Carta 11: Sobre o rubor da modéstia

A 11ª carta a Lucílio trata de dois princípios estoicos cruciais.

Sêneca começa com o tópico improvável de corar, algo que simplesmente não podemos evitar, não importa o quão bravamente tentamos. Ele diz a seu amigo que “nenhuma sabedoria consegue remover as fragilidades naturais do corpo. O que é intrínseco e inato pode ser atenuado pelo treinamento, mas não totalmente superado”. (XI.1)

Esta é uma visão notável e um reconhecimento imediato dos limites da filosofia: a própria sabedoria, o principal bem de acordo com os estoicos, não pode superar nossas predisposições naturais e reações inatas. Se experimentarmos um constrangimento, coramos, se sentirmos medo ou raiva, não podemos evitar a precipitação da adrenalina. Tudo isso está fora do nosso controle e, portanto, Epicteto mais tarde diria, “não é nosso encargo“.

Isso estabelecido, Sêneca continua com o que ele pensa ser bom conselho:  cultivar a sabedoria apesar das suas limitações. Mas, como cultivamos sabedoria exatamente? Pode ser ensinada?  A resposta de Seneca é o estoicismo por excelência:

“Estime um homem de grande caráter, e mantenha-o sempre diante de seus olhos, vivendo como se ele estivesse observando você, e arranjando todas as suas ações como se ele as tivesse visto” (XI.8)… “Escolha, portanto, um Catão; ou, se Catão lhe parece um modelo muito severo, escolha um Lélio, um espírito mais suave… Pois precisamos ter alguém segundo o qual podemos ajustar nossas características; você nunca pode endireitar o que é torto a menos que você use uma régua.” (XI.10)

A escolha do seu exemplo pessoal depende de você, mas escolha bem, continue praticando ao imaginar que ele ou ela sempre olha sobre seus ombros, e seu bastão torto será gradualmente endireitado com a ajuda da régua reta.

Imagem: Morte de Catão por Pierre Bouillon. Catão era o melhor exemplo de conduta estoica para Sêneca.

Livros citados:

   

XI: Sobre o rubor da modéstia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

  1. Seu amigo e eu tivemos uma conversa. Ele é um homem de habilidade; suas primeiras palavras mostraram que espírito e compreensão possui, e o progresso que já fez. Ele me deu uma amostra, e ele não deixará de corresponder. Pois ele não falou de forma ensaiada, mas subitamente pego da surpresa. Quando tentava se recompor, mal podia banir aquele nuance de modéstia, que é um bom sinal em um jovem; o rubor que se espalhava pelo seu rosto parecia erguer-se das profundezas. E tenho certeza de que seu hábito de corar ficará com ele depois que tiver fortalecido seu caráter, retirado todos seus defeitos e se tornado sábio. Pois nenhuma sabedoria consegue remover as fraquezas naturais do corpo. O que é intrínseco e inato pode ser atenuado pelo treinamento, mas não totalmente superado.
  2. O orador mais firme, quando diante do público, muitas vezes mostra-se em transpiração, como se estivesse esgotado ou exausto; alguns tremem nos joelhos quando se levantam para falar; conheço alguns cujos dentes rangem, cujas línguas vacilam, cujos lábios tremem. Treinamento e experiência nunca podem livrar essas características; A natureza exerce seu próprio poder e através de tal fraqueza faz sua presença conhecida até mesmo para o mais forte.
  3. Sei que o rubor também é uma característica desse tipo, espalhando-se repentinamente sobre os rostos dos homens mais dignos. É, de fato, mais prevalente na juventude, por causa do sangue mais quente e do rosto sensível; no entanto, ambos homens experientes e homens idosos são afetados por ele. Alguns são mais perigosos quando se enrubescem, como se estivessem deixando escapar todo seu senso de vergonha.
  4. Sula[1], quando o sangue cobria suas bochechas, estava em seu humor mais feroz. Pompeu possuía o matiz mais sensível; ele sempre corava na presença de uma aglomeração, e especialmente em uma assembleia pública. Fabiano também, lembro-me, ficava avermelhado quando aparecia como testemunha perante o Senado; e seu embaraço tornou-se notável.
  5. Tal hábito não é devido à fraqueza mental, mas à novidade de uma situação; uma pessoa inexperiente não é necessariamente confusa, mas é geralmente afetada, porque ela se desliza para este hábito por tendência natural do corpo. Assim como certos homens são cheios de sangue, outros são de um sangue rápido e móvel, que corre para o rosto de uma vez.
  6. Como eu disse, a sabedoria nunca pode remover esta característica; pois se ela pudesse eliminar todas as nossas falhas, ela seria a dona do universo. Tudo o que nos é atribuído pelas cláusulas de nosso nascimento e a mistura em nossa constituição, ficará conosco, não importa quão arduamente ou quanto tempo a alma pode ter tentado dominar a si mesma. E não podemos impedir esses sentimentos mais do que podemos invoca-los.
  7. Atores no teatro, que imitam as emoções, que retratam o medo e o nervosismo, que retratam a tristeza, imitam a timidez, pendurando a cabeça, abaixando as vozes e mantendo os olhos fixos e enraizados no chão. Eles não podem, no entanto, invocar um rubor; pois o rubor não pode ser prevenido ou convocado. A sabedoria não nos assegurará um remédio, nem nos dará ajuda; o rubor vem ou vai espontaneamente, e é uma lei em si mesmo.
  8. Mas a minha carta pede a sua frase de encerramento. Ouça e atente para este lema útil e saudável: “Estime um homem de grande caráter, e mantenha-o sempre diante de seus olhos, vivendo como se ele estivesse observando você, e arranjando todas as suas ações como se ele as tivesse visto“.
  9. Tal, meu caro Lucílio, é o conselho de Epicuro; ele nos deu um guardião e um criado. Podemos nos livrar da maioria dos pecados, se tivermos uma testemunha que esteja perto de nós quando estivermos propensos a fazer algo errado. A alma deve ter alguém a quem possa respeitar, alguém por cuja autoridade pode tornar ainda mais sagrado o seu santuário interior. Feliz é o homem que pode fazer os outros melhores, não apenas quando ele está em sua companhia, mas mesmo quando ele está em seus pensamentos! E feliz também é aquele que pode assim reverenciar um homem como para acalmar-se e orientar-se, chamando-lhe à mente! Aquele que pode reverenciar a outro, logo se tornará digno de reverência.
  10. Escolha, portanto, um Catão; ou, se Catão lhe parece um modelo muito severo, escolha um Lélio, um espírito mais suave. Escolha um mestre cuja vida, discurso e expressão o tenha satisfeito; imagine-o sempre para si mesmo como seu protetor ou seu exemplo. Pois precisamos ter alguém segundo o qual podemos ajustar nossas características; você nunca pode endireitar o que é torto a menos que você use uma régua.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Lúcio Cornélio Sula, foi um político da gente Cornélia da República Romana eleito cônsul por duas vezes. Foi também eleito ditador em 82 a.C., o primeiro desde o final do século III a.C..