Carta 29: Sobre evitar ajudar os não interessados

Na carta 29 Sêneca nos ensina que não devemos tentar ajudar aqueles que não pediram ajuda ou os que não se interessam por nossos ensinamentos: “não se deve falar com um homem a menos que ele esteja disposto a ouvir.” (XXIX, 1)

Segundo Sêneca, quando distribuímos nossa ajuda indiscriminadamente esta é diluída e enfraquecida: “O arqueiro não deve atingir ao alvo apenas às vezes; ele deve errar apenas às vezes. Aquilo que é eficaz por acaso não é uma arte. Ora, a sabedoria é uma arte; ela deve ter um objetivo definido, escolhendo apenas aqueles que farão progresso, mas se afastando daqueles a quem considera incorrigíveis, mas não os abandonando prematuramente, e apenas quando o caso se mostra sem solução mesmo após tentado remédios drásticos.“(XXIX, 3)

Conclui a carta com mais uma frase de Epicuro: “Eu nunca quis atender à multidão, pois o que eu sei, eles não aprovam, e o que eles aprovam, eu não sei.”(XXIX, 10)

(Imagem Platão e Aristóteles em “Escola de Atenas” por Raphael)


Carta XXIX: Sobre evitar ajudar os não interessados

Saudações de Sêneca a Lucílio.  

  1. Você tem perguntado sobre o nosso amigo Marcelino e você deseja saber como ele está se dando. Ele raramente vem me ver, por nenhuma outra razão senão que ele tem medo de ouvir a verdade, e no momento está se mantendo afastado do perigo de ouvi-la; pois não se deve falar com um homem a menos que ele esteja disposto a ouvir. É por isso que muitas vezes se questiona se Diógenes[1] e os outros cínicos, que empregavam uma liberdade de expressão sem discernimento e ofereciam conselhos a qualquer um que se interpusesse, deveriam ter seguido esse caminho.
  2. Por que se deve reprimir os surdos ou aqueles que são mudos de nascimento ou por doença? Mas você responde: “Por que eu deveria poupar palavras? Elas não custam nada. Eu não posso saber se irei ajudar o homem a quem dou conselhos, mas sei bem que vou ajudar alguém se eu aconselhar muitos. Eu tenho que disseminar este conselho a mão-cheia. É impossível que alguém que tente muitas vezes não tenha sucesso alguma vez.”
  3. Esta prática, meu caro Lucílio, é, creio eu, exatamente o que um homem de grande alma não deve fazer; sua influência está enfraquecida; ela tem muito pouco efeito sobre aqueles que poderia ajudar se não tivesse se tornado tão rançosa. O arqueiro não deve atingir ao alvo apenas às vezes; ele deve errar apenas às vezes. Aquilo que é eficaz por acaso não é uma arte. Ora, a sabedoria é uma arte; ela deve ter um objetivo definido, escolhendo apenas aqueles que farão progresso, mas se afastando daqueles a quem considera incorrigível, mas não os abandonando prematuramente, e apenas quando o caso se mostra sem solução mesmo após tentado remédios drásticos.
  4. Quanto ao nosso amigo Marcelino, ainda não perdi a esperança. Ele ainda pode ser salvo, mas a ajuda deve ser oferecida em breve. Há realmente o risco que possa prejudicar seu ajudante; pois há nele um caráter inato de grande vigor, embora inclinado à maldade. No entanto, enfrentarei esse perigo e serei corajoso o suficiente para lhe mostrar suas falhas.
  5. Ele agirá de acordo com sua maneira usual; ele recorrerá à sua inteligência, – a inteligência que pode gerar sorrisos mesmo de lamentos. Ele vai virar a brincadeira, primeiro contra si mesmo, e depois contra mim. Ele evitará todas as palavras que eu vou dizer. Ele questionará nossos sistemas filosóficos; ele acusará os filósofos de aceitar propinas, manter amantes e satisfazer seus apetites. Ele me mostrará um filósofo que foi apanhado em adultério, outro que assombra os cafés e outro que aparece na corte.
  6. Ele vai trazer a meu conhecimento Aristo, o filósofo de Marcus Lépido, que costumava manter discussões em sua carruagem; pois esse foi o tempo que ele levou para editar suas pesquisas, de modo que Escauro disse dele quando lhe perguntaram a que escola pertencia: “De qualquer modo, ele não é um dos filósofos caminhantes[2]“. Júlio Graecino também, homem de distinção, quando lhe pediu uma opinião sobre o mesmo ponto, respondeu: “Não posso lhe dizer, porque não sei o que ele faz quando desmontado”, como se a consulta se referisse a um gladiador de biga.
  7. São charlatões desse tipo, para quem seria mais meritório ter deixado a filosofia sozinha ao invés de traficar dela, que Marcelino vai jogar em meu rosto. Mas decidi resistir às provocações; ele pode me ridicularizar, mas eu talvez o leve às lágrimas; ou, se ele persistir em suas piadas, eu me alegrarei, por assim dizer, no meio da tristeza, porque ele é abençoado com uma espécie tão alegre de loucura. Mas esse tipo de alegria não dura muito. Observe esses homens, e você vai notar que em um curto espaço de tempo eles riem em excesso e encolerizam-se em excesso.
  8. É meu plano aproximar e mostrar-lhe quanto maior é seu valor quando muitos o desprezam. Mesmo que eu não extinga seus defeitos, vou pôr um controle sobre eles; eles não cessarão, mas pararão por um tempo; e talvez até cessem, se criarem o hábito de parar. Esta é uma coisa a não ser desprezada, uma vez que para homens seriamente feridos a bênção de um alívio é um substituto para a saúde.
  9. Então, enquanto me preparo para tratar com Marcelino, você, que é capaz, e que entende de onde e para onde vai seu caminho, e que, por essa razão tem uma ideia da distância a percorrer, ajuste seu caráter, desperte sua coragem, e fique firme em face das coisas que o tem aterrorizado. Não conte o número daqueles que inspiram medo em você. Você não consideraria como um tolo quem tem medo de uma multidão em um lugar onde pode passar só um por vez? Da mesma forma, não há muitos que têm possibilidade de matar você, embora haja muitos que ameaçam você com a morte. A natureza ordenou assim que, como somente um lhe deu vida, assim somente um a retirará.
  10. Se você tivesse alguma vergonha, você teria me liberado de pagar a última parcela. Ainda assim, também não serei sovina, mas irei exonerar minhas dívidas até o último centavo e forçar sobre você o que ainda devo: “Eu nunca quis atender à multidão, pois o que eu sei, eles não aprovam, e o que eles aprovam, eu não sei.”
  11. “Quem disse isso?” Você pergunta, como se fosse ignorante a quem eu estivesse insistindo em servir; é Epicuro. Mas esta mesma palavra de ordem soa em seus ouvidos por cada seita, – Peripatético, Académico[3], Estoico, Cínico. Pois quem é satisfeito pela virtude pode agradar à multidão? É preciso truques para ganhar aprovação popular; E tem de fazer-se semelhante a eles; eles vão recusar aprovação se eles não reconhecerem em você um de si próprios. No entanto, o que você pensa de si é muito mais do que o que os outros pensam de você. A benevolência dos homens ignóbeis só pode ser conquistada por meios ignóbeis.
  12. Qual será o benefício, então, daquela filosofia alardeada, cujos elogios cantamos e que, segundo se diz, deve ser preferida a toda arte e toda propriedade? Certamente, isso fará com que você prefira agradar a si mesmo ao invés da população, isso fará você ponderar, e não meramente contar, os julgamentos dos homens, vai fazer você viver sem medo de deuses ou homens, vai fazer você vencer males ou acabar eles. Caso contrário, se eu o vejo aplaudido pela aclamação popular, se a sua entrada na cena é saudada por um rugido de aplausos e aplausos, as marcas de distinção se valem apenas para atores, – se todo o estado, mesmo as mulheres e crianças, cantam seus louvores, como posso ajudar a apiedar-se de você? Pois eu sei a qual caminho leva a tal popularidade.

Mantenha-se Forte. Mantenha-se Bem.

[1] Diógenes de Sinope, também conhecido como Diógenes, o Cínico, foi um discípulo de Antístenes, antigo pupilo de Sócrates. Tornou-se um mendigo que habitava as ruas de Atenas, fazendo da pobreza extrema uma virtude; diz-se que teria vivido num grande barril, no lugar de uma casa, e perambulava pelas ruas carregando uma lamparina, durante o dia, alegando estar procurando por um homem honesto. O Cinismo foi uma corrente filosófica marcada por um ostensivo desprezo pelo conforto e prazer.

[2]Escola peripatética foi um círculo filosófico da Grécia Antiga que basicamente seguia os ensinamentos de Aristóteles, o fundador. Fundada em c.336 a.C., quando Aristóteles abriu a primeira escola filosófica no Liceu em Atenas, durou até o século IV. “Peripatético” (em grego clássico: περιπατητικός), é a palavra grega para ‘ambulante’ ou ‘itinerante’. Peripatéticos (ou ‘os que passeiam’) eram discípulos de Aristóteles,

[3]Academia de Platão (também chamada de Academia PlatônicaAcademia de Atenas ou Academia Antiga) é uma academia fundada por Platão, aproximadamente em 384/383 a.C..