Carta 23: Sobre a verdadeira alegria que vem da filosofia

A carta 23 discorre sobre a distinção entre a alegria falsa e a verdadeira. Sêneca começa contando a Lucílio que deseja escrever-lhe sobre as coisas que importam, sem perder tempo falando do tempo ou outras trivialidades das quais as pessoas falam quando não têm nada a dizer. Ele então vai direto ao ponto:

Você pergunta qual é o fundamento de uma mente sã? É, não encontrar satisfação em coisas inúteis. Eu disse que era o fundamento; é realmente o pináculo. Chegamos às alturas quando sabemos o que é que nos alegra e quando não colocamos nossa felicidade sob controle externo. ” (XXIII.1-2)

Essa, é claro, é uma versão da dicotomia estoica do controle: não controlamos os externos, por isso é tolice depositar nossa felicidade neles. A frase de Sêneca, “Eu disse que era o fundamento; é realmente o pináculo.“, na verdade destaca a idéia de que encontrar alegria na solidez dos próprios julgamentos, em oposição à aquisição de coisas externas, é um objetivo importante do treinamento estoico e, de fato, o auge a ser alcançado.

Acima de tudo, meu caro Lucílio, faça deste seu negócio: aprenda a sentir alegria.” (XXIII.3)

Normalmente, não precisaríamos aprender a sentir alegria, é uma emoção humana natural. O fato de termos que “aprender” como sentir alegria, entretanto, está perfeitamente de acordo com o princípio estoico de que os sentimentos básicos têm valor neutro e devem ser avaliados por nossa faculdade de julgamento, que tem o poder de dar ou retirar consentimento a tais sentimentos.  Isso parece bastante severo, Sêneca admite que o prazer é uma coisa boa (no sentido de ser um indiferente preferido, obviamente), mas também está advertindo de que o prazer tem uma tendência a assumir o controle, distraindo-nos de atividades mais importantes. O que buscar, exatamente? Vem a resposta:

Você me pergunta qual é o verdadeiro bem, e de onde deriva? Digo-o: vem de uma boa consciência, de propósitos honrosos, de ações corretas, de desprezo dos presentes da fortuna, de um modo de vida equilibrado e tranquilo que trilha apenas um caminho. ”(XXIII.7)

O problema é que muitos de nós levam muito tempo para perceber isso, e alguns de nós nunca percebem isso. É por isso que Seneca conclui a carta com estas palavras memoráveis:

Alguns homens, na verdade, só começam a viver quando é hora de deixarem de viver… alguns homens deixam de viver antes de começarem. ”(XXIII.11)

(imagem Antoine-François Callet (1741 – 1823) interpretação barroca da  Saturnalia – 1783)


XXIII. Sobre a verdadeira alegria que vem da filosofia

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você acha que eu vou escrever-lhe como a temporada de inverno tem nos tratado com gentileza – uma estação curta e suave – ou que primavera desagradável estamos tendo – tempo frio fora de época – e todos as outras trivialidades que as pessoas escrevem quando estão sem assunto? Não; vou transmitir algo que pode ajudar tanto a você como a mim. E o que deve ser esse “algo”, senão uma exortação à solidez da mente? Você pergunta qual é o fundamento de uma mente sã? É, não encontrar satisfação em coisas inúteis. Eu disse que era o fundamento; é realmente o pináculo.
  2. Chegamos às alturas quando sabemos o que é que nos alegra e quando não colocamos nossa felicidade sob controle externo. O homem que é incitado pela esperança de qualquer coisa, embora a tenha ao alcance, embora esteja a fácil acesso, e embora suas ambições nunca o tenha enganado, é perturbado e inseguro de si mesmo.
  3. Acima de tudo, meu caro Lucílio, faça deste seu negócio: aprenda a sentir alegria. Você acha que agora estou roubando-lhe muitos prazeres quando eu tento acabar com os presentes da fortuna, quando eu aconselho a evitar a esperança, a coisa mais doce que alegra nossos corações? Pelo contrário; eu não desejo nunca que você seja privado de alegria. Eu a teria inata em sua casa; e ela nascerá lá, apenas se estiver dentro de você. Outros objetos de conforto não enchem o peito de um homem; eles apenas suavizam a testa e são inconstantes, a menos que você acredite que aquele que ri tem alegria. A própria alma deve ser feliz e confiante, elevada acima de todas as circunstâncias.
  4. Alegria real, acredite, é uma questão severa. Pode alguém, você acha, menosprezar a morte com um semblante despreocupado, ou com uma expressão “jovial e alegre”, como nossos jovens janotas estão acostumados a dizer? Ou, então, pode-se abrir a porta para a pobreza, ou restringir seus prazeres, ou contemplar a tolerância da dor? Aquele que pondera estas coisas em seu coração está realmente cheio de alegria; mas não é uma alegria bem disposta. É apenas essa alegria, porém, da qual eu gostaria que você se tornasse o dono; pois nunca o falhará quando encontrar sua fonte.
  5. O rendimento das minas medíocres fica na superfície; aquelas que são realmente ricas as veias emboscam-se profundamente, e elas trarão retornos mais generosos para aquele que mergulha continuamente. Assim também são bugigangas que deleitam a multidão comum pois proporcionam apenas um prazer superficial, colocado somente como um revestimento, e o mesmo é com a alegria banhada, a qual falta base real. Mas a alegria de que falo, aquela a que estou me esforçando para conduzi-lo, é algo sólido, revelando-se mais plenamente à medida que você nela penetra.
  6. Portanto, peço-lhe, meu querido Lucílio, faça a única coisa que pode tornar-lhe realmente feliz: despreze todas as coisas que brilham exteriormente e que são oferecidas a você ou a qualquer outro; olhe para o verdadeiro bem, e alegre-se apenas naquilo que vem de seu depósito. E o que quero dizer com “seu depósito”? Eu quero dizer de seu próprio eu, que é a melhor parte de você. O corpo frágil também, embora não consigamos fazer nada sem ele, deve ser considerado apenas necessário, e não tão importante; envolve-nos em prazeres fúteis, de curta duração, e logo a serem lamentados, a menos que sejam controlados por um extremo autocontrole, tais prazeres serão transformados em antagônicos. Isso é o que quero dizer: o prazer, a menos que tenha sido mantido dentro dos limites, tende a nos precipitar no abismo da tristeza. Mas é difícil manter limites dentro daquilo que você acredita ser bom. O verdadeiro bem pode ser cobiçado com segurança.
  7. Você me pergunta qual é o verdadeiro bem, e de onde deriva? Digo-o: vem de uma boa consciência, de propósitos honrosos, de ações corretas, de desprezo dos presentes da fortuna, de um modo de vida equilibrado e tranquilo que trilha apenas um caminho. Para os homens que saltam de um propósito para outro, ou não sequer pulam, mas são carregados por uma espécie de aventura, – como podem essas pessoas vacilantes e instáveis possuirem qualquer bem que é fixo e duradouro?
  8. Existem poucos que controlam a si mesmos e seus negócios por um propósito direcionado; O restante não prossegue; eles são simplesmente varridos, como objetos flutuando em um rio. E desses objetos, alguns são retidos por águas lentas e são transportados suavemente; outros são despedaçados por uma corrente mais violenta; alguns, que estão mais próximos da margem, são deixados lá onde a correnteza afrouxa; e outros são levados para o mar pelo avanço da correnteza. Portanto, devemos decidir o que desejamos, e respeitar a decisão.
  9. Agora é a hora de pagar minha dívida. Eu posso dar-lhe um provérbio de seu amigo Epicuro e assim livrar esta carta de sua obrigação. “É incômodo sempre estar começando a vida.” Ou outra, que talvez expressará melhor o significado: “Vivem doentes aqueles que estão sempre começando a viver“.
  10. Você está certo em perguntar por que; o ditado certamente precisa de um comentário. É porque a vida dessas pessoas é sempre incompleta. Mas um homem não pode estar preparado para a aproximação da morte se ele acaba de começar a viver. Precisamos tornar nosso objetivo já ter vivido o suficiente. Ninguém pensa que tenha feito isso, se está sempre na etapa de planejar sua vida.
  11. Você não precisa pensar que há poucos deste tipo; praticamente todos são de tal cunho. Alguns homens, na verdade, só começam a viver quando é hora de deixarem de viver. E se isso lhe parece surpreendente, acrescento o que mais o surpreenderá: alguns homens deixam de viver antes de começarem.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.