Carta 61: Sobre encontrar a morte alegremente

Mais uma vez o assunto é a aceitação da morte e viver uma boa vida.  Logo no início Sêneca diz “Antes de envelhecer, tentei viver bem; agora que estou velho, vou tentar morrer bem; mas morrer bem significa morrer alegremente. Cuide para que você nunca faça nada de má vontade.” (LXI, 2)

A dica dada é fazer aquilo que gosta e evitar fazer coisas contra sua vontade:

“Aquele que acata ordens com prazer, escapa à parte mais amarga da escravidão – fazer aquilo que não quer fazer.” (LXI, 3)

Esta é uma situação muito comum atualmente.  As pessoas, convencidas que precisam de muito dinheiro, bens materiais e experiências caras se prendem em empregos, serviço público e trabalham longas horas fazendo aquilo que não quer fazer.

(imagem A morte de Sêneca por Jacques-Louis David de 1773)


LXI. Sobre encontrar a morte alegremente

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Deixemos de desejar o que desejamos. Eu, pelo menos, estou fazendo isso: na minha velhice, deixei de desejar o que desejava quando era menino. A esta única extremidade meus dias e minhas noites são passados; esta é minha tarefa, este é o objeto de meus pensamentos, – pôr fim aos meus males crônicos. Estou tentando viver todos os dias como se fosse uma vida completa. Não o arrebatarei de fato como se fosse o último; eu o considero, entretanto, como se pudesse mesmo ser meu último.
  2. A presente carta é escrita com isto em mente, como se a morte estivesse prestes a me chamar durante o próprio ato de escrever. Eu estou pronto para partir, e eu devo gozar a vida apenas porque não sou demasiadamente ansioso quanto à data futura de minha partida. Antes de envelhecer, tentei viver bem; agora que estou velho, vou tentar morrer bem; mas morrer bem significa morrer alegremente. Cuide para que você nunca faça nada de má vontade.
  3. O que é obrigado a ser uma imprescindibilidade se você se rebelar, não é uma imprescindibilidade, se você a desejar. É isso que quero dizer: aquele que acata ordens com prazer, escapa à parte mais amarga da escravidão, – fazer aquilo que não quer fazer. O homem que faz alguma coisa sob ordens não é infeliz; é infeliz quem faz algo contra a sua vontade. Portanto, fixemos nossas mentes para que possamos desejar tudo o que é exigido de nós pelas circunstâncias e, acima de tudo, que possamos refletir sobre o nosso fim sem tristeza.
  4. Devemos preparar-nos para a morte antes de nos prepararmos para a vida. A vida está bem mobiliada, mas somos muito gananciosos em relação aos seus móveis; algo sempre nos parece faltar, e sempre parecerá faltar. Ter vivido o suficiente não depende nem de nossos anos, nem de nossos dias, mas de nossas mentes. Já vivi, meu caro amigo Lucílio, o suficiente. Eu tive minha satisfação; aguardo a morte.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

Carta #60: Sobre Orações Prejudiciais

Sêneca inicia a carta 60 com alegorias jurídicas,  dizendo que em geral oramos aos deuses pedindo coisas irrelevantes e até mesmo prejudiciais.

Segue afirmando que fazemos pedidos como se fossemos crianças incapazes querendo coisas supérfluas:

“Até quando continuaremos a encher de trigo os mercados de nossas grandes cidades? Por quanto tempo as pessoas devem juntá-lo para nós? Por quanto tempo muitos navios trarão coisas necessárias para uma única refeição, trazendo-os de inúmeros mares? O touro é satisfeito quando se alimenta por alguns acres; e uma floresta é grande o suficiente para um rebanho de elefantes. O homem, entretanto, arranca seu sustento tanto da terra como do mar.” (LX,2)

Aplica o estoicismo ao defender que devemos seguir nossa natureza, que se satisfaz com pouco:  “Não é a fome natural de nossas barrigas que nos custa caro, mas nossos desejos vorazes”. (LX,3)

Suas ideias e ensinamentos se mantêm atuais e relevantes num momento em que voltamos a discutir sustentabilidade e defesa do meio ambiente.

(Imagem detalhe da escultura David, por Michelangelo)


LX. Sobre Orações Prejudiciais

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Eu protocolo uma queixa, eu inicio um processo, eu estou com raiva. Você ainda deseja o que seu mentor, seu guardião[1] ou sua mãe, orem em seu favor? Você ainda não entende por qual mal eles oram? Infelizmente, quão hostis para nós são os desejos dos nossos próprios amigos! E são tanto mais hostis quanto mais plenamente se cumprem. Não é surpresa para mim, na minha idade, que nada mais do que o mal nos assiste desde a nossa juventude; pois crescemos entre as maldições invocadas por nossos pais. E que os deuses deem ouvidos ao nosso clamor também, proferido em nosso próprio interesse, – um que não peça favores!
  2. Quanto tempo continuaremos a fazer exigências aos deuses, como se ainda não pudéssemos nos sustentar? Até quando continuaremos a encher de trigo os mercados de nossas grandes cidades? Por quanto tempo as pessoas devem juntá-lo para nós? Por quanto tempo muitos navios trarão coisas necessárias para uma única refeição, trazendo-os de inúmeros mares? O touro é satisfeito quando se alimenta por alguns acres; e uma floresta é grande o suficiente para um rebanho de elefantes. O homem, entretanto, arranca seu sustento tanto da terra como do mar.
  3. O que, então? Será que a natureza nos deu barrigas tão insaciáveis, quando nos deu esses corpos insignificantes, que devemos superar os animais mais vorazes em ganância? De modo nenhum. Quão pequena é a quantidade que vai satisfazer a natureza? Um pouco vai mandá-la embora satisfeita. Não é a fome natural de nossas barrigas que nos custa caro, mas nossos desejos vorazes.
  4. Portanto, aqueles que, como diz Salústio, “ouvem suas barrigas[2]“, devem ser contados entre os animais, e não entre os homens; e certos homens, na verdade, devem ser contados, nem mesmo entre os animais, mas entre os mortos. Realmente vive quem é usado por muitos; realmente vive quem faz uso de si mesmo. Esses homens, entretanto, que se arrastam para um buraco e ficam torpes não são melhores em suas casas do que se estivessem em seus túmulos. Ali mesmo, na fachada de mármore da casa de tal homem, você pode inscrever seu nome, pois ele morreu antes de ter morrido.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Sêneca usa o termo paedagogus, o escravo incumbido de acompanhar crianças à escola

[2] Caio Salústio Crispo descreve os romanos como escravos da gula em Catilina.

Carta 59: Sobre prazer e alegria

Na carta 59 Sêneca aborda a diferença entre prazer e alegria, reafirmando que o prazer é um vício, e alegria virtude.  Para ele  o prazer é sempre derivado de algo fora de você, enquanto que a alegria parte de seu interior.

Diz que devemos dedicar mais tempo à filosofia e no nos afastar dos bajuladores:

“Mas como um homem pode aprender, na luta contra seus vícios, uma quantia suficiente, se o tempo que ele dedica a aprender é apenas a sobra deixada por seus vícios?” (LIX, 10)

“O que mais nos impede é que estamos prontamente satisfeitos com nós mesmos; se nos encontrarmos com alguém que nos chama de homens bons, ou homens sensatos, ou homens santos, nos vemos em sua descrição, não nos contentamos com louvor em moderação, aceitamos tudo o que a vergonhosa lisonja nos atira, como se fosse nossa. Concordamos com aqueles que nos declaram ser o melhor e o mais sábio dos homens, embora saibamos que eles são dados a muita mentira. … Assim, segue-se que não estamos dispostos a ser reformados, apenas porque acreditamos ser o melhor dos homens.” (LIX, 11)

Conclui a carta dizendo que o prazer é uma alegria falsa, que depende de fontes externas:  O que a Fortuna não deu, ela não pode tirar. (LIX, 18)

(imagem Bacanal por Jan Brueghel o velho e Hendrik van Balen)


LIX. Sobre prazer e alegria

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Recebi grande prazer de sua carta; gentilmente permita-me usar essas palavras em seu significado cotidiano, sem insistir em seu significado estoico. Pois nós estoicos sustentamos que o prazer é um vício. Muito provavelmente é um vício; mas estamos acostumados a usar a palavra quando queremos indicar um estado de espírito feliz.
  2. Estou ciente de que, se testarmos as palavras pela nossa fórmula, até mesmo o prazer é uma coisa de má reputação, e a alegria só pode ser alcançada pelos sábios. Pois a “alegria” é um júbilo do espírito, de um espírito que confia na bondade e na verdade de suas posses. O uso comum, entretanto, é que derivamos grande “alegria” da posição de um amigo como cônsul, ou de seu casamento, ou do nascimento de seu filho; mas esses eventos, longe de ser motivo de alegria, são mais frequentemente o começo da tristeza por vir. Não! É uma característica da alegria real que ela nunca cessa, e nunca se transforma em seu oposto.
  3. Assim, quando nosso Virgílio fala deAs alegrias malignas da mente, [1]Suas palavras são eloquentes, mas não estritamente apropriadas. Pois nenhuma “alegria” pode ser má. Ele deu o nome de “alegria” aos prazeres, e assim expressou seu significado. Pois ele transmitiu a ideia de que os homens se deleitam em seu próprio mal.
  4. No entanto, eu não estava errado ao dizer que eu recebi grande “prazer” de sua carta; pois embora um homem ignorante possa derivar “alegria” se a causa for honrosa, contudo, uma vez que sua emoção é inconstante, e é provável que em breve tome outra direção, chamo-a de “prazer”; pois é inspirado por uma opinião sobre um bem espúrio; excede o controle e é levado ao excesso. Mas, para voltar ao assunto, deixe-me dizer-lhe o que me encantou em sua carta. Você tem suas palavras sob controle. Você não é levado pela sua linguagem, ou carregado além dos limites que você determinou.
  5. Muitos escritores são tentados pelo encanto de alguma frase sedutora para um tópico diferente do que eles tinham se proposto a discutir. Mas não foi assim no seu caso; Todas as suas palavras são compactas e adequadas ao assunto, você diz tudo o que deseja, e quer dizer ainda mais do que você diz. Esta é uma prova da importância de seu assunto, mostrando que sua mente, assim como suas palavras, não contém nada supérfluo ou empolado.
  6. No entanto, encontro algumas metáforas, de fato, ousadas, mas do tipo que já foi posto à prova. Também encontro analogias; é claro, se alguém nos proíbe de usá-las, sustentando que apenas os poetas têm esse privilégio, não tem, aparentemente, lido nenhum de nossos escritores de prosa antiga, que ainda não tinham aprendido a simular um estilo que pudesse ganhar aplausos. Pois aqueles escritores, cuja eloquência era simples e dirigida apenas para provar seu caso, estão cheios de comparações; e penso que estas são necessárias, não pela mesma razão que as torna necessárias para os poetas, mas para que possam servir de sustentação à nossa fraqueza, para levar o orador e o ouvinte face a face com o assunto em discussão.
  7. Por exemplo, estou neste momento lendo Séxtio; Ele é um homem afiado, e um filósofo que, embora escreva em grego, tem o padrão romano de ética. Uma de suas analogias agrada-me em especial, a de um exército marchando em um largo vazio, num lugar onde o inimigo poderia aparecer de qualquer lugar, pronto para a batalha. “Isto”, disse ele, “é exatamente o que o homem sábio deve fazer, ele deve ter todas as suas qualidades de combate dispostas por todos os lados, de modo que de onde quer que o ataque ameace, lá seus suportes estarão prontos e poderão obedecer ao comando do capitão sem confusão”. Isto é o que observamos em exércitos que servem sob grandes líderes; vemos como todas as tropas entendem simultaneamente as ordens de seu general, já que estão dispostas de modo que um sinal dado por um homem passe pelas fileiras da cavalaria e da infantaria no mesmo momento.
  8. Isto, declara ele, é ainda mais necessário para homens como nós; pois os soldados temiam com frequência um inimigo sem motivo, e a marcha que julgavam mais perigosa era de fato a mais segura; mas a insensatez não repousa, o medo assombra tanto na vanguarda como na parte de trás da coluna, e ambos os flancos estão em pânico. A insensatez é perseguida, e confrontada, pelo perigo. Isso esquiva-se por tudo; não se pode estar preparado; assusta-se mesmo por tropas menores. Mas o sábio é fortificado contra todas as incursões; ele está alerta; ele não recuará frente o ataque da pobreza, ou da tristeza, ou da desgraça, ou da dor. Ele andará impávido tanto contra eles como entre eles.
  9. Nós, seres humanos, somos agrilhoados e enfraquecidos por muitos vícios; nós temos chafurdado neles há muito tempo e é difícil para nós sermos purificados. Não estamos apenas contaminados; nós somos tingidos por eles. Mas, para abster-me de passar de uma figura para outra, vou levantar esta questão, que muitas vezes considero em meu próprio coração: por que é que a insensatez nos segura com um aperto tão insistente? É, principalmente, porque não a combatemos com força suficiente, porque não lutamos para a salvação com todas as nossas forças; segundo, porque não depositamos confiança suficiente nas descobertas dos sábios, e não bebemos de suas palavras com corações abertos; nós abordamos este grande problema em espírito muito frívolo.
  10. Mas como um homem pode aprender, na luta contra seus vícios, uma quantia suficiente, se o tempo que ele dedica a aprender é apenas a sobra deixada por seus vícios? Nenhum de nós vai fundo abaixo da superfície. Nós roçamos apenas o topo, e consideramos o breve tempo gasto na busca de sabedoria como suficiente e de sobra para um homem ocupado.
  11. O que mais nos impede é que estamos prontamente satisfeitos com nós mesmos; se nos encontrarmos com alguém que nos chama de homens bons, ou homens sensatos, ou homens santos, nos vemos em sua descrição, não nos contentamos com louvor em moderação, aceitamos tudo o que a vergonhosa lisonja nos atira, como se fosse nossa. Concordamos com aqueles que nos declaram ser o melhor e o mais sábio dos homens, embora saibamos que eles são dados a muita mentira. E somos tão autocomplacentes que desejamos elogios por certas ações quando somos especialmente viciados em exatamente o oposto. Aquele que se ouve chamar de “delicado” enquanto inflige torturas, ou “generoso” quando está empenhado em pilhagem, ou “moderado” quando está no meio da embriaguez e da luxúria. Assim, segue-se que não estamos dispostos a ser reformados, apenas porque acreditamos ser o melhor dos homens.
  12. Alexandre estava vagando até a índia, devastando tribos que eram pouco conhecidas, até mesmo para seus vizinhos. Durante o bloqueio de uma certa cidade, enquanto reconhecia as muralhas e procurava o ponto mais fraco das fortificações, foi ferido por uma flecha. No entanto, ele continuou durante muito tempo o cerco, com a intenção de terminar o que tinha começado. A dor de sua ferida, no entanto, quando a superfície ficou seca e o fluxo de sangue foi limitado, aumentou; sua perna gradualmente ficou entorpecida enquanto sentava seu cavalo; E finalmente, quando foi forçado a retirar-se, exclamou: “Todos os homens juram que eu sou o filho de Júpiter, mas esta ferida grita que eu sou mortal”[2].
  13. Vamos agir da mesma maneira. Todo homem, de acordo com sua sorte na vida, é abobalhado pela lisonja. Deveríamos dizer àquele que nos lisonjeia: “Você me chama de um homem sensato, mas eu entendo quantas das coisas que eu desejo são inúteis, e quantas das coisas que eu desejo me fariam mal. Não tenho sequer o conhecimento, que a saciedade ensina aos animais, do que deveria ser a medida do meu alimento ou da minha bebida. Eu ainda não sei o quanto eu posso ingerir. “
  14. Vou agora mostrar-lhe como você pode saber que não é sábio. O homem sábio é alegre, feliz e calmo, inabalável, vive num mesmo plano que os deuses. Agora vá, pergunte a si mesmo; se você nunca fica abatido, se sua mente não é assediada por minha apreensão, pela antecipação do que está por vir, se dia e noite sua alma continua em seu curso impar e inabalável, reta e contente consigo mesma, então você alcançou o maior bem que os mortais podem possuir. Se, no entanto, você procura prazeres de todos os tipos em todas as direções, você deve saber que está tão longe da sabedoria quanto está aquém de alegria. A alegria é o objetivo que você deseja alcançar, mas você está errando o caminho, se você espera alcançar seu objetivo enquanto está no meio de riquezas e títulos oficiais, – em outras palavras, se você busca a alegria no meio de preocupações, esses objetos pelos quais você se esforça tão ansiosamente, como se pudessem dar felicidade e prazer, são meras causas de dor.
  15. Todos os homens desta estampa, eu sustento, estão focados na busca da alegria, mas eles não sabem onde podem obter uma alegria que é grande e duradoura. Uma pessoa procura-a no banquete e na autoindulgência; outra, em busca de honras e em ser cercado por uma multidão de clientes; outra, em sua amante; outra, em exibição ociosa da cultura e da literatura que não tem poder para curar; todos esses homens são desviados por delícias que são enganosas e de vida curta – como a embriaguez, por exemplo, que paga por uma única hora de loucura hilariante via doença de muitos dias, ou como aplausos e a popularidade da aprovação entusiástica que são obtidos, e expiados, à custa de grande inquietação mental.
  16. Reflita, portanto, sobre isso, que o efeito da sabedoria é uma alegria ininterrupta e contínua. A mente do sábio é como o firmamento ultra lunar; a eterna calma permeia essa região. Você tem, então, uma razão para desejar ser sábio, se o sábio nunca é privado de alegria. Essa alegria brota apenas do conhecimento de que você possui as virtudes. Ninguém exceto o corajoso, o justo, o autocontido, pode se alegrar.
  17. E quando você pergunta: “O que você quer dizer? Não se alegram, os tolos e os ímpios?” Eu respondo, não mais do que leões que pegaram sua presa. Quando os homens se fatigarem com o vinho e a luxúria, quando a noite lhes falhar antes que a sua devassidão seja concluída, quando os prazeres que têm amontoado sobre um corpo que é pequeno demais para segurá-los começam a apodrecer, nesses momentos eles proferem em sua miséria aquelas linhas de Virgílio:
    Tu sabes como, em meio a falsas alegrias brilhantes,
    nós passamos aquelas últimas noites. [3]
  18. Os amantes do prazer passam todas as noites entre alegrias falsas e como se fossem as suas últimas. Mas a alegria que vem aos deuses, e àqueles que imitam aos deuses, não é interrompida, nem cessa; mas certamente cessaria se fosse emprestada do exterior. Exatamente porque não está no poder de outro para doar, também não está sujeita aos caprichos do outro. O que a Fortuna não deu, ela não pode tirar.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.


[1] Trecho de Eneida de Virgílio.
Et mala mentis gaudia,

[2] Várias histórias semelhantes são contadas sobre Alexandre, Plutarco, onde ele diz aos seus aduladores, apontando para uma ferida que acabou de receber: “Veja, isso é sangue, não ichor” (ichor sangue dos deuses na mitologia grega)

[3] Trecho de Eneida de Virgílio. Sobre a noite que precedeu o saque de Troia.
Namque ut supremam falsa inter gaudia
noctem Egerimus, nosti.

 

Carta 58: Sobre Ser, Existir e Eutanásia

A carta 58 começa com uma longa reflexão sobre a língua latina e avança para a discussão da metafísica platônica e sua distinção das teses do estoicismo.

O cerne da carta é a afirmação de que, afinal, esse debate de granularidade fina (subtilittts) não é de grande proveito prático; mas podemos usá-lo como oportunidade para refletir sobre a natureza transitória das entidades corpóreas, incluindo, é claro, nós mesmos:

“Muito bem”, diz você, “de que adianta eu obter de todo este bom raciocínio?” De nada, se você deseja que eu responda a sua pergunta. … Esse é o meu hábito, Lucílio: eu tento extrair e tornar útil algum elemento de cada campo do pensamento, não importa quão distante possa ser da filosofia. (LVIII, 25-26)

A mensagem de Sêneca é sobre eutanásia e o valor da vida dizendo que:

É um prazer estar na própria companhia o maior tempo possível, quando um homem se fez valer a pena. A questão, portanto, sobre a qual devemos registrar nosso julgamento, é se alguém deve fugir da extrema velhice e deve apressar o fim artificialmente, em vez de esperar que ele venha. … Pois faz muita diferença se um homem está alongando sua vida ou sua morte. (LVIII, 32-33)

A conclusão de Sêneca é clara e definitiva:

“se a velhice começar a despedaçar a minha mente e a rasgar em pedaços as suas várias faculdades, se ela me deixa, não a vida, mas apenas o sopro da vida, sairei correndo de uma casa que está desmoronando e cambaleando”.  Não vou evitar a doença procurando a morte, desde que a doença seja curável e não impeça minha alma.  Aquele que morre apenas porque está com dor é um fraco, um covarde; mas aquele que vive apenas para afrontar esta dor, é um tolo. (LVIII, 35-36)

Como comumente o faz, Sêneca termina a longa carta monstrando seu excelente bom humor, dizendo que “como um homem pode terminar sua vida, se ele não pode terminar uma carta? Então, adeus

(imagem escultura por Kenneth Treister museu do Holocausto Miami)


LVIII. Sobre Ser, Existir e Eutanásia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1.  Quão escassa de palavras nossa linguagem é, não, quão miserável, eu não havia entendido completamente até hoje. Passamos a falar de Platão, e mil assuntos vieram à discussão, que precisavam de nomes e ainda não possuíam nenhum; e havia outros que, certa vez, possuíram, mas perderam suas palavras, porque éramos muito sutis quanto ao uso delas. Mas quem pode suportar ser agradável no meio da pobreza? Há um inseto, chamado pelos gregos de “oestrus”[1], que torna o gado selvagem e os põem em fuga sobre suas pastagens; ele costumava ser chamado “asilus” em nossa língua, como você pode acreditar pela autoridade de Virgílio:

2. Perto dos bosques de Silarus, e perto de Alburnus máscaras
de carvalhos verde-folheados voa um inseto, nomeado
Asilus pelos romanos; No grego
a palavra usada é oestro. Com um som áspero
e estridente ele zune e faz selvagens
Os rebanhos aterrorizados pelo bosque. [2]

3. Por isso eu inferi que a palavra está fora de uso. E, para não fazer você esperar muito tempo, havia certas palavras simples atuais, como “cernere ferro inter se“, como será provado novamente por Virgílio:

Grandes heróis, nascidos em várias terras, tinham vindo
Para decidir assuntos mutuamente com a espada. [3]

Este “decidir assuntos” que nós expressamos agora por “decernere“. A palavra simples tornou-se obsoleta.

4. Os antigos costumavam dizer “iusso“, em vez de “iussero“, em cláusulas condicionais. Você não precisa tomar a minha palavra, mas você pode voltar-se novamente para Virgílio:

Os outros soldados conduzirão a luta
Comigo, onde vou oferecer. [4]

5. Não é meu propósito demonstrar, por este conjunto de exemplos, quanto tempo desperdicei no estudo da linguagem; quero apenas que você entenda quantas palavras, atuais nas obras de Ênio e Ácio, se tornaram mofadas com a idade; enquanto que mesmo no caso de Virgílio, cujas obras são exploradas diariamente, algumas de suas palavras foram furtadas de nós.

6. Você vai dizer, eu suponho: “Qual é o propósito e significado deste preâmbulo?” Não te deixarei no escuro; Desejo, se possível, dizer a palavra “essentia” para você e obter uma compreensão favorável. Se eu não posso fazer isso, vou arriscar, mesmo que isso lhe deixe de mal humor. Eu tenho Cícero como autoridade para o uso desta palavra, e eu considero-o como uma poderosa autoridade. Se você desejar testemunho de uma data posterior, citarei Fabiano, cuidadoso na linguagem, refinado, e tão polido em estilo que vai se adequar aos nossos finos gostos. Porque o que podemos fazer, meu querido Lucílio? De que outra forma podemos encontrar uma palavra para aquilo que os gregos chamam de “οὐσία[5], algo que é indispensável, algo que é o substrato natural de tudo? Peço-lhe, portanto, que me permita usar esta palavra essencial. No entanto, tomarei o cuidado de exercer o privilégio que me concedeu, com a mão mais cuidadosa possível; talvez eu me contente com o mero direito.

7. Contudo, de que me servirá a sua indulgência, se eis que não posso expressar, em latim, o significado da palavra que me deu a oportunidade de percorrer a pobreza da nossa língua? E você condenará nossos estreitos limites romanos ainda mais, quando descobrir que há uma palavra de uma sílaba que eu não posso traduzir. “O que é isso?” Você pergunta. É a palavra “ὄν”. Você acha que eu não tenho habilidade; você acredita que a palavra está pronta para ser traduzida por “quod est[6]. Noto, no entanto, uma grande diferença; você está me forçando a apresentar um substantivo por um verbo.

8. Mas se eu tiver que fazê-lo, eu o farei por quod est. Há seis maneiras pelas quais Platão expressa esta ideia, de acordo com um amigo nosso, um homem de grande conhecimento, que mencionou o fato hoje. E vou explicá-las todas a você, se eu puder primeiro apontar que há algo chamado gênero e algo chamado espécie. Por ora, porém, buscamos a ideia primária do gênero, do qual dependem as outras, as diferentes espécies, que é a fonte de toda classificação, o termo sob o qual as ideias universais são abraçadas. E a ideia de gênero será alcançada se começarmos a considerar a partir das características; pois assim seremos conduzidos de volta à noção principal.

9. Agora, “homem” é uma espécie, como diz Aristóteles; assim também é “cavalo”, ou “cão”. Devemos, portanto, descobrir algum vínculo comum para todos esses termos, um que os abrace e os mantenha subordinados a si mesmo. E o que é isso? É “animal”. E assim começa a haver um gênero “animal”, incluindo todos esses termos, “homem”, “cavalo” e “cachorro”.

10. Mas há certas coisas que têm vida (anima) e ainda não são “animais”. Pois é pacífico que as plantas e as árvores possuem vida, e é por isso que falamos deles como vivos ou moribundos. Portanto, o termo “seres vivos” ocupará um lugar ainda mais alto, porque tanto os animais como as plantas estão incluídos nessa categoria. Certos objetos, entretanto, não têm vida, tais como pedras. Haverá, portanto, outro termo para ter precedência sobre “seres vivos”, e que é “substância”. Eu classificarei a “substância” dizendo que todas as substâncias são animadas ou inanimadas.

11. Mas ainda há algo superior à “substância”; porque falamos de certas coisas como possuidoras de substância, e de certas coisas como carentes de substância. Qual será, então, o termo a partir do qual essas coisas derivam? É aquilo a que ultimamente deram um nome impróprio, “o que é”[7]. Pois, usando este termo, eles serão divididos em espécies, de modo que possamos dizer: o que existe ou possui, ou não, substância.

12. Este, portanto, é o gênero que é, – o primário, original e (para brincar com a palavra) “geral”. Claro que existem os outros gêneros: mas eles são gêneros “especiais”: “homem” é, por exemplo, um gênero. Pois “homem” abrange espécies: por nações, – grego, romano, parto; por cores, – branco, preto, amarelo. O termo compreende indivíduos também: Catão, Cicero, Lucrécio. Assim, o “homem” cai na categoria gênero, na medida em que inclui muitos tipos; Mas na medida em que é subordinado a um outro termo, cai na categoria espécie. Mas o gênero “o que é” é geral, e não tem um termo superior a ele. É o primeiro termo na classificação das coisas, e todas as coisas estão incluídas nele.

13. Os estoicos colocariam à frente desse gênero outro ainda mais primário; A respeito do qual falarei imediatamente, depois de provar que o gênero que foi discutido acima foi corretamente colocado em primeiro lugar, sendo, como é, capaz de incluir tudo.

14. Eu por conseguinte, distribuo “o que é” nestas duas espécies, – coisas com, e coisas sem, substância. Não há terceira classe. E como eu distribuo “substância”? Dizendo que é animado ou inanimado. E como faço para distribuir o “animado”? Ao dizer: “Certas coisas têm mente, enquanto outros têm apenas vida.” Ou a ideia pode ser expressa da seguinte maneira: “Certas coisas têm o poder de movimento, de progresso, de mudança de posição, enquanto outras estão enraizadas na terra, são alimentadas e crescem somente através de suas raízes”. Novamente, em quais espécies eu divido “animais”? São perecíveis ou imperecíveis.

15. Alguns estoicos consideram o gênero primário como o “algo”. Vou acrescentar as razões que dão para a sua crença; eles dizem: “na ordem da natureza algumas coisas existem, e outras coisas não existem. E mesmo as coisas que não existem realmente são parte da ordem da natureza. Por exemplo centauros, gigantes, e todas as outras invenções de raciocínio doentio, que começaram a ter uma forma definida, embora não tenham consistência corporal “.

16. Mas eu volto agora ao assunto que eu prometi discutir para você, a saber, como é que Platão divide todas as coisas existentes em seis maneiras diferentes. A primeira classe de “o que é” não pode ser alcançada pela visão ou pelo toque, ou por qualquer dos sentidos; mas pode ser alcançada pelo pensamento. Qualquer concepção genérica, tal como a ideia genérica “homem”, não entra no alcance dos olhos; mas o “homem” em particular o faz; como, por exemplo, Cícero, Catão. O termo “animal” não é visto; Ele é compreendido apenas pelo pensamento. Um animal em particular, no entanto, é visto, por exemplo, um cavalo, um cão.

17. A segunda classe de “coisas que existem”, de acordo com Platão, é a que é eminente e se destaca acima de tudo; isso, diz ele, existe em um grau preeminente. A palavra “poeta” é usada indiscriminadamente, pois este termo é aplicado a todos os escritores de verso; mas entre os gregos passou a ser a marca distintiva de um único indivíduo. Você sabe que Homero é subentendido quando você ouve os homens dizerem “o poeta”. Qual é, então, este Ser preeminente? Deus, certamente, aquele que é maior e mais poderoso do que qualquer outro.

18. A terceira classe é composta das coisas que existem no sentido próprio do termo; elas são incontáveis em número, mas estão situadas além de nossa visão. “Quem são esses?” Você pergunta. São os próprios mobiliários de Platão, por assim dizer; ele os chama de “ideias”, e delas todas as coisas visíveis são criadas, e de acordo com seu padrão todas as coisas são feitas. Elas são imortais, imutáveis, invioláveis.

19. E esta “ideia”, ou melhor, a concepção de Platão sobre ela, é a seguinte: “A ´ideia´ é o molde eterno das coisas que são criadas pela natureza”. Vou explicar esta definição, a fim de colocar o assunto diante de você em uma luz mais clara: Suponha que eu gostaria de fazer uma semelhança de você; eu possuo em sua própria pessoa o padrão deste quadro, do qual minha mente recebe um certo esboço, que é para incorporar em sua própria obra. Essa aparência externa, então, que me dá instrução e orientação, esse padrão para eu imitar, é a “ideia”. Tais padrões, portanto, a natureza possui em número infinito, – de homens, peixes, árvores, segundo cujo modelo tudo o que a natureza tem para criar é elaborado.

20. Em quarto lugar, colocaremos “forma”. E se você souber o que significa “forma”, você deve prestar muita atenção, chamando Platão, e não eu, para explicar a dificuldade do assunto. No entanto, não podemos fazer distinções finas sem encontrar dificuldades. Um momento atrás eu fiz uso do artista como uma ilustração. Quando o artista desejava reproduzir Virgílio em cores, ele olhava para o próprio Virgílio. A “ideia” era a aparência externa de Virgílio, e este era o padrão do trabalho pretendido. Aquilo que o artista extrai dessa “ideia” e encarna em sua própria obra, é a “forma”.

21. Você me pergunta onde está a diferença? O primeiro é o padrão; enquanto a última é a forma retirada do padrão e incorporada no trabalho. Nosso artista segue um, mas cria o outro. Uma estátua tem uma certa aparência externa; esta aparência externa da estátua é a “forma”. E o próprio padrão tem uma certa aparência externa, ao contemplar sobre este o escultor moldou sua estátua; esta é a “ideia”. Se você deseja uma distinção adicional, direi que a “forma” está na obra do artista, a “ideia” fora de sua obra, e não apenas fora dela, mas anterior a ela.

22. A quinta classe é composta das coisas que existem no sentido usual do termo. Essas coisas são as primeiras que têm a ver conosco; aqui temos todas as coisas como homens, gado e coisas. Na sexta classe vai tudo o que tem uma existência fictícia, como vazio, ou tempo. Tudo o que é concreto à visão ou ao toque, Platão não inclui entre as coisas que ele acredita serem existentes no sentido estrito do termo. Essas coisas são as primeiras que têm a ver conosco: aqui temos todas as coisas como homens, gado e coisas. Pois eles estão em um estado de fluxo, constantemente diminuindo ou aumentando. Nenhum de nós é o mesmo homem na velhice que foi na juventude; nem o mesmo no dia seguinte que no dia anterior. Nossos corpos são forjados ao longo como águas fluindo; cada objeto visível acompanha o tempo em sua jornada; das coisas que vemos, nada é fixo. Mesmo eu mesmo, ao comentar sobre essa mudança, estou mudado.

23. É exatamente o que diz Heráclito: “Entramos duas vezes no mesmo rio, e, contudo, num rio diferente.” Pois o curso de água ainda mantém o mesmo nome, mas a água já fluiu ao longo. Claro que isto é muito mais evidente nos rios do que nos seres humanos. Ainda assim, nós, mortais, também somos levados por caminho não menos rápido; e isso me leva a maravilhar-me com a nossa loucura em nos unir com grande afeição a uma coisa tão fugaz como o corpo, e temendo que algum dia nós morramos, quando cada instante significa a morte de nossa condição anterior. Você não vai parar de temer que isso aconteça uma vez que realmente acontece todos os dias?

24. Tanto para o homem, – uma substância que flui e decai, exposta a toda influência; mas também o universo, imortal e duradouro como é, muda e nunca permanece o mesmo. Pois embora tenha em si tudo o que tem, tem-no de uma maneira diferente daquela em que o tinha tido; ele continua mudando seu arranjo.

25. “Muito bem”, diz você, “de que adianta eu obter de todo este bom raciocínio?” De nada, se você deseja que eu responda a sua pergunta. No entanto, assim como um escultor repousa seus olhos quando há muito estão sob tensão e estão cansados, e os retira de seu trabalho, e “os regala”, como diz o ditado; por isso, às vezes, devemos afrouxar nossas mentes e refrescá-las com algum tipo de entretenimento. Mas deixe até nosso entretenimento ser trabalho; e mesmo a partir dessas várias formas de entretenimento que você vai escolher, se você tem estado atento, será algo que pode provar salutar.

26. Esse é o meu hábito, Lucílio: eu tento extrair e tornar útil algum elemento de cada campo do pensamento, não importa quão distante possa ser da filosofia. Agora, o que poderia ser menos provável de reformar o caráter do que os assuntos que temos discutido? E como posso ser feito um homem melhor pelas “ideias” de Platão? O que posso tirar delas que ponha um controle sobre os meus apetites? Talvez o próprio pensamento de que todas estas coisas que ministram aos nossos sentidos, que nos despertam e excitam, são por Platão negadas um lugar entre as coisas que realmente existem.

27. Tais coisas são, portanto, imaginárias e, embora, por enquanto, apresentem uma certa aparência externa, no entanto elas não são em nenhum caso permanentes ou substanciais; Não obstante, nós as desejamos como se fossem existir para sempre, ou como se nós pudéssemos os possuir para sempre. Somos seres fracos e aquosos em pé no meio de irrealidades; portanto, voltemos nossas mentes para as coisas que são eternas. Olhemos para os contornos ideais de todas as coisas, que voam em alto e para o Deus que se move entre elas e planeja como pode defender da morte o que não poderia tornar imperecível porque sua substância impede, e assim por raciocínio pode superar os defeitos do corpo.

28. Porque todas as coisas permanecem, não porque sejam eternas, mas porque são protegidas pelo cuidado de quem governa todas as coisas; mas o que é imperecível não precisa de um guardião. O mestre construtor os mantém seguros, superando a fraqueza de seu tecido por seu próprio poder. Desprezemos tudo o que é tão pouco objeto de valor que nos faz duvidar se Ele existe.

29. Reflitamos ao mesmo tempo, visto que a providência resgata de seus perigos o próprio mundo, que não é menos mortal do que nós mesmos, que até certo ponto nossos corpos mesquinhos podem ser obrigados a permanecer mais tempo na terra por nossa própria providência, se apenas adquirimos a capacidade de controlar e reprimir os prazeres em que a maior parte da humanidade perece.

30. O próprio Platão, a todo o custo, avançou para a velhice. Certamente, ele era o possuidor afortunado de um corpo forte e sadio (seu próprio nome lhe foi dado por causa de seu peito largo); mas sua força foi muito prejudicada por viagens marítimas e aventuras terríveis. No entanto, por meio da vida frugal, estabelecendo um limite sobre tudo o que desperta os apetites, e por uma atenção cuidadosa a si mesmo, ele alcançou essa idade avançada, apesar de muitos obstáculos.

31. Você sabe, tenho certeza, que Platão teve a sorte, graças a sua vida cuidadosa, de morrer no seu aniversário, depois de completar exatamente o seu octogésimo primeiro ano. Por esta razão, os sábios do Oriente, que por acaso estava em Atenas naquela época, sacrificaram-se a ele depois de sua morte, acreditando que sua duração de dias estava muito plena para um homem mortal, uma vez que ele havia completado o número perfeito de nove vezes nove. Eu não duvido que ele teria sido bastante disposto a renunciar a alguns dias a partir deste total, bem como o sacrifício.

32. A vida frugal pode levar alguém à velhice; e para mim a velhice não é para ser recusada, não mais do que deve ser desejada. É um prazer estar na própria companhia o maior tempo possível, quando um homem se fez valer a pena. A questão, portanto, sobre a qual devemos registrar nosso julgamento, é se alguém deve fugir da extrema velhice e deve apressar o fim artificialmente, em vez de esperar que ele venha. Um homem que espera lentamente seu destino é quase um covarde, assim como é exageradamente dado ao vinho aquele que drena o frasco e suga até mesmo a borra.

33. Mas nós faremos esta pergunta também: “A extremidade da vida é a escória, ou é a parte mais clara e pura de todas, desde que apenas a mente esteja desimpedida, e os sentidos, ainda sãos, deem seu apoio ao Espírito, e o corpo não esteja desgastado e morto antes de seu tempo?” Pois faz muita diferença se um homem está alongando sua vida ou sua morte.

34. Mas se o corpo é inútil para o serviço, por que não se deve libertar a alma lutadora? Talvez devêssemos fazer isto um pouco antes que a dívida seja devida, para que, quando vencer, se possa ser capaz de executar o ato. E como o perigo de viver na miséria é maior do que o risco de morrer logo, é um tolo aquele que se recusa a apostar um pouco de tempo e arriscar ganhar um formidável lucro. Poucos têm durado pela extrema velhice até a morte sem prejuízo, e muitos têm estado inertes, não fazendo uso de si mesmos. Quão mais cruel, então, você acha que realmente é ter perdido uma porção de sua vida, do que ter perdido o direito de terminar essa vida?

35. Não me ouça com relutância, como se a minha declaração se aplicasse diretamente a você, mas pondere o que tenho a dizer. É isto que eu não abandonarei na velhice, se a velhice me preservar intacto para mim, e intacto quanto à melhor parte de mim mesmo; mas se a velhice começar a despedaçar a minha mente e a rasgar em pedaços as suas várias faculdades, se ela me deixa, não a vida, mas apenas o sopro da vida, sairei correndo de uma casa que está desmoronando e cambaleando.

36. Não vou evitar a doença procurando a morte, desde que a doença seja curável e não impeça minha alma. Não porei mãos violentas sobre mim só porque estou com dor; pois a morte em tais circunstâncias é a derrota. Mas se eu descobrir que a dor deve sempre ser suportada, devo partir, não por causa da dor, mas porque ela será um obstáculo para mim no que diz respeito a todas as minhas razões para viver. Aquele que morre apenas porque está com dor é um fraco, um covarde; mas aquele que vive apenas para afrontar esta dor, é um tolo.

37. Mas estou discorrendo por muito tempo; e, além disso, há matéria aqui para encher um dia. E como um homem pode terminar sua vida, se ele não pode terminar uma carta? Então, adeus[8]. Esta última palavra você vai ler com maior prazer do que toda minha conversa mortal sobre a morte.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

 


[1] A Mutuca.

[2] Trecho de Eneida de Virgílio.
Est lucum Silari iuxta ! ilicibusque virentem
Plurimus Alburnum volitans, cui nomen asilo
Romanum est, oestrum Grai vertere vocantes,
Asper, acerba sonans, quo tota exterrita silvis
Diffugiunt armenta.

[3] Trecho de Georgicas de Virgílio.Ingentis genitos diversis partibus orbis
Inter se coiisse viros et cernere ferro.

[4] Trecho de Eneida de Virgílio.
Cetera, qua iusso, mecum manus inferat arma.

[5] Ousía (οὐσία, pronúncia moderna “ussía”) é um substantivo da língua grega formado a partir do feminino do particípio presente do verbo “ser”, εἶναι. A palavra é, por vezes, traduzida para português como substância ou essência, devido à sua vulgar tradução para latim como substantia ou essentia.

[6] O que é.

[7] quod est.

[8] A palavra latina “vale” significa tanto adeus como também “fique bem”

Carta 57: Sobre as provações de viagem

Hoje, 12 de Abril, é o aniversário da morte de Sêneca em 65 d.C. e o assunto da carta mais uma vez é a morte e o medo que causa.

Sêneca explora a metafísica estoica dizendo discordar dos estoicos clássicos que acreditavam que a alma poderia ser fisicamente destruída.

“os estoicos  sustentam que a alma de um homem esmagado por um grande peso não pode subsistir e é dispersa imediatamente, porque não teve a oportunidade de partir livremente. Não é isso que estou dizendo; aqueles que pensam assim estão, na minha opinião, errados.” (LVII, 7)

Para Sêneca e para os estoicos, o universo é um único deus panteísta, e é também uma substância material. Assim  absolutamente tudo e todos no universo compõem um Deus abrangente, e imanente, isto é, o Universo (natureza) e Deus são idênticos. Contudo Sêneca defende a imortalidade da alma, mesmo esta tendo uma característica material:

“a alma não pode de modo algum ser esmagada, precisamente porque não perece; pois a regra da imortalidade nunca admite exceções, e nada pode prejudicar o que é eterno.” (LVII, 9)

A frase mais marcante do texto é:

o medo não olha para o efeito, mas para a causa do efeito. (LVII, 6)

Isso explica o medo que temos de Leão ou viajar de avião, quando na realidade pernilongos e carros são muito mais mortais.

(Imagem escultura em crânio humano, por Zane Wylie)


LVII. Sobre as provações de viagem

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Quando chegou a hora de voltar de Baiae para Nápoles, eu facilmente me convenci que uma tempestade estava furiosa, que poderia evitar outra viagem por mar; e, no entanto, a estrada estava tão profunda em lama, por todo o caminho, que eu deveria ter pensado, não obstante, fazer a viagem de navio. Naquele dia eu tive que suportar o destino completo de um atleta; a unção com que começamos foi seguida pela areia no túnel de Nápoles[1].
  2. Nenhum lugar poderia ser mais longo do que aquela prisão; nada podia ser mais fraco do que as tochas que nos permitiam não ver entre a escuridão, mas ver a escuridão. Mas, mesmo supondo que houvesse luz no lugar, a poeira, que é uma coisa opressiva e desagradável, mesmo ao ar livre, destruía a luz; pior ainda a poeira lá, onde revolve em volta sobre si mesma, e, sendo fechado e sem ventilação, sopra de volta nos rostos daqueles que a põem em marcha! Assim, resistimos a dois inconvenientes ao mesmo tempo, e eram diametralmente diferentes: lutamos com lama e com poeira na mesma estrada e no mesmo dia.
  3. No entanto, a escuridão me proporcionou alguma coisa para pensar; senti uma certa emoção mental e uma transformação não acompanhada pelo medo, devido à novidade e ao desagrado de uma ocorrência incomum. Claro que não estou falando de mim neste momento, porque estou longe de ser uma pessoa perfeita, ou mesmo um homem de qualidades medianas; refiro-me a alguém sobre quem a fortuna perdeu o controle. Até mesmo a mente de um tal homem ficará encantada com uma emoção e ele mudará de cor.
  4. Pois há certas emoções, meu querido Lucílio, que nenhuma coragem pode evitar; a natureza mostra como a coragem é uma coisa perecível. E assim um homem contrairá sua testa quando a perspectiva for ameaçadora, estremecerá com aparições súbitas e ficará tonto quando estiver na borda de um precipício alto e olhar para baixo. Isso não é medo; é um sentimento natural que a razão não pode derrotar.
  5. É por isso que certos homens corajosos, dispostos a derramar seu próprio sangue, não podem suportar ver o sangue dos outros. Algumas pessoas caem e desmaiam ao ver uma ferida recentemente infligida; outros são afetados de forma semelhante no manuseio ou visualização de uma ferida velha que está a ulcerar. E outros encontram o curso da espada mais prontamente do que veem aplicados em outros.
  6. Assim, como eu disse, experimentei uma certa transformação, embora não pudesse ser chamada de confusão. Então, ao primeiro vislumbre da luz do dia restaurada, meus bons espíritos voltaram sem premeditação nem comando. E eu comecei a pensar e pensar como somos tolos em temer certos objetos em maior ou menor grau, já que todos terminam da mesma maneira. Pois que diferença faz se uma torre de vigia ou uma montanha desmorona sobre nós? Nenhuma diferença, você perceberá. No entanto, haverão alguns homens que temem o acidente último em maior grau, embora ambos os acidentes sejam igualmente mortais; tão verdadeiro é que o medo não olha para o efeito, mas para a causa do efeito.
  7. Você acha que eu estou me referindo agora aos estoicos, que sustentam que a alma de um homem esmagado por um grande peso não pode subsistir e é dispersa imediatamente, porque não teve a oportunidade de partir livremente? Não é isso que estou dizendo; aqueles que pensam assim estão, na minha opinião, errados.
  8. Assim como o fogo não pode ser esmagado, uma vez que vai escapar pelo redor das bordas do corpo que o esmaga; Assim como o ar não pode ser danificado por açoites e golpes, ou mesmo fatiado, mas flui de volta sobre o objeto ao qual dá lugar; da mesma forma, a alma, que é constituída pelas partículas mais sutis, não pode ser presa ou destruída dentro do corpo, mas em virtude de sua delicada substância escapará pelo próprio objeto pelo qual está sendo esmagada. Assim como o relâmpago, não importa o quão amplamente atinja ou cintile, faz seu retorno através de uma estreita abertura, de modo que a alma, que é ainda mais sutil do que o fogo, tem uma maneira de escapar através de qualquer parte do corpo.
  9. Chegamos, portanto, a esta questão, se a alma pode ser imortal. Mas tenha certeza disso: se a alma sobrevive ao corpo depois que o corpo é esmagado, a alma não pode de modo algum ser esmagada, precisamente porque não perece; pois a regra da imortalidade nunca admite exceções, e nada pode prejudicar o que é eterno.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Uma figura característica. Após a unção, o lutador era polvilhado com areia, de modo que a mão do oponente não escorregasse. O túnel de Nápoles fornecia um atalho para aqueles que, como Sêneca nesta carta, não desejavam tomar o tempo para viajar pela rota costeira ao longo do promontório de Pausilipum.

Carta 56: Sobre silêncio e estudo

Nesta carta Sêneca mostra seu lado irônico e poder de escrita em prosa.

Assim como em muitas das cartas anteriores, Sêneca recomenda o auto desenvolvimento e o treino mental, para que consigamos manter atitude serena frente as inconveniências diárias.  Conta de seu caso particular e do dia-a-dia da vida em Roma.

O tumulto e distúrbio externo não deve afetar um sábio:

“forço minha mente a concentrar-se, e impeço-a de vaguear para as coisas externas; tudo ao ar livre pode ser uma algazarra, desde que não haja perturbação dentro … Qual é o benefício de um bairro tranquilo, se nossas emoções estão em um tumulto?” (LVI,5)

Para Sêneca somente uma mente racional e estável pode ser tranquila:

“pois nenhum descanso real pode ser encontrado quando a razão não é tranquilizada. A noite traz nossos problemas à luz, ao invés de bani-los; muda apenas a forma de nossas preocupações. … A verdadeira tranquilidade é o estado atingido por uma mente não pervertida quando está relaxada.” (LVI,6)

Ao fim da carta descobrimos que essa morada inconveniente foi apenas um exercício, e que é muito mais útil afastar-se do tumulto.

“E então?” Você diz, “não é às vezes mais simples apenas evitar o tumulto?” Eu admito isso. Por conseguinte, eu vou mudar de meus aposentos atuais. Eu apenas queria me testar e me dar prática. Por que eu precisaria de mais atormentação, quando Ulisses encontrou uma cura tão simples para seus companheiros, mesmo contra as canções das Sereias? (LVI,16)

Imagem Cato lendo Fedão antes do suicídio por Jean-Baptiste Roman.

 


LVI. Sobre silêncio e estudo

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Que eu seja amaldiçoado se achar o silencio ser coisa exigida a um homem que se isola para estudar! Imagine que variedade de ruídos reverbera sobre meus ouvidos! Tenho meu aposento diretamente sobre um estabelecimento de banhos. Então imagine a variedade de sons, que são fortes o suficiente para me fazer odiar meus próprios poderes de audição! Quando, por exemplo, um vigoroso cavalheiro se exercita com pesos; quando está treinando duro, ou então finge estar treinando duro, eu posso ouvi-lo grunhir; e sempre que libera sua respiração aprisionada, eu posso ouvi-lo ofegante em sons sibilantes e agudos. Ou talvez eu note algum sujeito preguiçoso, satisfeito com uma massagem barata, e fique a ouvir a batida da mão em seu ombro, variando em som de acordo com a mão, se é colocada espalmada ou em oco. Então, talvez, um profissional venha junto, gritando alto a contagem; esse é o toque final.
  2. Acrescente a isso a prisão de um ladrão ocasional ou de um carteirista, a balbúrdia de um homem que sempre gosta de ouvir sua própria voz no banheiro, ou o entusiasta que mergulha no tanque de natação com ruído desmedido e salpicos. Além de todos aqueles cujas vozes, ao menos são boas, imagine o depilador com sua voz penetrante e estridente, – para fins de propaganda, – continuamente gritando e nunca segurando a língua, exceto quando ele está depilando axilas e fazendo sua vítima gritar. Então o vendedor de bolos com seus variados gritos, o açougueiro, o confeiteiro, e todos os vendedores de comida gazeteando suas mercadorias, cada um com sua própria entonação distintiva.
  3. Então você diz: “Que nervos de ferro ou ouvidos amortecidos, você deve ter, se sua mente pode suportar tantos ruídos, tão diversos e tão discordantes, quando nosso amigo Crisipo é trazido à morte pelos contínuos bons dias que o saúdam!” Mas lhe asseguro que esta algazarra não significa mais para mim do que o som das ondas ou da queda de água; embora você possa me lembrar que uma certa tribo uma vez moveu sua cidade apenas porque não podiam suportar o ruído de uma catarata do Nilo.
  4. As palavras parecem me distrair mais do que ruídos; pois as palavras exigem atenção, mas os ruídos apenas enchem as orelhas e batem nelas. Entre os sons que me rodeiam sem me distrair, incluem-se carruagens de passagem, um mecânico no mesmo quarteirão, um afilador próximo ou um sujeito que está se manifestando com pequenos canos e flautas no chafariz, gritando ao invés de cantar.
  5. Além disso, um ruído intermitente me perturba mais do que um estável. Mas por esta altura tenho endurecido meus nervos contra todo esse tipo de coisa, de modo que eu posso suportar até mesmo um contramestre que marca o passo em tons agudos para sua tripulação. Pois eu forço minha mente a concentrar-se, e impeço-a de vaguear para as coisas externas; tudo ao ar livre pode ser uma algazarra, desde que não haja perturbação dentro, desde que o medo não esteja disputando com o desejo no meu peito, contanto que a mesquinhez e a luxúria não estejam em desacordo, uma acossando a outra. Qual é o benefício de um bairro tranquilo, se nossas emoções estão em um tumulto?
  6. Foi-se a noite, e todo o mundo foi embalado para descansar. [1]
    Isso não é verdade; pois nenhum descanso real pode ser encontrado quando a razão não é tranquilizada. A noite traz nossos problemas à luz, ao invés de bani-los; muda apenas a forma de nossas preocupações. Pois, mesmo quando buscamos o sono, nossos momentos sem sono são tão assustadores quanto o dia. A verdadeira tranquilidade é o estado atingido por uma mente não pervertida quando está relaxada.
  7. Pense no homem infeliz que corteja o sono entregando sua mansão espaçosa ao silêncio, que, para que seu ouvido não seja perturbado por nenhum som, ordena que todo o séquito de seus escravos fique quieto e que quem quer que se aproxime dele caminhe na ponta dos pés; Ele revira de um lado para o outro e procura um sono agitado em meio a suas inquietações!
  8. Ele se queixa de ter ouvido sons, quando não os ouviu em absoluto. O motivo, você pergunta? Sua alma está em alvoroço; ela deve ser acalmada, e sua murmuração rebelde controlada. Você não precisa supor que a alma esteja em paz quando o corpo está imóvel. Às vezes, imobilidade significa desconforto. Devemos, portanto, despertar-nos para a ação e nos ocupar com interesses que sejam bons, tão frequentemente como quando ficamos sob julgo de uma preguiça incontrolável.
  9. Grandes generais, quando veem que seus homens são amotinados, os colocam em algum tipo de trabalho ou os mantêm ocupados com pequenas incursões. O homem ocupado não tem tempo para libertinagem, e é óbvio que os males do ócio podem ser sacudidos pelo trabalho árduo. Embora as pessoas muitas vezes tenham pensado que eu busquei reclusão porque estava repugnado com a política e lamentava a minha posição infeliz e ingrata, no entanto, no retiro para o qual a apreensão e cansaço me levou, minha ambição às vezes se desenvolve novamente. Pois não é porque a minha ambição foi erradicada, que se abateu, mas porque estava cansada ou talvez até desanimada pelo fracasso de seus planos.
  10. E assim com o luxo, também, que às vezes parece ter partido, e então quando fazemos uma promessa de frugalidade, ele começa a nos importunar e, em meio a nossas economias, procura os prazeres que simplesmente deixamos, mas não condenamos. Na verdade, quanto mais furtivamente ele vem, maior é sua força. Pois todos os vícios manifestos são menos graves; uma doença também está mais próxima de ser curada quando ela brota da ocultação e manifesta seu poder. Assim, como a ganância, a ambição e os outros males da mente, você pode ter certeza de que eles fazem mais mal quando estão escondidos atrás de uma máscara de integridade.
  11. Os homens pensam que estamos na aposentadoria, mas ainda não estamos. Pois se nos retiramos sinceramente, e tivermos soado o sinal de retirada, e desprezamos as atrações externas, então, como observei acima, nenhuma coisa externa nos distrairá; nenhuma música de homens ou de pássaros pode interromper bons pensamentos, quando eles se tornam firmes e seguros.
  12. A mente que se abala com palavras ou sons ao acaso é instável e ainda não se retirou para si mesma; contém dentro de si um elemento de ansiedade e medo arraigado, e isso faz a pessoa uma presa da necessidade, como diz nosso Virgílio:
  13. Eu, que de outrora nenhum dardo poderia fazer fugir,
    Nem gregos, com linhas lotadas de infantaria.
    Agora tremo a cada som, e temo o ar,
    Tanto pelo o meu filho quanto pela carga que eu carrego. [2]
  14. Este homem em seu primeiro estado é sábio; ele não recua nem à lança brandida, nem à armadura de choque do inimigo, nem ao estrondo da cidade atingida. Esse homem, em seu segundo estado, não tem conhecimento, temendo por suas próprias preocupações; qualquer grito é tomado como um grito de batalha e o derruba; a menor perturbação o faz sentir-se ofegante de medo. É a carga que o faz sentir medo[3].
  15. Escolha qualquer um que quiser de entre os seus favoritos, arrastando suas muitas responsabilidades, carregando seus muitos fardos, e você vai ver um retrato do herói de Virgílio, “temendo tanto por seu filho quanto pela carga que carrega”. Você pode ter certeza de que está em paz consigo mesmo, quando nenhum ruído o assustar, quando nenhuma palavra o sacodir de si mesmo, seja de lisonja ou de ameaça, ou apenas um som vazio zumbindo sobre você com um barulho sem sentido.
  16. “E então?” Você diz, “não é às vezes mais simples apenas evitar o tumulto?” Eu admito isso. Por conseguinte, eu vou mudar de meus aposentos atuais. Eu apenas queria me testar e me dar prática. Por que eu precisaria de mais atormentação, quando Ulisses encontrou uma cura tão simples para seus companheiros, mesmo contra as canções das Sereias?[4]

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Trecho de Argonáutica de Públio Varrão.

[2] Trecho de Eneida de Virgílio.

 Obvertunt pelago proras

[3] Eneias carrega Anquises; O homem rico carrega seu ônus de riqueza.

et me, quem dudum non ulla iniecta movebant
tela neque adverso glomerati e agmine Grai,
nunc omnes terrent aurae, sonus excitat omnis
suspensum et pariter comitique onerique timentem.

[4] Não apenas tapando as orelhas com cera, mas também lhes ordenando a remar além das sereias o mais rápido possível. Odisseia, XII.

 

Carta 55: Sobre a Vila de Vácia

A carta desta semana é sobre ócio e vida luxuosa.  Sêneca defende que o filósofo deve se afastar dos negócios e dedicar-se ao estudo, porém critica aqueles que vivem em ócio e luxo sem estudo:

Nossos luxos nos condenaram à fraqueza; deixamos de ser capazes de fazer o que por muito tempo nos recusamos a fazer.” (LV, 1)

Pois a massa da humanidade considera que uma pessoa livre, que se retirou da sociedade, despreocupada, autossuficiente e vive para si mesma; mas estes privilégios podem ser a recompensa apenas do homem sábio.” (LV, 4)

Ensina que o lugar onde vivemos não é relevante para nossa felicidade / sabedoria e que usando nossa mente podemos estar no lugar e na presença de quem desejamos:

O lugar onde se vive, no entanto, pode contribuir pouco para a tranquilidade; é a mente que deve tornar tudo agradável a si mesma. ” (LV,8)

Conclui a carta dizendo a Lucílio que um amigo nunca está ausente.

(imagem: Thomas Couture, Romanos em sua decadência)


LV. Sobre a Vila de Vácia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Acabo de regressar de um passeio na minha liteira; e estou tão cansado como se eu tivesse andado a pé, em vez de estar sentado. Até mesmo ser carregado por qualquer período de tempo é trabalho duro, talvez tão mais porque é um exercício antinatural; pois a Natureza nos deu pernas para fazer a nossa própria caminhada, e olhos para fazer a nossa própria visão. Nossos luxos nos condenaram à fraqueza; deixamos de ser capazes de fazer o que por muito tempo nos recusamos a fazer.
  2. No entanto, achei necessário dar uma chacoalhada no meu corpo, a fim de que a bile que se acumulou em minha garganta, se isso fosse o problema, pudesse ser sacodida, ou, se o próprio hálito dentro de mim tivesse se tornado, por alguma razão, muito grosso, que o sacudir, algo que senti ser vantajoso, pudesse torná-lo mais leve. Por isso insisti em ser levado mais tempo do que de costume, ao longo de uma praia encantadora, que se curva entre Cumas e Servilius próximo a casa de campo do Vácia[1], encerrada pelo mar de um lado e pelo lago do outro, como um caminho estreito. A areia estava firme, por causa de uma recente tempestade; desde que, como você sabe, as ondas, quando batem na praia continuamente, nivela-a; mas um período contínuo de tempo bom afrouxa-a, quando a areia, que é mantida firme pela água, perde sua umidade.
  3. Como é o meu hábito, eu comecei a procurar por algo lá que poderia ser útil a mim, quando meus olhos caíram sobre a vila que uma vez pertencera a Vácia. Então este foi o lugar onde o famoso pretoriano milionário passou sua velhice! Ele era famoso por nada mais do que sua vida de lazer, e ele foi considerado como afortunado apenas por esse motivo. Pois sempre que os homens são arruinados pela sua amizade com Caio Asínio Galo[2] sempre que outros são arruinados pelo seu ódio a Sejano, e mais tarde por sua intimidade com ele, – porque não era mais perigoso ofendê-lo do que amá-lo, – as pessoas costumavam gritar: “Ó Vácia, só você sabe viver!”
  4. Mas o que ele sabia era como se esconder, não como viver; e faz uma grande diferença se sua vida é de lazer ou de ociosidade. Então eu nunca passei por sua casa de campo durante a vida de Vácia sem me dizer: “Aqui está Vácia!” Mas, meu caro Lucílio, a filosofia é uma coisa de santidade, algo a ser adorado, tanto que até a própria falsificação agrada. Pois a massa da humanidade considera que uma pessoa livre, que se retirou da sociedade, despreocupada, autossuficiente e vive para si mesma; mas estes privilégios podem ser a recompensa apenas do homem sábio. Será que aquele que é vítima da ansiedade sabe viver por si mesmo? O que? Será que ele mesmo sabe (e isso é de primeira importância) como viver realmente?
  5. Pois o homem que fugiu dos negócios e dos homens, que foi banido para a reclusão pela infelicidade que seus próprios desejos trouxeram, que não pode ver seu vizinho mais feliz do que ele mesmo, que por medo tem se escondido, como um animal assustado e preguiçoso – esta pessoa não está vivendo para si, está vivendo para o seu ventre, seu sono e sua luxúria, – e essa é a coisa mais vergonhosa do mundo. Aquele que vive para ninguém, não necessariamente vive para si mesmo. No entanto, há tanto em perseverança e adesão ao propósito de alguém que mesmo a letargia, se teimosamente mantida, assume um ar de autoridade.
  6. Eu não poderia descrever a casa de campo com precisão; pois estou familiarizado apenas com a frente da casa e com as partes que estão à vista do público e podem ser vistas pelo mero passageiro. Há duas grutas artificiais, que custaram muito trabalho, tão grandes quanto o salão mais espaçoso, feitas à mão. Uma delas não admite os raios do sol, enquanto a outra os mantém até o sol se pôr. Há também um córrego que corre através de um bosque de plátanos, que recebe suas águas tanto do mar e quanto do lago Aqueronte; ele cruza o bosque exatamente como uma pista de corrida e é grande o suficiente para sustentar peixes, embora suas águas sejam continuas. Quando o mar está calmo, no entanto, eles não usam o córrego, apenas tocando as águas bem abastecidas quando as tempestades dão aos pescadores um feriado forçado.
  7. Mas a coisa mais conveniente sobre a casa é o fato de que Baiae está ao lado, é livre de todos os inconvenientes daquela estância, e ainda goza de seus prazeres. Eu mesmo compreendo essas atrações, e acredito que seja uma casa adequada a todas as temporadas do ano. Enfrenta o vento ocidental, que intercepta de tal forma que a Baiae é negado. Assim parece que Vácia não foi tolo quando selecionou este lugar como o melhor em que gastar seu tempo livre quando ele já era infrutífero e decrépito.
  8. O lugar onde se vive, no entanto, pode contribuir pouco para a tranquilidade; é a mente que deve tornar tudo agradável a si mesma. Vi homens desanimados numa vila alegre e encantadora, e os vi com toda a aparência cheia de negócios no meio de uma solidão. Por esta razão, não se deve recusar a acreditar que a sua vida está bem colocada simplesmente porque não está agora em Campânia. Mas por que você não está lá? Basta deixar seus pensamentos viajar, mesmo para este lugar.
  9. Você pode manter conversas com seus amigos quando eles estão ausentes, e, na verdade, quantas vezes quiser e pelo tempo que desejar. Pois desfrutamos disso, o maior dos prazeres, mais ainda quando estamos ausentes uns dos outros. Pois a presença de amigos nos torna enfadonhos; e porque podemos a qualquer momento falar ou sentarmo-nos juntos, quando uma vez que nos separamos não refletimos sobre aqueles a quem há pouco vimos.
  10. E devemos suportar a ausência de amigos alegremente, porque todos são obrigados a estar muitas vezes ausentes de seus amigos, mesmo quando eles estão presentes. Inclua nesses casos, em primeiro lugar, as noites separadas, depois os compromissos diferentes que cada um de dois amigos tem, então os estudos particulares de cada um e suas excursões ao campo, e você verá que as viagens ao estrangeiro não nos roubam de muito.
  11. Um amigo deve ser mantido no espírito; tal amigo nunca pode estar ausente. Você pode ver todos os dias quem deseja ver. Gostaria, portanto, que você compartilhasse seus estudos comigo, suas refeições, e seus passeios. Deveríamos estar vivendo dentro de limites muito estreitos se alguma coisa fosse barrada a nossos pensamentos. Eu o vejo, meu caro Lucílio, e neste exato momento eu o ouço; eu estou com você a tal ponto que me mostro indeciso se não deveria começar a escrever bilhetes em vez de cartas.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Cumas estava na costa a cerca de seis milhas a norte de Cape Misenum. O lago Acheron era uma piscina de água salgada entre esses dois pontos, separados do mar por uma barra de areia; O Vácia mencionado aqui é desconhecido;

[2] Filho de Asínio Galo, sua franqueza o colocou em apuros e ele morreu de fome em um calabouço em 33.  Sejano foi derrubado e executado em 31.

Carta 54: Sobre asma e morte

Seneca avisa na carta 54: “não só na presença da doença, mas também em sua vida, o conselho é este: recuse a deixar que o pensamento da morte o incomode: nada é temível quando nós escapamos desse medo“.

Na carta fala de seu problema de saúde, a Asma,  doença que o perseguiu desde a infância, mas que salvou sua vida. Em 37 d.C., quando Calígula sucedeu a Tibério como Imperador Romano, Sêneca ainda jovem tornou-se o principal orador do Senado, e Calígula com inveja  exigiu que  fosse executado.

No entanto, Sêneca foi salvo por sua doença: pessoas próximas ao imperador disseram que ele estava “muito doente e que não demoraria até que ele morresse”, convencendo Calígula a poupa-lo.
 
Para Sêneca a morte é uma experiência que todos nós já tivemos antes de nascer e, assim, não há motivos para temê-la:

eu mesmo há muito tempo testei a morte. ‘Quando?’ Você pergunta. Antes de eu ter nascido. A morte é inexistência, e eu já sei o que isso significa. O que estava antes de mim voltará a acontecer depois de mim. Se há algum sofrimento neste estado, deve ter havido tal sofrimento também no passado, antes de entrar na luz do dia. Na realidade, no entanto, não sentimos nenhum desconforto na ocasião.” (LIV,4)

Conclui a carta dizendo que o sábio nunca pode ser expulso de algum lugar, pois ele quer fazer o que a necessidade está prestes a forçá-lo.

Imagem  Hércules e Nessus, Loggia dei Lanzi,  por Giambologna


LIV. Sobre asma e morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Minha má saúde me permitiu um longo período de folga, quando de repente retomou o ataque. – Que tipo de doença? Você diz. E você certamente tem o direito de perguntar; pois é verdade que nenhum tipo de bondade é desconhecida por mim. Mas sou depositário, por assim dizer, de uma doença especial. Eu não sei por que eu deveria chamá-la pelo seu nome grego; pois é bem descrita como “falta de ar”[1]. Seu ataque é de duração muito breve, como o de uma tempestade no mar; geralmente termina dentro de uma hora. Quem realmente poderia segura sua respiração por tanto tempo?
  2. Eu passei por todos os males e perigos da carne; mas nada me parece mais problemático do que isso. E naturalmente assim, pois qualquer outra coisa pode ser chamada de doença; mas esta é uma espécie contínua de “último suspiro”. Por isso, os médicos a chamam de “praticar como morrer”. Pois algum dia a doença terá sucesso em fazer o que tem tantas vezes ensaiou.
  3. Você acha que estou escrevendo esta carta com alegria, só porque escapei? Seria absurdo deleitar-me com essa suposta restauração da saúde, como seria para um réu imaginar que ele havia ganhado o seu caso quando apenas conseguiu adiar seu julgamento. No entanto, no meio de minha respiração difícil eu nunca deixei de repousar em pensamentos alegres e corajosos.
  4. “O quê?” Eu digo para mim mesmo; “A morte me prova com tanta frequência?” Deixe-a fazê-lo, eu mesmo há muito tempo testei a morte. “Quando?” Você pergunta. Antes de eu ter nascido. A morte é inexistência, e eu já sei o que isso significa. O que estava antes de mim voltará a acontecer depois de mim. Se há algum sofrimento neste estado, deve ter havido tal sofrimento também no passado, antes de entrar na luz do dia. Na realidade, no entanto, não sentimos nenhum desconforto na ocasião.
  5. E eu lhe pergunto, você não diria que é o maior dos tolos aquele que acredita que uma lâmpada está pior quando é apagada do que antes de ser acesa? Nós, mortais, também somos acesos e apagados; o período de sofrimento se interpõe, mas de ambos os lados há uma paz profunda. Pois, a não ser que eu me engane muito, meu caro Lucílio, nós nos perdemos pensando que a morte só se sucede, quando na realidade nos precedeu e nos procederá por sua vez. Qualquer condição que existisse antes do nosso nascimento, é a morte. Pois o que importa se você não começar absolutamente, ou se você for excluído, na medida em que o resultado de ambos os estados é a inexistência?
  6. Nunca deixei de encorajar-me com aclamados conselhos deste tipo, em silêncio, é claro, já que não tinha capacidade de falar; depois, pouco a pouco, essa falta de ar, já reduzida a uma espécie de arquejamento, avançou a intervalos maiores, e depois diminuiu a velocidade e finalmente parou. Mesmo neste momento, embora a ofegação tenha cessado, a respiração não flui normalmente; ainda sinto uma espécie de hesitação e atraso na respiração. Que seja como lhe agrada, desde que não haja suspiro da alma[2].
  7. Aceite esta garantia de mim – eu nunca estarei assustado quando a última hora chegar; eu já estou preparado e não planejo um dia inteiro à frente. Mas você elogia e imita o homem que não quer morrer, embora tenha prazer em viver[3]? Pois que virtude há em ir embora quando você é expulso? E, no entanto, há virtude mesmo nisso: eu sou de fato expulso, mas é como se fosse embora de boa vontade. Por essa razão o homem sábio nunca pode ser expulso, porque isso significaria a remoção de um lugar de onde ele não estava disposto a sair, e o homem sábio não faz nada involuntariamente. Ele foge da necessidade, porque ele quer fazer o que a necessidade está prestes a forçá-lo.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Isto é, a asma. Sêneca pensa que o nome latino é bom o bastante.

[2]  Ou seja, que o suspiro seja físico, – um suspiro asmático, e não causado por angústia de alma.

[3] O argumento é: estou pronto para morrer, mas não me elogie por essa conta; reserve seu louvor para aquele que não está relutante em morrer, embora (ao contrário de mim) ele tenha prazer em viver (porque ele está em boa saúde). Sim, pois não há mais virtude na aceitação da morte quando alguém odeia a vida, do que há em deixar um lugar quando é expulso.

Carta 53: Sobre as falhas do Espírito

Na carta 53 Sêneca usa uma experiência pessoal de viagem marítima para afirmar que facilmente não percebemos nossas falhas, mesmo aquelas que constantemente se mostram aparentes:

“completamente esquecemos ou ignoramos nossas falhas, mesmo aquelas que afetam o corpo, que continuamente nos recordam de sua existência, para não mencionar aquelas que são mais sérias na medida em que são mais escondidas.” (LIII, 5)

logo em seguida diz que  ninguém admite suas falhas “porque ainda está preso por elas; somente aquele que está acordado pode contar o seu sonho, e da mesma forma uma confissão de pecado é uma prova da mente sã. ” (LIII,8). Uma pessoa padecendo de doença física rapidamente deixa negócios e clientes de lado e se dedica a curar-se, contudo Sêneca afirma que no caso das doenças espirituais não fazemos isso e apenas nos dedicamos ao desenvolvimento espiritual (filosófico) quando sobra tempo:

“Abandone todos os obstáculos e se dê tempo a obter uma mente sadia; porque nenhum homem pode alcançá-la se está absorto em outros assuntos. (LIII, 9)”

e qual será a recompensa por tal esforço?

“uma grande distância então começará a separá-lo de outros homens. Você estará bem à frente de todos os mortais, e até mesmo os deuses não estarão muito adiante de você. Você pergunta qual será a diferença entre você e os deuses? Viverão por muito mais tempo. Que privilégio maravilhoso, ter as fraquezas de um homem e a serenidade de um deus! ” (LIII,11-12)

(Imagem,  Mosaico romana no Bardo National Museum)


LIII. Sobre as falhas do Espírito

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você pode me persuadir em quase qualquer coisa agora, pois recentemente fui persuadido a viajar pela água. Nós partimos quando o mar estava preguiçosamente liso; o céu, com certeza, estava pesado com nuvens desagradáveis, como se fosse quebrar em chuva ou rajadas. Ainda assim, eu pensei que as poucas milhas entre Pozzuoli e sua cara Partenope poderiam ser executadas rapidamente, apesar do céu incerto e pesado. Então, para fugir mais depressa, fui direto ao mar de Nesis, com o objetivo de atravessar todas as enseadas.
  2. Mas quando estávamos tão distantes que fazia pouca diferença se voltasse ou continuasse, o tempo calmo, que me seduzira, acabou em nada. A tempestade ainda não tinha começado, mas o mar estava inchado, e as ondas se aproximavam cada vez mais depressa. Comecei a pedir ao piloto para que me colocasse em terra firme; ele respondeu que a costa era acidentada e um lugar ruim para atracar, e que durante uma tempestade ele temia uma costa de sota-vento mais do que qualquer outra coisa.
  3. Mas eu estava sofrendo demais para pensar no perigo, uma vez que um enjoo moroso que não me trazia alívio estava me atormentando, o tipo que perturba o fígado sem limpá-lo. Por isso, dei a ordem ao meu piloto, forçando-o a ir para a praia, contra sua vontade. Quando nos aproximamos, não esperei que as coisas fossem feitas de acordo com as ordens de Virgílio, até que:Proa em direção o mar alto ou Âncora jogada da proa; ( Obvertunt pelago proras aut Ancora de prora iacitur;[1]Lembrei-me da minha declaração solene de devoto veterano de água fria[2] e, vestido como eu estava em meu manto, me deixei cair no mar, como um banhista de água fria.
  4. O que você acha que meus sentimentos eram, correndo sobre as rochas, procurando pelo caminho, ou fazendo um para mim? Compreendi que os marinheiros têm boas razões para temer a terra. É difícil acreditar no que sofri quando não podia tolerar-me; você pode ter certeza de que a razão pela qual Ulisses naufragou em todas as ocasiões possíveis não foi tanto porque o deus do mar estava zangado com ele desde o seu nascimento, ele estava simplesmente sujeito a enjoo. E, no futuro, também, se for preciso ir a algum lugar por mar, só chegarei ao meu destino no vigésimo ano[3].
  5. Quando eu finalmente acalmei meu estômago (pois você sabe que não se escapa do enjoo escapando do mar) e revigorei meu corpo com uma massagem, comecei a refletir o quão completamente esquecemos ou ignoramos nossas falhas, mesmo aquelas que afetam o corpo, que continuamente nos recordam de sua existência, para não mencionar aquelas que são mais sérias na medida em que são mais escondidas.
  6. Uma leve maleita nos engana; mas quando aumenta e uma verdadeira febre começa a queimar, força até um homem robusto, que pode suportar muito sofrimento, a admitir que está doente. Há dor no pé, e uma sensação de formigamento nas articulações; mas ainda escondemos a enfermidade e anunciamos que apenas torcemos uma articulação, ou então que estamos cansados de excesso de exercício. Então a doença, incerta no início, deve ser nomeada; e quando ela começa a inchar os tornozelos, e faz nossos dois pés, pés “direito[4]“, somos obrigados a confessar que temos a gota.
  7. O oposto vale para as doenças da alma; quão pior é, menos se percebe. Você não precisa se surpreender, meu amado Lucílio. Pois aquele cujo sono é leve persegue visões durante o sono, e às vezes, embora adormecido, está consciente de que está adormecido; mas o sono sólido aniquila nossos próprios sonhos e afunda o espírito tão profundamente que não tem percepção de si mesmo.
  8. Por que ninguém admite suas falhas? Porque ainda está preso por elas; somente aquele que está acordado pode contar o seu sonho, e da mesma forma uma confissão de pecado é uma prova da mente sã. Vamos, portanto, despertar-nos, para que possamos corrigir nossos erros. A filosofia, no entanto, é o único poder que pode nos sacudir, o único poder que pode abalar o nosso sono profundo. Dedique-se inteiramente à filosofia. Você é digno dela; ela é digna de você; cumprimente um ao outro com um abraço amoroso. Diga adeus a todos os outros interesses com coragem e franqueza. Não estude filosofia meramente durante seu tempo livre.
  9. Se você estivesse doente, você deixaria de cuidar de suas preocupações pessoais, e esqueceria seus deveres de negócios; você não pensaria constantemente em nenhum cliente para fazer exame ativo de seu caso durante uma moderação ligeira de seus sofrimentos. Você iria tentar o seu melhor para se livrar da doença logo que possível. O que, então? Você não fará a mesma coisa agora? Abandone todos os obstáculos e se dê tempo a obter uma mente sadia; porque nenhum homem pode alcançá-la se está absorto em outros assuntos. A filosofia exerce sua própria autoridade; ela nomeia seu próprio tempo e não permite que ele seja nomeado para ela. Ela não é uma coisa a ser seguida em tempos estranhos, mas um assunto para a prática diária; ela é amante, e ela comanda a nossa presença.
  10. Alexandre, quando um certo país lhe prometeu uma parte do seu território e metade de toda a sua propriedade, respondeu: “Eu invadi a Ásia com a intenção, não de aceitar o que você pode dar, mas de permitir que você mantenha o que eu deixar.” A filosofia também continua dizendo a todas as tarefas: “Eu não pretendo aceitar o tempo restante que você deixou, mas vou permitir que você mantenha o que eu vou deixar.”
  11. Dedique-se a ela, portanto, com toda a sua alma, sente-se a seus pés, acalente-a; uma grande distância então começará a separá-lo de outros homens. Você estará bem à frente de todos os mortais, e até mesmo os deuses não estarão muito adiante de você. Você pergunta qual será a diferença entre você e os deuses? Viverão por muito mais tempo. Mas, pela minha fé, é o sinal de um grande artista ter confinado uma semelhança completa aos limites de uma miniatura. A vida do sábio se estende sobre uma superfície tão grande como faz toda a eternidade a um deus. Há um ponto em que o sábio tem uma vantagem sobre o deus; pois um deus é libertado dos terrores pela magnanimidade da natureza, o sábio pela sua própria magnanimidade.
  12. Que privilégio maravilhoso, ter as fraquezas de um homem e a serenidade de um deus! O poder da filosofia de romper os golpes do acaso é inacreditável. Nenhum projétil pode assentar em seu corpo; ela é bem protegida e impenetrável. Ela arruína a força de alguns projéteis e os deflete com as dobras soltas de seu vestido, como se não tivessem nenhum poder para prejudicar; outros, ela ricocheteia, e os atira com tanta força que retornam sobre o remetente.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Trecho de Eneida de Virgílio. Método típico, na época, para atracar uma embarcação.

[2] Ver carta LXXXIII.

[3] Ulysses levou dez anos em sua jornada, por causa do enjoo; Sêneca precisará duas vezes mais.

[4] Ou seja, eles estão tão inchados que se parecem.

Carta 52: Escolhendo nossos professores

Sêneca diz que raros  homens acham seu caminho para a verdade sem a ajuda de ninguém, talhando sua própria passagem, e que a maioria precisa de professores, dividindo essa classe entre aqueles com aptidão para aprender e os demais que precisam lutar contra sua natureza.

considero mais afortunado o homem que nunca teve problemas com ele mesmo; mas o outro, eu sinto, é mais merecedor de si mesmo, pois ganhou uma vitória sobre a mesquinhez de sua própria natureza e não se conduziu suavemente, mas lutou seu caminho até a sabedoria.“(LII, 6)

O tema da carta é como escolher professores.

Escolha como um guia quem você vai admirar mais ao vê-lo agir do que ao ouvi-lo falar.”(LII, 8)

Diz que um guia não deve procurar aplausos:

Pois o que é mais ordinário do que a filosofia que busca aplausos? O doente elogia o cirurgião enquanto está sendo operado? …
Quão estupido é aquele que sai da sala de aula num feliz estado de espírito simplesmente por causa dos aplausos dos ignorantes! Por que você tem prazer em ser louvado por homens que você mesmo não pode elogiar?” (LII, 9-11)

Imagem: Escultura “Self made man” por Bobbie Carlile


LII. Escolhendo nossos professores

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. O que é esta tendência, Lucílio, que nos arrasta em uma direção quando estamos mirando em outra, nos incitando ao lugar exato do qual nós desejamos nos retirar? O que é que luta com o nosso espírito e não nos permite desejar nada de forma definitiva? Passamos de plano em plano, a deriva. Nenhum de nossos desejos é livre, nenhum é incondicional, nenhum é duradouro.
  2. Mas é o tolo”, você diz, “que é inconsistente, nada lhe convém por muito tempo.” Mas como, ou quando, podemos nos afastar dessa loucura? Nenhum homem por si só tem força suficiente para se elevar acima dela, ele precisa de uma mão amiga e alguém para desenredá-lo.
  3. Epicuro observa que certos homens têm trabalhado seu caminho para a verdade sem a ajuda de ninguém, talhando sua própria passagem. E ele dá louvor especial a estes, porque o seu impulso veio de dentro e eles têm avançado para a frente por si mesmos.[1] Novamente, diz ele, há outros que precisam de ajuda externa, que não prosseguirão a menos que alguém conduza o caminho, mas que irão seguir fielmente. Destes, diz ele, Metrodoro era um. Este tipo de homem também é excelente, mas pertence ao segundo grau. Nós também não somos dessa primeira classe, seremos bem tratados se formos admitidos no segundo. Nem preciso desprezar um homem que pode obter a salvação apenas com a ajuda de outro, a vontade de ser salvo significa muito também.
  4. Você encontrará ainda outra classe de homem, uma classe a não ser desprezada, que pode ser forçada e empurrada para a virtude, que não precisa só de um guia, mas também exige alguém para encorajar, por assim dizer, para forçá-lo. Esta é a terceira variedade. Se você me pedir um exemplo de homem deste padrão, Epicuro nos diz que Hermarco[2] era tal. E das duas últimas classes, ele está mais pronto para parabenizar a primeira, mas sente mais respeito pela outra: embora ambas tenham atingido o mesmo objetivo, é um crédito maior ter trazido ao mesmo resultado o material mais difícil sobre o qual trabalhar.
  5. Suponha que dois edifícios foram erguidos, diferentes em suas fundações, mas iguais em altura e em grandeza. Um é construído em terreno sem falhas e o processo de construção vai direto para a frente. No outro caso, as fundações esgotaram os materiais de construção, porque foram afundadas em terra macia e pouco firme e muito trabalho foi necessário para alcançar a rocha maciça. Quando se olha para ambos, vê-se claramente o progresso que o primeiro fez, mas a parte maior e mais difícil do segundo está oculta.
  6. Assim, também é com as disposições dos homens, alguns são flexíveis e fáceis de manejar, mas outros têm de ser trabalhados laboriosamente, por assim dizer, e são empregados totalmente na fabricação de seus próprios fundamentos. Por isso considero mais afortunado o homem que nunca teve problemas com ele mesmo; mas o outro, eu sinto, é mais merecedor de si mesmo, pois ganhou uma vitória sobre a mesquinhez de sua própria natureza e não se conduziu suavemente, mas lutou seu caminho até a sabedoria.
  7. Você pode ter certeza de que essa natureza refratária, que exige muito trabalho, é a que foi implantada em nós. Há obstáculos em nosso caminho, então vamos lutar e chamar ao nosso auxílio alguns ajudantes. “Quem,” você diz, “eu devo invocar? Será este ou aquele homem?” Há outra opção também aberta para você, você pode ir para os antigos, pois eles têm tempo para ajudá-lo. Podemos obter ajuda não só dos vivos, mas também daqueles do passado.
  8. Entretanto, entre os vivos, vamos escolher não os homens que derramam as suas palavras com a maior desenvoltura, revelando trivialidades e citações, por assim dizer, as suas próprias pequenas exposições particulares – não estes, digo eu, mas sim os homens que nos ensinam com suas vidas, os homens que nos dizem o que devemos fazer e depois provam pela prática, o que devemos evitar, e então nunca são pegos fazendo o que eles nos ordenaram evitar. Escolha como um guia quem você vai admirar mais ao vê-lo agir do que ao ouvi-lo falar.
  9. Naturalmente, não o impedirei de ouvir também aqueles filósofos que costumam fazer sessões e discussões públicas, desde que compareçam perante o povo com o propósito expresso de melhorar a si mesmos e aos outros e não pratiquem sua profissão por egoísmo. Pois o que é mais ordinário do que a filosofia que busca aplausos? O doente elogia o cirurgião enquanto está sendo operado?
  10. Em silêncio e com respeito reverente submetemo-nos à cura. Mesmo que você grite por aplausos, vou ouvir seus gritos como se você estivesse gemendo quando suas feridas são tocadas. Deseja dar testemunho de que está atento, de que está tocado pela grandeza do assunto? Você pode fazer isso no momento adequado, naturalmente, permitirei que você faça julgamento e que decida sobre o melhor curso. Pitágoras fazia seus alunos manterem-se em silêncio por cinco anos, você acha que eles tinham o direito de repentinamente entrar em aplausos?
  11. Quão estupido é aquele que sai da sala de aula num feliz estado de espírito simplesmente por causa dos aplausos dos ignorantes! Por que você tem prazer em ser louvado por homens que você mesmo não pode elogiar? Fabiano[3] costumava dar palestras populares, mas seu público ouvia com autocontrole. Ocasionalmente, um grande grito de louvor brotava, mas era provocado pela grandeza de seu assunto e não pelo som da oratória que deslizava agradável e suavemente.
  12. Deve haver uma diferença entre os aplausos do teatro e os aplausos da escola, e há certa decência mesmo em dar louvor. Se você os percebe cuidadosamente, todos os atos são sempre significativos e você pode avaliar o caráter até mesmo pelos sinais mais insignificantes. O homem lascivo é revelado pelo seu andar, por um movimento da mão, às vezes por uma única resposta, pelo toque de sua cabeça com um dedo,[4] pelo revirar de seus olhos. O patife é mostrado por sua risada, o louco pelo seu rosto e aparência geral. Essas qualidades tornam-se conhecidas por certas marcas, mas você pode determinar o caráter de cada homem quando vê como ele dá e recebe louvor.
  13. O público do filósofo deste e daquele canto estende as mãos admiradoras e às vezes a multidão adoradora quase paira sobre a cabeça do conferencista. Mas, se você realmente compreende, isso não é louvor, é apenas um aplauso. São autênticas carpideiras quem o está aplaudindo. Esses alaridos devem ser deixados para as artes que visam agradar a multidão, que a filosofia seja reverenciada em silêncio.
  14. Os jovens, na verdade, devem às vezes ter liberdade para seguir seus impulsos, mas só apenas em momentos em que eles agem de impulso e quando eles não podem forçar-se a ficar em silêncio. Tal elogio dá um certo tipo de incentivo para os próprios ouvintes e age como um estímulo para a mente jovem. Mas que eles sejam despertados para o assunto e não para o estilo, caso contrário, a eloquência os faz mal, tornando-os enamorados de si mesmos e não do assunto.
  15. Vou adiar este tema por enquanto, exige uma investigação longa e especial para apresentar como o público deve ser abordado, que indulgências devem ser permitidas a um orador em uma ocasião pública e o que deve ser permitido à própria multidão na presença do orador. Não pode haver dúvida de que a filosofia sofreu uma perda, agora que ela expôs seus encantos às massas. Mas ela ainda pode ser vista em seu santuário, se seu expositor for um sacerdote e não um vendilhão.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] NT: Ver Epicuro, Cartas e Princípios

[2] NT: Hermarco (grego: Ἕρμαρχoς, Hermarkhos; c. 325-c. 250 AC), era um filósofo epicurista. Ele foi discípulo e sucessor de Epicuro como chefe da escola. Nenhum de seus escritos sobrevive. Ele escreveu obras dirigidas contra Platão, Aristóteles e Empedócles.

[3] NT: Papirio Fabiano foi um retórico e filósofo da Roma Antiga, ativo na última época de Augusto e nos tempos de Tibério e Calígula, na primeira metade do primeiro século. Foi professor de Sêneca. Suas obras são frequentemente citadas por Plínio na História Natural e Sêneca diz que seus escritos filosóficos foram superados apenas pelos de Cícero, Pólio e Lívio.

[4] O coçar da cabeça com um dedo era, por algum motivo, considerado uma marca de efeminação ou de vício; “scalpere caput digito”.