Dúvida do Leitor: Eram os estoicos politeístas?

Recentemente um leitor das Cartas de Sêneca me escreveu com a seguinte dúvida:  “Em algumas passagens das Cartas Estoicas percebi o uso da palavra ‘Deus‘, no singular e maiúsculo. Um exemplo é no Livro I, LVIII, 17. Mas os romanos não eram politeístas? Será que uma tradução mais acurada não seria ‘deuses‘, já que o monoteísmo da época estava relegado a uma pequena parcela das pessoas ?

Sêneca faz uso dos dois ternos em variadas cartas. Em muitas usa o singular “deus” e “deum” ao invés do “dei” e “deos”.  No trecho referido a tradução é  “Qual é, então, este Ser preeminente? Deus, certamente, aquele que é maior e mais poderoso do que qualquer outro.“ no original latim: “Quid ergo hoc est? Deus scilicet, maior ac potentior cunctis. ”

Na época de Sêneca havia liberdade religiosa no império Romano, que aceitava todos tipos de prática religiosa das mais diversas culturas e regiões conquistadas.

Os estoicos não eram politeístas, mas panteistas, ou seja acreditavam que tudo e todos compõem um Deus abrangente, imanente de forma que o Universo (Natureza) e Deus são idênticos.  (tipo a “força” no Star Wars)

Sêneca praticava um sincretismo do politeísmo romano com as ideias estoicas clássicas. Em seus textos algumas vezes cita os deuses e rituais romanos e outras vezes esse Deus único.  Penso que dá  mais respeito ao Deus único do que aos “deuses romanos”.

Na carta 16 Sêneca aborda algumas visões de Deus

“Como pode a filosofia me ajudar, frente a existência da Fortuna?” De que serve a filosofia, se Deus governa o universo? De que vale, se a fortuna governa tudo? Não só é impossível mudar as coisas que são determinadas, mas também é impossível planejar de antemão contra o que é indeterminado, ou Deus já antecipou meus planos, e decidiu o que devo fazer, ou então a fortuna não dá liberdade aos meus planos.

Se a verdade, Lucílio, está em uma ou em todas estas perspectivas, nós devemos ser filósofos; se a fortuna nos amarra por uma lei inexorável, ou se Deus, como árbitro do universo, providenciou tudo, ou se o acaso dirige e lança os assuntos humanos sem método, a filosofia deve ser nossa defesa. Ela nos encorajará a obedecer a Deus alegremente, e a fortuna desafiadoramente; ela nos ensinará a seguir a Deus e a suportar a fortuna.”

Na carta 31 é patente a visão panteísta:

“Seu dinheiro, entretanto, não o colocará em nível com Deus; porque Deus não tem posses. Seu manto bordado não fará isso; porque Deus não traja vestes; nem irá a sua reputação, nem a sua própria presença, nem a notoriedade de seu nome por todo o mundo; porque ninguém conhece a Deus; muitos até o tem em baixa estima, e não sofrem por fazê-lo. A multidão de escravos que carrega sua liteira ao longo das ruas da cidade e em lugares estrangeiros não irá ajudá-lo, porque este Deus de quem falo, embora seja o mais alto e poderoso dos seres, carrega todas as coisas em seus próprios ombros. Nem a beleza nem a força podem fazer você abençoado, pois nenhuma dessas qualidades pode resistir à velhice.

O que temos de procurar, então, é o que não passa cada dia mais e mais ao controle de algum poder que não pode ser resistido. E o que é isso? É a alma, mas a alma que é justa, boa e grande. O que mais você poderia chamar de tal alma do que um deus morando como convidado em um corpo humano? Uma alma como esta pode descer para um cavaleiro romano, assim como para um filho de liberto ou a um escravo. Pois o que é um cavaleiro romano, ou o filho de um liberto, ou um escravo? São meros títulos, nascidos da ambição ou do mal. Pode-se saltar para o céu das próprias favelas.”

Muitos estudioso entendem que o estoicismo foi a base dos primeiros cristãos. Eu concordo.

(imagem: Criação de Adão, Michelangelo)