Carta 26: Sobre a velhice e a morte

Sêneca mais uma vez volta a abordar a morte e como encará-la.

Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de suicídio imposta por Nero. Ainda assim, ele é grato por sua mente ainda estar afiada, mesmo que seu corpo estivesse em decadência, como convém a um estoico que dá valor à sua faculdade mental e considera o corpo um indiferente preferido.

você diz,  é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos; somos desgastados, e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.”(XXVI.4)

Uma morte rápida e súbita é fácil e preferível, mas a realidade é que a maioria de nós vai decair lentamente, perdendo tanto a nossa força física quanto a mental no processo. Esse é o difícil desafio de se aproximar do fim, e é por isso que a forma como nos aproximamos da morte é o teste final de nosso caráter. Como vamos reagir à nossa crescente dependência dos outros? É melhor ficar por aqui até o último minuto, ou caminhar pela porta aberta, como Epiteto diz, enquanto ainda estamos no controle? (

É uma boa prática perguntar a nós mesmos a mesma questão, não apenas sobre a morte, mas sobre como nos comportamos todos os dias: estamos realmente tentando, ainda que imperfeitamente, viver a vida estoica, ou é apenas conversa? Sêneca atribui valor limitado ao aprendizado teórico. A prova está na prática:

Você é mais jovem; mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera; assim que esteja sempre pronto para ela.”(XXVI.7)

Este é um ponto crucial, e tão comumente subestimado. Muitas vezes falamos de alguém morrendo “prematuramente”. Mas nós baseamos isso em expectativas estatísticas. Do ponto de vista do Logos, a teia cósmica de causa e efeito, não existe algo muito cedo ou muito tarde. As coisas acontecem quando acontecem. E esse conhecimento teórico tem o potencial de ser de enorme interesse prático, não perca tempo, pela simples razão de que você não saber quanto tempo tem no banco.

(Imagem: Still Life with a Skull and a Writing Quill por Pieter Claesz)


XXVI. Sobre a velhice e a morte

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Eu estava ultimamente dizendo que estava à vista da velhice[1]. Agora estou com medo de ter deixado a velhice atrás de mim. Pois alguma outra palavra se aplicaria agora a meus anos, ou de qualquer maneira a meu corpo; uma vez que a velhice significa um tempo da vida que se está cansado, em vez de esmagado. Você pode me classificar na classe desgastada, – daqueles que estão chegando ao fim.
  2. No entanto, eu agradeço a mim mesmo, com você como testemunha; porque eu sinto que a idade não causou nenhum dano a minha mente, embora eu sinta seus efeitos em minha constituição. Somente meus vícios, e as ajudas exteriores a esses vícios, chegaram à senilidade; minha mente é forte e se regozija por ter apenas ligeira conexão com o corpo. Ela deixou de lado a maior parte de sua carga. Está alerta; ela rejeita o tema da velhice; declara que a velhice é seu tempo de florescimento.
  3. Deixe-me levá-la em consideração, e deixá-la aproveitar as vantagens que possui. A mente me pede que pense um pouco e considere o quanto dessa paz de espírito e moderação de caráter devo à sabedoria e quanto a meu tempo de vida; me convida a distinguir cuidadosamente o que não posso fazer e o que não quero fazer… pois por que alguém deve queixar-se ou considerar uma desvantagem, se as forças que deveriam chegar a um fim falharam?
  4. “Mas,” você diz, “é a maior desvantagem possível ser desgastado e morrer, ou mais, se posso dizer literalmente, desparecer lentamente! Porque nós não somos repentinamente feridos e abatidos; somos desgastados, e cada dia reduz um pouco dos nossos poderes.” Mas há algum melhor fim para tudo isso do que planar para seu próprio refúgio, quando a natureza se vai? Não que haja algo doloroso em um choque e uma partida repentina da existência; é apenas porque este outro modo de partida é fácil, – uma retirada gradual. Eu, de qualquer modo, como se o teste estivesse à mão e chegasse o dia de pronunciar sua decisão sobre todos os anos da minha vida, vigio-me e comungo assim comigo:
  5. “A demonstração que fizemos até o presente, em palavra ou em ação, não vale nada. Tudo isso é apenas uma promessa insignificante e enganosa de nosso espírito, e está envolto em muito charlatanismo. Vou deixar a cargo da morte determinar o progresso que fiz. Portanto, sem timidez, estou preparando para o dia em que, deixando de lado todo o artifício de palco e maquiagem de ator, eu deverei me julgar, – se estou meramente declamando sentimentos corajosos, ou se realmente os sinto, se todas as ameaças arrojadas que eu proferi contra a fortuna eram fingimento e farsa.
  6. Deixe de lado a opinião do mundo, ela é sempre vacilante e sempre parcial. Deixe de lado os estudos que você tem perseguido durante toda a sua vida, a morte entregará o julgamento final em seu caso. Isto é o que quero dizer: seus debates e palestras, seus axiomas recolhidos a partir dos ensinamentos dos sábios, sua conversa culta, – tudo isso não oferece nenhuma prova da verdadeira força da sua alma. O homem mais tímido pode fazer um discurso ousado. O que você fez no passado será evidente apenas no momento em que você expirar seu último suspiro. Eu aceito as condições; eu não me acovardo frente a decisão. “
  7. Isto é o que eu digo a mim mesmo, mas gostaria que você pensasse que eu o digo a você também. Você é mais jovem; mas o que isso importa? Não há contagem fixa de nossos anos. Você não sabe onde a morte o espera; assim que esteja sempre pronto para ela.
  8. Eu estava apenas pretendendo parar, e minha mão estava se preparando para a frase de encerramento; mas os ritos ainda devem ser realizados e as despesas de viagem para a carta desembolsadas. E apenas suponha que eu não direi de quem eu pretendo emprestar a soma necessária; você sabe de cujos cofres dependo. Espere só mais um momento, e eu pagarei de minha conta; Entretanto, Epicuro me favorece com estas palavras: “Pense na morte”, ou melhor, se preferir a frase, pense na “migração para o céu”.
  9. O significado é claro, – é uma coisa maravilhosa aprender minuciosamente como morrer. Você pode considerar que é supérfluo aprender um texto que pode ser usado apenas uma vez; mas essa é exatamente a razão pela qual devemos pensar em uma coisa. Quando nunca podemos provar se realmente sabemos alguma coisa, devemos sempre estar aprendendo.
  10. “Pense na morte”. Ao dizer isso, ele nos pede para pensar na liberdade. Aquele que aprendeu a morrer desaprendeu a escravidão; está acima de qualquer poder externo, ou, pelo menos, está além disso. Que terrores tem prisões e correntes e grades para ele? A sua saída é clara. Existe apenas uma cadeia que nos liga à vida, e essa é o amor pela vida. A corrente não pode ser desprezada, mas pode ser enganada, de modo que, quando a necessidade exigir, nada pode retardar ou impedir que estejamos prontos para fazer de uma só vez o que em algum momento seremos obrigados a fazer.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Veja a carta XII. Sêneca tinha por este tempo, pelo menos, sessenta e cinco anos. Quando escreveu suas cartas, Sêneca vivia os últimos anos de sua vida embora obviamente não tivesse conhecimento de que aqueles anos chegariam a um fim abrupto com a ordem de Nero para cometer suicídio.