Carta 58: Sobre Ser, Existir e Eutanásia

A carta 58 começa com uma longa reflexão sobre a língua latina e avança para a discussão da metafísica platônica e sua distinção das teses do estoicismo.

O cerne da carta é a afirmação de que, afinal, esse debate de granularidade fina (subtilittts) não é de grande proveito prático; mas podemos usá-lo como oportunidade para refletir sobre a natureza transitória das entidades corpóreas, incluindo, é claro, nós mesmos:

“Muito bem”, diz você, “de que adianta eu obter de todo este bom raciocínio?” De nada, se você deseja que eu responda a sua pergunta. … Esse é o meu hábito, Lucílio: eu tento extrair e tornar útil algum elemento de cada campo do pensamento, não importa quão distante possa ser da filosofia. (LVIII, 25-26)

A mensagem de Sêneca é sobre eutanásia e o valor da vida dizendo que:

É um prazer estar na própria companhia o maior tempo possível, quando um homem se fez valer a pena. A questão, portanto, sobre a qual devemos registrar nosso julgamento, é se alguém deve fugir da extrema velhice e deve apressar o fim artificialmente, em vez de esperar que ele venha. … Pois faz muita diferença se um homem está alongando sua vida ou sua morte. (LVIII, 32-33)

A conclusão de Sêneca é clara e definitiva:

“se a velhice começar a despedaçar a minha mente e a rasgar em pedaços as suas várias faculdades, se ela me deixa, não a vida, mas apenas o sopro da vida, sairei correndo de uma casa que está desmoronando e cambaleando”.  Não vou evitar a doença procurando a morte, desde que a doença seja curável e não impeça minha alma.  Aquele que morre apenas porque está com dor é um fraco, um covarde; mas aquele que vive apenas para afrontar esta dor, é um tolo. (LVIII, 35-36)

Como comumente o faz, Sêneca termina a longa carta monstrando seu excelente bom humor, dizendo que “como um homem pode terminar sua vida, se ele não pode terminar uma carta? Então, adeus

(imagem escultura por Kenneth Treister museu do Holocausto Miami)


LVIII. Sobre Ser, Existir e Eutanásia

Saudações de Sêneca a Lucílio.

1.  Quão escassa de palavras nossa linguagem é, não, quão miserável, eu não havia entendido completamente até hoje. Passamos a falar de Platão, e mil assuntos vieram à discussão, que precisavam de nomes e ainda não possuíam nenhum; e havia outros que, certa vez, possuíram, mas perderam suas palavras, porque éramos muito sutis quanto ao uso delas. Mas quem pode suportar ser agradável no meio da pobreza? Há um inseto, chamado pelos gregos de “oestrus”[1], que torna o gado selvagem e os põem em fuga sobre suas pastagens; ele costumava ser chamado “asilus” em nossa língua, como você pode acreditar pela autoridade de Virgílio:

2. Perto dos bosques de Silarus, e perto de Alburnus máscaras
de carvalhos verde-folheados voa um inseto, nomeado
Asilus pelos romanos; No grego
a palavra usada é oestro. Com um som áspero
e estridente ele zune e faz selvagens
Os rebanhos aterrorizados pelo bosque. [2]

3. Por isso eu inferi que a palavra está fora de uso. E, para não fazer você esperar muito tempo, havia certas palavras simples atuais, como “cernere ferro inter se“, como será provado novamente por Virgílio:

Grandes heróis, nascidos em várias terras, tinham vindo
Para decidir assuntos mutuamente com a espada. [3]

Este “decidir assuntos” que nós expressamos agora por “decernere“. A palavra simples tornou-se obsoleta.

4. Os antigos costumavam dizer “iusso“, em vez de “iussero“, em cláusulas condicionais. Você não precisa tomar a minha palavra, mas você pode voltar-se novamente para Virgílio:

Os outros soldados conduzirão a luta
Comigo, onde vou oferecer. [4]

5. Não é meu propósito demonstrar, por este conjunto de exemplos, quanto tempo desperdicei no estudo da linguagem; quero apenas que você entenda quantas palavras, atuais nas obras de Ênio e Ácio, se tornaram mofadas com a idade; enquanto que mesmo no caso de Virgílio, cujas obras são exploradas diariamente, algumas de suas palavras foram furtadas de nós.

6. Você vai dizer, eu suponho: “Qual é o propósito e significado deste preâmbulo?” Não te deixarei no escuro; Desejo, se possível, dizer a palavra “essentia” para você e obter uma compreensão favorável. Se eu não posso fazer isso, vou arriscar, mesmo que isso lhe deixe de mal humor. Eu tenho Cícero como autoridade para o uso desta palavra, e eu considero-o como uma poderosa autoridade. Se você desejar testemunho de uma data posterior, citarei Fabiano, cuidadoso na linguagem, refinado, e tão polido em estilo que vai se adequar aos nossos finos gostos. Porque o que podemos fazer, meu querido Lucílio? De que outra forma podemos encontrar uma palavra para aquilo que os gregos chamam de “οὐσία[5], algo que é indispensável, algo que é o substrato natural de tudo? Peço-lhe, portanto, que me permita usar esta palavra essencial. No entanto, tomarei o cuidado de exercer o privilégio que me concedeu, com a mão mais cuidadosa possível; talvez eu me contente com o mero direito.

7. Contudo, de que me servirá a sua indulgência, se eis que não posso expressar, em latim, o significado da palavra que me deu a oportunidade de percorrer a pobreza da nossa língua? E você condenará nossos estreitos limites romanos ainda mais, quando descobrir que há uma palavra de uma sílaba que eu não posso traduzir. “O que é isso?” Você pergunta. É a palavra “ὄν”. Você acha que eu não tenho habilidade; você acredita que a palavra está pronta para ser traduzida por “quod est[6]. Noto, no entanto, uma grande diferença; você está me forçando a apresentar um substantivo por um verbo.

8. Mas se eu tiver que fazê-lo, eu o farei por quod est. Há seis maneiras pelas quais Platão expressa esta ideia, de acordo com um amigo nosso, um homem de grande conhecimento, que mencionou o fato hoje. E vou explicá-las todas a você, se eu puder primeiro apontar que há algo chamado gênero e algo chamado espécie. Por ora, porém, buscamos a ideia primária do gênero, do qual dependem as outras, as diferentes espécies, que é a fonte de toda classificação, o termo sob o qual as ideias universais são abraçadas. E a ideia de gênero será alcançada se começarmos a considerar a partir das características; pois assim seremos conduzidos de volta à noção principal.

9. Agora, “homem” é uma espécie, como diz Aristóteles; assim também é “cavalo”, ou “cão”. Devemos, portanto, descobrir algum vínculo comum para todos esses termos, um que os abrace e os mantenha subordinados a si mesmo. E o que é isso? É “animal”. E assim começa a haver um gênero “animal”, incluindo todos esses termos, “homem”, “cavalo” e “cachorro”.

10. Mas há certas coisas que têm vida (anima) e ainda não são “animais”. Pois é pacífico que as plantas e as árvores possuem vida, e é por isso que falamos deles como vivos ou moribundos. Portanto, o termo “seres vivos” ocupará um lugar ainda mais alto, porque tanto os animais como as plantas estão incluídos nessa categoria. Certos objetos, entretanto, não têm vida, tais como pedras. Haverá, portanto, outro termo para ter precedência sobre “seres vivos”, e que é “substância”. Eu classificarei a “substância” dizendo que todas as substâncias são animadas ou inanimadas.

11. Mas ainda há algo superior à “substância”; porque falamos de certas coisas como possuidoras de substância, e de certas coisas como carentes de substância. Qual será, então, o termo a partir do qual essas coisas derivam? É aquilo a que ultimamente deram um nome impróprio, “o que é”[7]. Pois, usando este termo, eles serão divididos em espécies, de modo que possamos dizer: o que existe ou possui, ou não, substância.

12. Este, portanto, é o gênero que é, – o primário, original e (para brincar com a palavra) “geral”. Claro que existem os outros gêneros: mas eles são gêneros “especiais”: “homem” é, por exemplo, um gênero. Pois “homem” abrange espécies: por nações, – grego, romano, parto; por cores, – branco, preto, amarelo. O termo compreende indivíduos também: Catão, Cicero, Lucrécio. Assim, o “homem” cai na categoria gênero, na medida em que inclui muitos tipos; Mas na medida em que é subordinado a um outro termo, cai na categoria espécie. Mas o gênero “o que é” é geral, e não tem um termo superior a ele. É o primeiro termo na classificação das coisas, e todas as coisas estão incluídas nele.

13. Os estoicos colocariam à frente desse gênero outro ainda mais primário; A respeito do qual falarei imediatamente, depois de provar que o gênero que foi discutido acima foi corretamente colocado em primeiro lugar, sendo, como é, capaz de incluir tudo.

14. Eu por conseguinte, distribuo “o que é” nestas duas espécies, – coisas com, e coisas sem, substância. Não há terceira classe. E como eu distribuo “substância”? Dizendo que é animado ou inanimado. E como faço para distribuir o “animado”? Ao dizer: “Certas coisas têm mente, enquanto outros têm apenas vida.” Ou a ideia pode ser expressa da seguinte maneira: “Certas coisas têm o poder de movimento, de progresso, de mudança de posição, enquanto outras estão enraizadas na terra, são alimentadas e crescem somente através de suas raízes”. Novamente, em quais espécies eu divido “animais”? São perecíveis ou imperecíveis.

15. Alguns estoicos consideram o gênero primário como o “algo”. Vou acrescentar as razões que dão para a sua crença; eles dizem: “na ordem da natureza algumas coisas existem, e outras coisas não existem. E mesmo as coisas que não existem realmente são parte da ordem da natureza. Por exemplo centauros, gigantes, e todas as outras invenções de raciocínio doentio, que começaram a ter uma forma definida, embora não tenham consistência corporal “.

16. Mas eu volto agora ao assunto que eu prometi discutir para você, a saber, como é que Platão divide todas as coisas existentes em seis maneiras diferentes. A primeira classe de “o que é” não pode ser alcançada pela visão ou pelo toque, ou por qualquer dos sentidos; mas pode ser alcançada pelo pensamento. Qualquer concepção genérica, tal como a ideia genérica “homem”, não entra no alcance dos olhos; mas o “homem” em particular o faz; como, por exemplo, Cícero, Catão. O termo “animal” não é visto; Ele é compreendido apenas pelo pensamento. Um animal em particular, no entanto, é visto, por exemplo, um cavalo, um cão.

17. A segunda classe de “coisas que existem”, de acordo com Platão, é a que é eminente e se destaca acima de tudo; isso, diz ele, existe em um grau preeminente. A palavra “poeta” é usada indiscriminadamente, pois este termo é aplicado a todos os escritores de verso; mas entre os gregos passou a ser a marca distintiva de um único indivíduo. Você sabe que Homero é subentendido quando você ouve os homens dizerem “o poeta”. Qual é, então, este Ser preeminente? Deus, certamente, aquele que é maior e mais poderoso do que qualquer outro.

18. A terceira classe é composta das coisas que existem no sentido próprio do termo; elas são incontáveis em número, mas estão situadas além de nossa visão. “Quem são esses?” Você pergunta. São os próprios mobiliários de Platão, por assim dizer; ele os chama de “ideias”, e delas todas as coisas visíveis são criadas, e de acordo com seu padrão todas as coisas são feitas. Elas são imortais, imutáveis, invioláveis.

19. E esta “ideia”, ou melhor, a concepção de Platão sobre ela, é a seguinte: “A ´ideia´ é o molde eterno das coisas que são criadas pela natureza”. Vou explicar esta definição, a fim de colocar o assunto diante de você em uma luz mais clara: Suponha que eu gostaria de fazer uma semelhança de você; eu possuo em sua própria pessoa o padrão deste quadro, do qual minha mente recebe um certo esboço, que é para incorporar em sua própria obra. Essa aparência externa, então, que me dá instrução e orientação, esse padrão para eu imitar, é a “ideia”. Tais padrões, portanto, a natureza possui em número infinito, – de homens, peixes, árvores, segundo cujo modelo tudo o que a natureza tem para criar é elaborado.

20. Em quarto lugar, colocaremos “forma”. E se você souber o que significa “forma”, você deve prestar muita atenção, chamando Platão, e não eu, para explicar a dificuldade do assunto. No entanto, não podemos fazer distinções finas sem encontrar dificuldades. Um momento atrás eu fiz uso do artista como uma ilustração. Quando o artista desejava reproduzir Virgílio em cores, ele olhava para o próprio Virgílio. A “ideia” era a aparência externa de Virgílio, e este era o padrão do trabalho pretendido. Aquilo que o artista extrai dessa “ideia” e encarna em sua própria obra, é a “forma”.

21. Você me pergunta onde está a diferença? O primeiro é o padrão; enquanto a última é a forma retirada do padrão e incorporada no trabalho. Nosso artista segue um, mas cria o outro. Uma estátua tem uma certa aparência externa; esta aparência externa da estátua é a “forma”. E o próprio padrão tem uma certa aparência externa, ao contemplar sobre este o escultor moldou sua estátua; esta é a “ideia”. Se você deseja uma distinção adicional, direi que a “forma” está na obra do artista, a “ideia” fora de sua obra, e não apenas fora dela, mas anterior a ela.

22. A quinta classe é composta das coisas que existem no sentido usual do termo. Essas coisas são as primeiras que têm a ver conosco; aqui temos todas as coisas como homens, gado e coisas. Na sexta classe vai tudo o que tem uma existência fictícia, como vazio, ou tempo. Tudo o que é concreto à visão ou ao toque, Platão não inclui entre as coisas que ele acredita serem existentes no sentido estrito do termo. Essas coisas são as primeiras que têm a ver conosco: aqui temos todas as coisas como homens, gado e coisas. Pois eles estão em um estado de fluxo, constantemente diminuindo ou aumentando. Nenhum de nós é o mesmo homem na velhice que foi na juventude; nem o mesmo no dia seguinte que no dia anterior. Nossos corpos são forjados ao longo como águas fluindo; cada objeto visível acompanha o tempo em sua jornada; das coisas que vemos, nada é fixo. Mesmo eu mesmo, ao comentar sobre essa mudança, estou mudado.

23. É exatamente o que diz Heráclito: “Entramos duas vezes no mesmo rio, e, contudo, num rio diferente.” Pois o curso de água ainda mantém o mesmo nome, mas a água já fluiu ao longo. Claro que isto é muito mais evidente nos rios do que nos seres humanos. Ainda assim, nós, mortais, também somos levados por caminho não menos rápido; e isso me leva a maravilhar-me com a nossa loucura em nos unir com grande afeição a uma coisa tão fugaz como o corpo, e temendo que algum dia nós morramos, quando cada instante significa a morte de nossa condição anterior. Você não vai parar de temer que isso aconteça uma vez que realmente acontece todos os dias?

24. Tanto para o homem, – uma substância que flui e decai, exposta a toda influência; mas também o universo, imortal e duradouro como é, muda e nunca permanece o mesmo. Pois embora tenha em si tudo o que tem, tem-no de uma maneira diferente daquela em que o tinha tido; ele continua mudando seu arranjo.

25. “Muito bem”, diz você, “de que adianta eu obter de todo este bom raciocínio?” De nada, se você deseja que eu responda a sua pergunta. No entanto, assim como um escultor repousa seus olhos quando há muito estão sob tensão e estão cansados, e os retira de seu trabalho, e “os regala”, como diz o ditado; por isso, às vezes, devemos afrouxar nossas mentes e refrescá-las com algum tipo de entretenimento. Mas deixe até nosso entretenimento ser trabalho; e mesmo a partir dessas várias formas de entretenimento que você vai escolher, se você tem estado atento, será algo que pode provar salutar.

26. Esse é o meu hábito, Lucílio: eu tento extrair e tornar útil algum elemento de cada campo do pensamento, não importa quão distante possa ser da filosofia. Agora, o que poderia ser menos provável de reformar o caráter do que os assuntos que temos discutido? E como posso ser feito um homem melhor pelas “ideias” de Platão? O que posso tirar delas que ponha um controle sobre os meus apetites? Talvez o próprio pensamento de que todas estas coisas que ministram aos nossos sentidos, que nos despertam e excitam, são por Platão negadas um lugar entre as coisas que realmente existem.

27. Tais coisas são, portanto, imaginárias e, embora, por enquanto, apresentem uma certa aparência externa, no entanto elas não são em nenhum caso permanentes ou substanciais; Não obstante, nós as desejamos como se fossem existir para sempre, ou como se nós pudéssemos os possuir para sempre. Somos seres fracos e aquosos em pé no meio de irrealidades; portanto, voltemos nossas mentes para as coisas que são eternas. Olhemos para os contornos ideais de todas as coisas, que voam em alto e para o Deus que se move entre elas e planeja como pode defender da morte o que não poderia tornar imperecível porque sua substância impede, e assim por raciocínio pode superar os defeitos do corpo.

28. Porque todas as coisas permanecem, não porque sejam eternas, mas porque são protegidas pelo cuidado de quem governa todas as coisas; mas o que é imperecível não precisa de um guardião. O mestre construtor os mantém seguros, superando a fraqueza de seu tecido por seu próprio poder. Desprezemos tudo o que é tão pouco objeto de valor que nos faz duvidar se Ele existe.

29. Reflitamos ao mesmo tempo, visto que a providência resgata de seus perigos o próprio mundo, que não é menos mortal do que nós mesmos, que até certo ponto nossos corpos mesquinhos podem ser obrigados a permanecer mais tempo na terra por nossa própria providência, se apenas adquirimos a capacidade de controlar e reprimir os prazeres em que a maior parte da humanidade perece.

30. O próprio Platão, a todo o custo, avançou para a velhice. Certamente, ele era o possuidor afortunado de um corpo forte e sadio (seu próprio nome lhe foi dado por causa de seu peito largo); mas sua força foi muito prejudicada por viagens marítimas e aventuras terríveis. No entanto, por meio da vida frugal, estabelecendo um limite sobre tudo o que desperta os apetites, e por uma atenção cuidadosa a si mesmo, ele alcançou essa idade avançada, apesar de muitos obstáculos.

31. Você sabe, tenho certeza, que Platão teve a sorte, graças a sua vida cuidadosa, de morrer no seu aniversário, depois de completar exatamente o seu octogésimo primeiro ano. Por esta razão, os sábios do Oriente, que por acaso estava em Atenas naquela época, sacrificaram-se a ele depois de sua morte, acreditando que sua duração de dias estava muito plena para um homem mortal, uma vez que ele havia completado o número perfeito de nove vezes nove. Eu não duvido que ele teria sido bastante disposto a renunciar a alguns dias a partir deste total, bem como o sacrifício.

32. A vida frugal pode levar alguém à velhice; e para mim a velhice não é para ser recusada, não mais do que deve ser desejada. É um prazer estar na própria companhia o maior tempo possível, quando um homem se fez valer a pena. A questão, portanto, sobre a qual devemos registrar nosso julgamento, é se alguém deve fugir da extrema velhice e deve apressar o fim artificialmente, em vez de esperar que ele venha. Um homem que espera lentamente seu destino é quase um covarde, assim como é exageradamente dado ao vinho aquele que drena o frasco e suga até mesmo a borra.

33. Mas nós faremos esta pergunta também: “A extremidade da vida é a escória, ou é a parte mais clara e pura de todas, desde que apenas a mente esteja desimpedida, e os sentidos, ainda sãos, deem seu apoio ao Espírito, e o corpo não esteja desgastado e morto antes de seu tempo?” Pois faz muita diferença se um homem está alongando sua vida ou sua morte.

34. Mas se o corpo é inútil para o serviço, por que não se deve libertar a alma lutadora? Talvez devêssemos fazer isto um pouco antes que a dívida seja devida, para que, quando vencer, se possa ser capaz de executar o ato. E como o perigo de viver na miséria é maior do que o risco de morrer logo, é um tolo aquele que se recusa a apostar um pouco de tempo e arriscar ganhar um formidável lucro. Poucos têm durado pela extrema velhice até a morte sem prejuízo, e muitos têm estado inertes, não fazendo uso de si mesmos. Quão mais cruel, então, você acha que realmente é ter perdido uma porção de sua vida, do que ter perdido o direito de terminar essa vida?

35. Não me ouça com relutância, como se a minha declaração se aplicasse diretamente a você, mas pondere o que tenho a dizer. É isto que eu não abandonarei na velhice, se a velhice me preservar intacto para mim, e intacto quanto à melhor parte de mim mesmo; mas se a velhice começar a despedaçar a minha mente e a rasgar em pedaços as suas várias faculdades, se ela me deixa, não a vida, mas apenas o sopro da vida, sairei correndo de uma casa que está desmoronando e cambaleando.

36. Não vou evitar a doença procurando a morte, desde que a doença seja curável e não impeça minha alma. Não porei mãos violentas sobre mim só porque estou com dor; pois a morte em tais circunstâncias é a derrota. Mas se eu descobrir que a dor deve sempre ser suportada, devo partir, não por causa da dor, mas porque ela será um obstáculo para mim no que diz respeito a todas as minhas razões para viver. Aquele que morre apenas porque está com dor é um fraco, um covarde; mas aquele que vive apenas para afrontar esta dor, é um tolo.

37. Mas estou discorrendo por muito tempo; e, além disso, há matéria aqui para encher um dia. E como um homem pode terminar sua vida, se ele não pode terminar uma carta? Então, adeus[8]. Esta última palavra você vai ler com maior prazer do que toda minha conversa mortal sobre a morte.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

 


[1] A Mutuca.

[2] Trecho de Eneida de Virgílio.
Est lucum Silari iuxta ! ilicibusque virentem
Plurimus Alburnum volitans, cui nomen asilo
Romanum est, oestrum Grai vertere vocantes,
Asper, acerba sonans, quo tota exterrita silvis
Diffugiunt armenta.

[3] Trecho de Georgicas de Virgílio.Ingentis genitos diversis partibus orbis
Inter se coiisse viros et cernere ferro.

[4] Trecho de Eneida de Virgílio.
Cetera, qua iusso, mecum manus inferat arma.

[5] Ousía (οὐσία, pronúncia moderna “ussía”) é um substantivo da língua grega formado a partir do feminino do particípio presente do verbo “ser”, εἶναι. A palavra é, por vezes, traduzida para português como substância ou essência, devido à sua vulgar tradução para latim como substantia ou essentia.

[6] O que é.

[7] quod est.

[8] A palavra latina “vale” significa tanto adeus como também “fique bem”