobre o que nos foi emprestado sem data fixa para sua devolução, e restaurá-lo quando chamado sem um murmúrio». Muitos criticam filósofos da antiguidade por ser “sexistas” e desprezarem feminilidade. Na seção 16 Sêneca prova o contrário:

No entanto, quem diria que a natureza tem tratado com rancor as mentes das mulheres, e atrofiado suas virtudes? Acredite, elas têm o mesmo poder intelectual que os homens, e a mesma capacidade de ação honrada e generosa. Se treinadas para isso, elas são igualmente capazes de suportar a tristeza ou o trabalho.” (XVI, 2)

Sêneca aplica dezenas de argumentos de consolo, de fato, a própria vida tem sentido, diz Sêneca a Márcia, precisamente porque morremos. Coloca analogias estoicas que mais tarde foram imortalizadas nos ensinamentos de Epicteto: vida como uma estadia em uma pousada na qual somos hóspedes e Marco Aurélio: pense nos muitos séculos que se foram e nas cidades poderosas que pereceram.

Também apresenta exemplos de estadistas, como Pompeu, que viveram além de seu auge e terminaram sua vida em desgraça ou por traição. Sempre assumimos que quando a vida foi cortada, ela nos privou de uma série de coisas boas, mas isto não é de forma alguma garantido. Às vezes, a morte é na verdade uma bênção. Finalmente, Sêneca argumenta que o tempo transcorrido não é uma boa medida do valor de uma vida:

Passe a contar sua idade, não por anos, mas por virtudes: viveu tempo suficiente” (XXIV, 1)

Em síntese, esta é uma carta impressionante. Sêneca reconhece a humanidade da dor, nunca considera o luto de Márcia como insignificante, mesmo três anos após a morte do filho. Ele emprega grande gama de argumentos da escola estoica para convencê-la de que já passou tempo suficiente, de que ela deveria voltar à sociedade como um membro produtivo, enquanto transforma sua tristeza em doces lembranças de seu filho. É difícil imaginar uma abordagem mais humana do luto.


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[1] Aulo Cremúcio Cordo (falecido em 25 d.C.) foi um historiador romano. Há muito poucos fragmentos restantes de sua obra, principalmente cobrindo a guerra civil e o reinado de Augusto. Em 25 d.C. ele foi obrigado por Sejano, que foi chefe dos pretorianos sob Tibério, a tirar sua vida depois de ser acusado de traição.

O que os brasileiros poderiam aprender com os estoicos romanos

O Ensaio abaixo borda os principais filósofos estoicos e suas lições para enfrentar a adversidade, escrito sob a ótica da crise recente.

Todos têm de jogar o jogo da vida. Você não pode simplesmente andar por aí dizendo: “Não dou a mínima para a riqueza, a saúde ou se eu for mandado para a prisão ou não”. Epicteto levou tempo para explicar melhor o que quis dizer. Ele diz que todos devem jogar o jogo da vida — que os melhores o jogam com “habilidade, estilo, presteza e graça”. Mas, como a maioria dos jogos, você o joga com uma bola. Seu time intensamente se esforça para fazê-la atravessar a linha de fundo. Mas, depois do jogo, o que se faz com a bola? Ninguém se importa. Não vale a pena se importar com ela. A competição, o jogo, foi a coisa propriamente dita. A bola foi “usada” para tornar o jogo possível, mas em si mesma não tem valor algum que justifique que se lute por ela. Uma vez terminado o jogo, a bola é uma questão indiferente.

(James B. Stockdale)

O espírito do artigo é: “O mundo pode ser cruel, mas nada nos força a ser cruéis com ele. Assim como nada nos obriga a idealizá-lo. A obra da filosofia é simples e discreta.”

Artigo excelente de Donato S. Ferrara.

O que os brasileiros poderiam aprender com os estoicos romanos

26 de Abril, aniversário de Marco Aurélio

Há 1899 anos atras nascia Marco Aurélio, em 26 de abril de 121.

Durante os últimos 14 anos de sua vida ele enfrentou uma das piores pragas da história da Europa, a peste Antonina, que recebeu seu nome. Estima-se que tenha matado até 5 milhões de pessoas, possivelmente incluindo o próprio imperador. No meio desta praga, Marco Aurélio escreveu suas Meditações, o maior clássico do estoicismo, onde registra conselhos morais e psicológicos a si mesmo. Ele frequentemente aplica a filosofia estoica aos desafios de lidar com a dor, a doença, a ansiedade e a perda.

Marco Aurélio nos ensina que o medo nos faz mais mal do que as coisas das quais temos medo. Escrevemos uma série de resenhas das Meditações, uma para cada capítulo.

Pensamento #56: Seja previdente, mas não entre em pânico.

p56-meditacoes IX-2

Como citamos anteriormente, durante o governo de Marco Aurélio ocorreu a Peste Antonina que devastou o Império Romano, causando a morte de cinco milhões de pessoas.

Lidar com o medo da morte é tema recorrente das Meditações. A peste também é citada, como neste trecho, em que o imperador condena atitudes irracionais:

“corrupção da mente é uma doença muito mais grave do que qualquer peste equiparável no ar que nos cerca.  Pois esta corrupção é uma peste animal tanto quanto eles são animais; mas a outra é uma peste de homens tanto quanto eles são homens.”

Livro IX, 2

Todo o terceiro parágrafo aborda a atitude esperada diante da morte: Não ser descuidado, mas não temer.

Não despreze a morte, mas fique em paz com ela, pois esta também é uma daquelas coisas que a natureza quer. Pois tal como é ser jovem e envelhecer, e crescer e alcançar a maturidade, e ter dentes, barba e cabelos brancos, e conceber e estar grávida e procriar, e todas as outras operações naturais que as estações da sua vida trazem, tal também é a dissolução. Isto, portanto, é consistente com o caráter de um homem que reflete – não ser descuidado, nem impaciente, nem desdenhoso em relação à morte, mas esperar por ela como uma das operações da natureza. Como agora espera o momento em que a criança sairá do ventre de sua esposa, assim esteja pronto para o momento em que sua alma sair deste envelope.  (Livro IX, 3)


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