Carta 45: Sobre Argumentação sofística

Na carta 45 Sêneca discorre sofre a escola sofista e a define com um exercício fútil:

“Eles perderam muito tempo em jogar com palavras e na argumentação sofista; todo esse tipo de coisa exercita a inteligência para nenhum propósito. Nos atamos nós e unimos palavras em significados duplos, e então tentamos desatá-los. Temos tempo suficiente para isso? Já sabemos como viver ou morrer? (XLV, 5)

Resume que não conhecer os sofismas não faz mal, e dominá-los não faz nenhum bem, sendo que a principal mensagem é focar no importante, deixando o supérfluo passar:

“entenda que o homem feliz não é aquele que a multidão considera feliz, isto é, aquele em cujos cofres grandes somas fluíram, mas aquele cujas posses estão todas em sua alma, que é reta e elevada, que despreza a inconstância, que não vê homem com quem ele queira trocar de lugar, que avalia os homens apenas pelo seu valor como homens, que considera a natureza sua professora, obedecendo suas leis e vivendo como ela comanda, a quem nenhuma violência pode privar de suas posses”(XLV, 9)

Na carta Sêneca usa uma expressão muito interessante:  “Mas não devo ultrapassar os limites de uma carta, que não deve preencher a mão esquerda do leitor.”  Essa observação é válida quando tal carta é escrita em pergaminho, desenrolada com a mão direita enquanto a esquerda recolhe a parte que já foi lida.

(imagem: Protágoras, no centro, e Demócrito, à direita, por Salvator Rosa.  Protágora é grande expoente da escola sofista, cunhador da frase “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são.“)


XLV. Sobre Argumentação sofística

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Você se queixa de que em sua parte do mundo há uma oferta escassa de livros. Mas é a qualidade, e não a quantidade, que importa; Uma lista limitada de benefícios de leitura; Um sortimento variado serve apenas para o deleite. Aquele que chegaria ao fim designado deve seguir um único caminho e não percorrer muitos caminhos. O que você sugere não é uma viajem, mas um mero vaguear.
  2. “Mas,” você diz, “eu prefiro que você me dê conselhos do que livros.” Ainda assim, estou pronto para enviar-lhe todos os livros que tenho, saquear todo meu armazém. Se fosse possível, eu deveria me juntar a você; E se não fosse pela esperança de que você termine em breve seu mandato, eu deveria impor a mim mesmo a viagem, nenhum Cila ou Caribdis[1], ou seus lendários desafios poderiam ter me assustado. Eu não deveria apenas ter atravessado, mas deveria ter estado disposto a nadar sobre essas águas, desde que pudesse cumprimentá-lo e julgar em sua presença o quanto você cresceu em espírito.
  3. Seu desejo, entretanto, de que eu lhe envie meus próprios escritos não me faz acreditar mais sábio, não mais do que um pedido de meu retrato lisonjearia minha beleza. Sei que é devido à sua caridade e não a sua capacidade crítica. E mesmo se for resultado de julgamento, foi a caridade que forçou seu julgamento.
  4. Mas qualquer que seja a qualidade das minhas obras, leia-as como se eu ainda estivesse procurando, e não estivesse ciente da verdade, e também a procurasse obstinadamente. Pois não me vendi a ninguém; eu não tenho a marca de nenhum mestre. Eu dou muito crédito ao julgamento dos grandes homens; mas eu reivindico algo também para mim. Pois esses homens nos deixaram também, não descobertas definitivas, mas problemas cuja solução ainda deve ser buscada. Poderiam talvez ter descoberto o essencial, se não tivessem procurado também o supérfluo.
  5. Eles perderam muito tempo em jogar com palavras e na argumentação sofista; todo esse tipo de coisa exercita a inteligência para nenhum propósito. Nos atamos nós e unimos palavras em significados duplos, e então tentamos desatá-los. Temos tempo suficiente para isso? Já sabemos como viver ou morrer? Devemos, antes, prosseguir com as nossas almas intactas até o ponto em que é nosso dever cuidar para que as coisas, assim como as palavras, não nos enganem.
  6. Por que, ora, você discrimina entre palavras semelhantes, quando ninguém é enganado por elas, exceto durante a discussão? São coisas que nos desnorteiam: é entre as coisas que você deve discriminar. Nós abraçamos o mal em vez do bem; oramos por algo oposto ao que havíamos orado no passado. Nossas orações entram em conflito com nossas orações, nossos planos com nossos planos.
  7. Quão semelhante é a adulação com a amizade! Não só macaqueia a amizade, mas supera-a, passando-a na corrida; com ouvidos abertos e indulgentes, é acolhida e penetra nas profundezas do coração, e é agradável precisamente no que faz mal. Mostre-me como eu posso ser capaz de ver através desta semelhança! Um inimigo chega até mim cheio de elogios, sob a aparência de um amigo. Os vícios fluem em nossos corações sob o nome de virtudes, a imprudência se esconde sob a denominação de bravura, a moderação é chamada de lentidão, e o covarde é considerado prudente; há grande perigo de nos confundirmos nesses assuntos. Então marque-os com etiquetas especiais.
  8. Então, também, o homem a quem é perguntado se tem chifres na cabeça não é tão tolo para apalpar por eles em sua testa, nem tão tolo ou estúpido que você possa persuadi-lo por meio de argumentação, não importa quão astutamente, que ele não conhece os fatos. Esses sofismas são tão inofensivamente enganadores quanto os acessórios do malabarista, em que é o próprio truque que me agrada. Mas mostre-me como o truque é feito, e eu perco interesse nele. E eu mantenho a mesma opinião sobre esses complicados jogos de palavras; por qual outro nome se pode chamar tais sofismas? Não os conhecer não faz mal, e dominá-los não faz nenhum bem.
  9. De qualquer modo, se você quiser peneirar significados duvidosos deste tipo, entenda que o homem feliz não é aquele que a multidão considera feliz, isto é, aquele em cujos cofres grandes somas fluíram, mas aquele cujas posses estão todas em sua alma, que é reta e elevada, que despreza a inconstância, que não vê homem com quem ele queira trocar de lugar, que avalia os homens apenas pelo seu valor como homens, que considera a natureza sua professora, obedecendo suas leis e vivendo como ela comanda, a quem nenhuma violência pode privar de suas posses, que transforma o mal em bem, é inabalável em julgamento, inabalável, sem medo, que pode ser movido pela força, mas nunca movido por distração, a quem a fortuna, quando ela se lança com toda a sua força sobre ele com seu mais mortífero arsenal, pode atingi-lo, embora raramente, mas nunca feri-lo. Pois as outras armas da fortuna, com as quais ela vence a humanidade em geral, ricocheteia neste homem, como o granizo que crepita no telhado sem causar dano ao morador, e depois desaparece.
  10. Por que você me aborrece com o que você mesmo chama de “falácia mentirosa”, sobre a qual tantos livros foram escritos? Convenhamos agora, suponha que toda a minha vida é uma mentira; prove isto estar errado e, se você é forte o suficiente, traga isso de volta para a verdade. Agora, considere coisas essenciais, as quais a maior parte é supérflua. E mesmo o que não é supérfluo não tem importância no que diz respeito ao seu poder de fazer alguém afortunado e bem-aventurado. Pois se uma coisa é necessária, não se segue que ela seja boa. Do contrário degradaríamos o significado de “boa”, se aplicarmos esse nome ao pão, à cevada e a outras mercadorias sem as quais não podemos viver.
  11. O bem deve em todos os casos ser necessário; mas o que é necessário não é em todos os casos um bem, uma vez que certas coisas muito insignificantes são realmente necessárias. Ninguém é tão ignorante quanto ao nobre significado da palavra “bom”, como para rebaixá-la ao nível dessas utilidades banais.
  12. O que, então? Não prefere transferir seus esforços para deixar claro a todos que a busca do supérfluo significa um grande gasto de tempo e que muitos passam pela vida simplesmente acumulando os instrumentos da vida? Considere indivíduos, avalie homens em geral; não há ninguém cuja vida espere pelo o amanhã.
  13. “Que mal há nisso”, você pergunta? Dano infinito; porque tais pessoas não vivem, mas se preparam para viver. Elas adiam tudo. Mesmo se prestássemos rigorosa atenção, a vida logo se adiantaria a nós; mas como nós somos agora, a vida nos encontra persistentes e ultrapassa-nos como se pertencesse a outro, e embora termine no último dia, perece todos os dias. Mas não devo ultrapassar os limites de uma carta, que não deve preencher a mão esquerda do leitor[2]. Então, postergo para outro dia nosso caso contra os detalhistas, aqueles sujeitos sutis que fazem da argumentação suprema em vez de subordinada.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Cila ou Caribdis: Sêneca estende a metáfora da ascensão para incluir as cadeias de montanha que atravessam a região montanhosa da Candávia, perto da Via Egnatia na Macedônia, depois (retornando aos perigos marítimos) os Sirtes da Líbia (bancos de areia traiçoeiros) e os dois perigos do estreito da Sicília confrontadas por Ulysses: Cila na costa da Calábria e Char Caribdis da Sicília (ver a carta XIV.8).

[2] Essa observação é válida quando tal carta é escrita em pergaminho, desenrolada com a mão direita enquanto a esquerda recolhe a parte que já foi lida.