Carta 36: Sobre o Valor da Aposentadoria

Na carta 36 Sêneca discute as vantagens de ser afastar dos negócios e da vida pública, para o que chama de “Otium” um termo abstrato em latim,  que tem uma variedade de significados, incluindo o tempo de lazer em que uma pessoa pode gastar para comer, brincar, descansar, contemplação e esforços acadêmicos.

Estabelece uma antítese no início da carta entre o sucesso popular (felicitas), que seria sucesso na carreira pública, e uma vida de aposentadoria (otium) sendo a segunda a vida ideal . O sucesso popular é instável, já que está sob controle da Fortuna. Além disso, seu efeito sobre aqueles que o recebem não é saudável:

“A prosperidade é uma coisa turbulenta; ela atormenta. Ela agita o cérebro em mais de um sentido, incitando os homens a vários objetivos, alguns para o poder, e outros para a vida luxuosa. Alguns ela enche de orgulho; outros afrouxa e debilita totalmente.” (XXXVI.1)

A escolha entre a vida pública e a aposentadoria(retiro) foi um tema importante para os filósofos antigos, sobre o qual Sêneca escreveu com a experiência de ambos os estilos de vida. É um tópico que ele apresenta em vários de seus diálogos e cartas, inclusive na Carta VIII, já comentada no site.

A aposentadoria está intimamente ligada ao verdadeiro sucesso de Sêneca. Teoricamente, o estado interno de “vida feliz”  é possível, independentemente das circunstâncias externas. Na prática, no entanto, o retiro é uma grande ajuda para o progresso filosófico devido a distância da influência prejudicial da multidão.

Para Sêneca, A Vida Feliz consiste em duas qualidades: Tranquilidade da Mente e Liberdade do Medo (securitas et perpetua tranquillitas).A aposentadoria é uma grande ajuda para alcançar a tranquilidade da mente. A liberdade do medo é alcançada com a aceitação da morte, tema da segunda metade da carta.

A partir do parágrafo 8 Sêneca oferece uma perspectiva científica sobre a morte:

“A o que, então, esse amigo seu dedicará sua atenção? Eu digo, que aprenda o que é útil contra todas as armas, contra todo tipo de inimigo, – o desprezo pela morte;” (XXXVI.8)

Nos parágrafos 10-11, Sêneca convida o leitor a ver nos ciclos cósmicos da natureza uma segurança para encarar a morte calmamente.

“Uma vez que você está destinado a retornar, você deve partir com uma mente tranquila. Perceba como o percurso do universo repete seu curso; você verá que nenhuma estrela em nosso firmamento é extinguida, mas que todas elas surgem e se erguem em alternância. O verão foi embora, mas outro ano o trará de novo;” (XXXVI.11)

No  livro “Das Questões Naturais“, Sêneca coloca o estudo da natureza em um plano superior ao de outros ramos da filosofia: Estudar ciências seria o estudo de Deus já os outros temas seria o estudo dos humanos.

Conclui a carta com uma analogia forte, mostrando que não é racional temer a morte:

“os jovens e os que ficaram loucos, não têm medo da morte, e é muito vergonhoso se a razão não pode nos dar essa paz de espírito que é trazida pela loucura.”(XXXVI.12)

(imagem:  Alegoria da Fortuna, por Salvator Rosa)

 


XXXVI. Sobre o Valor da Aposentadoria

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Incentive seu amigo a desprezar corajosamente aqueles que o censuram porque ele procurou a sombra da aposentadoria e abdicou de sua carreira de honras, e, embora pudesse ter alcançado mais, preferiu a tranquilidade. Deixe-o provar diariamente a estes detratores como sabiamente ele defendeu seus próprios interesses. Aqueles que são invejados pelos homens passam ao largo; alguns serão empurrados para fora de sua posição social, e outros cairão. A prosperidade é uma coisa turbulenta; ela atormenta. Ela agita o cérebro em mais de um sentido, incitando os homens a vários objetivos, alguns para o poder, e outros para a vida luxuosa. Alguns ela enche de orgulho; outros afrouxa e debilita totalmente.
  2. “Mas”, diz a réplica, “Fulano conduz bem a sua prosperidade”. Sim; assim como ele controla sua bebida. Então você precisa não deixar que essa classe de homens o persuada que aquele que é sitiado pela multidão é feliz; a multidão corre para ele como correm para uma lagoa de água, tornando-a lamacenta enquanto a drenam. Mas você diz: “Os homens chamam nosso amigo de insignificante e preguiçoso“. Há homens, você sabe, cujo discurso é oblíquo, que usam termos contraditórios. Eles o chamavam de feliz; e daí? Ele era feliz?
  3. Mesmo o fato de que a algumas pessoas ele se pareça a um homem de mente muito áspera e sombria, não me incomoda. Aristo[2] costumava dizer que preferia um jovem sisudo a um homem jovial e agradável à multidão. “Pois“, acrescentava, “vinho que, quando novo, parecia áspero e azedo, torna-se bom vinho, mas o que provou bem na vindima pode não suportar a idade.” Então, que eles o chamem de severo e inimigo de seu próprio progresso, é essa severidade que irá bem quando envelhecer, desde que continue a apreciar a virtude e a absorver completamente os estudos que faz para a cultura – não aqueles suficientes para que um homem se borrife, mas aqueles em que a mente deve ser mergulhada.
  4. Agora é a hora de aprender. “O que? Há alguma época em que um homem não deva aprender?” De jeito nenhum; mas assim como é meritório para todas as idades estudar, não é meritório para todas as idades ser instruído. Um homem velho que aprende seu ABC é uma coisa vergonhosa e absurda; o jovem deve armazenar, o velho deve usar. Você, portanto, estará fazendo uma coisa mais útil para si mesmo se você fizer este amigo seu um homem tão bom quanto possível; essas bondades, dizem eles, devem ser buscadas e concedidas, pois beneficiam ao doador não menos que ao receptor; e elas são, sem dúvida, as melhores.
  5. Finalmente, não tem mais nenhuma liberdade no assunto, aquele que empenhou sua palavra. E é menos vergonhoso renegociar com um credor do que renegociar com um futuro promissor. Para pagar sua dívida de dinheiro, o homem de negócios deve ter uma viagem lucrativa, o agricultor deve ter campos frutíferos e bom tempo, mas a dívida que seu amigo deve pode ser completamente paga por mera boa vontade.
  6. A fortuna não tem jurisdição sobre o caráter. Permita regular seu caráter de modo que em perfeita paz possa trazer à perfeição aquele espírito que não sente perda nem ganho, mas que permanece na mesma atitude, não importa como as coisas se dão. Um espírito como este, se agraciado com bens mundanos, se eleva à sua riqueza; se, por outro lado, o acaso o despoja de uma parte de sua riqueza, ou mesmo de tudo, não é prejudicado.
  7. Se seu amigo tivesse nascido no Império Parta, ele teria começado, quando criança, a dobrar o arco; se na Alemanha, estaria brandindo a sua esguia lança; se ele tivesse nascido nos dias de nossos antepassados, ele teria aprendido a montar um cavalo e a castigar seu inimigo mão a mão. Estas são as ocupações que o sistema de cada estirpe recomenda ao indivíduo, – sim, prescreve a ele.
  8. A o que, então, esse amigo seu dedicará sua atenção? Eu digo, que aprenda o que é útil contra todas as armas, contra todo tipo de inimigo, – o desprezo pela morte; porque ninguém duvida que a morte tenha em si algo que inspire o terror, de modo que choca até mesmo nossas almas, que a natureza as moldou para que amem sua própria existência; pois de outro modo não haveria necessidade de nos preparar, e de aguçar nossa coragem, para encarar o que deveria ser uma espécie de instinto voluntário, precisamente da mesma forma como todos os homens tendem a preservar sua existência.
  9. Nenhum homem aprende uma coisa a fim de que, se a necessidade surgir, ele possa se deitar sobre um leito de rosas; mas ele prepara sua coragem para este fim, para que não entregue sua fé à tortura, e que, se necessário, possa algum dia ficar de guarda nas trincheiras, mesmo ferido, sem se apoiar na sua lança; porque o sono é capaz de rastejar sobre os homens que se sustentam por qualquer suporte. Na morte não há nada prejudicial; pois deve existir algo a que ela é prejudicial[3].
  10. E ainda, se você está possuído por tão grande desejo de uma vida mais longa, reflita que nenhum dos objetos que desaparecem do nosso olhar e são reabsorvidos no mundo das coisas, de onde eles surgem e em breve irão ressurgir, é aniquilado; eles simplesmente terminam o seu curso e não perecem. E a morte, de que tememos e nos afastamos, simplesmente interrompe a vida, mas não a rouba; o tempo voltará quando seremos restaurados à luz do dia; e muitos homens opor-se-iam a isso, se não fossem trazidos de volta tendo esquecido o passado.
  11. Mas quero mostrar-lhe mais tarde, com mais cuidado, que tudo o que parece perecer apenas muda. Uma vez que você está destinado a retornar, você deve partir com uma mente tranquila. Perceba como o percurso do universo repete seu curso; você verá que nenhuma estrela em nosso firmamento é extinguida, mas que todas elas surgem e se erguem em alternância. O verão foi embora, mas outro ano o trará de novo; O inverno está baixo, mas será restaurado por seus próprios meses; A noite dominou o sol, mas o dia logo derrubará a noite outra vez. As estrelas nômadas retraçam seus cursos anteriores; uma parte do céu está em ascensão incessantemente, e uma parte está afundando.
  12. Uma palavra mais, e então vou parar; os meninos, os jovens e os que ficaram loucos, não têm medo da morte, e é muito vergonhoso se a razão não pode nos dar essa paz de espírito que é trazida pela loucura.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[2] Aríston ou Aristo de Quios foi um filósofo estoico e discípulo de Zenão de Cítio. Esboçou um sistema de filosofia estoica que esteve, em muitos aspectos, mais próximo da anterior filosofia cínica. Rejeitou o lado lógico e físico da filosofia aprovada por Zenão e enfatizou a ética.

[3] Como depois da morte, nós não existimos, a morte não pode ser prejudicial para nós. Sêneca tem em mente o argumento de Epicuro: “Portanto, o mais pavoroso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois quando nós existimos, a morte não está presente para nós, e quando a morte está presente, então não existimos. Portanto, não diz respeito aos vivos ou aos mortos, pois para os vivos não tem existência, e para os mortos não existe. “